Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
7023/2003-7
Relator: ABRANTES GERALDES
Descritores: APREENSÃO DE VEÍCULO
COMPRA E VENDA
RESERVA DE PROPRIEDADE
RESOLUÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 12/16/2003
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: NEGADO O PROVIMENTO.
Sumário: A apreensão de veículo automóvel constitui uma providência que, no que concerne ao contrato de compra e venda com reserva de propriedade, visa antecipar o efeito da resolução do contrato.
Requerida a providência na dependência de uma acção em que, em vez da resolução do contrato de compra e venda, é pedido o reconhecimento da validade da resolução do contrato de mútuo destinado a financiar a aquisição do veículo, a par do reconhecimento de que o mesmo pertence à beneficiária da reserva de propriedade, deve a providência ser indeferida por faltar o nexo de instrumentalidade em relação à acção principal.
Decisão Texto Integral: Agravo nº 7023-03-7ª Secção

I – A, PLC
e B, Ldª
por apenso a uma acção declarativa movida contra
C
instauraram um procedimento cautelar solicitando a apreensão de um veículo automóvel.
Para o efeito alegaram que a 2ª requerente vendeu à requerida um veículo cuja aquisição por esta foi financiada pela 1ª requerente, ficando reservada a favor daquela a propriedade do mesmo. A requerida deixou de efectuar o pagamento das prestações clausuladas no contrato de mútuo, o que, depois de ter sido interpelada a cumprir pela 1ª requerente, levou à declaração de resolução desse contrato.
A providência foi liminarmente indeferida.
Quanto à requerente A foi referido que não foi celebrado com a requerida qualquer contrato de compra e venda em que surja como vendedora, limitando-se esta a invocar a sua qualidade de mutuante. Em segundo lugar, invoca-se a falta de nexo de instrumentalidade relativamente à acção principal, onde a mutuante não pediu a resolução do contrato de compra e venda.
Quanto à requerente B foi invocada a falta de alegação de factos respeitantes à compra e venda e, designadamente, os termos que rodearam a cláusula de reserva de propriedade, além de não ter sido pedida na acção principal a resolução do contrato de compra e venda, mas apenas a resolução do contrato de mútuo.
Agravaram as requerentes e concluíram que:
(...)
Colhidos os vistos, cumpre decidir.
II – Decidindo:
1. As requerentes instauraram contra a requerida uma acção declarativa pedindo a declaração de validade da resolução do contrato de financiamento para aquisição a crédito do veículo automóvel que a requerente B vendeu à requerida, o reconhecimento de que o veículo pertence à requerente B e a condenação da requerida na entrega do mesmo veículo e no pagamento das prestações 36ª (parte) a 60ª e juros de mora. Alegam em tal acção a venda do veículo pela requerente B à requerida, o financiamento da aquisição por parte da requerente A e a reserva de propriedade a favor da requerente B. Mais invocam a falta de pagamento das prestações 36ª (parte) e seguintes, a notificação dirigida pela requerente A à requerida para pôr termo à mora e a posterior notificação de resolução do contrato de financiamento.
Estes mesmos factos sintetizados serviram ainda para justificar a dedução, da providência cautelar específica de apreensão do veículo automóvel, servindo-se as requerentes do teor do “contrato de financiamento para aquisição a crédito”, onde se identifica o vendedor do veículo e a respectiva adquirente, indicando-se ainda o montante do financiamento concedido, a taxa de juros e as prestações mensais convencionadas, para além de se referir o seguinte: “reserva de propriedade: o presente contrato é celebrado com reserva de propriedade do veículo a favor do vendedor registado do mesmo, nos termos das cláusulas gerais”.
Das condições gerais consta ainda o seguinte:
A. Reserva de propriedade: Nos termos do artigo 409º do CC, a propriedade do veículo é reservada para o vendedor registado, até à data em que todas as prestações referidas no nº 9 das condições particulares hajam sido pagas pelo comprador à D Credit, e o comprador obriga-se a respeitar qualquer actuação do vendedor registado, ainda que no interesse da D Credit, no exercício dos direitos que para aquela derivam da qualidade de titular da reserva de propriedade...”.
.../...
F. Devolução
Após a comunicação da rescisão deste contrato ao comprador, este entregará de imediato e independentemente de interpelação o veículo à D Credit, fazendo entrega do mesmo e de toda a respectiva documentação no concessionário D  mais próximo”.
Por fim assinala-se ainda que a reserva da propriedade do veículo encontra-se registada a favor da requerente B. 
2. A interpenetração dos contratos de compra e venda e de mútuo que emerge da existência de um sujeito comum e do especial destino dado à quantia mutuada que passou directamente da mutuante para a esfera da vendedora, é fruto da liberdade contratual e reflecte a busca, pelos agentes económicos envolvidos, de instrumentos que promovam o consumo, facilitando o recurso ao crédito.
Estamos perante uma situação que juridicamente pode qualificar-se como união de contratos [1] funcionalmente ligados e que permitiram os seguintes efeitos conjugados:
- À vendedora do veículo automóvel, garantiu o recebimento imediato da totalidade do preço;
- À compradora encontrar uma via que, com menos exigências formais, lhe permitiu aceder a crédito destinado ao consumo;
- Por fim, à mutuante emprestar dinheiro mediante a previsão do correspectivo reembolso remunerado.
Relativamente aos dois contratos conexionados, a única especificidade que os distingue do regime comum dos contratos de compra e venda e de mútuo é a cláusula de reserva de propriedade a favor da vendedora, assegurando que a propriedade do veículo apenas passaria para a esfera da adquirente depois de paga a totalidade do mútuo.
3. Em regra, o contrato de compra e venda determina a imediata transferência da propriedade dos bens para o comprador (art. 408º do CC). Concretizada tal transferência do bem e realizada a entrega efectiva ao adquirente, se acaso este deixar de pagar a totalidade ou parte do preço acordado, apenas pode ser exercitado o direito de crédito respectivo, exigindo, se necessário, o cumprimento coercivo da obrigação. Ao invés do que ocorre com a generalidade dos contratos bilaterais, tal incumprimento não gera na esfera do credor o direito potestativo de resolução do contrato.
No entanto, este regime geral resultante do art. 879º do CC não é de natureza imperativa, admitindo especificidades das quais se destaca a possibilidade de o transmitente reservar para si a propriedade, nos termos do art. 409º do CC.
Mediante tal cláusula, a transferência do direito para a esfera jurídica do adquirente só operará após o pagamento do preço ou depois de preenchido o condicionalismo que as partes tenham acordado, abrindo-se ao vendedor, em caso de incumprimento, a possibilidade de accionar o direito potestativo de resolução do contrato, com efeitos ao nível da restituição do bem alienado, nos termos do art. 934º do CC.
Como decorre do art. 409º do CC, nada impede que o efeito jurídico de transferência da propriedade fique dependente do cumprimento de obrigações decorrentes de um contrato mútuo celebrado pelo comprador com terceira entidade. Consequentemente, no âmbito da acção em que, em termos definitivos, se pretendam operar os efeitos da cláusula de reserva de propriedade, com intervenção coligada do vendedor e do mutuante, nada obsta a que se invoque, para efeitos de resolução do contrato de compre e venda e de restituição do bem vendido o incumprimento da obrigação decorrente do conexo contrato de mútuo.
4. Desta breve resenha do regime jurídico que ao caso interessa emerge o primeiro obstáculo ao decretamento da apreensão cautelar do veículo.
Com efeito, as  providências em geral, sem exclusão daquela providência específica, são destituídas de autonomia, ficando na dependência da acção principal relativamente a cujo objecto exercem uma função instrumental de conteúdo conservatório ou antecipatório. É na acção principal que, com maior solenidade e com mais garantias para ambas as partes, se dirimem os interesses contraditórios dos contraentes.
Ora, na acção principal, as agravantes limitaram-se a pedir o reconhecimento da validade da resolução do contrato de mútuo (também invocada no requerimento inicial do procedimento cautelar) e a pedir o reconhecimento de que o veículo pertence à requerente B e a condenação da Ré na entrega do veículo.
Não tendo sido exercitado na acção principal de que o procedimento depende o direito de resolução do contrato de compra e venda com reserva de propriedade, inexiste uma das condições de que depende o decretamento da apreensão cautelar que mais não é do que uma antecipação da entrega definitiva decorrente da resolução do contrato de compra e venda. Com efeito, a entrega definitiva de que a apreensão é instrumento preventivo supõe a resolução do contrato de compra e venda, nos termos dos arts. 886º, 934º e 434º do CC. [2]
5. O mesmo resultado se atinge quando se integra a pretensão cautelar no regime jurídico-processual previsto no Dec. Lei nº 54/75.
Trata-se de um diploma que surgiu no dealbar da abertura do mercado de consumo, na parte respeitante a um bem específico – o automóvel – cuja aquisição ou utilização foi “democratizada”. Com tal diploma teve o legislador em vista conferir aos vendedores um instrumento processual que, com celeridade e eficácia, pudesse acautelar os seus interesses, estabelecendo condições para evitar a deterioração do veículo no período, por vezes longo, de discussão dos direitos de crédito garantidos pela cláusula de reserva de propriedade ou pela hipoteca.
Pretendeu o legislador prevenir a ocorrência de maiores danos provocados pelo uso do veículo e pelo perigo da sua destruição ou completa desvalorização que impossibilitasse o credor hipotecário de ver satisfeito o seu direito de crédito ou o vendedor de recuperar o bem antes de este se ter desvalorizado. [3]
Como a experiência de três décadas o permite comprovar, a introdução no leque das providência específicas da apreensão cautelar de veículos automóveis, sujeita a uma regulamentação autónoma caracterizada pela sua simplicidade, permitiu satisfazer os objectivos da celeridade e da eficácia, constituindo um forte impulso na efectiva satisfação de direitos de crédito relacionados com veículos automóveis.
O acesso a tal providência obedece a requisitos legais que definem o perímetro da sua intervenção. No que concerne aos contratos a que se encontre acoplada uma cláusula de reserva de propriedade, o mesmo é delimitado pelos arts. 15º, nº 1, 16º, nº 1, e 18º, nº 1, in fine, restringindo-se aos casos em que, por falta de pagamento da totalidade ou de parte do preço, se pretenda a restituição do veículo, na sequência da resolução do contrato de compra e venda.
Como já se referiu, esta última condição não se verifica. A apreensão preventiva do veículo não é pedida como medida antecipatória da restituição definitiva sequencial à resolução do contrato de compra e venda, mas apenas como antecedente do pedido de reconhecimento do direito de propriedade e da resolução do contrato de mútuo.
6. Defendem as agravantes que deve ser feita de tal regime uma interpretação “actualista” de modo a concluir que a expressão “acção de resolução do contrato de alienação” seja considerada equivalente da resolução do “contrato de financiamento”.
Trata-se de uma tese que não colhe. Mas que, tendo já sido admitida noutras decisões deste mesmo Tribunal da Relação, não deve passar sem uma mais profunda análise.
6.1. No caso concreto, de acordo com a alegação das requerentes da providência, a requerida deixou de pagar as prestações que haviam sido fixadas no programa contratual. Tal ocorreu no âmbito da já afirmada relação triangular que resulta da simultaneidade da outorga do contrato de compra e venda e do contrato de mútuo que proporcionou à compradora o numerário suficiente para a aquisição do veículo.
Apesar da publicação posterior de um diploma que especificamente veio regular o financiamento de aquisições a crédito ou de venda financiada (Dec. Lei nº 359/91, de 21-9), para além da genérica previsão da inserção no teor do contrato (necessariamente escrito) da cláusula de reserva de propriedade que eventualmente tenha sido acordada, a única norma que de algum modo se dirige à referida relação triangular que acaso exista consta do art. 12º.[4]
Contudo, a mesma não visa tutelar os interesses do vendedor ou da entidade financiadora. Atenta a inserção do diploma nas leis reguladoras do consumo, tal norma visa a defesa dos interesses do consumidor: por um lado, faz depender a validade do contrato de compra e venda da validade do contrato de mútuo que lhe esteja porventura associado; por outro, admite que, em determinadas situações de incumprimento ou de cumprimento defeituoso o comprador demande directamente o mutuante.
Não se encontram vestígios de uma qualquer intenção do legislador de facultar à empresa financiadora da aquisição, designadamente quando esta se reporte a veículos automóveis, a possibilidade de despoletar, por si só, a resolução do contrato de compra e venda com reserva de propriedade e de preventivamente recorrer à medida cautelar especificada de que trata o Dec. Lei nº 54/75.
6.2. Constituindo o contrato de aquisições a crédito uma modalidade negocial desenvolvida para promover a liberalização do crédito e o acesso a bens de consumo, não seria de estranhar que na respectiva regulamentação se antevissem soluções para problemas delicados como aqueles de que tratam os autos em que nos surge como efectiva interessada na entrega do bem vendido não propriamente a empresa vendedora, que já recebeu o preço, mas a entidade financiadora, credora das prestações correspondentes ao mútuo celebrado.
O certo é que o legislador não interveio (ainda) nesta matéria.
É incontestada a evolução ocorrida na vida económica, desde que foi publicado aquele diploma, especialmente no que concerne à promoção do consumo e à consequente liberalização e multiplicação dos meios de acesso ao crédito. Foram, aliás, tais motivos que estiveram na base da publicação de tal diploma, numa altura em que começou a florescer o mercado automóvel.
O natural dinamismo que caracteriza a vida económica e a necessidade de os agentes económicos se adaptarem às exigências do mercado cada vez mais concorrencial implica compreensivelmente o recurso a novos mecanismos que permitam ampliar os negócios e penetrar em novos mercados.[5] É, assim, natural a existência de uma certa divergência entre os mecanismos de ordem económico-financeira, por natureza mais ágeis e informais, e a maior inércia inerente aos instrumentos jurídicos.
Com efeito, como refere Paulo Duarte, os agentes económicos ultrapassaram a fase em que, mediante a venda a prestações, com reserva da propriedade, o vendedor, para além das funções propriamente comerciais ligadas à alienação de bens, desempenhava ainda a função adicional de suprimento da falta de liquidez do comprador, para uma outra em que esta função passou a ser assumida por uma entidade distinta, ainda que, muitas vezes, pertencente ao mesmo grupo económico. Nestes casos, é o mutuante que assume o risco de insolvência do comprador ou o “risco do processo”. [6]
Porém, a constatação desta realidade insofismável não permite que as partes, a seu bel-prazer, façam uso indiscriminado de meios que de modo algum visaram as novas realidades que vão despontando.
6.3. Não se invoque, para legitimar a interpretação “actualista” advogada pelas agravantes, a inércia do legislador relativamente à ausência de regulamentação apropriada à defesa do mutuante naquela relação triangular para extrair do direito positivo respostas não se encontram nele, nem sequer em potência. Concretamente, não se pretenda que um diploma que visou regular uma realidade muito específica, na aurora da liberalização do crédito e da explosão do consumo, sirva de cobertura à multiplicidade de instrumentos económico-financeiros, mais ou menos conjunturais, que passo a passo são introduzidos nas práticas comerciais.
Aliás, a disfunção que agora se nota relativamente à referida relação triangular já afectou outras realidades com contornos e objectivos semelhantes.
Assim aconteceu, por exemplo, com o contrato de leasing, figura que foi importada de outros sistemas e que só foi objecto de regulamentação jurídica, sob a denominação de contrato de locação financeira, depois de ter ganho a adesão dos agentes económicos. Apesar disso, no que concerne à tutela cautelar do locador, só numa segunda fase da regulamentação foi prevista a providência específica de entrega e cancelamento do registo, nos termos que agora constam do art. 21º do Dec. Lei nº 149/95, de 24-6, na redacção dada pelo Dec. Lei nº 265/97, de 2-10, a fim de acorrer a situações de perigo que não encontravam na tutela cautelar comum ou nas restantes providências específicas a necessária tutela conservatória ou antecipatória.
Apesar dos pontos comuns que com tal figura apresenta o contrato de aluguer de longa duração, vulgo ALD, muito em voga no segmento da comercialização de veículos automóveis, o legislador ainda não se decidiu pela sua específica regulamentação. Ainda que tal contrato procure satisfazer objectivos semelhantes aos prosseguidos pela locação financeira,[7] não se encontra (ainda) acessível ao locador uma providência específica que, com a celeridade a eficácia potenciada pela apreensão de veículos ou com a entrega e cancelamento de registo, permitam, por exemplo, obter a apreensão preventiva do veículo que evite os danos causados pela sua desvalorização ou pela impossibilidade de celebrar com terceiros novos contratos, restando ao credor recorrer ao procedimento cautelar comum.
6.4. Nem sequer valem para o caso considerações acerca da desprotecção em que alegadamente se encontra a entidade que financia a aquisição a crédito de veículos automóveis. Com efeito, o sistema jurídico está dotado de mecanismos “clássicos” que, devidamente observados, potenciam respostas seguras a interesses como os que a agravante A invoca.
Bastava, por exemplo, que, em lugar da reserva de propriedade a favor da vendedora (cujo direito de crédito se encontra integralmente satisfeito) tivesse sido clausulado no contrato de compra e venda a constituição de uma hipoteca em benefício da mutuante, com o que, para além da garantia real que lhe concedia prioridade de tratamento na graduação de créditos, se poderiam abrir as portas da providência cautelar de apreensão do veículo, nos termos do art. 15º do Dec. Lei nº 54/75.
 Outra solução, igualmente segura e eficaz, poderia, por exemplo, passar pela cessão do crédito [8] da vendedora B a favor da A, nos termos dos arts. 577º e 582º do CC, que igualmente abriria as portas de acesso à providência cautelar específica.
Ou ainda a sub-rogação da A nos direitos da B, situação que encontra no art. 591º do CC uma norma especificamente dirigida a situações em que, como no caso sub judice, a obrigação de pagamento do preço foi realizada à custa de um mútuo contratado pela compradora com terceira entidade.[9]
Independentemente de qualquer destas vias, tinham as agravantes ainda acesso generalizado ao procedimento cautelar comum, ainda que a correspondente providência não dependa apenas da prova sumária do direito acautelado, mas ainda da prova sumária do perigo de ocorrência de lesão grave e dificilmente reparável, a exigir mais do que a mera prova de uma situação de incumprimento.
Estas possibilidades foram ou deveriam ter sido ponderadas. Porventura a recusa da sua adopção decorreu da maior onerosidade ou morosidade que cada uma delas implica, o que explicará a relutância dos agentes económicos em acederem a institutos clássicos, reclamando o recurso a instrumentos que se revelam mais céleres.
Mas essas são razões que, sendo compreensíveis, não permitem que, contra regras metodológicas universais, se deturpe o sentido das normas.
Tendo as partes optado por trilhar um caminho que não contou nem com a constituição de hipoteca nem com a resolução do contrato de compra e venda com reserva de propriedade, não têm legitimidade para convocar para a defesa urgente dos seus interesses um diploma que, como o Dec. Lei nº 54/75, visou outras realidades bem menos complexas do que aquela que as agravantes agora vêm invocar.
6.5. Como se disse anteriormente, independentemente do regime de direito substantivo a que obedece a compra e venda com reserva de propriedade, associada ou não a contratos de financiamento bancário ou parabancário, o quadro jurídico-processual em que se integra a figura da apreensão cautelar de veículos é bem mais restrito.
Para a rejeição não se pondera sequer a tese defendida por Moitinho de Almeida [10] e Amâncio Ferreira [11]  que consideram inadmissível a dedução da pretensão cautelar como incidente de acção já pendente, como ocorreu no caso, considerando que apenas pode ser requerida como preliminar dessa acção, como literalmente decorre do art. 18º, nº 1, do Dec. Lei nº 54/75.
Além disso, uma vez que a questão nem sequer foi suscitada, não levaremos também em conta o resultado que poderia decorrer da apreciação do pressuposto processual da legitimidade activa no que concerne à dedução do pedido de apreensão provisória.[12]
Admitindo que para efeitos do art. 15º referido, dentro das obrigações que podem despoletar a invocação dos efeitos da reserva de propriedade se abarcam as assumidas no contrato de mútuo conexo acordado com terceira entidade, não se consegue contornar o obstáculo formal resultante do art. 18º que fixa o nexo de instrumentalidade da providência não em relação à resolução do contrato de mútuo, mas sim do “contrato de alienação”.
É todo inviável tentar, a todo o custo, meter na “Rua da Betesga”, limitada às situações a que concretamente se dirige o Dec. Lei nº 54/75, o “Rossio”, formado pelo campo largo das práticas comerciais dos agentes económicos.
Discorda-se, assim, do decidido nesta Relação nos Acs. de 13-2-03, CJ, tomo I, pág. 103, e de 13-3-03, CJ, tomo II, pág. 74, que assimilaram ao “contrato de alienação” o contrato de mútuo conexo com o de compra e venda e que esteve na origem da reserva de propriedade.
Nenhuma perspectiva, formal ou substancial, consente que se confunda “contrato de alienação”, que implica a transferência, ainda que sob condição suspensiva, da propriedade de um veículo, com um “contrato de mútuo” que teve como mutuante outra entidade e de cuja resolução resulta o vencimento das prestações convencionadas e não a obrigação de restituição do veículo vendido.
Nem sequer vale às agravantes a invocação tardia da existência de uma pretensa sub-rogação da financiadora A nos direitos da B decorrentes do contrato de compra e venda. Para além de tal figura não resultar do clausulado do contrato de mútuo (e de não ter sido apresentado o contrato de compra e venda), continuaria a faltar o nexo de instrumentalidade relativamente ao exercício do direito potestativo de resolução do contrato de compra e venda. E the last but not the least, sempre faltaria ainda um requisito formal: o de que a A surgisse no registo automóvel como titular da reserva de propriedade.
III – Conclusão:
Face ao exposto, ainda que por via não totalmente coincidente com a seguida na decisão agravada, acorda-se em negar provimento ao agravo, mantendo a decisão que indeferiu a providência.
Custas a cargo da agravante.
Notifique.
Lisboa, 16-12-03

(António Santos Abrantes Geraldes)
          (Manuel Tomé Soares Gomes )
              ( Maria do Rosário C. de Oliveira Morgado)
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[1] Qualificação assumida por F. Gravato Morais, em artigo intitulado “Do regime jurídico do crédito ao consumo”, na Scientia Iuridica, tomo XLIX, 2000, págs. 375 a 411, e por Paulo Duarte, em artigo intitulado “A sensibilidade do mútuo às excepções do contrato de aquisição na compra e venda financiada, no quadro do regime jurídico do crédito ao consumidor”, na Rev. Sub Judice, nº 24. Cfr. ainda P. Paes de Vasconcelos, Contratos Atípicos, págs. 215 e segs.
[2] Com efeito, o vendedor só pode exigir a restituição da coisa, ao abrigo da reserva de propriedade, se proceder à resolução do contrato de compra e venda, como defende L. Miguel Lima, A Cláusula de Reserva de Propriedade, págs. 62 e 63, e Raúl Ventura, O Contrato de Compra e Venda no Código Civil, Rev. da Ordem dos Advogados, ano 43º, pág. 612. Cfr. ainda o Ac. da Rel. de Lisboa, de 27-6-02 (www.dgsi.pt/jtrl-Salvador da Costa).
[3] Moitinho de Almeida, O Processo Cautelar de Apreensão de Veículos Automóveis, 5ª ed., pág. 14.
[4] Paulo Duarte, ob. cit., págs. 42 e segs.
[5] Menezes Cordeiro, Manual de Direito Bancário, pág. 287.
[6] Ob. cit., pág. 67.
[7] É, no entender de P. Paes de Vasconcelos, um contrato indirecto em que o tipo de referência é o aluguer e o fim indirecto o da venda a prestações com reserva de propriedade – Contratos Atípicos, pág. 245.
[8] Hipótese também referida por Paulo Duarte, ob. cit., pág. 41.
[9] Menezes Leitão, Direito das Obrigações, vol. II, pág. 37.
[10] O Processo Cautelar de Apreensão de Veículos Automóveis, ob. cit., págs. 15 e 16.
[11] Curso de Processo de Execução, 3ª ed., pág. 377.
[12] A questão tem sido objecto de decisões diversas neste Tribunal da Relação, detectando-se fundamentalmente 3 soluções:
a) A que considera que a legitimidade activa é exclusiva do titular da reserva de propriedade, excluindo-se, por isso, a entidade que financiou a aquisição a crédito: os Acs. de 19-10-00-Salvador da Costa), de 11-7-02 (Pires do Rio), de 23-11-00
(Salazar Casanova), de 14-11-00 (Pais do Amaral), de 4-10-94 (Bettencourt Faria), todos sumariados em www.dgsi.pt/jtrl.
b) A que admite a legitimidade do titular do registo da propriedade e do mutuante: o Ac. de 18-1-99 (www.dgsi.pt/jtrl-Evangelista Araújo), se considerou a legitimidade de ambos os contraentes.
c) Por fim a que nega legitimidade tanto a um como a outro: o Ac. de 26-10-00
(www.dgsi.pt/jtrl-Urbano Dias).