Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1359/09TBAMD.L1-7
Relator: ANA RESENDE
Descritores: INSOLVÊNCIA
EXONERAÇÃO DO PASSIVO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 04/12/2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: I - Constitui objectivo da exoneração do passivo restante, a concessão de uma “segunda oportunidade”, ou “começar de novo”, sem prejuízo da satisfação dos credores da insolvência, tal como se prevê no art.º 1, do CIRE, ainda que de forma reflexa, no atendimento dos limites da respectiva admissibilidade.
II - Todos os rendimentos que advenham ao devedor deverão constituir rendimento disponível, no atendimento da respectiva afectação às finalidades previstas no artº 241, do CIRE, exceptuando, contudo, o que seja razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar.
III -Na determinação do que deva considerar por mínimo necessário ao sustento digno do devedor, a opção legislativa passou pela utilização de um conceito aberto, a que subjaz o reconhecimento do princípio da dignidade humana, necessariamente assente na noção do montante que é indispensável a uma existência condigna, a avaliar face às particularidades da situação concreta do devedor em causa, impondo-se, uma efectiva ponderação casuística no juízo a formular.
IV - A superveniência de despesas que tenham advindo ao devedor deverá ser também atendida em termos de exclusão, no concerne ao rendimento disponível, nos termos do ponto iii) da alínea b) do n.º 3 do já mencionado art.º 239, do CIRE.
(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: ACORDAM NA 7ª SECÇÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA
      

I - Relatório
            1. A… e B… vieram interpor recurso do despacho que admitiu liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante, na parte em que fixa a quantia mensal de 1.300,00€, anualmente actualizada, como montante destinado ao sustento dos insolventes e excluído do rendimento que, durante o prazo de 5 anos será cedido ao fiduciário nomeado. 
            2. Nas suas alegações formulam as seguintes conclusões:
· A decisão que fixou a quantia mensal de € 1.300,00 como montante destinado ao sustento dos Insolventes viola o regime excepcional previsto no artigo 239.º, n.º 3, alínea b), i) do CIRE;
· Atendendo à matéria carreada para os autos e ao respectivo suporte documental, designadamente, no que diz respeito ao rendimento auferido pelos Recorrentes, às despesas que estes suportam e ao grave estado de saúde do Insolvente marido, a importância de € 1.300,00 não lhes permite sobreviver;
· As necessidades e despesas dos Insolventes não são enquadráveis, nem comparáveis às de uma pessoa sem problemas de saúde, pelo que o seu tratamento terá necessariamente de ser diferenciado, porque é excepcional;
· A situação dos Insolventes é, por si só, suficiente para que o Tribunal a quo recorra ao regime excepcional previsto no artigo 239.º, nº. 3, alínea b), i) do CIRE, que permite excluir do rendimento disponível dos Insolventes uma quantia mensal superior a três vezes o salário mínimo nacional;
· A decisão recorrida não teve em conta os factos alegados, designadamente, a grave situação de saúde do Insolvente marido, nem tão pouco os factos ocorridos supervenientemente à apresentação do pedido de insolvência e que, nos termos do disposto no artigo 663.º, n.º 1 do C.P.C., aplicável ex vi de artigo 17.º do CIRE, os quais deverão ser tidos em consideração;
· Os Insolventes encontram-se separados de facto e a viver em casas separadas, encontrando-se em preparação a documentação para apresentação do pedido de divórcio;
· Esta nova realidade tem de ser atendida para efeitos de fixação da quantia mensal excluída do rendimento disponível cedido ao administrador de insolvência não só porque o montantes das despesas a cargo de cada um dos Recorrentes é superior ao indicado no pedido de insolvência, mas também porque em virtude do divórcio terão que ser fixados separadamente os montantes a cargo de cada um dos Recorrentes;
· Atendendo à incapacidade de 72% agora fixada ao Insolvente Marido e, bem assim, às despesas fixas que possui e às que terá que contrair pelo facto de já não co-habitar com a Recorrente, designadamente, a contratação de uma empregada doméstica, o Tribunal deverá fixar, no mínimo, para o Insolvente marido, como rendimento, excluído da cessão, três salários mínimos nacionais, valor sem o qual não conseguirá sobreviver;
· À Insolvente mulher deverá ser fixado como rendimento destinado ao seu sustento, no mínimo, duas vezes o salário mínimo nacional, por ser o valor mínimo que permite fazer face às despesas alegadas e documentadas nos autos e dada a necessidade de suportar novas despesas decorrentes do facto de já não co-habitar com o Insolvente marido.
· Nestes termos e nos mais de Direito doutamente supridos, deverá o despacho recorrido ser revogado e substituído por outro que fixe a quantia excluída do rendimento disponível e cedido ao administrador de insolvência em, pelo menos, três vezes o salário mínimo nacional, no que diz respeito ao Insolvente marido, e duas vezes o salário mínimo nacional, no que diz respeito à Insolvente mulher Assim se fazendo JUSTIÇA.
3. Cumpre apreciar e decidir.
*
            II – Enquadramento facto-jurídico
            Presente que o objecto do recurso é definido pelas conclusões do recorrente importando em conformidade decidir as questões[1] nelas colocadas, a saber está, se como pretendem os Recorrentes, deve ser alterada a quantia mensal fixada de 1.300,00€, anualmente actualizada, como montante destinado ao sustento dos Insolventes.
Como fundamento da sua pretensão invocam que tal verba não lhes permite sobreviver, sendo que o estado grave de saúde do Insolvente marido, que entretanto se agravou, conforme o documentado, determina um tratamento necessariamente diferenciado, porque é excepcional, devendo também ser atendida a realidade superveniente de os Insolventes se terem separado, e viverem em casas separadas, e desse modo fixados, de forma separada, os montantes para cada um dos Recorrentes, apontando como rendimento excluído da cessão para o Insolvente marido, no mínimo, três salários nacionais, e para Insolvente mulher, duas vezes o salário mínimo nacional.
A) do factualismo
 Resulta dos autos:
1. Os ora Recorrentes vieram em 16 de Março de 2009, apresentar-se à insolvência alegando, essencialmente:
- serem casados sob o regime de comunhão de adquiridos;
- o Requerente ter celebrado, em nome pessoal, dois contratos de concessão de crédito com o Banco C.., no valor de 2.750,00€, e com o C no valor total de 14.000,00€;
- a Requerente é titular, em nome pessoal, de uma contrato de concessão de crédito com a C no valor de 11.000,00€;
- o Requerente é titular, em nome pessoal, de dois contratos de subscrição de cartão de crédito celebrados com o Banco P.., no valor de 1.706,00€, e CS, no valor total de 12.735,27€;
- os Requerentes subscreveram, conjuntamente, três contratos de concessão de créditos ao consumo, com o BE, no valor de 45.287,80€, CC, no valor de 6.250,00€, CC, no valor de 13.340,00€, CT, no valor 12.500,00;
- subscreveram ainda dois cartões de crédito de Banco C, no valor de 10.010,00€, Unicre, no valor de 22.048,96€ e no valor de 7.316,38€;
-  o valor total do crédito solicitado e concedido ascende a 158.944,41€;
- o Requerente é funcionário público …..…, auferindo a remuneração líquida mensal, no valor de 1.778,62€;
- a Requerente é funcionária pública no ….., auferindo uma remuneração líquida mensal, no valor de 1.253,43€;
- o Requerente apresenta uma incapacidade permanente global de 65%.
- o Requerente necessita de um acompanhamento médico regular e está sujeito a medicação diária;
- o Requerente incorre em despesas médicas e medicamentosas no valor de 250,00€;
- devido ao estado de saúde, o Requerente tem necessidade de se deslocar diariamente para o local de trabalho mediante a utilização do veículo automóvel,
- o automóvel foi adquirido através do mútuo bancário concedido pelo Banco C liquidando os Requerentes uma prestação mensal de 218,57€, despendendo 100,00€ mensais em combustível, 626,00€ em seguro e 240,00€, em revisão, anualmente.
- os Requerentes residem num apartamento arrendado, ascendendo a renda a 600,00€;
- suportam com encargos com luz, água, telefone fixo, tv cabo, despesas domésticas, alimentação e vestuário, 1000,00€ mês.
- para além do salário auferido não dispõem de quaisquer bens ou rendimentos, não conseguindo cumprir as obrigações contratuais a que se vincularam.
- pedem a exoneração do passivo restante invocando, para além do mais, que antes de intentar a acção tentaram renegociar os créditos concedidos de forma a não prejudicar os credores, enviando uma carta a cada uma das entidades, expondo a situação, tendo o cuidado de se apresentar imediatamente à insolvência assim que verificaram que lhes era impossível continuar a cumprir as suas obrigações.
 2. Por sentença de 18.3.2009 foi declarada a insolvência dos Recorrentes, consignando-se como assentes, face aos documentos juntos aos autos os seguintes factos:
- Os Requerentes são casados um com o outro no regime de comunhão de adquiridos.
- A Requerente aufere mensalmente € 1 253,43 e o Requerente € 1 778,62.
- Não possuem bens e a casa onde residem é arrendada pelo valor mensal de € 600.
- O Requerente teve um acidente cardiovascular e ficou afectado de uma incapacidade
permanente global de 65% o que implica que tem despesas médicas e medicamentosas no valor mensal de € 250.
- Os Requerentes têm dívidas a diversas instituições no valor global de € 158 944,41 que implicam o pagamento de prestações mensais no valor de € 7 392,87.
3. O Administrador da insolvência no relatório efectuado nos termos do art.º 155 do CIRE, referenciou o rendimento mensal conjunto de 3.022,10€, e despesas necessárias à subsistências alegadas no valor de 1.225,57€.
Mais se fez constar:
- O cônjuge marido têm desde 1986 uma incapacidade física de 65%, sofrendo alterações contrárias à evolução da sua carreira profissional de funcionário público;
- além dos ordenados, existe uma viatura automóvel, que está a ser pagar, “sendo as pernas do cidadão ora insolvente”.
4. Os Requerentes vieram a fls. 224 invocar que as suas despesas ascendem a 2.426,74€, assim discriminados:
- renda da casa, sita na Rua …., no valor de 600,00€/mês;
- encargos com a água, electricidade, o gás, telefone fixo, tv cabo, despesas domésticas, alimentação, vestuário e calçado, 1000,00€/mês;
- despesas com alimentação fora de casa, 130,00€/mês;
- almoços da Requerente fora de cada, 130,00€/mês;
- passe social da Requerente para deslocação para o trabalho, 39,00€/mês;
- despesas médicas e medicamentosas do insolvente em virtude do seu estado de saúde, 250,00€/mês;
- prestação mensal de 218,57€ referente ao mútuo bancário concedido pelo banco para aquisição do veículo automóvel para o insolvente se deslocar para o trabalho;
- combustível, 100,00€/mês;
- seguro automóvel, 52,16€/mês;
- manutenção do veículo, 20,00€/mês;
- telemóvel, 17,00€, ficando com o rendimento disponível de 595,36€.
5. Os Insolventes a fls. 232 vieram juntar documentos, mais informando que tiveram de recorrer à concessão de dois mútuos bancários junto do C…. para fazer face às despesas do dia-a-dia, estando a suportar mensalmente a quantia de 194,26€.
6. A fls. 413, sob a designação de Exoneração do Passivo, foi proferido, em 11.08.2010, o seguinte despacho:
Na petição inicial em que se apresentou/aram à insolvência, o/a/s insolvente/s veio/vieram pedir a exoneração do passivo restante.
Deram cumprimento formal ao disposto no artigo 236.º, n.º 3, do CIRE.
Aos credores foi dada a possibilidade de tomarem posição quanto ao referido pedido.
Cumpre proferir despacho inicial, não obstante ter sido já encerrado o processo.
Nos termos do disposto no artigo 239.º, do CIRE, o pedido é liminarmente indeferido, desde que se verifique alguma das circunstâncias ali referidas.
Neste caso, inexiste fundamento para indeferir liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante.
Em conformidade com o exposto e de acordo com o que resulta dos autos:
- Admito liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante;
- Nomeio, para desempenhar as funções de fiduciário, o Administrador de Insolvência que desempenhou funções nestes autos (cfr. artigos 240.º a 242.º, do CIRE).
- Fixo a remuneração do Fiduciário em 10% das quantias objecto de cessão – cfr. artigo 240.º, n.ºs 1 e 2, 241.º, n.º 1, al. c) e 60.º, n.º 1, do CIRE e artigo 25.º, da Lei n.º 32/2004, de 22/07, que será suportado pelo/a/s insolvente/s.
- Determino que o rendimento disponível que o/a/s devedor/a/es venha/m a auferir, no prazo de 5 anos, que se denomina, período da cessão, se considere cedido ao fiduciário ora nomeado, com exclusão da quantia mensal de 1.300 euros, actualizada anualmente, em Janeiro, em função da taxa de inflação prevista para o ano anterior, que se destina ao sustento do/a/s insolvente/s.
- Sob pena de não lhe/s ser concedido, a final, o pedido de exoneração do passivo restante, durante este período de cinco anos, o/a/s devedor/a/s fica/m obrigado/a/s (artigo 239.º, n.º 4, do CIRE):
a) Não ocultar ou dissimular quaisquer rendimentos que aufira/m, por qualquer título, e a informar o tribunal e o fiduciário sobre os seus rendimentos e património, na forma e no prazo em que isso lhe/s seja requisitado;
b) Exercer uma profissão remunerada, não a abandonando sem motivo legítimo, e a procurar diligentemente tal profissão quando desempregado/a/s, não recusando desrazoavelmente algum emprego para que seja/m apto/s;
c) Entregar imediatamente ao Fiduciário, quando por si recebida, a parte dos seus rendimentos objecto de cessão;
d) Informar o tribunal e o Fiduciário de qualquer mudança de domicílio ou de condições de emprego, no prazo de 10 dias após a respectiva ocorrência, bem como, quando solicitado e dentro de igual prazo, sobre as diligências realizadas para a obtenção de emprego;
e) Não fazer quaisquer pagamentos aos credores da insolvência a não ser através do fiduciário e a não criar qualquer vantagem especial para algum desses credores.
(…)
7. A fls. 485 mostra-se junta com as alegações de recurso, cópia de atestado médico de incapacidade multiuso, datado de 26 de Junho de 2010, conferindo ao Insolvente uma incapacidade permanente global 72%.
8. A fls. 515 mostra-se junta cópia de atestado médico de incapacidade multiuso, datada de 4 de Outubro de 2010, conferindo ao Insolvente uma incapacidade permanente global de 80%.
9. A fls. 516 mostra-se junta cópia de episódio de urgência geral, com admissão do Insolvente, como paciente, em 8.9.2010 e alta em 9.9.2010, referenciando-se “sobredosagem e envenenamento” – intoxicação medicamentosa, e choque emocional que terá desencadeado o episódio em causa.
10. A fls. 534, por requerimento datado de 17 de Novembro de 2010, vieram os Insolventes informar que: Na sequência da sua separação alteraram as suas residências, pelo que futuras notificações deverão ser dirigidas para as seguintes moradas: Insolvente marido: P…..; Insolvente mulher: R…..
B) do direito
Apreciando.
Como é sabido, se o devedor for uma pessoa singular, pode-lhe ser concedida a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência, ou nos cinco anos posteriores ao encerramento deste, requerida que seja, como no caso sob análise no requerimento de apresentação à insolvência, nos termos dos artigos 235 e 236, do CIRE, consubstanciando-se, desse modo numa libertação definitiva do devedor quanto ao passivo não satisfeito totalmente, naquele processo ou no espaço de tempo em referência, nas condições fixadas no incidente em causa.
Importa salientar como objectivo da exoneração do passivo restante, a concessão de uma “segunda oportunidade”, ou “começar de novo”, sem prejuízo da satisfação dos credores da insolvência, tal como se prevê no art.º 1, do CIRE, ainda que de forma reflexa, no atendimento de limites da respectiva admissibilidade[2].
Deferido, liminarmente, o pedido de exoneração, como se verificou nos presentes autos, determina o Juiz que durante o prazo de cinco anos, subsequente ao prazo de encerramento do processo de insolvência, o rendimento disponível do devedor se considera cedido a uma entidade, designada de fiduciária, para os fins do art.º 241, do CIRE, caso do pagamento das custas do processo de insolvência ainda em dívida, e da remuneração já vencida do administrador da insolvência e do fiduciário, bem como de despesas efectuadas, e a distribuição do remanescente pelos credores da insolvência, nos termos prescritos para o pagamento aos credores no processo de insolvência.
Se atentarmos ao disposto no art.º 239, do CIRE, resulta do consignado, no seu n.º 3, o estabelecimento do princípio que todos os rendimentos que advenham ao devedor deverão constituir rendimento disponível, no atendimento da respectiva afectação às finalidades previstas já referenciadas no art.º 241, também do CIRE, exceptuando, contudo, o que seja razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, considerando-se que tal montante não deverá exceder três vezes o salário mínimo nacional, salvo decisão fundamentada do juiz em contrário.
Refira-se que se tem como bom o entendimento[3] que na previsão da subalínea i) da al. b) do n.º 3 do art.º 239 do CIRE, o legislador estabeleceu dois limites: um mínimo, avaliado por um critério geral e abstracto – o sustento minimamente condigno do devedor e seu agregado familiar – , a preencher pelo juiz em cada caso concreto, conforme as circunstâncias particulares do devedor; e um limite máximo obtido através de um critério quantificável e objectivo – o equivalente a três salários mínimos nacionais –, o qual, excepcionalmente, poderá ser excedido em casos que o justifiquem.
Assim, e no concerne à determinação do que deva considerar por mínimo necessário ao sustento digno do devedor, a opção legislativa passou pela utilização de um conceito aberto, a que subjaz o reconhecimento do princípio da dignidade humana, necessariamente assente na noção do montante que é indispensável a uma existência condigna, a avaliar face às particularidades da situação concreta do devedor em causa, impondo-se, uma efectiva ponderação casuística no juízo a formular no que respeita à fixação do quantitativo excluído da cessão dos rendimentos.
Reportando-nos aos presentes autos, considerou-se na decisão sob recurso, e centrado que está o mesmo no quantitativo destinado ao sustento dos Insolventes, a quantia de 1.300,00€, actualizada anualmente em Janeiro, em função da taxa da inflação prevista, como o rendimento disponível a considerar, ainda que sem se explicitar as premissas que fundaram tal juízo, mas que se depreende que se prendem com parte do enunciado aquando da apresentação dos Insolventes a juízo.
A questão que agora se põe, é sem dúvida saber se tal montante se configura como adequado face aos elementos constantes dos autos, sendo certo que não pode ser esquecido que se divisam realidades que podem comportar em si alterações, na medida em que estamos a cuidar da vivência, e das vicissitudes que muitas vezes a acompanham, de duas pessoas, que terão deixado de ser um casal, e que atravessam dificuldades de vária natureza, com as decorrentes repercussões em termos financeiros.
E se a superveniência de despesas que tenham advindo ao devedor não deverá ser desprezada, outrossim considerada em termos de exclusão, no concerne ao rendimento disponível, como decorre do ponto iii) da alínea b) do n.º 3 do já mencionado art.º 239, do CIRE, importa atender ao que foi trazido ao processo.
Em conformidade, evidencia-se que a saúde do Insolvente se vem deteriorando, em termos acelerados, compreendendo-se que sejam acrescidos os gastos com assistência médica e medicamentosa, bem como até em acompanhamento ou ajuda, maxime especializada, na medida em que o são indicadas duas residências distintas para os Insolventes, o que importa, decorrentemente, gastos distintos quanto a alojamento, e despesas associadas.
Por outro lado, embora não estejam determinados, também, montantes no que respeita a despesas com alimentação, higiene ou vestuário, e transportes, certo é que os mesmos sempre terão que existir, não só em termos de subsistência, mas também até por exigências de um mínimo de dignificação, presente até o cumprimento das obrigações profissionais, a que os Insolventes se encontram adstritos.
Deste modo, na ponderação de todas as circunstâncias constantes dos autos, enunciadas, e que como vimos atendíveis, configura-se, que deverão ser fixadas quantias distintas para cada um dos Insolventes, considerando-se equilibrado, que seja excluído do rendimento disponível e cedido, duas vezes o salário mínimo nacional no que diz respeito à Insolvente mulher, e três vezes o salário mínimo nacional, quanto ao Insolvente marido.
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Conclusão
1. Constitui objectivo da exoneração do passivo restante, a concessão de uma “segunda oportunidade”, ou “começar de novo”, sem prejuízo da satisfação dos credores da insolvência, tal como se prevê no art.º 1, do CIRE, ainda que de forma reflexa, no atendimento dos limites da respectiva admissibilidade.
2. Todos os rendimentos que advenham ao devedor deverão constituir rendimento disponível, no atendimento da respectiva afectação às finalidades previstas no art.º 241, do CIRE, exceptuando, contudo, o que seja razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar.
3. Na determinação do que deva considerar por mínimo necessário ao sustento digno do devedor, a opção legislativa passou pela utilização de um conceito aberto, a que subjaz o reconhecimento do princípio da dignidade humana, necessariamente assente na noção do montante que é indispensável a uma existência condigna, a avaliar face às particularidades da situação concreta do devedor em causa, impondo-se, uma efectiva ponderação casuística no juízo a formular.
4. A superveniência de despesas que tenham advindo ao devedor deverá ser também atendida em termos de exclusão, no concerne ao rendimento disponível, nos termos do ponto iii) da alínea b) do n.º 3 do já mencionado art.º 239, do CIRE.
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III – DECISÃO
Nestes termos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação, em julgar procedente a apelação, e em consequência, revogam a decisão recorrida no que se reporta ao valor do rendimento indisponível, atribuindo-o à Insolvente mulher, fixando-o em dois salários mínimos, e atribuindo-o ao Insolvente marido, fixando-o em três salários mínimos.

           Sem Custas.

Lisboa, 12 de Abril de 2011

Ana Resende
Dina Monteiro
Luís Espírito Santo
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[1] O Tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos ou fundamentos que as partes indiquem para fazer valer o seu ponto de vista, sendo que, quanto ao enquadramento legal, não está o sujeito às razões jurídicas invocadas pelas partes, pois o julgador é livre na interpretação e aplicação do direito, art.º 664, do CPC.
[2] Cfr., Ac. do STJ de 21de Outubro de 2010, in www.dgsi.pt.
[3] Conforme se entendeu no acórdão proferido no Processo n.º1220/10.5YXLSB-A.L1, de 18 de Janeiro de 2011, em que a ora relatora, foi também subscritora.