Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
6305/2006-6
Relator: OLINDO GERALDES
Descritores: FALÊNCIA
CRÉDITO LABORAL
CRÉDITO DA SEGURANÇA SOCIAL
HIPOTECA LEGAL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/12/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: ALTERADA
Sumário: I. O privilégio imobiliário especial previsto no art.º 377.º do Código do Trabalho está dependente da alegação e prova de que o trabalhador prestava a sua actividade nos imóveis apreendidos.
II. O direito de crédito garantido pelo privilégio imobiliário geral cede perante o direito de crédito garantido por hipoteca.
III. O art.º 152.º do CPEREF não compreende as hipotecas legais.
(OG)
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:
I. RELATÓRIO

Declarada, em 21 de Dezembro de 2004, a falência de P, S.A., com sede em Rio Maior, e na sequência do respectivo concurso de credores, foi proferida, em 7 de Dezembro de 2005, a sentença de verificação e graduação de créditos (rectificada pelo despacho de fls. 1572 a 1575, de 24 de Maio de 2006), que, quanto aos cinco imóveis apreendidos, graduou o crédito laboral depois das hipotecas e o da Segurança Social como crédito comum.
Inconformado, recorreu o credor (trabalhador) M, que, alegando, formulou, no essencial, as seguintes conclusões:

a) A graduação do crédito tinha de ser feita nos termos da al. b) do n.º 1 do art.º 377.º do Código do Trabalho, aprovado pela Lei n.º 99/2003, de 27 de Agosto, que estabelece um privilégio imobiliário especial.
b) Esse privilégio prevalece sobre a hipoteca (art.º 751.º do CC).
c) Assim, quanto aos imóveis, os créditos dos trabalhadores devem ser graduados em primeiro lugar.
d) Se assim não for entendido, o crédito de € 18 974,88, respeitante a retribuições, gozando do privilégio imobiliário geral, nos termos do art.º 12.º da Lei n.º 17/86, de 14 de Junho, tem preferência sobre o crédito hipotecário (art.º 751.º do CC).

Também inconformado, recorreu o Instituto de Segurança Social, I.P., de Santarém, que, alegando, extraiu, no essencial, as seguintes conclusões:
a) Parte do seu crédito, no valor de € 3 129 294,12, é garantida através de hipotecas legais.
b) Ao considerar extintas as hipotecas legais, a sentença recorrida violou os art.º s 9.º, n.º s 2 e 3, 604.º e 686.º, todos do CC, e fez errada interpretação do art.º 152.º do CPEREF.

Não foram apresentadas contra-alegações.

Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

Está em discussão, nestes autos, saber se o crédito laboral, beneficiando do privilégio imobiliário especial ou geral, prefere sobre o crédito garantido por hipoteca e se a hipoteca legal, a favor da Segurança Social, se extinguiu por efeito do disposto no art.º 152.º do CPEREF.

II. FUNDAMENTAÇÃO

2.1. Estão provados os seguintes factos:
1. Por sentença de 21 de Dezembro de 2004, P, S.A., foi declarada em estado de falência.
2. Nesse âmbito, foram apreendidos: (1.º) o prédio misto descrito na CRP de Rio Maior, sob o n.º 258/970915 (Ribeira de São João); (2.º) o prédio urbano descrito na CRP de Rio Maior, sob o n.º 298/000114 (Ribeira de São João); (3.º) o prédio misto descrito na CRP de Rio Maior, sob o n.º 6719, fls. 62, do Livro B-18 (Ribeira de São João); (4.º) o prédio rústico descrito na CRP de Rio Maior, sob o n.º 151/940414 (Ribeira de São João); (5.º) o prédio urbano descrito na CRP de Portel, sob o n.º 373/110789 (Portel).
3. Sobre o 1.º prédio foi registada, em 17 de Março de 2000, hipoteca legal a favor do Centro Regional de Segurança Social e Vale do Tejo, para garantia do pagamento de contribuições e juros, pelo valor de 131 202 741$00; em 9 de Julho de 2002, hipoteca legal a favor do Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social (IGFSS) de Évora, para igual garantia, pelo valor de € 108 349,87; em 20 de Maio de 2003, hipoteca legal a favor do IGFSS de Santarém, para igual garantia, pelo valor de € 766 965,48.
4. Sobre o 2.º prédio foi registada, em 9 de Julho de 2002, hipoteca legal a favor do IGFSS de Évora, para igual garantia, pelo valor de € 108 349,87; em 20 de Maio de 2003, hipoteca legal a favor do IGFSS de Santarém, para igual garantia, pelo valor de € 766 965,48.
5. Sobre o 3.º prédio foi registada, em 20 de Maio de 2003, hipoteca legal a favor do IGFSS de Santarém, para igual garantia, pelo valor de € 766 965,48.
6. Sobre o 4.º prédio foi registada, em 17 de Março de 2000, hipoteca legal a favor do Centro Regional de Segurança Social de Lisboa e Vale do Tejo, para igual garantia, pelo valor de 131 202 741$00; em 20 de Maio de 2003, hipoteca legal a favor do IGFSS de Santarém, para igual garantia, pelo valor de € 766 965,48.
7. Sobre o 5.º prédio foi registada, em 6 de Junho de 2003, hipoteca legal a favor do IGFSS de Santarém, para igual garantia, pelo valor de € 1 599 542,25.
8. Sobre os 1.º, 3.º e 5.º prédios foram, antes das referidas hipotecas legais, registadas hipotecas voluntárias.
9. O Instituto de Segurança Social, I.P., Centro Distrital de Segurança Social de Santarém reclamou créditos devidos a esse Centro Distrital e ainda aos de Lisboa, Évora, Faro e Portalegre, no valor de € 1 909 422,05, referente a contribuições, e de € 1 057 806,20, referente a juros vencidos, que foram reconhecidos.
10. Manuel reclamou o crédito de € 47 173,69, referente a indemnização por despedimento ilícito (€ 27 870,74), salários, subsídios de férias e de Natal (€ 18 974,88) e ainda juros (€ 328, 07), igualmente reconhecido.

2.2. Delimitada a matéria de facto relevante, importa agora conhecer do objecto dos recursos, cada um circunscrito pelas respectivas conclusões, e cujas questões jurídicas emergentes foram antes enunciadas.
Começando pelo crédito laboral, a sentença recorrida considerou que beneficiava do privilégio imobiliário geral conferido pelos art.º s 12.º, n.º 1, al. b), da Lei n.º 17/86, de 14 de Junho, e 4.º, n.º 1, al. b), da Lei n.º 96/2001, de 20 de Agosto.
O recorrente Manuel entende, todavia, que o crédito beneficia do privilégio imobiliário especial atribuído pelo art.º 377.º do Código do Trabalho, aprovado pela Lei n.º 99/2003, de 27 de Agosto.
Na verdade, com a entrada em vigor das normas regulamentares do Código do Trabalho, operada através da Lei n.º 35/2004, de 29 de Julho, a partir de 28 de Agosto de 2004, ficaram expressamente revogadas a Lei n.º 17/86, de 14 de Junho, e a Lei n.º 96/2001, de 20 de Agosto, nos termos das alíneas e) e t) do n.º 2 do art.º 21.º da Lei n.º 99/2003.
De harmonia com a al. b) do n.º 1 do art.º 377.º do Código do Trabalho, os créditos emergentes do contrato de trabalho e da sua violação ou cessação, pertencentes ao trabalhador, passaram a gozar do “privilégio imobiliário especial sobre os bens imóveis do empregador nos quais o trabalhador preste a sua actividade”.
Independentemente da questão da aplicabilidade temporal desta norma, era essencial, para o gozo do correspondente privilégio creditório, a alegação e a demonstração de que o trabalhador prestava a sua actividade nos imóveis apreendidos.
A norma legal referida, de forma inovadora, faz depender a atribuição do privilégio imobiliário especial da circunstância do trabalhador ter prestado no respectivo imóvel a actividade decorrente do contrato de trabalho.
No caso presente, porém, o recorrente não alegou, na respectiva reclamação de crédito, em qual dos imóveis apreendidos prestara a sua actividade, sendo certo que são quatro os situados na Ribeira de São João, em Rio Maior. Por outro lado, também dos autos, nomeadamente do respectivo auto de apreensão, não é possível efectuar a sua identificação, ainda que por referência à sede da falida, onde o recorrente alegara exercer a sua actividade, por ausência de elementos seguros de conexão. A referência, por seu turno, na alegação de recurso, aos imóveis n.º s 1, 2 e 3, é tardia e intempestiva, como se aludiu, e, por isso, insusceptível de relevar.
Assim e desde logo, por falta de demonstração do requisito referido, não seria possível atribuir ao crédito do recorrente Manuel o privilégio imobiliário especial estabelecido na al. b) do n.º 1 do art.º 377.º do Código do Trabalho e graduá-lo em conformidade (art.º 751.º do Código Civil).

Por outro lado, o crédito laboral, por efeito do privilégio imobiliário geral, que lhe foi atribuído na sentença recorrida, não tem prevalência sobre a hipoteca que favorece terceiros.
Na verdade, quer a Lei n.º 17/86, quer a Lei n.º 96/2001 não estabeleciam quaisquer normas a regular o conflito entre o privilégio imobiliário geral e o direito de hipoteca que incidisse sobre os mesmos bens.
O Código Civil, por sua vez, não estipula quaisquer privilégios imobiliários gerais (art.º 735.º, n.º 3), faltando nesse âmbito um regime específico.
Aqueles privilégios foram sendo criados, sem qualquer regime, depois do actual Código Civil, através de leis avulsas.
A lacuna existente, porém, não pode ser preenchida através do disposto no art.º 751.º do Código Civil, porquanto esta norma se refere aos privilégios imobiliários especiais, cuja estrutura é diversa da dos privilégios imobiliários gerais, não incidindo estes sobre bens certos e determinados e, por isso, sem o efeito da sequela, próprio do direito real de garantia.
A maior similitude, nomeadamente por ausência da sequela, é apresentada com os privilégios mobiliários gerais, devendo a lacuna preencher-se, por isso, nos termos do n.º 2 do art.º 10.º do Código Civil, com recurso à regra consagrada no n.º 1 do art.º 749.º do mesmo Código.
Assim, os direitos de crédito garantidos pelo privilégio imobiliário geral cedem perante os direitos de crédito garantidos por hipoteca.
É, nesse sentido, que se vem pronunciando, abundantemente, o Supremo Tribunal de Justiça, para onde se remete, referindo-se, designadamente, os acórdãos de 21 de Setembro de 2006, 21 de Fevereiro de 2006, 14 de Dezembro de 2004 (todos acessíveis em www.dgsi.pt), 13 de Janeiro de 2005, 7 de Junho de 2005 e 25 de Outubro de 2005 [Colectânea de Jurisprudência (STJ), Ano XIII, t. 1, pág. 41, t. 2, pág. 116, e t. 3, pág. 86].
Nestas condições, a sentença recorrida, graduando o crédito laboral depois das hipotecas, observou a lei aplicável, o que determina a improcedência da apelação do recorrente Valentim.

2.3. Passando ao crédito da Segurança Social, a sentença recorrida procedeu à sua graduação como crédito comum, considerando extintas as hipotecas legais, por efeito do disposto no art.º 152.º do CPEREF.
O respectivo recorrente insurge-se contra esse entendimento, invocando que a lei apenas quis extinguir os privilégios creditórios da segurança social, não abrangendo as garantias obtidas através da constituição válida de hipoteca legal.
Não se questiona a aplicação do CPEREF, aprovado pelo DL n.º 132/93, de 23 de Abril.
Assim, dispõe o seu art.º 152.º, na redacção dada pelo DL n.º 315/98, de 20 de Outubro: “Com a declaração de falência extinguem-se imediatamente, passando os respectivos créditos a ser exigidos como créditos comuns, os privilégios creditórios do Estado, das autarquias locais e das instituições de segurança social, excepto os que se constituírem no decurso do processo de recuperação de empresa ou de falência”.
Desde logo, resulta do texto legal a referência exclusiva aos privilégios creditórios de certas instituições, designadamente da segurança social.
De harmonia com o disposto no n.º 2 do art.º 9.º do Código Civil, não pode ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso.
Ora, tanto no art.º 152.º do CPEREF, como no preâmbulo do diploma que o aprovou, apenas se alude aos privilégios creditórios, não existindo qualquer menção às hipotecas legais ou que seja possível sustentar validamente a sua abrangência naquela disposição legal.
O privilégio creditório e a hipoteca legal têm um regime legal próprio e diferenciado, que, naturalmente, o legislador não podia desconhecer, para além de se ter como certo que soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.
Por isso, ao não aludir às hipotecas legais, é porque quis exclui-las do âmbito da norma legal em causa, não sobrando assim espaço para qualquer lacuna legal ou para se concluir que se afirmara menos do que o pretendido.
De resto, tendo o CPEREF sido objecto de diversas alterações, nomeadamente no art.º 152.º, é esclarecedor que o legislador não tivesse aí incluído as hipotecas legais, para mais conhecendo a controvérsia jurisprudencial e doutrinal suscitada relativamente à sua interpretação.
Deste modo, e sem necessidade de maior aprofundamento, conclui-se que o art.º 152.º do CPEREF não compreende as hipotecas legais.
Neste sentido, tem sido firmada a jurisprudência, largamente dominante, do Supremo Tribunal de Justiça, citando-se, entre outros, os acórdãos de 21 de Setembro de 2006, 21 de Fevereiro de 2006, 16 de Junho de 2005, 15 de Março de 2005, 13 de Julho de 2004 (todos acessíveis em www.dgsi.pt), 27 de Maio de 2003 e 25 de Março de 2003 [Colectânea de Jurisprudência (STJ), Ano XI, t. 2, pág. 86, e t. 1, pág. 138].
Deste modo, os créditos da segurança social continuam a beneficiar da preferência resultante da garantia real oferecida pela hipoteca legal (art.º s 686.º e 704.º do Código Civil).
Os restantes créditos hipotecários, porque anteriores no registo, preferem sobre o crédito da Segurança Social e este prefere sobre os créditos laborais, como anteriormente se referiu.
Por outro lado, importa clarificar que a garantia do crédito da Segurança Social apenas abrange o crédito individualizado no registo da hipoteca legal de cada um dos imóveis, mantendo-se o restante crédito como comum.

Assim, o crédito hipotecário da Segurança Social deve ser graduado, quanto aos imóveis n.º s 1 e 5, em segundo lugar, depois do outro crédito hipotecário e antes dos créditos laborais; quanto aos imóveis n.º s 2 e 4, em primeiro lugar, antes dos créditos laborais; e quanto ao imóvel n.º 3, em terceiro lugar, depois dos outros dois créditos hipotecários e antes dos créditos laborais.

2.4. Perante o exposto, podemos extrair a síntese:
1) O privilégio imobiliário especial previsto no art.º 377.º do Código do Trabalho está dependente da alegação e prova de que o trabalhador prestava a sua actividade nos imóveis apreendidos.
2) O direito de crédito garantido pelo privilégio imobiliário geral cede perante o direito de crédito garantido por hipoteca.
3) O art.º 152.º do CPEREF não compreende as hipotecas legais.

Nesta conformidade, improcede o recurso do apelante Manuel e procede o do Instituto da Segurança Social.

2.5. O recorrente Manuel e a massa falida, por vencimento, suportam as custas dos respectivos recursos, em conformidade com a regra da causalidade consagrada no art.º 446.º, n.º s 1 e 2, do CPC.

III. DECISÃO

Pelo exposto, decide-se:
1) Negar provimento ao recurso do apelante Manuel Ferreira Valentim, confirmando-se, nessa parte, a sentença recorrida.
2) Conceder provimento ao recurso do apelante Instituto da Segurança Social, alterando a sentença recorrida quanto à graduação dos créditos, nos termos acima transcritos (último parágrafo de 2.3).
3) Condenar o apelante Valentim e a massa falida no pagamento das respectivas custas.
Lisboa, 12 de Outubro de 2006
(Olindo dos Santos Geraldes)
(Ana Luísa de Passos G.)
(Fátima Galante)