Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
2373/22.5T9LSB.L1-9
Relator: PAULA CRISTINA BORGES GONÇALVES
Descritores: NE BIS IN IDEM
COOPERAÇÃO JURÍDICA INTERNACIONAL
NULIDADE DA SENTENÇA
LIBERDADE DE EXPRESSÃO
ABUSO DE DIREITO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/20/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: Sumário (da responsabilidade da Relatora):
I. O princípio ne bis in idem comporta o direito subjectivo fundamental e garante ao cidadão o direito de não ser julgado mais do que uma vez pelo mesmo facto, assim como o princípio constitucional objectivo, que obriga o legislador à instituição de normas processuais e à definição do caso julgado material, de modo a impedir a existência de vários julgamentos pelo mesmo facto.
II. A cooperação judiciária internacional, de ajuda mútua entre os Estados, implica, necessariamente, a colaboração e entreajuda, mas também o respeito pelas decisões tomadas em cada Estado soberano.
III. Não se verifica nos autos a existência de nulidade da sentença, nos termos conjugados dos arts. 374º, n.º 2 e 379º, n.º 1, al. a), do CPP, quando nenhuma obscuridade ou insuficiência resulta da fundamentação, sustentada por prova documental e testemunhal.
IV. O erro notório na apreciação da prova, vício previsto no artigo 410º, n.º 2, al. c), do CPP, verifica-se quando um homem médio, perante o teor da decisão recorrida, se apercebe da ilogicidade do decidido. Não ocorre esse erro, quando do texto da decisão recorrida não resulta qualquer incongruência na sua fundamentação.
V. Mostram-se insusceptíveis de exclusão da ilicitude ou da culpa, nos termos dos arts. 31º e 35º do CP, as expressões proferidas que ultrapassam a liberdade de expressão, que não podem considerar-se como necessárias, decorrentes de um direito ou susceptíveis de prova de veracidade.
VI. Não existe abuso do direito na defesa da honra e consideração, quando está em causa o respeito mínimo pela dignidade humana, o que, num Estado de Direito, é transversalmente assegurado a qualquer cidadão.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, os Juízes Desembargadores da 9ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

I- RELATÓRIO
I.1. Por sentença proferida em .../.../2025 foi decidido julgar parcialmente procedente por provada a acusação particular e:
I. Absolver a arguida AA da prática em autoria material em concurso de dois crimes de difamação e dois crimes de injúria, previstos e punidos, respectivamente, pelos artigos 180º, n.º 1 e 181º, n.º 1, do Código Penal.
II. Condenar a arguida pela prática de um crime de difamação (factos de ... de ... de 2023), previsto e punido pelo 180º do Código Penal na pena de 140 dias de multa, à taxa diária de € 8;
III. Condenar a arguida pela prática em autoria material na forma consumada e em concurso real de dois crimes de injúria, previstos e punidos pelo artigo 181º do Código Penal (factos de ... de ... de 2023 e ... de ... de 2024), cada um dos crimes, na pena de 70 dias de multa, à taxa diária de € 8
IV. Operando o cúmulo das penas atrás mencionadas foi condenada a arguida na pena única de 230 (duzentos e trinta) dias de multa, a taxa diária de € 8 (oito euros), a qual não sendo paga voluntária ou coercivamente ou substituída por trabalho a favor da comunidade a requerimento da arguida, poder vir a cumprir a pena de 153 (cento e cinquenta e três) dias de prisão subsidiária.
V. Condenada a arguida no pagamento das custas processuais, com taxa de justiça que se fixa em 2 (duas) UC´s e meia [cfr. artigo 515.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Penal].
Tendo sido julgado parcialmente procedente por provado o pedido de indemnização cível deduzido pelo demandante/assistente contra a arguida demandada e foi esta condenada no pagamento da quantia de € 1000 (mil euros) a título de danos não patrimoniais, acrescida dos juros de mora contados desde a data do presente pedido até efectivo e integral pagamento e quando ao demais peticionado foi absolvida.
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I.2. Recurso da decisão
A arguida AA interpôs recurso da decisão, terminando a motivação com as seguintes conclusões (transcrição total):
“1.ª Por douta Decisão proferida nos presentes autos, o Tribunal a quo procedeu à condenação da arguida AA, em cúmulo juridico na pena de 230 (duzentos e trinta) dias de multa à taxa diária de € 8 (oito) euros, o que perfaz a quantia de € 1.840,00 (mil oitocentos e quarenta euros), também no pagamento de uma indemnização ao assistente, por danos não patrimoniais no valor de € 1000,00 (mil euros).
2.ª O presente recurso tem como objecto a matéria de facto e de direito da douta Sentença proferida nos presentes autos, com a qual a aqui Recorrente não concorda, porque os factos em causa não foram devidamente analisados pelo Tribunal a quo, quer quanto aos mesmos já terem sido objecto de uma decisão num Tribunal do Brasil, devendo assim, operar a litispendência e, também quanto à restante factualidade provada, que levou a que a Recorrente agisse na prática de um direito, o que não deveria ter levado a uma condenação da mesma, pelo que se requer a V. Exas. que, com uma análise mais detalhada dos factos, possa a Recorrente vir a ser absolvida dos crimes pelos quais foi condenada.
3.ª No correio electrónico enviado pela aqui Recorrente ao Recorrido, para o qual se remete nesta parte V. Exas., foram utilizadas algumas expressões mais fortes, o que aconteceu depois de a mesma ter sido ostracizada durante vários anos pelo Recorrido.
4.ª A Recorrente apenas fez uso da sua liberdade de expressão ao abrigo do previsto no art. 180º, n.º 2 do Código Penal.
5.ª A Recorrente agiu, salvo melhor opinião, sem ultrapassar a necessidade própria do exercício do seu direito de crítica e de liberdade de expressão, que não podem deixar de se enquadrar na esfera da atipicidade e, por isso, as mesmas devem estar ao abrigo de uma situação de exclusão de ilicitude ou de causa de não punibilidade, não se verificando os elementos constitutivos dos crimes de que a Recorrente vem acusada.
6.ª Este correio electrónico enviado pela Recorrente deveria ter sido analisado, tendo em consideração a situação que a mesma estava a viver que, como o Tribunal sabe, era de dificuldades, quer para ela, quer para as suas filhas, uma vez que o Recorrido não pagou, nem paga há vários anos a pensão de alimentos das mesmas, sendo inclusive, por essa razão, objecto de um mandado de prisão no Brasil.
7.ª Pelo Tribunal a quo foi também ignorada alguma da prova documental junta aos autos, nomeadamente a que concerne à decisão tomada pelo Tribunal do Brasil que absolveu a aqui Recorrente pelos mesmos factos que estão aqui em causa, devendo neste caso ter havido lugar à aplicação do caso julgado, que levaria à absolvição da aqui Recorrente.
8.ª De entre as várias testemunhas ouvidas em sede de Audiencia de Discussão e Julgamento, entre as quais as próprias filhas da Recorrente e Recorrido, destaca-se a testemunha BB, que referiu que o Recorrido deixou a Recorrente com “uma mão à frente e outra atrás”, referiu que no ano passado tinha ido de férias ao Brasil e que quando regressou teve que emprestar dinheiro à Recorrente e encher o frigorifico de comida.
9.ª Referiu que a Recorrente ficou sem qualquer património por causa do Recorrido, tendo de recorrer a favores de amigos para sobreviver com as filhas, situação que lhe gerou diversos problemas de saúde.
10.ª A filha da Recorrente e do Recorrido confirmou a situação aflitiva em que todas ficaram, sem dinheiro, motivado pelo não pagamento da pensão de alimentos pelo Recorrido.
11.ª O não pagamento dessa pensão de alimentos leva a que o Recorrido tenha pendente um mandado de detenção no Brasil e, por isso, não pode voltar ao país sem ser detido para cumprimento da pena que lhe foi aplicada pelo não pagamento da referida pensão de alimentos.
12.ª A instâncias do I. Advogado do Recorrido a própria filha do Recorrido afirmou que:
“Advogado do Assistente: (...) A sua mãe chamar o seu pai de filho da puta mantem a mesma postura, certo? Isso a si não lhe diz nada?
Testemunha CC: Sim.
Advogado do Assistente: Sim, é banal?
Testemunha CC: Não, não é banal, é de facto o que ele foi para a gente durante uns anos.”
13.ª Na opinião da Recorrente, estes depoimentos não foram devidamente valorados pelo Tribunal a quo, se assim fosse, as expressões utilizadas, neste contexto pela Recorrente para com o Recorrido, estariam no âmbito de uma clausula de exclusão da ilicitude do facto.
14.ª A testemunha Dr. DD, advogado, e também genro da Recorrente e Recorrido, uma vez que é casado com a Sra. CC, filha de ambos, referiu vários factos de que teve conhecimento, tendo em alguns pontos clarificado o entendimento da Justiça brasileira perante o litígio que envolveu e continua a envolver a aqui Recorrente e o Recorrido.
15.ª A testemunha EE referiu que o Recorrente deixou a família na miséria, mas mantém uma vida de luxo, como sempre manteve, incumprindo com as suas obrigações mais básicas, atente-se, não porque não pode, mas simplesmente porque não quer.
16.ª Segundo esta testemunha o Recorrido continua a receber vastos dividendos de empresas que têm no ..., sem os dividir com a Recorrente.
17.ª O Dr. EE referiu ainda que, quanto ao Recorrido que:
“(…) embora o imposto de renda enfim toda a documentação que nos é facultada pelos processos em andamento pela queda do sigilos que são determinados, demonstram exatamente uma vida de extremo luxo, ganhos em dividendos distribuídos pela empresa sobretudo a do ... na ordem de milhões de reais , 2 milhões e meio ou 3 milhões de reais por ano, por isso daquilo que consta no IRS , novamente que justifica a vida padrão de alto viagens que são sabidas são feitas e por ai vai, então no ... sò para concluir a pergunta ainda, existem ações, a FF hoje , ela tem uma liminar no ... em que ela é responsável pela administração de 28% nas quotas, na verdade não são ações é uma sociedade anónima, que constam inscritas em nome do Sr. GG, porque os outros 12 que lhe pertenciam totalizando 40 ele fez uma adopção, uma cessão que esta sendo discutida para a sua actual esposa, em absoluto prejuízo à sra. AA.”
18.ª Existe um mandado de detenção emitido pelas autoridades brasileiras contra o Recorrido, que consta a fls. 591 dos autos.
19.ª Estes factos acabaram por estar na génese do email que foi enviado pela Recorrente ao Recorrido, sendo que, o mesmo foi enviado no sentido de reagir a esta situação por parte da Recorrente.
20.ª A Recorrente tinha razões legítimas para expressar o seu repúdio pela conduta do Recorrido, não se tratando, assim, de uma difamação ou injúria gratuita, mas antes de um juízo moral sobre um comportamento socialmente censurável.
21.ª O Tribunal a quo não valorou esta situação, e, a não valoração de tal documento configura erro notório na apreciação da prova e falta de apreciação critica da prova que serviu de fundamento à decisão, nos termos dos arts. 410.º n.º 2 al. c) e 374.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, o que desde já se requer a V. Exas. seja considerado.
22.ª A Recorrente não atuou com animus injuriandi ou diffamandi, mas sim como reacção emocional e socialmente compreensível a uma conduta profundamente censurável e, por isso, existe uma exclusão da culpabilidade da Recorrente.
23.ª Estando, por isso, salvo melhor opinião, excluída a sua culpa ou ilicitude artigo 31.º do Código Penal, do qual consta que:
“não é punível o facto que for praticado no exercício de um direito”.
24.ª Estamos na presença de um abuso de direito perpretado pelo Recorrido, que levou a uma expressão de revolta motivada pela impunidade do Recorrido, sem qualquer intenção de atingir a sua honra de forma gratuita, in casu, salvo melhor opinião, estamos perante uma Exclusão da Culpabilidade por ausência de Dolo Específico.
25.ª O direito à honra não deve ser invocado, por quem actua contra a legalidade, sob pena de violação do princípio da boa-fé.
26.ª O que está também em causa é o documento junto aos autos pela Recorrente em ........2025, do qual consta todo o processo de inquérito que correu termos na secretaria da segurança publica, policia civil do Estado de São Paulo, processo nº 2363333-22.....020109, desde o email alegadamente enviado pela aqui Recorrente que deu origem a abertura do inquérito, ate ao encerramento do mesmo, que culminou com o despacho de arquivamento, fls. 643-646 - instauração do inquérito; despacho de arquivamento do inquérito 514-510-753-756, ainda a confirmação da decisão de arquivamento, fls 762-764, documentos para os quais se remete nesta parte.
27.ª As autoridades judiciais brasileiras concluíram pela não verificação dos crimes em causa, promovendo o arquivamento do processo nos termos legais, o que foi ignorado pelo Tribunal recorrido, não fazendo qualquer menção ao seu conteúdo na douta Sentença.
28.ª O Tribunal a quo não teve em consideração o princípio da cooperação judiciária, quanto ao arquivamento ocorrido no estrangeiro, como deveria, nos termos dos artigos 4.º e 5.º da Lei n.º 144/99 (cooperação judiciária internacional em matéria penal), as decisões de investigação estrangeiras devem ser valoradas quando versem sobre os mesmos factos e sujeitos processuais e ignorou o arquivamento por inexistência de crime no Brasil, onde os factos também foram denunciados e investigados, corre-se o risco de violar o princípio do ne bis in idem, consagrado no n.º 5 do artigo n.º 29.º da Constituição da República 29.ª Estamos assim na presença de um erro notório na apreciação da prova, nos termos do art. 410.º n.º 2 al. c) do Código de Processo Penal, uma vez que foram desconsiderados meios de prova que se mostram relevantes para a descoberta da verdade material.
30.ª Nestes termos, deve ser dado provimento ao presente recurso e, em consequência, ser revogada a Sentença recorrida, ordenando-se a absolvição da Arguida/Recorrente.
Nestes termos, e nos demais de Direito que Vossas Excelências não deixarão de doutamente suprir, deve ser dado provimento ao presente Recurso e revogada a Decisão de que ora se Recorre, e em consequência, ser ordenada a absolvição da Arguida/Recorrente dos crimes de difamação e injurias, como é de Direito e de SÃ JUSTIÇA”.
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I.3. Resposta do assistente
O assistente, na resposta ao recurso, pronunciou-se pela sua improcedência, concluindo (transcrição total das conclusões):
“A) A decisão em discussão, no essencial, condenou a arguida na pena única de 230 (duzentos e trinta) dias de multa, a taxa diária de € 8 (oito euros), além de julgar parcialmente procedente por provado o pedido de indemnização cível deduzido pelo demandante/assistente contra a arguida demandada e condenoa no pagamento da quantia de € 1000 (mil euros) a título de danos não patrimoniais, acrescida dos juros de mora contados desde a data do presente pedido até efectivo e integral pagamento do demais peticionado se absolve a arguida demandada.
B) A apreciação que o tribunal a quo efetuou quer das declarações do Assistente, quer do depoimento das testemunhas por si arroladas, além das demais e de toda a restante prova junta aos autos não nos merece qualquer censura;
C) As declarações prestadas pelo Assistente foram reputadas pelo Tribunal como merecendo credibilidade;
D) E, bem assim, o depoimento das testemunhas HH, II e JJ;
E) Ao contrário das várias testemunhas arroladas pela Arguida;
F) Que sequer conheciam o teor dos emais aqui em causa;
G) Pelo que muito se estranha a forma despudorada e desaberta com que se permitem discorrer sobre o conteúdo dos mesmos, substituindo-se à Arguida, na tentativa de justificar e legitimar o seu envio;
H) Já que a própria Arguida, pese embora se tenha remetido legitimamente ao silêncio, a postura processual adoptada quer nos requerimentos que fez juntar em sede de Julgamento, quer nos argumentos vertidos no recurso bem espelham a sua posição e falta de juízo crítico para as condutas adoptadas;
I) Apenas se ocupando com a criação de tramas paralelas para desviar a atenção dos factos aqui em causa;
J) Acabando, contra si própria, a trazer a lume factos que em outro espaço e lugar em muito se assemelham as estes em causa nos presentes autos;
K) Sedimentando a convicção ao espectador mais atento que esta postura e modo de agir já vêm de outros destinos remotos e tempos passados, repetem-se e tendem a perdurar no tempo;
L) E, analisando a motivação de recurso apresentada pela Arguida, constatamos que a sua discordância assenta na valoração da prova efetuada pelo tribunal a quo, a qual, livremente formada e fundamentada, resulta da convicção lógica em face da prova produzida e à luz das regras da experiência comum, pelo que deve ser acolhida a opção do julgador que beneficiou da oralidade e da imediação na recolha da prova;
M) No caso em apreço, analisada a valoração que da prova foi feita pelo tribunal recorrido, verifica-se ter a mesma sido apreciada com respeito pelos limites impostos pelo artigo 127º, do Código de Processo Penal à livre convicção, mostrando-se esta suficientemente objetivada e motivada, capaz, portanto, de se impor aos outros, inexistindo qualquer erro, muito menos notório, como alega a recorrente;
N) Daí se poder afirmar que a prova produzida não criou quaisquer dúvidas no Julgador, tendo, diversamente, conduzido o tribunal a quo à certeza de que a Arguida praticou os factos constantes da Acusação, pelo que , na realidade, sequer se impunha cogitar o princípio do in dubio pro reo;
O) Até porque, ao contrário do invocado, não existe qualquer contradição ou falta de ponderação da demais prova;
P) Devendo, pois, ser mantida a sentença recorrida.
Deste modo a, apesar de tudo, Douta Decisão deverá ser mantida, sendo negado provimento ao recurso e, consequentemente, confirmada na íntegra, a decisão recorrida, assim se fazendo a costumada e esperada JUSTIÇA!”.
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I.4. Resposta do Ministério Público
O Ministério Público, na resposta ao recurso, pronunciou-se pela sua improcedência, concluindo (transcrição total das conclusões):
“1. Nos presentes autos foi a arguida condenada pela prática de um crime de difamação previsto e punido pelo art.º 180.º do Código Penal e dois crimes de injúria previstos e punidos pelo artigo 181.º do Código Penal, na pena única de 230 (duzentos e trinta) dias de multa à taxa diária de € 8 (oito euros).
2. Não se conformando com a referida decisão, dela veio a arguida interpor recurso.
3. Entende a recorrente que ao decidir sobre estes factos o tribunal violou o princípio non bis in idem pois tal facto já fora decidido pela ordem jurídica brasileira.
4. O princípio non bis in idem mostra-se consagrado no n.º 5 do art.º 29.º, da CRP que dispõe que ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime.
5. O que este princípio proíbe é que um concreto objeto de processo possa fundar um segundo processo penal.
6. Consultados os documentos constantes dos autos e indicados nas alegações de recurso como fundando uma duplicação de procedimentos penais sobre os mesmos factos, resulta não ter havido decisão judicial transitada em julgado sobre os factos em causa nestes autos e, sobretudo, sobre os que foram dados como provados na sentença e fundaram a condenação da recorrente.
7. Verificamos que os elementos referentes a factos suscetíveis de integrarem ilícitos criminais e que foram apreciados nessa jurisdição se referem a factos diversos e anteriores aos factos em causa nestes autos.
8. Estado perante factos diversos não ocorreu a violação do princípio invocado.
9. A arguida recorre de facto e de direito, todavia, não indica quais os pontos da matéria de facto que impugna.
10. O recurso da matéria de facto visa a reparação do erro de facto sendo o objeto do recurso definido pelas conclusões do recorrente que escolhe os pontos de facto que considera incorretamente julgados cabendo ao tribunal superior sindicar apenas o juízo de apreciação de prova já efetuado, não decidindo sobre todos os factos fixados.
11. Quanto ao erro notório da apreciação da prova este é uma “falha grosseira e ostensiva na análise da prova, percetível pelo cidadão comum, denunciadora de que se deram provados factos inconciliáveis entre si” (Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos em Processo Penal de acordo com o Código de Processo Penal revisto, 7ª Ed, Ed. Rei dos Livros, 2008, pág. 77).
12. Da prova produzida em Audiência de Julgamento, dos factos dados como provados, das regras da experiência e da leitura do texto da própria sentença resulta não padecer a mesma de qualquer um dos vícios previstos no n.º 2, do art.º 410.º do Código de Processo Penal.
13. Os factos dados como provados foram-no por tal ter resultado da produção de prova realizada em audiência de julgamento apreciada na sua globalidade e conjugada com as regras da experiência, a qual foi devida e corretamente valorada pelo tribunal.
14. Ao dar como provados os factos constantes da matéria de facto não foram violadas quaisquer regras da experiência, não se retiraram conclusões ilógicas, contraditórias, arbitrárias e inaceitáveis da prova produzida nem se violaram regras sobre prova vinculada.
15. Não apreciou o tribunal a quo de forma descabida a prova, bem como não se vislumbra na decisão nenhuma irrealidade patente aos olhos do observador comum, que se possa opor à normalidade dos comportamentos e às regras da experiência.
16. Quanto a um eventual erro de julgamento, este necessita que a prova produzida imponha outra apreciação da matéria de facto, o que não ocorre nestes autos.
17. Efetivamente, da leitura da sentença resulta que o tribunal fundamentou a sua tomada de posição sobre a prova tendo esclarecido de modo percetível e suficiente como apreciou a prova produzida e os motivos pelos quais fixou a matéria de facto nos termos em que o fez.
18. No nosso ordenamento jurídico as declarações prestadas em julgamento são livremente apreciadas pelo tribunal, pelo que nada obsta a que as declarações de uma testemunha ou arguido possam pesar mais que as de outro interveniente se, depois de examinadas e valoradas, se considerar que a versão apresentada é credível sobretudo quando, no essencial, corroborada pelas regras da experiência.
19. Sendo a prova no sentido apontado pela decisão recorrida, os excertos transcritos nas alegações de recurso não são passíveis de pôr em crise o decidido quanto aos factos provados, nem são suscetíveis de inverter o sentido daquela decisão.
20. Entendemos não se verificar qualquer vício quanto à apreciação da prova.
21. Os crimes em causa pretendem proteger a honra, a dignidade e consideração dos indivíduos.
22. A proteção penal daqueles bens jurídicos deve ser limitada às situações em que as palavras dirigidas ao titular do bem jurídico e nos termos em que o foram são, para além de toda a suscetibilidade individual, inquestionavelmente lesivas da honra e da consideração da pessoa a quem foram dirigidas ou sobre quem foram proferidas.
23. Sendo crimes de perigo, basta que a conduta da arguida seja adequada a atingir a honra e consideração do visado, ou seja, basta que se retire das circunstâncias que rodearam o facto que esta tinha a consciência da potencial perigosidade das expressões utilizadas.
24. Quando um indíviduo assaca a outrem factos ilícitos, que constituem crime, e apoda essa pessoa com as expressões constantes da matéria de facto dada como provada, que são inquestionavelmente usadas para atingir o visado e reduzir ou dissipar a sua consideração perante terceiros, não pode, quem profere as mesmas, ignorar que tais afirmações e expressões são suscetíveis de pôr em causa o carácter e a reputação da pessoa que têm como objeto e que é assim qualificada.
25. A recorrente invoca estar a exercer um direito e a reagir contra a atuação injustificada e dolosa do arguido exprimindo meramente um sentido de injustiça e as emoções socialmente adequadas causadas por aquela situação.
26. “A causa de justificação prevista o n.º 2, do art.º 180º do Código Penal só é aplicável quando está em causa uma imputação de factos, estejam preenchidos os elementos objetivos e subjetivos do crime de difamação e se verifiquem cumulativamente os requisitos das alíneas a) e b) que são cumulativas.” – Ac. do TRC, datado de 06-11-2013, proferido nos autos n.º 582/10.9TAGRD.C1, in dgsi.pt.
27. Assim, para que a conduta não fosse punível as imputações teriam de ter sido feitas para realizar interesses legítimos devendo a arguida provar a verdade das mesmas imputações ou fundamento sério para, em boa fé, as reputar como tal.
28. Resulta das palavras utilizadas e do tom impresso às comunicações que mais que alertar terceiros ou defender a sua própria posição, como pretende a arguida, estas pretendiam essencialmente vexar e prejudicar a imagem do assistente como forma de retaliação por uma atuação que a mesma sente como injusta e que não logra resolver.
29. Mais, resulta que a recorrente imputa diversos crimes ao assistente não tendo demonstrado quaisquer condenação que sustente aquelas afirmações para além da sua convicção.
30. Muitas das expressões em causa apenas podem ter, na língua portuguesa, conteúdo atentatório da dignidade e consideração de todo e qualquer cidadão que seja o objeto das mesmas, apenas denegrindo o visado sem que sejam capazes de proteger o emitente ou a sua posição numa contenda que possa existir, nem assegurar qualquer direito de quem profere tais expressões.
31. Não se negam os profundos sentimentos da condenada quanto à disputa subjacente a estes factos, todavia, isso não afasta nem a ilicitude nem a culpa da mesma.
32. Em conformidade com os argumentos acima elencados, entende-se não assistir razão à recorrente, devendo ser negado provimento ao recurso e mantida a decisão recorrida nos seus precisos termos.
Nestes termos, e com o douto suprimento desse Venerando Tribunal, negando provimento ao recurso e mantendo a decisão recorrida, V. Ex. as farão, como sempre, a costumada JUSTIÇA.”.
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I.5. Parecer do Ministério Público
Nesta Relação, o Ministério Público emitiu parecer desfavorável ao provimento do recurso interposto pela arguida.
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I.6. Resposta ao parecer
Foi cumprido o estabelecido no artigo 417º, n.º 2 do Código de Processo Penal, não tendo sido apresentada resposta ao parecer do Ministério Público.
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I.7. Foram colhidos os vistos e realizada a conferência.
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II- FUNDAMENTAÇÃO
II.1. Objecto do recurso
É consabido e decorre de Jurisprudência pacífica do Supremo Tribunal de Justiça, que é pelas conclusões apresentadas pelo recorrente que se delimita o objecto do recurso, sem prejuízo do conhecimento de questões oficiosas (cfr. o art. 410º do CPP).
Assim, da análise das conclusões da recorrente extraímos as seguintes questões que importam apreciar e decidir:
1ª Violação do princípio ne bis in idem – art. 29º, n.º 5, da CRP – e violação do princípio da cooperação judiciária internacional – Lei n.º 144/99, de 31/08;
2ª Nulidade da sentença por falta de fundamentação – artigos 374º, n.º 2 e 379º, n.º 1, al. a), do CPP;
3ª Erro notório na apreciação da prova – art. 410º, n.º 2, al. c), do CPP;
4ª Exclusão da ilicitude ou da culpa – arts. 31º e 35º do CP;
5ª Abuso do direito do recorrido – art. 334º do CC.
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II.2. Sentença recorrida (que se transcreve parcialmente nas partes relevantes)
“Mostram-se provados, com relevância para a decisão da causa, os seguintes factos:
1- O assistente e a arguida casaram civilmente em ... de ... de 2001 tendo o referido casamento sido dissolvido por divórcio decretado por sentença judicial datada de ... de ... de 2018, transitada em ... de ... de 2018.
2- A ... de ... de 2021 foi o aqui Assistente ouvido em sede de Inquirição de Testemunha no âmbito do NUIPC 97/21.0... na Divisão de Investigação Criminal de Lisboa pelo Sr. Agente Principal XX (M/…).
3- Iniciada a diligência, tomou o assistente conhecimento da existência de uma queixa-crime apresentada pela Arguida em ... de ... de 2021 complementada em ... de ... de 2021 quando foi inquirida pelo Agente Investigador
4- Em ... de ... de 2021 ao consultar os referidos autos logo verificou que em ... de ... de 2021, um dia após ter sido Inquirida na PSP, a aqui Arguida dirigiu um email da sua caixa de correio ... ao Agente Investigador no mesmo fazendo constar o que se refere no ponto 4 da acusação particular, cujo teor aqui dou por reproduzido.
5- Posteriormente, em ... de ... de 2021, a aqui Arguida dirigiu novo email da sua caixa de correio ... ao Agente Investigador onde, referindo-se ao Assistente, a um dado momento, menciona:
Tenho a confirmação que KK ainda se encontra em Portugal. O filho vive em .... Saiu um despacho da juiza de Familia em ... o intimando a pagar um saldo de pensão que ganhei o recurso no Tribunal lhe dando 3 dias para pagar ou caso não faça que seja preso imediatamente.
Achamos que ele veio para cá para fugir de ser notificado. Ele está tomando várias medidas de ocultação de patrimônio no Brasil, no ... e aqui. Pondo muita coisa no nome da fulana com dinheiro que me pertence 50%. Desviou fortunas para a conta dela no Brasil. Tivemos aqui uma denuncia de alguém de LL, que ele tem depositado fortunas na conta da irmã MM. Ela tem 75 anos e vive com unia pequena aposentadoria, é viuva. Ela deve ter dado com a lingua nos dentes com alguma amiga lá. Deslumbramento.
Não sei como as Finanças aqui não pegam essas pessoas. KK, ela e a fulana não declaram Imposto de Renda aqui. No Brasil pegam tudo pois os dados de bancos, cartões de crédito, empresas e propriedades são todos cruzados.
Para sua informação KK caiu na chamada “malha fina” lá. O imposto de renda dele está sendo
todo investigado. É todo mascarado e fraudado de 4 anos pra cá. Desde que ele saiu de casa. O da
fulana também, tudo mascarado.
6- Em ... de ... de 2022 a Arguida enviou um email da sua caixa de correio ... ao Assistente, tendo por destinatários, igualmente e entre outros, NN (filho do Assistente), HH (enteada do Assistente), OO (enteada do Assistente) e PP (enteado do Assistente) e II (Advogado do Assistente no Brasil) e referindo-se ao Assistente, fez constar:
- NÃO, GG não é um empresário rico e bem sucedido; nunca foi; as empresas no Brasil sempre viveram afundadas em dívidas e a empresa mãe desde ... está em Recuperação Judicial (antiga concordata) por incompetência e má gestão administrativa de GG além de golpe a credores com o pedido dessa RJ na Justiça; o mercado inteiro sabe disso. É MENTIRA que ele seja um empresário bem sucedido e competente. (...)
- NÃO, não perdemos o nosso apartamento da ... em ... porque o juiz beneficiou os credores ou os credores "compraram" o juiz (como sempre o advogado senil e incompetente do KK, II, fala); foi incompetência do advogado, negligência, com total apoio de GG. SÃO DOIS INCOMPETENTES INSANOS.
(...)
- NÃO, GG não ganhou NENHUMA AÇÃO ajuizada por mim aqui no Brasil tanto na área civel, familiar ou empresarial. PERDEU TODAS!!!! NÃO GANHOU NADA" DEVE MAIS DE 1 MILHÃO DE REAIS EM MULTAS POR LITIGÂNCIA DE MÁ FÉ E ATENTADO à DIGINIDADE DA JUSTIÇA! O ADVOGADO DELE PERDE TUDO E DIZ QUE OS JUIZES FORAM COMPRADOS!
Mente doentia. Terraplanista jurídico. Incompetente insano que ficou no século passado em termos de atuação profissional. Um canalha! Nivel de 15ª categoria. Mas como diz KK, ele é barato. Eles se merecem.
(…)
- NÃO, GG não é bem visto nem bem quisto no mercado livreiro do Brasil. Ninguém sente falta dele, É página virada. Considerado golpista, roleiro, manipulador, vigarista e por ai vai. Ninguém pergunta por ele. Não faz falta. Não deixou saudades nem história. Só más lembranças.
(…)
Em Portugal:
- perdeu ação na justiça tentando me impedir o acesso AO NOSSO APARTAMENTO DA LAPA com a falsa alegação de comodato com a QQ.
(…)
- e o dinheiro que ele sumiu das NOSSAS CONTAS? É roubo!!!! Mais de Euros 400 mil! Tudo em andamento na justiça portuguesa.
- as "quengas" saquearam o nosso apartamento da ...; fiz BO na policia portuguesa e KK subornou o investigador.
Pensam que vai ficar assim? Não vai não. Vai custar muito caro. Esperem para ver.
(…)
Caso você tenha usufruido de viagens, jantares, hotéis, compras, presentes e outros "mimos" do tipo, saiba que você foi beneficiário de uso indevido de dinheiro "roubado" ou de apropriação indébita. FUI CLARA?????
Caso você continue usufruindo dessas "benesses" sabendo da origem desses fundos, saiba que você é "cúmplice" nesse crimes. FUI CLARA?????
7- Em ... de ... de 2023, a Arguida enviou um email da sua caixa de correio ... tendo por destinatários, entre outros, o Assistente, HH (enteada do Assistente), JJ (Assistente pessoal do Assistente no Brasil) e II (Advogado do Assistente no Brasil), no qual, referindo-se ao Assistente, fez constar e que por todos foi lido, com excepção de RR:
Seu filho da puta canalha!!!!
Você não tem nem um pingo de consideração pelas meninas!!!!
Pagando para os chupins todos andarem na boa vida com dinheiro "que não te pertence!" Dizendo na justiça que as meninas estão na faculdade há 6 anos!!!! Desde ...! MENTIRA!!!!!! Entregando comprovante de pagamento do ... dizendo que é faculdade! Você não paga nada desde ...!!!!! CANALHA!
Fraudador! Falsificador! Estelionatário! Psicopata!!!! Vigarista! Falsário!
Mente doentia!!!!!!
A policia te espera aqui.
Espera pra ver. Junto com toda a quadrilha e cúmplices. (…)
SS
8- Em ... de ... de 2023 a Arguida enviou do seu email pessoal ...) um email tendo por destinatários JJ (Assistente pessoal do Assistente no Brasil) e TT (pessoa que igualmente labora com o Assistente no Brasil) onde, a um dado momento, referindo-se ao Assistente, escreve:
(…)
• sim, KK tem 3 ordens de prisão expedidas no Brasil a primeira desde ... de ... de 2022, com validade de 3 anos podendo ser prorrogada ad eternum, por não pagamento de pensão alimentícia que já se avoluma em mais de R$ 1 milhão; se encontra foragido da justiça em Portugal; a ... e ... sabem disso;
• sim, KK já entrou com mais de 15 pedidos de suspensão ou cancelamento dessas ordens de prisão os quais foram veementemente rechaçados pela justiça; teve todos negados; valores enormes de multas por atentado a dignidade da justiça e litigância de má fé;
• sim, KK tem mais de R$ 2 milhões em multas na justiça por atentado à dignidade da justiça e litigância de má fé;
• sim, KK foi destituido da gestão da ... por ordem judicial e esta empresa desde ... de ... de 2022 está sob a minha gestão sendo que as cotas são 100% minhas já transitado e julgado não cabendo nenhum tipo de recurso mais; encerrado;
• sim, com relação às outras empresas estão paralisadas, sob a "gestão dele" aguardando decisão judicial (técnicamente empresas inviáveis); mercado ignora KK e não quer saber dele para nada; final de carreira;
• sim, já existe uma ação criminal aceita pelo Ministério Público contra KK e o seu advogado II por "denunciação caluniosa" contra mim e meus advogados;
(…)
• sim, todos os funcionários das empresas hoje trabalham para mim e estão todos me apoiando e do meu lado; o estrago feito junto a eles por desmandos e assédio moral por ele e UU foi devastador; um momento negro na história da empresa; para passar a borracha; danos imensos de todos os tipos;
• sim, já dei entrada em ação criminal por estelionato contra KK e seu advogado II;
• sim, já dei entrada em ação criminal por fraudes, desfalques de caixa, apropriação indébita, falsificação de contratos e documentos, lavagem de dinheiro, ocultação de patrimônio, fraude a credores; fraudes junto à ... e outros;
• sim, na ação acima estão incluídas várias pessoas que foram "cúmplices, coniventes ou beneficiárias" dessas ações criminosas (viagens ao redor do mundo e no Brasil com dinheiro da empresa, restaurantes, hotéis, cartões de crédito, presentes, etc); todos os envolvidos nesses "esquemas criminosos" estão citados e arrolados nessa ação; estavam avisados por mim; não tem ninguém santo nessa história;
• sim, por incompetência, negligência e má fé de KK e II, perdemos nosso apartamento da ... num leilão;
• sim, a casa do ... será perdida também e continua sob a minha tutela por ordem judicial desde ...; A C andou dizendo aqui no Brasil e em Portugal que um dia será dela e de KK; JAMAIS!; se aparecer na porta terá uma recepção inesquecível; podem apostar;
(…)
• sim, estou serena.... justiça será feita... já falta muito pouco para ver essa escória na lama e o fim dessa história sórdida.
9- Em ... de ... de 2024 a Arguida enviou um email da sua caixa de correio ... ao Assistente, com várias pessoas em conhecimento, onde escreve:
- É inacreditável a capacidade de mentir e manipular desse ser. - Desde quando esse sujeito covarde e reles tem culhão para isso? Jamais teve, tem, teria ou terá. Jamais. Porque é estruturalmente covarde. Só age pelas costas.
- Em poucos meses já estava envolvido em falcatruas; derrame de duplicatas frias contra terceiros para fabricar dinheiro.
- Este é o verdadeiro GG vulgo Covarde. Em pouco tempo a policia encostou um camburão na frente do prédio e levou ele preso para a delegacia. Um vexame. Lá fui eu atrás de advogado criminalista pra livrar a cara do meliante.
- Meus pais foram muito úteis a KK. Eram os escudos que ele precisava. Morreram os dois com o nome sujo por causa de KK. É nojento!
- Desde os anos 90 KK foi aplicando os mesmos golpes e falcatruas da época da ... (eu não sabia disso nunca estive envolvida em nenhuma falcatrua e nenhuma fraude, NUNCA!). Falsificação de documentos, desfalques de caixa, fraude a credores, lavagem de dinheiro, etc. Uma verdadeira quadrilha e organização criminosa. Vários cúmplices. Atuando há décadas inclusive mancomunado com a editora .... O mercado todo sabe disso. Eu não sabia. Nos últimos 7 anos o descalabro foi total. Ladeira abaixo.
- KK chegou um VV no Brasil e saiu do Brasil um VV
- Aliás ... é bem apropriado. É o paraiso dos puteiros. A ... e o MP encontram tudo. A policia judiciária também.
- Cumprirei a minha missão até o fim.
10- Em ... de ... de 2024 a Arguida envia email da sua caixa de correio ... ao Assistente, com conhecimento a algumas pessoas, com o seguinte conteúdo:
Todos os fraudadores, estelionatários, aproveitadores, falsários, que usaram do expediente de lavagem de dinheiro (blanqueamento de plata), apropriação indébita, falsificação de documentos, etc, serão devidamente punidos de acordo com a lei. Lembrando que fora do Brasil não existe réu primário.
Isso serve para atos praticados junto com cúmplices no ... e .... A justiça pode tardar mas não falha. É só esperar para ver.
11.A Arguida ao dirigir os emails mencionados nos pontos 7 e 9 visou, dirigindo-os também a terceiros pôr em causa a dignidade, honra e reputação do Assistente, conformando-se com tal acto e respectivas consequências.
12.Do mesmo modo, ao dirigir os emails mencionados nos Pontos 7 e 9 visou, dirigindo-se directamente ao Assistente, com, conhecimento a terceiros, quis por pôr em causa a dignidade, honra e reputação do Assistente, conformando-se com tal acto e respectivas consequências, proferindo palavras e formulando juízos que sabia serem ofensivos da sua honra e consideração.
13.Agindo deliberada, livre e conscientemente com o propósito firme e alcançado de ofender a honra, bom nome, consideração e brio pessoal e profissional do Assistente, logrando alcançar tal objectivo.
14.Bem sabendo que as suas condutas eram (e são) proibidas e criminalmente punidas.
15. A arguida está reformada não recebendo pensão porque embora tenha trabalhado como arquitecta não fez descontos. Vive em casa comodatada, com as duas filhas uma delas que se encontra a trabalhar e a segunda a frequentar o estágio. A arguida suporta as despesas de condomínio no montante de 5 mil reais por mês. Refere ter a ajuda de terceiros para suportar as despesas necessárias à sua subsistência. A arguida é licenciada em arquitectura, tendo a pós graduação em urbanismo e paisagismo.
Do pedido de indemnização cível:
17-Em consequência da actuação da arguida , o assistente sentiu-se ofendido e desgastado com as expressões que a Arguida lhe dirigiu, directamente para si via email e ainda com conhecimento de terceiros.
18-Sentiu-se incapaz de travar a conduta da arguida, triste e perturbado.
Da prova produzida não resultaram demonstrados os seguintes factos:
a) Agiu a arguida com plena consciência da falsidade dos factos que imputava ao Assistente e, ainda assim, não se inibiu de o fazer.
b) A arguida actou ciente que pela proximidade que o assistente tinha com os destinatários do emails, o seu conteúdo seria transmitido.
Motivação da decisão de facto
O tribunal alicerçou a sua convicção na análise crítica do conjunto da prova produzida, analisada segundo as regras da experiência comum e juízos de normalidade.
Assim atendeu-se ao teor dos documentos juntos aos autos, designadamente todos os emails e documentação constantes do apenso, a teor de fl.s 8, 10 a 38, 50, 75 a 79, 230 a 231, 239 a 288, certidão constante de fl.s 299 a 236, 322, 328 a 338, 346 a 358, 381 a 469, 591, 609 a 877.
A arguida no exercício do direito que lhe assiste remeteu-se ao silêncio quanto aos factos de que se encontra acusada, tendo declarado apenas quanto às suas condições sócio económicas.
O assistente WW confirmou o casamento e divórcio da arguida e os termos conflituosos em que este último ocorreu.
Confirmou o recebimento dos emails provenientes do endereço de email da arguida e a necessidade de se desculpar perante terceiros que os receberam da situação que ali era relatada.
Confirmou as expressões que lhe foram dirigidas e com as quais se sentiu injuriado, molestado. Confirmou ainda as pessoas a quem foram enviados tais emails, tendo ainda referido que a situação já perdurava há longa data o que é visível do teor dos emails que se encontram junto ao apenso.
Esclareceu, ainda os problemas com a empresa e a ausência de razão nas afirmações da arguida, esclarecendo ainda o significado de algumas expressões usadas pela arguida.
Esclareceu ainda os problemas com as partilhas e os processos judiciais que as envolveram, a pensão de alimentos devida às filhas e à arguida, a ausência de pagamento e os motivos determinantes da mesma. Acrescentou que nunca teve restrições em entrar ou sair do Brasil, o que resulta desmentido pelos documentos juntos autos designadamente os mandados emitidos em seu nome.
Confirmou, ainda, ter tido que esclarecer no Brasil o imposto de renda daí a alusão ao ter caído na malha fina, referida pela arguida em alguns dos mails.
A testemunha XX, investigador da PSP, confirmou ser o seu mail o que consta de fl.s 50 dos autos, que recebeu no âmbito da investigação que estava a fazer.
A testemunha YY, referiu conhecer o arguido por ser o seu padrasto, não mantendo contacto com a arguida desde o divórcio.
Referiu ter recebido emails da arguida dando conta dos epítetos que por este eram dirigidos ao arguido, explicando o significado de alguns. Referiu conhecer as filhas do assistente, estando em crer que a questão da pensão de alimentos ainda está por decidir. Referiu que o assistente reagiu de forma calma a este processo, descreveu-o como uma pessoa pacata, calmo, bondoso, gentil com todos. Referiu ainda que esteve envolvida, juntamente com o seu marido, o assistente e a MM num processo por alegado furto de joias numa casa em Lisboa, pertencente ao assistente e à arguida.
O assistente desculpou-se e justificou-se perante as pessoas que receberam os mails. Revelou desconhecer a situação da empresa do brasil.
A testemunha JJ referiu conhecer o assistente há mais de trinta anos, por ter trabalhado na empresa que o mesmo geria e desde ... a arguida que começou nesse ano a gerir a empresa. Referiu que os emails tinha conotações financeiras e que a empresa tinha dificuldades financeiras, tendo o processo recuperação tido início quando o arguido ainda geria a empresa. Explicou os conceitos de estelionatário e roleiro.
A testemunha II, sendo ou tendo sido advogado do assistente e da empresa do Brasil, confirmou que o assistente não pagou o valor por ser muito elevado, tendo sido determinado por uma vez a prisão que depois veio a ser revogada por ter sido concedida um liminar. Acrescentou, ainda, não ter recebido o mail de .../.../2023, que apenas leu por watsaap reencaminhado não sabe por quem, sendo que o de .../.../2023 também não recebeu, dado que a dada latira bloqueou os mails da arguida.
A testemunha DD, sendo namorada da filha da arguida e do assistente, referiu a existência de processos no Brasil, indiciando uma gestão fraudulenta, sendo os emails uma resposta ou melhor um esclarecimento dos emails pelo assistente apelidando-a de louca destemperada, que era tudo dele. Referiu que a acção tendente à partilha e bens que corre termos no Brasil ainda não tinha transitado. Referiu, ainda a existência de acções no ... que estão interligadas. Relativamente ao pagamento da pensão de alimentos foi paga até ... tendo deixado de ser paga desde então, estando pendente um mandado de prisão por ausência de pagamento e consequentemente impedido o assistente de entrar no Brasil porque seria preso.
Em ... a arguida assumiu a gestão da empresa através de um liminar no Brasil. Acrescentou que correm termos desde ... dois inquéritos por gestão danosa, facturas sem rasto, transferências de dinheiro suspeitas.
A testemunha ZZ, sendo cunhada do arguido que conhece há mais de 60 anos, referiu ter recebido email da arguida onde contava tudo, o ter e perdido a casa, acrescentou não se recordar se recebeu e leu o mail de fl.s 287 e 288, reportado ao dia ... de ... de 2024.
A testemunha AAA, referiu conhecer a arguida e o assistente desde ... quando começou a trabalhar com o arguido tendo terminado em .... Referiu não se recordar se recebeu emails da arguida, sendo que num deles a arguida apelidava o assistente de filho da puta, a partir de determinada altura bloqueou os email`s.
Teve conhecimento do litígio entre ambos, sem detalhes contudo da situação. Teve conhecimento de acções contra o arguido mas não sabe quais e dos problemas financeiros, mas sem detalhe. Referiu a existência de um email em que era referida a formação de uma quadrilha em que o depoente era visado também. O arguido era reputado no mercado na altura em que trabalharam juntos.
A testemunha CC, sendo filha do assistente e da arguida referiu desconhecer o teor dos mails em causa nos autos. Referiu que tinha 17 anos quando o pai a abandonou a si e à mãe. Referiu ter conhecimento do mandado de detenção e da acção que a mãe intentou contra o pai, desconhecendo o estado ou o conteúdo.
Referiu que o pai teve de deixar a gerência da empresa por ordem judicial, dada a existência de problemas financeiros, onde usava o dinheiro de forma indevida. Referiu a existência da dívida pensão de alimentos.
Referiu que o seu pai é “filho da puta” porque foi isso que ele foi durante muitos anos.
A testemunha BBB, filha do arguido e da assistente. Referiu não ter conhecimento dos mails em causa nos autos. Afirmou que o seu pai deixou de pagar a pensão de alimentos o que deixou a depoente, a sua irmã e sua mãe, com muitas dificuldades financeiras.
A testemunha CCC referiu conhecer o assistente por terem trabalhado na mesma área, o ramo editorial, desde .... Referiu ter recebido vários mails da arguida falando do assistente, em que a arguia reclamava os seus direitos, expunha situações de litígio entre eles relacionados com a empresa, tendo bloqueado muitos dos emails. Teve conhecimento de acções intentadas cada um deles contra o outro. Em ... foi ouvido como testemunha num processo em que se falava da quadrilha. Entre ... e ... começaram os problemas financeiros e em ...1.../2011 a arguida assumiu a gestão da empresa, sendo que à presente data crê que já não labora.
A testemunha DDD referiu conhecer a arguida e o assistente há 12 anos, uma vez que o seu filho namora com o filho da arguida e do assistente. Referiu nunca ter recebido emails da arguida, referindo a existência de várias acções entre ambos. Referiu ter tomado conhecimento que a arguida assumiu a empresa.
A testemunha EEE, referiu conhecer a arguida e o assistente há mais de 25 anos, sendo que ainda à presente data trabalha para a arguida. Referiu não ter conhecimento de quaisquer mails. À sua frente, a arguida nunca ofendeu o arguido. Teve conhecimento pela arguida de acções intentadas contra o assistente e vice versa.
Soube também que o assistente deixou de pagar a pensão de alimentos desconhecendo o motivo que o determinou a tal.
A empresa fechou.
A testemunha FFF referiu conhecer a arguida há mais de 36 anos, referiu conhecer a arguida há mais de 16 anos com quem trabalhou, na residência então de ambos. Referiu não ter conhecimento dos mails.
A testemunha GGG referiu conhecer a arguida desde a infância, sendo amigas e o arguido por ter casado com esta. Referiu que a arguida é uma pessoa fina, educada, estudada e jamais usaria o tipo de palavreado que aqui está em causa. Teve conhecimento da mandado de detenção porque não paga a pensão de alimentos por crueldade, porque não se importa com os outros.
A testemunha HHH referiu conhecer a arguida de que é amiga há mais de 52 anos. Não teve conhecimento de qualquer email.
Importa desde já referi que para além de algumas testemunhas terem confirmado o recebimento do mails da arguida, do teor do vasto acervo que consta do apenso resulta evidente ter sido a arguida quem os remeteu e dirigiu desde logo porque alguns deles são de esclarecimento aos trabalhadores que laboravam à data na empresa
Quanto aos mails remetidos ao agente de autoridade, importa desde já esclarecer que a arguida enviou os referidos emails para um agente de autoridade no exercício de funções e no âmbito de uma denúncia que apresentou contra o arguido, conforme cópia simples constante de fl.s 11 a 12 dos autos, 50 dos autos, sendo que a referência a “ele dá nó, em pinho de água” querendo com isso significar que engana as pessoas com facilidade não pode ser entendido, no contexto em que é feito como uma situação suscetível de integrar o crime de difamação, uma vez que é dito no contexto de uma denúncia em que a queixosa é a própria arguida.
Não pode deixar se considerar que a existir eventualmente um crime, estaríamos perante um crime de natureza semi-pública que não aquele que lhe é imputado. Acresce que a referência cair na malha fina se reporta a ter sido chamado a uma fiscalização do seu imposto de renda que o assistente confirmou ter ocorrido e que é de uso comum no Brasil, sem que contudo a mesma possa significar no contexto em que é dita a prática de qualquer dos crimes que lhe é imputado, sem embargo possa ser considerada uma linguagem grosseira e deselegante. .
Ora, tendo presente o exposto resulta evidente que as afirmações acima referidas não integram a prática de um crime de difamação como pretende o assistente.
Quanto ao email de ... de ... de 2022, .../.../2023, .../.../2024 e ... constante dos autos de fl.s 175 dos autos importa referir que o assistente confirmou o seu recebimento contrariamente as outras testemunhas que foram ouvidas as quais referem muitas delas que por vezes, face ao número de emails que receberam, já não liam e chegaram mesmo a bloquear os mails remetidos pela assistente.
Do seu conteúdo é possível ver uma descrição ainda que dura de determinados factos na base do forte e evidente diferendo que opôs a arguida e o assistente diferendo que os desuniam e parecem desunir referente à empresa propriedade de ambos e as divergências quanto à acção e alimentos e incumprimento da mesma por parte do arguido., sendo que muitas das imputações efectuadas se traduzem na afirmação de palavras que no Brasil têm uma conotação jurídica e que têm ou tiveram por base acções judiciais terminadas ou em curso.
As palavras pela arguida foram deselegantes, rudes, desagradáveis e reveladores do descontrolo perante a situação vivenciada entre ambos, bastando para o efeito atentar aos email alguns do quais respondidos pelo assistente, embora em significativa minoria constante do apenso. Contudo, atendendo ao contexto de animosidade entre ambos, que parte das pessoas estavam envolvidas na prática, segundo a arguida e por ela denunciados em investigação ou pendentes, sendo que alguma das pessoas para os quais os enviou são pessoas que também são denunciadas resulta evidente quanto a nós que com os mesmos a arguida não visou por em causa o bom nome do ofendido mas relatar situações que alias denunciou e que são conhecimento do assistente quando ao mesmo também foram dirigidas. A par do referido, resulta igualmente sérias dúvidas ao Tribunal que os destinatários tenham abertos estes maios, face ao acervo de mails remetidos pela arguida a estas pessoas, algumas das quais referiram mesmo ter bloqueado a arguida.
Note-se que o mail de ... de ... de 2024 é genérico e imputando qualificações que vêm no sentido do que referia em termos factuais no mail de ... de ... de 2023.
Quanto ao mail de ... de ... de 2023 a ... de ... de 2024, cujo recebimento foi confirmado pela esmagadora das testemunhas inquiridas resulta evidente face as expressões referidas, como filho da puta, canalha, puteiro, psicopata, vigarista e falsário, resulta evidente que não são nem descritiva de qualquer factualidade e têm uma conotação e carga inerentemente atentatória do bom nome e consideração do assistente, o que a arguida não ignorava, estando ciente do seu significado e da sua intencionalidade.
Quanto aos factos não provado, assim os considerou o Tribunal por sobre eles não ter incidido um meio de prova cabal ou da prova produzida ter resultado o contrário.
Enquadramento jurídico-penal dos factos
Vem a arguida acusado da prática de quatro crimes de injúria e de três crimes de difamação, previstos e punidos, 181.º, n.º 1 e 180.º e 183.º, n.º 1 alínea b) ambos do Código Penal
A linha essencial da distinção entre a difamação e injúria reside no facto de o ataque ser direto à pessoa do ofendido, sem intermediação, no caso da injúria, ou ser feito de forma inviesada, indireta, através de terceiros, no caso da difamação.
Debruçando-nos sobre este tipo de crime, importa atender, desde logo, aos seus elementos objectivos e subjectivos.
Os crimes contra a honra são conceitos que só se compreendem após uma prévia valoração da realidade e do contexto envolvente.
São elementos constitutivos do crime de injúria a imputação a outrem de factos concretos e determinados, mesmo sob a forma de suspeita, ou dirigindo-lhe palavras, ofensivas da sua honra e consideração.
Sobre o conceito de honra a doutrina distingue a honra interior ou subjetiva, que se refere à opinião ou sentimento de uma pessoa sobre o seu próprio valor e a honra exterior ou objetiva, ou seja, a representação que os outros têm sobre o valor de uma pessoa, a chamada reputação ou o bom nome.
Como bem salienta o Prof. Costa Andrade, “neste âmbito são claramente prevalecentes as definições de índole exterior ou objetiva por, em geral, se reconhecer que a honra interior está, por princípio, a coberto da agressão por terceiros”. O direito ao bom nome e reputação e à imagem encontra-se consagrado constitucionalmente, cfr. artigo 26º da C.R.P..
Por sua vez, a tutela geral da personalidade encontra-se prevista nos artigos 25º e 70º do C. Civil.
Segundo a lição do Prof. Beleza dos Santos, in "Algumas considerações jurídicas sobre crimes de difamação e de injúria", R.L.J., Ano 92º, p. 164 e segs. " a honra é aquele mínimo de condições, especialmente de natureza moral, que são razoavelmente consideradas essenciais para que um indivíduo possa com legitimidade ter estima por si, pelo que é e vale".
A honra, segundo a conceção dominante entre nós, consiste num bem jurídico complexo que inclui, quer o valor pessoal ou interior de cada indivíduo, radicado na sua dignidade, quer a própria reputação ou consideração exterior. O que se protege “é a honra interior inerente à pessoa enquanto portadora de valores espirituais e morais e, para além disso, a valência deles decorrente, a sua boa reputação no seio da comunidade”.
O bem jurídico honra traduz uma pretensão de respeito por parte dos outros, que decorre da dignidade humana.
O seu conteúdo é constituído basicamente por uma pretensão de cada um ao reconhecimento da sua dignidade por parte dos outros. Sem a observância social desta condição não é possível à pessoa realizar os seus planos de vida e os seus ideais de excelência na multiplicidade de contextos e relações sociais em que intervém. O bem jurídico constitucional assim delineado apresenta um lado individual (o bom nome) e um lado social (a reputação ou consideração) fundidos numa pretensão de respeito que tem como correlativo uma conduta negativa dos outros; é, ao fim e ao cabo, uma pretensão a não ser vilipendiado ou depreciado no seu valor aos olhos da comunidade, Cfr. Augusto Silva Santos, Alguns aspetos do regime jurídico dos crimes de difamação e de injúrias, A.A.F.D.L., 1989, pp. 17-18.
Mas nem todas as condutas que causam vergonha ou humilhação no visado são susceptíveis de ser enquadradas no artigo 181º do C.Penal.
Efetivamente, “aquilo que razoavelmente se não deve considerar ofensivo da honra ou do bom nome alheio, aquilo que a generalidade das pessoas (de bem) de um certo país e no ambiente em que se passaram os factos não considera difamação ou injúria, não deverá dar lugar a uma sanção reprovadora, como é a pena”, cfr. Beleza dos Santos, ob. e loc. citado.
Acresce dizer que, como diz Oliveira Mendes “…nem todo o facto que envergonha e perturba ou humilha cabe na previsão das normas dos artigos 180º e 181º, tudo dependendo da “intensidade” da ofensa ou perigo de ofensa.”
O crime de injúria está configurado como um crime de perigo concreto, sendo que o dano (a ofensa da honra ou consideração) não faz parte do tipo, pelo que para a sua consumação basta que o perigo daquele dano se verifique. Nas palavras de Beleza dos Santos, ob. cit. pág. 164 e segs., “Basta, para a existência do crime, o perigo de que aquele dano possa verificar-se”. A lei fala em factos ofensivos, isto é, que ofendam ou possam ofender …e não apenas de factos que tenham na realidade ofendido a honra e consideração”.
As injúrias são infrações dolosas, consistindo este num dolo genérico, como é entendimento pacífico entre nós desde há muito tempo, ou seja, não é necessário para o preenchimento do crime que haja dolo específico, que se traduz na intenção de ofender a honra ou consideração alheias (vide v.g. Ac. STJ de 17.2.1983, p. 36867, citado por M. Gonçalves, C.P. Anotado, 8ª Ed., p. 660).
Não obstante a honra continuar a ser um bem jurídico com dignidade penal, o certo é que, como diz Faria da Costa (4) “…um bem jurídico, apesar de tudo, de menor densidade axiológica do que o grosso daqueles outros que a tutela do ser impõe.
Uma prova evidente de tal realidade pode encontrar-se nas molduras penais - de limites extraordinariamente baixos - que o legislador considerou adequadas para a punição das ofensas à honra. E a explicação para tal “estreitamento” da honra enquanto bem jurídico, para uma certa perda da sua importância relativa, pode justificar-se, segundo cremos, de diferentes modos e por diferentes vias. Por um lado, julgamos poder afirmar-se uma sua verdadeira erosão interna, associada à autonomização de outros bens jurídicos que até algumas décadas estavam misturados com essa pretensão a ser tratado com respeito em nome da dignidade humana que é o núcleo daquilo a que chamamos honra. Referimo-nos a valores como a privacidade, a intimidade ou a imagem, que hoje já têm expressão constitucional e específica proteção através do direito penal. Por outro lado, cremos ser também indesmentível a erosão externa, a que a honra tem sido sujeita, quer por força da banalização dos ataques que sobre ela impendem - tão potenciados pela explosão dos meios de comunicação social e pela generalização do uso da internet, quer por força da consequente consciencialização coletiva em torno do carácter inelutável de tais agressões e da eventual imprestabilidade da reação criminal».
No caso em apreço, importa saber se as palavras e as afirmações dirigidas pela arguida ao assistente, têm ou não suficiente dignidade penal para efeitos de integrar o tipo objetivo crime de injúria.
Para o efeito, importa atender à natureza pessoal do bem jurídico protegido, tendo como ponto de partida, a proteção constitucional conferida à dignidade do ser humano, cfr. artigos 1º, 24º, nº 1, 25º da CRP, igualmente objeto de proteção por parte de instrumentos de direito internacional, cfr. artigo 5º da Declaração Universal dos Direitos do Homem, artigo 3º, nº 1 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, os artigos 7º, n.º 1, 10.º, n.º 1 do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos; e os artigos 1º, 3.º, n.º 1, e 4.º da Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia.
Outrossim, devermos igualmente ter em conta o princípio constitucional da intervenção mínima, cfr. artigo 18º, nº 2 da CRP. E a natureza fragmentária ou subsidiária do direito penal, que significa que o direito penal não deve intervir quando seja possível proteger o bem jurídico – com idêntica ou superior eficácia - através de distintas e menos onerosas intervenções tutelares.
Acresce dizer também da necessidade de compatibilizar o direito ao bom nome com a liberdade de expressão, sendo que aquele não tem necessariamente de sobrepor-se sempre a este.
“O direito ao bom-nome e reputação, com consagração constitucional [art.26.º da CRP] conflitua, por vezes, com o princípio constitucional da liberdade de expressão [art.37.º da CRP], o qual se traduz no direito de exprimir e divulgar livremente o pensamento. Este direito tem uma grande amplitude, permitindo que se emitam juízos desfavoráveis, críticas, embora com limites, entre eles o respeito devido à honra e dignidade.
Estes direitos ao bom-nome e reputação e à livre expressão, que têm, em princípio, igual valor não podem ser entendidos em termos absolutos e, em caso de conflito, têm de ser harmonizados nas circunstâncias concretas”, cfr. Acórdão do TRG de 17-02-2014, processo 1500/10.0GBGMR.G1, disponível em www.dgsi.pt.
Tendo presente o que antecede importa referir que não subsistem dúvidas para o Tribunal que as expressões dirigidas ao assistente pela arguida nos mails de ... de ... de 2023 e ... de ... de 2024 referente neste caso ao paraíso dos puteiros, não está relacionada com qualquer facto que impute ao assistente e que esteja em discussão em termos judiciais decorrentes da actuações que a mesma lhe imputa e que pretende ver discutidas nas acções que intentou contra o assistente. Acresce que a arguida ao enviar este emails para o arguido e para as pessoas ali melhor identificadas, algumas das quais os visualizaram, no caso o mail de dia ... de ... de 2023, quios e conseguiu atingir o ofendido na sua honra e consideração, op que conseguiu, tendo preenchido a sua conduta a prática de dois crimes de injúria e um crime de difamação.
Contudo, importa referir que a utilização do email individual de cada uma das pessoas visadas não integra o conceito de meio ou circunstâncias que facilitem a divulgação, pelo que se entende não haver lugar a qualquer agravação.”.
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II.3. Apreciação do recurso
II.3.1. Violação do princípio ne bis in idem – art. 29º, n.º 5, da CRP – e violação do princípio da cooperação judiciária internacional – Lei n.º 144/99, de 31/08
Nos presentes autos, a recorrente alega, em suma, que já existiu um processo no Brasil, que foi arquivado, pelos mesmos factos constantes destes autos. Remete, para o efeito, para o que consta dos autos em relação a esses processos. Invoca, em suma, a violação do princípio ne bis idem e do princípio da cooperação judiciária internacional.
O princípio da cooperação judiciária internacional visa a ajuda mútua entre autoridades de diferentes países, no sentido de se assegurar a justiça, seja ao nível dos actos processuais e de obtenção de prova, seja no âmbito da execução de sentenças.
Em matéria penal, rege desde logo a Lei n.º 144/99, de 31/08 (Lei da Cooperação Judiciária Internacional em Matéria Penal), que prevê a forma de cooperação entre os Estados e constando, também, do seu artigo 19º (Non bis in idem) que quando for aceite um pedido de cooperação que implique a delegação do procedimento em favor de uma autoridade judiciária estrangeira, não pode instaurar-se nem continuar em Portugal procedimento pelo mesmo facto que determinou o pedido nem executar-se sentença cuja execução é delegada numa autoridade estrangeira.
Isto significa que a cooperação entre Estados implica, necessariamente, a colaboração e entreajuda, mas também o respeito pelas decisões tomadas em cada Estado soberano.
Por seu turno, o princípio ne bis in idem é um princípio basilar do nosso processo penal, que tem consagração na Constituição da República Portuguesa e significa que ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime – artigo 29º, n.º 5, da CRP.
O referido princípio ne bis in idem1 consagra dois âmbitos:
- como direito subjectivo fundamental, garante ao cidadão o direito de não ser julgado mais do que uma vez pelo mesmo facto, assegurando-lhe ao mesmo tempo, a possibilidade de se defender contra actos estaduais violadores deste direito (direito de defesa negativo);
- como princípio constitucional objectivo (na dimensão objectiva do direito fundamental), que obriga o legislador à conformação do direito processual e à definição do caso julgado material de modo a impedir a existência de vários julgamentos pelo mesmo facto - cfr. Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa anotada, vol. I, ed. revista, Coimbra, 2007, pág. 497, onde se refere que se está a proibir “o duplo julgamento e não a dupla penalização, mas é óbvio que a proibição do duplo julgamento pretende evitar tanto a condenação de alguém que já tenha sido definitivamente absolvido pela prática da infracção, como a aplicação renovada de sanções jurídico-penais pela prática do «mesmo crime»”.
Ou seja, tendo o nosso processo penal estrutura acusatória, significa que ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pelos mesmos factos, consubstanciando o efeito negativo do caso julgado, no sentido de impedir qualquer novo julgamento da mesma questão (Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Tomo III, 3ª Edição, pág. 42).
Ao referir-se na CRP a expressão ‘julgamento’, tem de entender-se como qualquer decisão final, ou seja, em sentido mais amplo, mesmo que sem a condução ao próprio julgamento, mas a uma solução final em que já houve uma apreciação daqueles factos. E o mesmo se diga em relação à expressão ‘o mesmo crime’, que tem de abranger, também, a interpretação mais ampla, isto é, pelo mesmo grupo de factos integrativos de um crime, pois, outra interpretação iria traduzir-se numa violação da paz jurídica do arguido e da segurança jurídica, que tal princípio visa salvaguardar.
Temos de atentar, assim, no objecto do processo, porque o mesmo não pode fundamentar um segundo processo penal.
O processo está, pois, limitado pelo seu objecto, numa clara alusão ao princípio da vinculação temática do tribunal, que delimita os poderes do juiz e a extensão do caso julgado, relativamente àqueles factos e crimes (estando o tribunal obrigado a conhecer e a julgar todos esses factos – princípio da unidade ou indivisibilidade do objecto do processo penal - , não podendo a eles voltar, isto é, a sua análise não pode ser repetida num novo processo – princípio da consumpção).
No caso sub judice, verifica-se que a arguida foi ‘apenas’ condenada por factos de .../.../2023 e .../.../2024 e os factos que a mesma alega terem sido vertidos no processo do Brasil são muito anteriores a estes e não foram considerados pelo tribunal recorrido para efeitos de condenação – cfr. fls. 609 e ss. dos autos (requerimentos de .../.../2025), onde é perceptível que existem queixas de ... no Brasil, que nada têm que ver com as expressões relativamente às quais a arguida foi condenada nestes autos (apesar de se verificar que a litigância se manteve, em termos de processos relativos aos alimentos e aos bens/sociedades que estão no cerne da ‘conflituosidade’ entre a arguida e o assistente), tendo o Ministério Público brasileiro requerido o arquivamento a .../.../2020, que foi mantido pelo juiz a .../.../2021.
Razão pela qual, inexiste qualquer violação do princípio ne bis in idem ou do princípio da cooperação judiciária internacional, tendo sido respeitas todas as normas e autonomia dos Estados.
Improcede, assim, esta parte do recurso.
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II.3.2. Nulidade da sentença por falta de fundamentação – artigos 374º, n.º 2 e 379º, n.º 1, al. a), do CPP
O recorrente alega que a sentença padece de nulidade por falta de fundamentação, nomeadamente, porque não faz alusão ao mandado de detenção existente no Brasil (fls. 591 dos autos), nem aos processos que correram termos na justiça brasileira.
Importa verificar a validade formal da sentença e a sua conformidade com os requisitos do artigo 374º do CPP no seu segmento da fundamentação da matéria de facto, face ao teor do art. 379º do CPP.
Nos termos do art. 374º do CPP, quanto aos requisitos da sentença, esta começa por um relatório, que contém (n.º 1):
a) As indicações tendentes à identificação do arguido;
b) As indicações tendentes à identificação do assistente e das partes civis;
c) A indicação do crime ou dos crimes imputados ao arguido, segundo a acusação, ou pronúncia, se a tiver havido;
d) A indicação sumária das conclusões contidas na contestação, se tiver sido apresentada.
De acordo com o n.º 2 de tal preceito legal, que importa aqui atentar, ao relatório segue-se a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.
Por sua vez, o seu n.º 3 prescreve que a sentença termina pelo dispositivo que contém:
a) As disposições legais aplicáveis;
b) A decisão condenatória ou absolutória;
c) A indicação do destino a dar a animais, coisas ou objetos relacionados com o crime, com expressa menção das disposições legais aplicadas;
d) A ordem de remessa de boletins ao registo criminal;
e) A data e as assinaturas dos membros do tribunal.
4 - A sentença observa o disposto neste Código e no Regulamento das Custas Processuais em matéria de custas.
Conforme se extrai do acórdão da RP de 07/06/2017, processo n.º 20/15.0GTPNF.P1, in www.dgsi.pt:
I - Toda a decisão penal em matéria de facto constitui, não só, a superação da dúvida metódica, mas também da dúvida razoável sobre a matéria da acusação e da presunção de inocência do arguido.
II - Tal superação é sujeita a controlo formal e material rigoroso do processo de formação da decisão e do conteúdo da sua fundamentação –, a fim de assegurar os padrões de exigência inerentes ao Estado de Direito.
III - O artigo 374º, 2, do Código de Processo Penal exige, sob pena de nulidade da sentença penal, um exame crítico dos meios concretos de prova analisados em julgamento. Este só será suficiente quando identificar cabalmente o percurso lógico-dedutivo que presidiu à convicção firmada, não se confundindo com referências genéricas que, de tão abstratas, genéricas e esvaziadas de conteúdo preciso, ou que apenas reproduzam – total, ou parcialmente - o teor da prova produzida, não permitam perceber o que de útil, em concreto, o tribunal extraiu e valorou de cada meio concreto de prova produzido em julgamento e o motivo pelo qual assim decidiu.
Com a leitura da fundamentação da sentença, devemos perceber como é que, de acordo com as regras da experiência comum e da lógica, se formou a convicção do tribunal, no sentido de considerar provados e não provados os factos objecto do processo.
Pretende-se com o objectivo dessa fundamentação, por um lado, permitir a sindicância da legalidade do acto e, por outro lado, serve para convencer os interessados e os cidadãos em geral acerca da sua correcção e justiça. Serve também para o julgador apurar os efectivos motivos da sua convicção, fundamentando-os e legitimando-os.
A observância destes requisitos assegura a garantia da imparcialidade da decisão, explicando porque objectivamente se decidiu daquela forma, apurando-se as razões da decisão e o processo lógico, racional e intelectual que lhe subjaz.
Não obstante, “a lei não exige que em relação a cada facto se autonomize e substancie a razão de decidir, como também não exige que em relação a cada fonte de prova se descreva como a sua dinamização se desenvolveu em audiência, sob pena de se transformar o acto de decidir numa tarefa impossível” - cfr. o acórdão da RL de 02/10/2018, processo n.º 36/14.4JBLSB.L1-5, in www.dgsi.pt.
Importa, pois, que o exame crítico das provas constante da sentença, permita avaliar racionalmente o fundamento da decisão e o processo lógico seguido, analisando as provas em conjunto e não de forma segmentada.
A violação do disposto no referido artigo 374º, n.º 2, do CPP gera a nulidade da sentença nos termos do disposto no artigo 379º, n.º 1, al. a), do CPP, que prescreve que é nula a sentença que não contiver as menções referidas no n.º 2 e na alínea b) do n.º 3 do artigo 374.º ou, em processo sumário ou abreviado, não contiver a decisão condenatória ou absolutória ou as menções referidas nas alíneas a) a d) do n.º 1 do artigo 389.º-A e 391.º-F.
No caso concreto, como decorre da fundamentação da decisão recorrida, o tribunal a quo elenca e justifica os motivos em que sustenta, na sua convicção, a demonstração da matéria de facto, embora não seja exaustiva na referência que faz (nem tendo necessariamente de ser), mas não deixou de fazer alusão aos conflitos existentes entre a arguida e o assistente, nomeadamente na justiça brasileira, decorrentes do seu divórcio, das partilhas e da condenação no pagamento dos alimentos às filhas de ambos.
Como já se referiu, o tribunal fez alusão a todos os meios de prova significativos e enquadrou-os na matéria que deu como provada e não provada, conjugando-os, designadamente quando refere:
Assim atendeu-se ao teor dos documentos juntos aos autos, designadamente todos os emails e documentação constantes do apenso, a teor de fl.s 8, 10 a 38, 50, 75 a 79, 230 a 231, 239 a 288, certidão constante de fl.s 299 a 236, 322, 328 a 338, 346 a 358, 381 a 469, 591, 609 a 877.
(…)
Acrescentou que nunca teve restrições em entrar ou sair do Brasil, o que resulta desmentido pelos documentos juntos autos designadamente os mandados emitidos em seu nome.
(…)
A testemunha DD, sendo namorada da filha da arguida e do assistente, referiu a existência de processos no Brasil, indiciando uma gestão fraudulenta, sendo os emails uma resposta ou melhor um esclarecimento dos emails pelo assistente apelidando-a de louca destemperada, que era tudo dele. Referiu que a acção tendente à partilha e bens que corre termos no Brasil ainda não tinha transitado. Referiu, ainda a existência de acções no ... que estão interligadas. Relativamente ao pagamento da pensão de alimentos foi paga até ... tendo deixado de ser paga desde então, estando pendente um mandado de prisão por ausência de pagamento e consequentemente impedido o assistente de entrar no Brasil porque seria preso.
Em ... a arguida assumiu a gestão da empresa através de um liminar no Brasil. Acrescentou que correm termos desde ... dois inquéritos por gestão danosa, facturas sem rasto, transferências de dinheiro suspeitas.
(…)
A testemunha CC, sendo filha do assistente e da arguida referiu desconhecer o teor dos mails em causa nos autos. Referiu que tinha 17 anos quando o pai a abandonou a si e à mãe. Referiu ter conhecimento do mandado de detenção e da acção que a mãe intentou contra o pai, desconhecendo o estado ou o conteúdo.
(…)
Quanto ao mail de ... de ... de 2023 a ... de ... de 2024, cujo recebimento foi confirmado pela esmagadora das testemunhas inquiridas resulta evidente face as expressões referidas, como filho da puta, canalha, puteiro, psicopata, vigarista e falsário, resulta evidente que não são nem descritiva de qualquer factualidade e têm uma conotação e carga inerentemente atentatória do bom nome e consideração do assistente, o que a arguida não ignorava, estando ciente do seu significado e da sua intencionalidade.” (sublinhado nosso).
Nenhuma obscuridade ou insuficiência resulta da fundamentação, sustentada por prova documental e testemunhal.
A decisão recorrida procedeu a um exame crítico da prova, como alude o citado artigo 374º, n.º 2, na medida em que da sua leitura é possível verificar que consta a respectiva e obrigatória motivação da decisão da matéria de facto, na qual o tribunal explicita e examina de forma suficientemente detalhada em que se estribou para fixar a factualidade, analisando criticamente, naquilo que aqui se impunha, as provas de que se socorreu.
Efectivamente, o tribunal recorrido procedeu a uma análise global da prova, de forma lógica e perceptível para todos quantos analisem a decisão e ainda mais para os sujeitos processuais mais directamente afectados.
De toda a prova produzida e sujeita a contraditório em audiência, avaliada à luz das regras da normalidade do acontecer e da experiência comum, em conjugação com o princípio da livre apreciação da prova que neste domínio impera (artigo 127º do CPP), verifica-se que não existe qualquer nulidade nesta matéria, podendo a recorrente exercer plenamente, como o fez, o contraditório e o direito de defesa (cfr. o artigo 32º, n.º 1, da CRP).
Não se verifica assim a invocada falta de fundamentação da sentença.
Improcede a nulidade invocada pela recorrente.
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II.3.3. Erro notório na apreciação da prova – art. 410º, n.º 2, al. c), do CPP
Nos termos do artigo 410º, n.º 2, do CPP o recurso interposto sobre a matéria de facto de uma sentença proferida em processo crime pode ter um de três fundamentos: a) a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; b) a contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão; e c) o erro notório na apreciação da prova.
Em qualquer um destes fundamentos, o vício tem de resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo por isso admissível o recurso a elementos àquela estranhos para o fundamentar, como por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento (cfr. Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, 10ª ed., pág. 279; Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª ed. Pág. 339 e Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª ed., págs. 77 e ss.), tratando-se assim de vícios intrínsecos da sentença que, por isso, quanto a eles, terá que ser autossuficiente.
O erro notório na apreciação da prova, vício previsto no artigo 410º, n.º 2, al. c), e que se verifica quando um homem médio, perante o teor da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente percebe que o tribunal violou as regras da experiência ou de que efectuou uma apreciação manifestamente errónea, desadequada, baseada em juízos ilógicos, arbitrários ou contraditórios. O erro notório também se verifica quando se violam as regras sobre prova vinculada ou das legis artis. Isso acontece na situação de o tribunal valorizar a prova contra as regras da experiência comum ou contra critérios legalmente fixados, aferindo-se o requisito da notoriedade pela circunstância de não passar o erro despercebido ao cidadão comum ou, talvez melhor dito, ao juiz “normal”, ao juiz dotado da cultura e experiência que deve existir em quem exerce a função de julgar (cfr. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª ed., pág. 341).
Trata-se de um erro de raciocínio na apreciação das provas que se evidencia aos olhos do homem médio pela simples leitura da decisão, e que consiste, essencialmente, em decidir-se contra o que se provou ou não provou ou dar-se como provado o que não pode ter acontecido (cfr. Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª ed., pág. 74 e Ac. do TRP de 15.11.2018 e Ac. do STJ de 18.05.2011, ambos in www.dgsi.pt).
O tribunal decide, salvo no caso de prova vinculada, de acordo com as regras da experiência e a sua livre convicção, como dispõe o artigo 127º do CPP que “salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente”.
A decisão deve, contudo, ser fundamentada, por forma a aferir-se se ocorreu uma apreciação da prova de harmonia com as regras comuns da lógica, da razão e da experiência acumulada, sem se cair em qualquer poder arbitrário e incontrolável, pois como refere Germano Marques da Silva que “a livre valoração da prova não deve ser entendida como uma operação puramente subjectiva pela qual se chega a uma conclusão unicamente por meio de impressões ou conjecturas de difícil ou impossível objectivação, mas como uma valoração racional e crítica, de acordo com as regras comuns da lógica, da razão, das máximas da experiência e dos conhecimentos científicos, que permita objectivar a apreciação, requisito necessário para uma efectiva motivação da decisão” (in Curso de Processo Penal, Verbo, Vol. II, pág. 111).
Os erros da decisão, para poderem ser apreciados ou mesmo conhecidos oficiosamente, devem verificar-se, sem esforço de análise, a partir do teor da própria sentença, sem recurso a elementos externos, como seja a análise concreta das provas.
In casu, a recorrente alega, mais uma vez, que o tribunal recorrido não valorou a existência do mandado de detenção e outros documentos juntos aos autos.
A recorrente alega, em suma, que a prova foi mal apreciada, mal valorada, perante aquilo que consta dos autos e o que as testemunhas invocaram, nomeadamente a filha da recorrente e recorrido, a testemunha III e a testemunha DD (não estando em causa uma impugnação ampla da decisão sobre a matéria de facto, por erro de julgamento, a que se refere o artigo 412º, n.ºs 3, 4 e 6, do CPP, nem a recorrente invocou ou deu qualquer cumprimento ao aí estabelecido).
Como vimos, além do tribunal a quo ter feito alusão à documentação junta aos autos, enquadrou-a com a prova testemunhal e procedeu à sua concatenação, pois, não obstante em relação a alguns dos e-mails considerar que existiu apenas por parte da arguida uma explicação e confronto de ideias em relação às divergências que mantinha com o assistente (devido a questões de dinheiro, nomeadamente, em relação a empresas que detinham em conjunto e bens, seja no Brasil, no ... ou em Portugal, bem como, no que concerne a dívidas de alimentos em relação às duas filhas que têm em comum), o certo é que, no que concerne aos e-mails de .../.../2023 e .../.../2024, não pôde deixar de tirar as devidas consequências/conclusões, de que tais expressões são ofensivas e extravasam qualquer defesa ou meio de se expressar desacordo ou fornecer informação, o que se afere, por exemplo, das seguintes expressões: ‘Seu filho da puta canalha!!!!’, ‘CANALHA!’, ‘Fraudador! Falsificador! Estelionatário! Psicopata!!!! Vigarista! Falsário! Mente doentia !!!!!!’, ‘Junto com toda a quadrilha e cúmplices’ e ‘É inacreditável a capacidade de mentir e manipular desse ser. Desde quando esse sujeito covarde e reles tem culhão para isso? Jamais teve, tem, teria ou terá. Jamais. Porque é estruturalmente covarde. Só age pelas costas. Em poucos meses já estava envolvido em falcatruas; derrame de duplicatas frias contra terceiros para fabricar dinheiro. Este é o verdadeiro GG vulgo Covarde. KK chegou um VV no Brasil e saiu do Brasil um VV Aliás ... é bem apropriado. É o paraíso dos puteiros.’.
O depoimento das testemunhas inquiridas e das referidas pela recorrente, foi devidamente valorado pelo tribunal recorrido, pretendendo apenas a recorrente que se faça uma outra interpretação da que foi considerada pelo tribunal a quo. Mas o tribunal recorrido não deixou de considerar tais depoimentos (e não há divergência com o por eles relatado em audiência de julgamento, mesmo perante a prova gravada que se ouviu). Explicou, contudo, que não obstante as acções pendentes (sendo que só em relação à pensão de alimentos existem os mandados de detenção, não estando findas as outras acções por alegadas dívidas/desvios), houve palavras/expressões que ultrapassaram a mera reacção, o mero desabafo e ‘desespero’.
Do texto da decisão recorrida não resulta qualquer incongruência na sua fundamentação, já tendo nós discorrido sobre a forma como foram apreciadas as provas e que não existe qualquer atropelo nas regras da experiência comum.
Improcede, pois, este segmento do recurso.
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II. 3.4. Exclusão da ilicitude ou da culpa – arts. 31º e 35º do CP
A recorrente foi condenada em primeira instância pela prática de um crime de difamação (factos de .../.../2023) e de dois crimes de injúria (factos de .../.../2023 e .../.../2024), p. e p., respectivamente, pelos arts. 180º e 181º do CP, como autora material e na forma consumada.
Vem invocar, contudo, que actuou no âmbito do exercício de um direito, que exclui a ilicitude e a culpa da sua actuação, referindo-se, nomeadamente, às acções que existem contra o assistente e aos litígios por dívidas que mantêm e que justificariam, na sua opinião, todas as palavras que lhe dirigiu, incluindo de ‘filho da puta’ e ‘canalha’, ‘uma verdadeira quadrilha e organização criminosa’, ‘covarde’, ‘…paraíso dos puteiros’.
Os crimes de difamação e injúria integram o Capítulo VI, dos crimes contra a honra, do Título I, dos crimes contra as pessoas, do Livro II, Parte Especial, do Código Penal.
Dispõe o art. 180º do CP que “quem, dirigindo-se a terceiro, imputar a outra pessoa, mesmo sob a forma de suspeita, um facto, ou formular sobre ela um juízo, ofensivos da sua honra ou consideração, ou reproduzir uma tal imputação ou juízo, é punido com prisão até seis meses ou com pena de multa até 240 dias.”
No que se refere ao crime de injúria, dispõe o art. 181º do CP, no seu n.º 1, que: “quem injuriar outra pessoa, imputando-lhe factos, mesmo sob a forma de suspeita, ou dirigindo-lhe palavras, ofensivos da sua honra ou consideração, é punido com prisão até 3 meses ou com pena de multa até 120 dias.”.
O conceito “honra” reporta-se à essência da personalidade humana, integrando o seu conteúdo a probidade, a rectidão, a lealdade e o bom carácter, podendo dizer-se que, no fundo, “é a dignidade subjectiva, ou seja, o elenco de valores éticos que cada pessoa humana possui. Diz assim respeito ao património pessoal e interno de cada um – o próprio eu.”, Simas Santos e Leal-Henriques, Código Penal Anotado - Ed. Rei dos Livros, 2000, 2º vol. pág. 469.
Por seu lado, o conteúdo do conceito “consideração” reporta-se ao património de bom nome, e da confiança que cada um adquire ao longo da sua vida; ou seja, a “consideração” traduz-se no “merecimento que o indivíduo tem no meio social, isto é, a reputação, a boa fama, a estima, a dignidade objectiva, que é o mesmo que dizer, a forma como a sociedade cada cidadão – a opinião pública.” – Simas Santos e Leal-Henriques, ob. cit., loc. cit..
O art. 180º, n.º 2, do CP, relativamente à difamação (e para ele remetendo, também, o n.º 2 do art. 181º do CP quanto à injúria), prevê que a conduta não é punível quando a imputação for feita para realizar interesses legítimos e o agente provar a verdade da mesma imputação ou tiver tido fundamento sério para, em boa fé, a reputar verdadeira.
Por seu turno, o art. 31º do CP quanto à exclusão da ilicitude, prescreve que:
“1 - O facto não é punível quando a sua ilicitude for excluída pela ordem jurídica considerada na sua totalidade.
2 - Nomeadamente, não é ilícito o facto praticado:
a) Em legítima defesa;
b) No exercício de um direito;
c) No cumprimento de um dever imposto por lei ou por ordem legítima da autoridade; ou
d) Com o consentimento do titular do interesse jurídico lesado.”
Por seu turno, o art. 35º do CP, quanto ao estado de necessidade desculpante, refere que:
“1 - Age sem culpa quem praticar um facto ilícito adequado a afastar um perigo actual, e não removível de outro modo, que ameace a vida, a integridade física, a honra ou a liberdade do agente ou de terceiro, quando não for razoável exigir-lhe, segundo as circunstâncias do caso, comportamento diferente.
2 - Se o perigo ameaçar interesses jurídicos diferentes dos referidos no número anterior, e se verificarem os restantes pressupostos ali mencionados, pode a pena ser especialmente atenuada ou, excepcionalmente, o agente ser dispensado de pena.”.
In casu, as expressões proferidas, e pelas quais a arguida foi condenada, são ofensivas, susceptíveis de injúria e difamação, ultrapassando qualquer liberdade de expressão, uma vez que para se defender e explicar o que se passava em termos económicos, de partilhas e pensão de alimentos, não era necessário o uso das expressões em causa, pois as divergências que possam existir entre as pessoas, dirimem-se em última instância em tribunal, e não com recurso a expressões susceptíveis de ofensa à dignidade humana que qualquer um possui.
Não pode a recorrente alegar que as expressões em causa foram necessárias para explicar o que se estava a passar (que justificam um interesse legítimo ou o exercício de um direito), ou que se prova a verdade das expressões2 ou as reputa, em boa fé, como verdadeiras. Nem tão-pouco pode invocar a liberdade de expressão, como consagração sublime no art. 10º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, para o uso de tais expressões.
Improcede, por isso, também, esta parte do recurso.
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II. 3.5. Abuso do direito do recorrido – art. 334º do CC
A recorrente invoca, ainda, que face à actuação do assistente, este não pode invocar o direito à honra, quando actua contra a legalidade, existindo a violação do princípio da boa fé.
Nos termos do artigo 334º do Código Civil, é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.
Muito embora o referido preceito legal tenha enquadramento nas questões cíveis, a recorrente faz apelo ao mesmo, no sentido de considerar as suas expressões como ‘justificáveis’, face aos processos que propôs contra o assistente e às divergências que mantêm em relação à falta de pagamento da pensão de alimentos, ao desacordo nas partilhas por divórcio e à actuação que imputa ao assistente na condução das empresas, tendo apresentado queixa-crime quanto a tais matérias.
Ora, como já referimos, independentemente dos diferendos existentes entre a arguida e o assistente, as expressões proferidas pela arguida, no contexto em que o foram e com o ênfase dado às mesmas, extravasaram ‘o necessário e adequado’ e são susceptíveis de afectar a honra e consideração do assistente, tanto mais que, para além da falta de pagamento de alimentos (que originou o mandado de detenção no Brasil – fls. 591 dos autos), não são conhecidas condenações em processo-crime em relação ao assistente e, ainda que o fossem, pois sempre se colocaria a questão do respeito mínimo pela dignidade humana, o que, num Estado de Direito, nos parece que é transversalmente assegurada a qualquer cidadão.
Improcede, também, esta parte do recurso.
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III- DECISÃO
Pelo exposto, acordam os Juízes que compõem a 9ª Secção deste Tribunal da Relação de Lisboa em negar provimento ao recurso da arguida AA e, em consequência, confirmar a decisão recorrida.
Custas a suportar pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 (três) UC’s (artigo 513º, n.º 1, do CPP e artigo 8º, n.º 9, do RCP, com referência à Tabela III).
Notifique.
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Lisboa, 20/11/2025
(Texto elaborado pela relatora e revisto, integralmente, pelos seus signatários)
Paula Cristina Borges Gonçalves
Joaquim Manuel da Silva
Maria de Fátima R. Marques Bessa
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1. A expressão latina significa ‘não duas vezes pelo mesmo’.
2. Nomeadamente ‘filho da puta’, ‘canalha’, ‘…paraíso dos puteiros’.