Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
431/15.1T8PDL.L1-7
Relator: ORLANDO NASCIMENTO
Descritores: INSOLVÊNCIA DE PESSOA SINGULAR
COMPETÊNCIA INTERNA
INSTÂNCIA CENTRAL
INSTÂNCIA LOCAL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/30/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: A interpretação do n.º 2, do art.º 117.º, da Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto, no sentido de atribuir à secção cível da instância central a competência para as ações declarativas cíveis de processo comum, de valor superior a € 50.000,00, lançando na competência da instância local todos os restantes processos enumerados no art.º 128.º da mesma Lei, inutiliza esse preceito, tornando-o dispensável, na medida em que conduz ao mesmo resultado interpretativo que já resultava do disposto nos art.ºs 117.º, n.º 1, al. a) e 130.º, n.º 1, al. a) e n.º 2, da lei n.º 62/2013.
2. Tendo em atenção os dois comandos imperativos do n.º 3, do art.º 9.º do C. Civil - (1) soluções mais acertadas e (2) pensamento expresso em termos adequados – essa interpretação tem de ser liminarmente rejeitada, devendo o intérprete procurar uma outra que confira conteúdo útil à norma a interpretar.
3. Atenta a diferença de critérios adotados na delimitação da competência pelo art.º 117.º (secções cíveis) e pelo art.º 128.º (secções de comércio) - a al. a), do n.º 1, do art.º 117.º delimita a competência das secções cíveis pela forma/tipo de processo – ações declarativas cíveis de processo comum – e pelo seu valor – superior a € 50.000 – e o art.º 128.º delimita a competência das secções de comércio pela matéria (comércio) e pelas formas processuais que lhes correspondem, independentemente do valor - e a necessidade de harmonização do disposto nos três preceitos, a saber, o n.º 2 do art.º 117.º, o art.º 128.º e o n.º 1, do art.º 117.º, o denominador comum a todos eles pressupõe o abandono da forma de processo, constante do n.º 1, do art.º 117.º, mas não constante do art.º 128.º, e a aceitação do critério do valor, consagrado no n.º 1, do art.º 117.º e transversal a todos os processos identificados no art.º 128.º.
4. Assim, o desiderato prosseguido pelo legislador com o n.º 2, do art.º 117.º, da lei n.º 62/2013, não foi dizer o mesmo que já diria sem ele, mas dizer algo diferente, devendo o mesmo ser interpretado no sentido de que a secção cível da instância central, na ausência de criação da secção de comércio, tem competência para todas as ações do art.º 128.º, sejam ações comuns ou processos especiais, quando o seu valor seja superior a € 50.000,00.
(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes no Tribunal da Relação de Lisboa:



1. RELATÓRIO:


B., S.A. propôs, em 18/2/2015, na Instância Central de Ponta Delgada, contra WP e MP, esta ação de Insolvência de Pessoa Singular, a que atribuiu o valor de € 1.363.305,00, pedindo que seja declarada a insolvência dos requeridos e que seja nomeado o administrador por si indicado.

Conclusos os autos por ausência de elementos, de imediato o Mm.º Juiz da Instância Central se declarou incompetente, em razão da matéria, para a preparação e julgamento da ação, com fundamento, em síntese, em que essa competência, não é atribuída à Instância Central pelo art.º 117.º, da Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto, nomeadamente pelo seu n.º 2, e que já no domínio da Lei n.º 3/99 esta ação era da competência dos juízos cíveis e não das varas cíveis.

Inconformado com essa decisão, o A/requerente dela interpôs recurso, recebido como apelação, pedindo a sua revogação e a substituição por outra que declare o tribunal competente em razão da matéria, formulando as seguintes conclusões:

a) O despacho proferido nos autos à margem identificados declarou a incompetência material da Instância Central Cível de Ponta Delgada para a apreciação dos mesmos, concluindo pela absolvição da instância dos Requeridos.
b) Considerou o Mmo. Juiz do Tribunal a quo que apenas compete às Secções da Instância Central Cível o conhecimento das acções cíveis de processo comum de valor superior a € 50.000,00;
c) Entendendo ainda aquela Instância Central que a matéria em causa não se encontra estatuída na previsão do n.º 1 do art.º 117.º LOSJ, por se tratar de forma de forma de processo especial.
d) Da leitura atenta do preceituado artigo, e salvo melhor entendimento, é apenas o critério do valor que serve para colmatar a inexistência de secção de comércio.
e) E nesse sentido, deverá o nº2 do artigo 117º da LOSJ, conjugado com o nº1 alínea a) do mesmo artigo, ser interpretado, no sentido de reconduzir a competência da preparação e julgamento dos processos elencados no artigo 128º LOSJ, que corram termos em comarcas onde não se encontram criadas Secções de Comércio, sejam da competência das Secções Cíveis das respetivas Instâncias Centrais.
f) Andou mal pois o Tribunal a quo ao considerar que não tinha competência material para a apreciação dos presentes autos, por tal ser da competência da Instância Local Cível - por não se tratar de forma comum de processo mas sim de um processo com forma especial -, considerando que a norma do artigo 117º nº 2 é delimitada pelo critério material e pelo critério do valor.
g) Entende a Recorrente que Compete à Instância Central, na ausência de Secção de Comércio, julgar as acções especiais de insolvência, cujo valor exceda o montante de € 50.000,00, conforme decorre interpretação conjugada dos art.º 117.º,n.º 1 e 2, 128.º e 129.º da LOSF.

2. FUNDAMENTAÇÃO:

A) OS FACTOS:

A matéria de fato a considerar, para decisão da apelação, é a acima descrita, sendo certo que a questão submetida à apreciação deste Tribunal da Relação se configura, essencialmente, como uma questão de direito.

B) O DIREITO APLICÁVEL:

O conhecimento deste Tribunal de 2.ª instância, quanto à matéria dos autos e quanto ao objecto do recurso, é delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente como, aliás, dispõem os art.ºs 635.º, n.º 2 e 639.º 1 e 2 do C. P. Civil, sem prejuízo do disposto no art.º 608.º, n.º 2 do C. P. Civil (questões cujo conhecimento fique prejudicado pela solução dada a outras e questões de conhecimento oficioso).
Atentas as conclusões da apelação, supra descritas, a questão submetida à nossa apreciação pelo apelante consiste, tão só, em saber se o tribunal a quo é competente para a ação, em razão da matéria, porque o n.º 2 do artigo 117.º da LOSJ, conjugado com o n.º 1 alínea a), do mesmo artigo, deve ser interpretado, no sentido de reconduzir a competência da preparação e julgamento dos processos elencados no artigo 128.º da LOSJ, que corram termos em comarcas onde não se encontram criadas secções de comércio, às secções cíveis das respetivas instâncias centrais.

Vejamos:

I. A questão, tal como delimitada nos autos:

O tribunal a quo declarou-se incompetente, em razão da matéria, por entender que a sua competência é definida pelo art.º 117.º, da Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto, e nela se não compreende esta ação, que é da competência da Secção de Comércio, quando criada, nos termos do disposto no art.º 128.º da mesma Lei, uma vez que, das ações da competência desta Secção de Comércio, o n.º 2, do art.º 117.º, em conjugação com o disposto no n.º 1, al. a), do mesmo preceito, apenas lhe atribui competência para as ações declarativas comuns, de valor superior a € 50.000,00.

Para aportar a esta estatuição o Tribunal a quo aduziu os seguintes argumentos:
-A Região Autónoma dos Açores constitui agora uma só comarca e nesta a especialização não foi implementada de forma integral, pois não foram criadas as secções de comércio e de execução;
-A competência da secção de comércio é definida pelo art.º 128.º, da Lei n.º 62/2013, em razão exclusiva da matéria com irrelevância para o valor da causa;
-No que toca às ações declarativas cíveis de processo comum a repartição de competência entre as secções cíveis da instância central e as secções de competência genérica das instâncias locais é feita em razão do valor, tendo a instância central competência para aquelas cujo valor seja superior a € 50.000,00, nos termos do art.º 117.º, n.º 1, al. a), da lei n.º 62/2013;
-Nas restantes ações essa repartição é feita em razão da matéria e do valor;
-No âmbito da instância central, a competência das secções cíveis é delimitada pelo binómio matéria/valor da causa e a competência das secções de comércio é definida pela matéria;
-O legislador podia ter feito outra opção mas não o fez, certamente por razões ponderosas relacionadas com a racional distribuição de serviço e também com a desnecessidade de intervenção de juiz mais experiente no julgamento de causa que não aquelas que especificou (art.º 183.º, n.º 1, da Lei n.º 62/2013);
-Com o n.º 2, do art.º 117.º da lei n.º 62/2013, o legislador preconiza um alargamento da competência da secção cível da instância central, onde não haja secção de comércio, mas sem abandonar nesse alargamento o binómio matéria/valor e por isso faz referência ao n.º 1;
-Por isso, esse n.º 2 não diz que, quando não exista secção de comércio, são da competência da secção cível todas as ações que a esta pertenceriam, desde que o seu valor seja superior a € 50.000,00;
-As insolvências e os PER não são, em termos dogmáticos, ações declarativas de processo comum, mas processos especiais;
-A prática de atos urgentes relativos a menores e filhos maiores e em matéria tutelar educativa e de proteção é assegurada pela instância local ainda que exista seção de família e menores, nos casos em que esta se encontre em diferente município e ainda que exista instância central na mesma localidade da instância local, o que aponta no sentido dos limites apertados da competência da instância central (art.ºs 123.º, n.º 4, e 124.º, n.º 6, da Lei n.º 62/2013);
-O art.º 104.º, n.º 1, d Dec. Lei n.º 49/2014, de 27 de Março, determina que os processos pendentes nos juízos de competência específica cível relativos às matérias da competência das secções de comércio transitam para as correspondentes secções da instância local e esta parte da norma não seria necessária se o n.º 2 do art.º 117.º fosse interpretado no sentido de atribuir à secção cível da instância central a competência para todas as acções do art.º 128.º, da lei n.º 62/2103, com valor superior a € 50.000,00;
-Antes, no domínio da lei n.º 3/99, a competência para estes processo era dos juízos cível, “…nada apontando para que o legislador tenha querido inflectir o rumo e disso deu uma nota clara ao criar em Ponta Delgada…apenas uma secção cível na instância central com três juízes que cumprem também o serviço distribuído à secção criminal da mesma instância…ao passo que, na instância local a secção cível está dotada de quatro juízes em exclusividade de funções…certamente teve em conta o volume de serviço atinente aos processos de insolvência e PER”.

Por sua vez, aduz o apelante que o n.º 2 do artigo 117.º da LOSJ, conjugado com o n.º 1, alínea a), do mesmo artigo, deve ser interpretado, no sentido de reconduzir a competência para a preparação e julgamento dos processos elencados no artigo 128.º LOSJ, que corram termos em comarcas onde não se encontram criadas secções de comércio, às secções cíveis das respetivas instâncias centrais.

II. A decisão da apelação:

A questão que constitui o cerne da apelação é recente, porque gerada pela reorganização judiciária, em que se insere a Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto, e é nova, uma vez que nunca antes dessa reorganização se colocou, tendo a ver com a fragmentação dos tribunais de primeira instância, determinada por um afirmado propósito de especialização desses tribunais, considerada necessária para uma melhor eficiência do seu desempenho.

Nos termos do disposto no art.º 128.º, n.º 1, al. a), da Lei n.º 62/2013, este processo de insolvência é da competência dos tribunais, agora designados por secções de comércio, fazendo parte do grupo de tribunais, designado por instância central, como resulta da sua inserção sistemática na subsecção VI, Secções de comércio, da secção VI Instância central da mesma Lei.

Acontece, todavia, que essa espécie de tribunais - secção de comércio - não foi criada, entre outras, na agora comarca dos Açores e, atento o propósito de especialização, informador da sua ação, o legislador achou por bem determinar, expressamente, a quais dos tribunais que criou, na ausência daquele, competiria a preparação e julgamento das ações previstas no art.º 128.º.

Fê-lo na norma em que delimitou a competência das secções cíveis, também elas englobadas no grupo, instância central, o art.º 117.º, da Lei n.º 62/2013, dispondo no n.º 2 deste artigo que:

 “Nas comarcas onde não haja secção de comércio, o disposto no número anterior é extensivo às ações que caibam a essas secções”.
No que respeita, diretamente, ao caso sub judice, a nosso ver, a parte do “número anterior” que nos interessa é a sua al. a), a qual dispõe que:

 “Compete à secção cível da instância central:

a) A preparação e julgamento das ações declarativas cíveis de processo comum de valor superior a (euro) 50 000”.

Na compreensão e identificação da concreta competência atribuída à secção cível pelo n.º 2, do art.º 117.º, com o reenvio para o seu n.º 1, encontramos, de imediato, uma primeira dificuldade, também abordada, embora noutra perspetiva pela decisão recorrida, e que tem a ver com a diferença de critérios adotados na delimitação da competência por este art.º 117.º (secções cíveis), por um lado, e pelo art.º 128.º (secções de comércio), por outro.

A al. a), do n.º 1, do art.º 117.º delimita a competência das secções cíveis pela forma/tipo de processo – ações declarativas cíveis de processo comum – e pelo seu valor – superior a € 50.000 – e o art.º 128.º delimita a competência das secções de comércio pela matéria (comércio) e pelas formas processuais que lhes correspondem, independentemente do valor.

Tratando-se de uma dificuldade interpretativa, a sua abordagem e solução deve ser feita com os respetivos instrumentos, nos quais se destaca a norma doutrinal do art.º 9.º do C. Civil, repositório dos mais importantes elementos de interpretação.

Desde logo, o elemento literal da interpretação pouco nos esclarecerá, uma vez que é a própria letra do preceito em causa a geradora da dificuldade interpretativa.

Relativamente à unidade do sistema jurídico, sabemos que a norma se insere num ato legislativo de reorganização judiciária, e quanto às circunstâncias em que a lei foi elaborada, sabemos que a mesma se propõe prosseguir a especialização, por matérias, dos tribunais judiciais.

A nosso ver, ao contrário do que acontece com a decisão em apreciação, que descortina orientação nos art.ºs 123.º, n.º 4, e 124.º, n.º 6, da Lei n.º 62/2013 - norma relativa a atos urgentes em matéria específica - no 104.º, n.º 1, do Dec. Lei n.º 49/2014, de 27 de Março - norma de transição da reorganização judiciária - e continuidade onde há rutura - Lei n.º 3/99, de 13 de Janeiro - não vislumbramos no texto da Lei n.º 62/2013 qualquer elemento que nos permita aceder ao concreto sentido tido em vista pelo legislador, o que também acontece relativamente ao número de juízes das instâncias central e local de Ponta Delgada.

Trata-se de elementos espúrios, sem qualquer conexão objetiva com a questão.

Resta-nos, pois, a súmula interpretativa contida no n.º 3, do art.º 9.º do C. Civil, autêntica regra de bom senso, em dois axiomas.

Pelo primeiro, “o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas”.

Pelo segundo, “o intérprete presumirá que o legislador soube exprimir o seu pensamento em termos adequados”.

Ora, a conjugação de um e outro desses princípios conduzem-nos, primeiramente, à racionalidade da norma a interpretar.

Essa norma só existe porque é necessária.

Sem ela, a situação a regular não teria a mesma solução interpretativa, mas outra diversa.

Nesta perspetiva, a interpretação do tribunal a quo torna a norma redundante.

Com efeito, pelo princípio da plenitude, residual, da jurisdição comum, estabelecido no art.º 211.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa[1], não tendo sido criada secção de comércio nem por isso a respetiva matéria deixa de ser da competência dos outros tribunais.

Pela norma do art.º 117.º, n.º 1, al. a), da Lei n.º 62/2013, as ações declarativas cíveis de processo comum de valor superior a € 50 000,00 já seriam da competência da secção cível da instância central.

Todas as restantes ações já seriam da competência da instância local, por força da norma da sua competência residual, estabelecida pelo art.º 130.º, n.º 1, al. a) e n.º 2, da mesma lei.

O legislador só tinha que se debruçar sobre a situação, com o n.º 2, do art.º 117.º, se quisesse que nenhuma das ações previstas no art.º 128.º, nomeadamente as ações declarativas comuns, fosse da competência da instância central.

A interpretação exarada na decisão recorrida inutiliza, pois, o n.º 2, do art.º 117.º, tornando-o dispensável, pelo que, atentos os dois comandos imperativos do n.º 3, do art.º 9.º do C. Civil - (1) soluções mais acertadas e (2) pensamento expresso em termos adequados - tem de ser liminarmente rejeitada, devendo o intérprete procurar uma outra, que confira conteúdo útil à norma a interpretar.

Na busca desta interpretação plausível, na sequência da dificuldade identificada, relativamente à divergência de critérios atributivos de competência, atenta a necessidade de harmonização do disposto em três preceitos, a saber, o n.º 2 do art.º 117.º, o art.º 128.º e o n.º 1, do art.º 117.º, o denominador comum a todos eles pressupõe o abandono da forma de processo, constante do n.º 1, do art.º 117.º, mas não constante do art.º 128.º, e a aceitação do critério do valor, consagrado no n.º 1, do art.º 117.º e transversal a todos os processos identificados no art.º 128.º.

Aportamos, assim, à conclusão, verosímil e razoável, de que o propósito do legislador ao criar o n.º 2, do art.º 117.º, não foi dizer o mesmo que já diria sem ele, mas dizer algo diferente, ou seja, que a secção cível da instância central, na ausência de criação da secção de comércio, tem competência para todas as ações do art.º 128.º, sejam ações comuns ou processos especiais, quando o seu valor seja superior a € 50.000,00[2].

Esta nossa interpretação em nada colide, antes o complementando, com o determinado pelos artigos 546.º, 548.º e 549.º, n.º 1, do novo C. P. Civil, o qual dispõe que:

 “Os processos especiais regulam-se pelas disposições que lhe são próprias e pelas disposições gerais e comuns; em tudo o quanto não estiver prevenido numas e noutras, observa-se o que se acha estabelecido para o processo comum”.

Aliás, note-se que o n.º 2, do art.º 117.º não remete para a al. a), do n.º 1, mas para o número anterior, incluindo portanto todas as alíneas, entre elas, a al. d), a qual confere à instância central competência para “Exercer as demais competências conferidas por lei”, podendo defender-se que bastaria ter-se presente o disposto nos n.ºs 1 e 2, do artigo 117.º da Lei n.º 62/2103, para concluirmos que “compete à secção cível da instância central”, “nas comarcas em que não haja secção de comércio”, julgar as “ações que caibam a essas secções” (do artigo 128.º)[3], enquanto competência conferida por lei, nos termos da alínea d) do n.º 1 do citado artigo 117.º e sem necessidade de intervenção de qualquer outra alínea deste preceito.

A remissão constante do n.º 2 do artigo 117.º sempre poderá ser entendida, em conformidade com o disposto na sua alínea d) e do já citado artigo 549.º, n.º 1, do C. P. Civil, como englobando a tramitação e julgamento das ações especiais de insolvência e de revitalização e de todas as demais ações da matéria do comércio, independentemente do seu valor.

Esta interpretação estaria de acordo com a elevação pelo legislador das matérias do art.º 128.º ao nível de instância central, na qual se manteriam, agora na secção cível, no caso de não ser criada a secção de comércio, uma vez que não haveria qualquer fundamento para a desgraduação dessas matérias, não fazendo sentido que as mesmas fossem da competência da instância central, quando criada secção de comércio, e da competência da instância local quando esta não existisse[4].

Para esta interpretação, mais pródiga em atribuir competência à instância central do que aquela para que propendemos, a forma de processo seria um critério inócuo para aferir da competência material e, caso houvesse dúvidas, estas sempre seriam solucionadas pela leitura da alínea d), do n.º 1, do citado artigo 117.º que, aludindo à competência da secção cível da instância central, refere: “Exercer as demais competências conferidas por lei”, assim se complementando a remissão do n.º 2 desse mesmo preceito, o que esbate qualquer distinção entre ações declarativas comuns e ações especiais.

De fato, não vislumbramos qualquer fundamento racional, nem valor a realizar, no acantonamento, nesta matéria, da secção cível da instância central a ações comuns, configurando-se o entendimento contrário como um misto de enquistamento ao texto da al. a), do n.º 1, do art.º 117.º, cuja exponenciação despreza a inutilização do seu n.º 2, e de saudosismo do anterior paradigma do juiz corregedor, que se manteve nos modelos subsequentes do juiz de círculo e do tribunal de círculo, e do tribunal coletivo.

Uns (juiz corregedor/juiz de circulo/tribunal de circulo) e outro (tribunal coletivo), neste momento não existem, sendo outro o paradigma de distribuição de competência em razão da matéria (grau de dificuldade técnica dos processos presumido e melhor preparação técnica e amadurecimento dos juízes da instância central, também presumido), pelo que não faz qualquer sentido a referência a continuidade, pelo elemento histórico da interpretação, apelando ao regime da Lei n.º 3/99, de 13 de janeiro.

Este novo paradigma para a ação da instância central, atual tribunal de topo da 1.ª instância, com o presumível maior grau de dificuldade técnica dos processos e a presumível melhor preparação técnica e amadurecimento dos juízes, permite perceber a opção do legislador em cometer à secção cível os processos da competência da secção de comércio, também da instância central, independentemente da sua forma processual, desde que o seu valor seja superior a € 50.000,00, deixando desamparada a interpretação contrária.

Com efeito, as matérias previstas no art.º 128.º, independentemente da forma processual, apresentam o grau de dificuldade técnica que já apresentava a respetiva cadeira no curriculum dos cursos de direito, onde a média de notas é baixíssima, que tem ditado a identificação desses processos na pendência dos tribunais pela sua grande longevidade, grande complexidade, grande desprestígio da justiça, fatores que terão determinado a especialização dos tribunais de primeira instância e logo ao nível da instância central, que não da instância local.

Para a preparação e julgamento destas matérias, pelo seu grau de dificuldade, pela sua transversalidade a vários ramos de direito, que não apenas o direito comercial, serão os juízes da instância central os melhor colocados, atentas as exigências de antiguidade (mais de dez anos de serviço) e classificação (bom com distinção ou superior) estabelecidas pelo art.º 183.º, n.º 1, da Lei n.º 62/2013.

Não desconhecemos que esta asserção é também válida para alguns processos cíveis especiais, da competência material da instância local pela norma base de delimitação da sua competência, a norma de competência residual do art.º 130.º, n.º 1, al. a) e n.º 2, da Lei n.º 62/2013, mas não podemos esquecer que muitos destes processos se desdobram em duas fases, uma inicial, não litigiosa, passando a ação comum em caso de controvérsia, subsistindo, também em relação a eles, conflitos de competência, a que a Lei n.º 62/2013 não terá posto cobro, pelo que o argumento baseado na dicotomia ações comuns/processos especiais, também nesta parte apresenta fragilidades.

Esta nossa interpretação do n.º 2, do art.º 117.º é aquela que lhe atribui conteúdo útil, também na perspetiva em que mal se perceberia que o legislador, de entre as ações do art.º 128.º, cuja matéria ditou a especialização da secção de comércio e cujo grau de dificuldade ditou que esta fosse inserida na instância central, se preocupasse em definir, expressamente, repisando-a, a competência para as poucas ações comuns, aliás já definida pelo art.º 117.º, n.º 1, al. a), deixando todas as restantes, ou seja, o grosso da competência da secção de comércio, para a competência residual da instância local ou, quiçá, para a indefinição de competência que pode resultar da sua qualificação, própria das situações de conflito negativo de competência em que é fértil a (in) ação dos tribunais portugueses.

Nesta matéria de potenciais conflitos negativos de competência, a nossa interpretação é também a que, estabelecendo um critério mais claro de delimitação de competência entre a instância central e a instância local, no que respeita às ações prevista no art.º128.º, dispensando a difícil e penosa tarefa de, entre essas ações, descortinar, caso a caso, quais as que seguem a forma de processo comum, quais as que seguem a forma de processo especial e quais as que, começando como processo especial, seguem a partir de certa altura da sua tramitação a forma de ações declarativas cíveis de processo comum, cria um maior grau de segurança e certeza sobre a competência material, sobre ela prevenindo o surgimento de inúteis conflitos negativos de competência.

Por último ainda, a decisão sob recurso, no que em especial respeita à comarca dos Açores e a Ponta Delgada, apela a critérios de racional distribuição de serviço e ao número de juízes em funções nas instância central e na instância local, mas o certo é que, sobre essas duas matérias, falecem nos autos quaisquer elementos de natureza interpretativa ou de mera oportunidade gestionária, desconhecendo este Tribunal da Relação se a secção cível da instância central tem mais ou menos processos e se os respetivos juízes têm mais ou menos trabalho do que a instância local.

Não obstante, sempre diremos que a eficácia e a eficiência da reorganização judiciária, em que se insere a Lei n.º 62/2013, e o objeto da apelação, com ela conexo, não poderão deixar de ser seguidas, monitorizadas, avaliadas e corrigidas, se necessário, mas em face de dados estatísticos objetivos e não meras considerações circunstanciais e de alvítrio, tanto mais que, como é próprio da cultura dos tribunais (ou falta dela), o tribunal em que o agente se encontra em funções tem sempre mais processos ou processos mais trabalhosos que os outros.

III. O confronto da decisão com a jurisprudência na matéria:

Na decisão da apelação, para além do objeto da apelação, definido pela dialética entre a decisão recorrida e as conclusões da apelação, não deixámos de considerar a jurisprudência já existente sobre a questão, tendo, aliás, seguido de perto a orientação das decisões da Presidência deste Tribunal da Relação de Lisboa nas muitas dezenas de conflitos negativos de competência entre a instância central e a instância local, nessas instâncias depositados, e também a orientação do acórdão da 8.ª Secção, de 26/3/2015, proferido no P.º n.º 702-14.4T8PDL.L1[5]

E tivemos também presente a jurisprudência que, em sentido contrário, se gerou a partir do acórdão da 6.ª Secção deste Tribunal da Relação, de 19/3/2105, proferido no P.º n.º 1016-14.5T8PDL.L1[6] e que é constituída também pelos acórdãos proferidos no P.º n.º 658/15.6T8PDL.L, da 1.ª Secção, em 28/4/2015[7] e no P.º n.º 425/15.7T8PDL.L1, da 7.ª Secção[8].

O acórdão de 19/3/2015 estruturou a sua decisão num argumento principal ao referir “…o legislador quis afastar da competência da secção cível da instância central os processos especiais, os quais se têm de integrar, portanto, na competência residual das secções cíveis das instâncias locais” e num argumento adjuvante ao dizer que “…no diploma regulamentar (RLOSJ), ao tratar da transição dos processos pendentes, o legislador consagrou, no … art.º 104.º n.º 1, (uma solução) que… indicia ter-se querido, logo à partida, que as matérias específicas das secções de comércio pendentes transitassem de imediato para as secções das instâncias locais, por serem elas as futuramente competentes”.

Também no acórdão de 28/4/2015 o argumento interpretativo utilizado se situa ao nível da forma de processo, na dicotomia ação comum/processo especial, quer ao nível da equação da questão ““A questão coloca-se efetivamente noutra perspetiva, que não é tanto a da matéria, já que a matéria que enforma as causas previstas no artigo 128.º da LOSJ, ainda que se situe na órbita do direito comercial e matérias conexionadas, também se materializa em termos processuais em ações declarativas cíveis, mas sim na espécie de processo aplicável a essas ações, considerando que algumas são tramitadas como processo especial e outras como processo comum”, quer ao nível da conclusão a que se aportou “...Donde decorre que os processos de insolvência, por seguirem a forma de processo especial (não obstante alguns dos seus apensos seguirem a forma de processo comum) não se encontram abrangidos pelo alargamento de competência a que alude o n.º 2 do artigo 117.º da LOSJ.
Consequentemente, os processos de insolvência, por serem processos especiais, estão excluídos dessa competência, sendo competentes para a preparação e julgamento dos mesmos, a secção cível da instância local”.

De igual modo, no acórdão de 19/5/2015 o argumento decisivo foi a forma de processo, como resulta do excerto em que se escreve que “…à luz do disposto no n.º 2 do art.º 117 da LOSJ, os processos de insolvência, por serem processos especiais, estarão excluídos da competência das secções especializadas cíveis da instância central quando não exista secção de comércio, sendo competente para a preparação e julgamento dos mesmos a correspondente secção cível da instância local”.

O argumento base, transversal a estes três arestos, tem assento literal na al. a), do n.º 1, do art.º 117.º e estrutura-se na forma de processo, deixando na esfera de competência da seção cível da instância central apenas as ações declarativas cíveis de processo comum de valor superior a € 50.000,00 e lançando na esfera de competência da instância local todas as outras ações/processos especiais.

A interpretação do n.º 2, do art.º 117.º, levado a cabo por tais arestos, com cunho marcadamente literal, torna inútil esse preceito, dispensando-o e anulando-o, na medida em que, sem ele, chegamos ao mesmo resultado prático a que chegaram tais decisões, no sentido de “ações declarativas cíveis de processo comum, de valor superior a € 50.000,00, para a secção cível da instância central e restantes processos para a instância local”.

Atento este pecado original a que acresce a fragilidade do critério da forma de processo, em face do disposto no art.º 549.º, n.º 1, do C. P. Civil, com todas as dúvidas interpretativas próprias destas questões, afigura-se-nos não ser a melhor a orientação acolhida pelos três arestos citados, a qual transporta consigo ainda um outro, subsequente, atinente à velha questão dos processos especiais que seguem a partir de certo momento a forma de processo comum, também ela ainda pendente ao nível dos conflitos negativos de competência na 1.ª instância.

Também por esta última asserção, a vexata questio da competência material dos processos especiais que a partir de certo momento da sua tramitação passam a seguir os termos do processo comum, o argumento baseado na dicotomia ações comuns/processos especiais se apresenta demasiado débil e falível, devendo ser rejeitado, como o resultado interpretativo a que conduz, que inutiliza o n.º 2, do art.º 117.º, como acima referimos em II.

IV. O destino da apelação:

Pelos fundamentos aduzidos no anterior n.º II, atenta a não adesão aos argumentos que constituem a base dos arestos identificados em III, tendo o processo o valor de € 1.363.305,00, não podemos deixar de julgar procedente a apelação, revogando a decisão recorrida e declarando o tribunal a quo competente para a preparação e julgamento deste processo de Insolvência de Pessoa Singular.

C) EM CONCLUSÃO:

1. A interpretação do n.º 2, do art.º 117.º, da Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto, no sentido de atribuir à secção cível da instância central a competência para as ações declarativas cíveis de processo comum, de valor superior a € 50.000,00, lançando na competência da instância local todos os restantes processos enumerados no art.º 128.º da mesma Lei, inutiliza esse preceito, tornando-o dispensável, na medida em que conduz ao mesmo resultado interpretativo que já resultava do disposto nos art.ºs 117.º, n.º 1, al. a) e 130.º, n.º 1, al. a) e n.º 2, da lei n.º 62/2013.

2. Tendo em atenção os dois comandos imperativos do n.º 3, do art.º 9.º do C. Civil - (1) soluções mais acertadas e (2) pensamento expresso em termos adequados – essa interpretação tem de ser liminarmente rejeitada, devendo o intérprete procurar uma outra que confira conteúdo útil à norma a interpretar.

3. Atenta a diferença de critérios adotados na delimitação da competência pelo art.º 117.º (secções cíveis) e pelo art.º 128.º (secções de comércio) - a al. a), do n.º 1, do art.º 117.º delimita a competência das secções cíveis pela forma/tipo de processo – ações declarativas cíveis de processo comum – e pelo seu valor – superior a € 50.000 – e o art.º 128.º delimita a competência das secções de comércio pela matéria (comércio) e pelas formas processuais que lhes correspondem, independentemente do valor - e a necessidade de harmonização do disposto nos três preceitos, a saber, o n.º 2 do art.º 117.º, o art.º 128.º e o n.º 1, do art.º 117.º, o denominador comum a todos eles pressupõe o abandono da forma de processo, constante do n.º 1, do art.º 117.º, mas não constante do art.º 128.º, e a aceitação do critério do valor, consagrado no n.º 1, do art.º 117.º e transversal a todos os processos identificados no art.º 128.º.

4. Assim, o desiderato prosseguido pelo legislador com o n.º 2, do art.º 117.º, da lei n.º 62/2013, não foi dizer o mesmo que já diria sem ele, mas dizer algo diferente, devendo o mesmo ser interpretado no sentido de que a secção cível da instância central, na ausência de criação da secção de comércio, tem competência para todas as ações do art.º 128.º, sejam ações comuns ou processos especiais, quando o seu valor seja superior a € 50.000,00.

3. DECISÃO:

Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em julgar procedente a apelação, revogando a decisão recorrida e declarando o tribunal a quo competente para a preparação e julgamento deste processo de Insolvência de Pessoa Singular.
Custas pela massa insolvente.


Lisboa, 30 de junho de 2015.

(Orlando Nascimento)
(Alziro Cardoso)
      
 Dina Monteiro (com o esclarecimento de que entendo, que face à redacção do art.º 128º da LOTJ   compete às secções de comércio das instâncias centrais conhecer de todos os processos cuja matéria seja comercial (independentemente da forma de processo que sigam, ou seja, processos comuns ou especiais, e do seu valor).



[1] “Os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais”.
[2] Também neste sentido, SALVADOR DA COSTA e RITA COSTA, “Lei da Organização do Sistema Judiciário”, Almedina, 2014, 2.ª ed., p. 182.
[3] Neste sentido, o Exm.º Vice-Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, SALAZAR CASANOVA, “Notas Breves Sobre a Lei de Organização do Sistema Judiciário (Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto) ”, in ROA, ano 73, n.ºs 2/3, 2013, p. 469.
[4] No sentido mais vasto, aliás, de que as ações previstas no art.º 128.º, quando não tenha sido criada secção de comércio, são da competência da secção cível da instância central, por força do art.º 117.º, n.º 1, al. d) e n.º 2, se pronunciou o acórdão desta relação de 26/3/2015, in dgsi.pt (relatora: Maria Catarina Arelo Manso), dizendo: “Nos termos da al. d) do n.º 1 do art.º 117º da LOSJ e no nº2, desse mesmo normativo, outra não poderá ser a conclusão de que foi intenção do legislador, atenta a interpretação literal da conjugação das duas normas em apreço, atribuir competência às secções cíveis da instância central para as ações que sendo das secções de comércio, nas comarcas onde não existam tais secções especializadas”.
[5] In dgsi.pt (relatora: Catarina Manso).
[6] In dgsi.pt (relatora: Manuela Gomes)
[7] Relatora: Maria Adelaide Domingos: ainda não publicado.
[8] Relatora: Maria da Conceição Saavedra: ainda não publicado.