Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
7913/2006-8
Relator: ILÍDIO SACARRÃO MARTINS
Descritores: ABUSO DO DIREITO
ACIDENTE DE VIAÇÃO
INDEMNIZAÇÃO
PAGAMENTO
CONTRATO DE SEGURO
VENDA DE VEÍCULO AUTOMÓVEL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 01/25/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário: I- Ocorrendo o acidente em 4-7-1991 e tendo a ré seguradora pago várias indemnizações à A. após o  acidente assumiu uma posição que só é compatível com a plena validade e eficácia do contrato de seguro respeitante ao veículo interveniente no contrato.
II- A ré seguradora age com abuso do direito ao invocar a cessação do contrato de seguro (efectivada ao abrigo dos artigos 13.º e 14.º do Decreto-Lei n.º 552/85, de 31 de Dezembro) com base na alienação do veículo com data anterior ao acidente, quando assumiu pagar as referidas indemnizações respeitantes a danos sofridos pela lesada e quando, em virtude de tal conduta da seguradora, a mesma lesada deixou de tomar a iniciativa de accionar o dono do veículo antes do termo do prazo de prescrição

(ISM)
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa

I - RELATÓRIO

Maria […] intentou a presente acção sumária contra a ré Companhia de Seguros […] SA pedindo a condenação da ré no pagamento da indemnização de 5.318.135$00 e ainda o montante a liquidar em execução de sentença mas não inferior a 750.000$00, relativa a remunerações e subsídios perdidos, danos não patrimoniais e danos futuros, com base nas lesões e prejuízos sofridos pela autora, em consequência do atropelamento de que foi vítima, pelo veículo DL […] conduzido por A. […]

Contestou a ré, dizendo que é parte ilegítima pois é seguradora da responsabilidade civil por acidentes de viação de D.[…], enquanto proprietário do veículo com a matrícula DL […]. À data do sinistro o veículo era propriedade de A.[…] e por este conduzido.

 A autora respondeu concluindo como na petição inicial.

Foi proferida sentença que julgou a acção procedente e provada e condenou a ré a pagar à autora a quantia de € 46.199,69, acrescida de juros, à taxa legal, após a data da decisão e até integral pagamento, calculados sobre o capital em dívida de € 33.776.

Não se conformando com aquela sentença, dela recorreu a ré, tendo formulado as seguintes

CONCLUSÕES:

1ª - A ré Companhia de Seguros […] S.A. era seguradora da responsabilidade civil por acidentes de viação de D.[…], enquanto proprietário do veículo com a matrícula DL […] conforme apólice n.º […].

2ª - Em sede de contestação, a ré impugnou a existência do seguro dado que, à data do sinistro – 4 de Julho de 1991 – o veículo com a matrícula DL […] era propriedade de A.[…] e por este conduzido.

3ª - Ao questionário foi levado um quesito – o 1.º - em que se pergunta se “na data do sinistro, o veículo com a matrícula DL […] era propriedade de D.[…]”.

4ª - Tal quesito mereceu a resposta de “não provado”.

5ª - A cobertura do seguro e a responsabilidade da Companhia de Seguros […] S.A. pressupõem que o D.[…] fosse o proprietário do veículo – artºs. 2.º-2, al. a) e 10.º das Condições Gerais da Apólice Uniforme do Seguro Automóvel.

6ª - À autora cabe-lhe o ónus da prova dos pressupostos da responsabilidade civil do lesante e da sua transferência para a Seguradora – art.º 342º-1 do Código Civil.

7ª - Ao negar a existência do seguro, a Seguradora impugnou a matéria de facto aduzida pela autora.

8ª - À autora incumbia, portanto, provar todos os factos constitutivos do direito que invocou e da responsabilidade da Seguradora.

9ª - Não fazendo tal prova soçobrou o fundamento do pedido.

10ª - A sentença recorrida violou o preceituado nos artºs. 426º do Código Comercial e 342º-1 do Código Civil.

11ª - Consequentemente, deve dar-se provimento ao recurso e, revogando-se a sentença recorrida, absolver-se a Companhia de Seguros […] S.A. do pedido.

A parte contrária respondeu, pedindo que seja negado provimento ao recurso.

Ao abrigo do disposto no artigo 3º nº 3 do Código de Processo Civil, para evitar proferir uma “decisão surpresa” e apesar de se tratar de uma questão de conhecimento oficioso, foram as partes notificadas para se pronunciarem sobre o eventual abuso de direito caracterizador da conduta da ré.

Apenas a apelante se pronunciou, referindo que só por erro os serviços da ré procederam a pagamentos, pois não fizeram uma análise adequada da situação

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

II - FUNDAMENTAÇÃO

A- Fundamentação de facto.
Mostra-se assente a seguinte matéria de facto:

A) No dia 4 de Julho de 1991, cerca das 11 horas, à saída de Almornos, na estrada que liga Sabugo a Almargem do Bispo, ocorreu um acidente de viação junto ao antigo aviário – (B).

B) No acidente foram intervenientes a autora e o veículo Datsun, com a matrícula DL […], conduzido por A.[…] – (B).

C) O veículo identificado em B) circulava no sentido Almornos - Almargem e em sentido contrário, na berma do lado direito, seguia a autora a pé – (C).

D) O veículo mencionado em B) ao aproximar-se da autora, saiu, subitamente, da faixa de rodagem, invadiu a berma e atropelou-a – (D).

E) A autora recebeu tratamento médico nos Serviços Clínicos da ré, onde foi submetida a quatro intervenções cirúrgicas, duas das quais com anestesia geral e onde esteve internada – (E).

F) O primeiro internamento da autora no local descrito em E) teve lugar no dia 24/07/91 para lipoaspiração de ambas as coxas, tendo sido aquela operada no dia 25 e tido alta em 8 de Agosto com incapacidade total temporária – (F).

G) O segundo internamento ocorreu em 19/08/91 para nova lipoaspiração em 20/08/91 e a autora teve alta em 7/09/91, ficando com incapacidade total temporária – (G).

H) O terceiro internamento teve lugar em 3/01/92, tendo sido feita intervenção cirúrgica ao joelho esquerdo da autora, a qual teve alta em 11/01/92 e iniciou a fisioterapia que durou cerca de 15 dias – (H).

I) Em 14/02/92 a autora retomou o trabalho, embora com muitas dificuldades – (I).

J) Em 6/07/92, a autora foi novamente internada para uma operação de limpeza cirúrgica das massas musculares das coxas, tendo tido alta em 13/08/92 – (J).

L) Após ter tido alta na data indicada em J), a autora retomou o trabalho em 17/08/92, embora tivesse continuado em consultas externas mensais até 1/93, data da alta, com indicação de 12% de desvalorização – (L).

M) Antes do último internamento referido em J), a autora foi sujeita a várias punções aspirativas para drenagem do seroma em ambas as coxas – (M).

N) A responsabilidade civil por danos de circulação causados pelo veículo com a matrícula DL[…] foi transferida para a ré Seguradora por contrato de seguro titulado pela apólice nº […] – (N).

O) A autora foi levada de ambulância do local referido em A) para o Hospital de S. Francisco Xavier – ( 4º).

P) No local referido em O), foi a autora socorrida e observada por traumatismo da perna esquerda, traumatismo de ambas as pernas e ferida incisa do joelho direito; a ferida foi suturada. No internamento da autora foi-lhe diagnosticado fractura do perónio esquerdo – (5º, 6º e 7º).

Q) Em virtude do acidente referido em A), a autora ficou com uma cicatriz no bordo externo da rótula esquerda com 8 cm., sendo a sua extensão, na vertical de 4,5 cm., com cerca de 0,8 mm. E a sua porção horizontal com cerca de 3,5 cm., com uma cicatriz horizontal de 7 cm., na rótula direita, com uma cicatriz com 51 cm ao longo da circunferência da coxa esquerda, de fora para dentro e de cima para baixo com início imediatamente atrás da crista do ilíaco e terminando na região nadegueira e com uma cicatriz com 62 cm ao longo da circunferência da coxa direita muito semelhante à anteriormente descrita – (8º, 9º, 10º e 11º).

R) Em virtude do acidente especificado em A), sofreu a autora bloqueio por rigidez do joelho esquerdo – (12º).

S) As sequelas descritas em Q), importaram para a autora uma incapacidade permanente genérica parcial de 14% - (14º).

T) Em consequência do acidente referido em A), a autora deixou de auferir o subsídio de férias de 1991, no montante de 56.300$00; o 13º mês de 1991, no montante de 56.300$00; no período compreendido entre 2 de Julho e 18 de Agosto do ano de 1992, a autora deixou de receber a correspondente remuneração pelo Centro Regional de Segurança Social, no valor de 84.465$00 e deixou de auferir a remuneração das férias, o subsídio e o 13º mês de 1992 proporcionais ao tempo de ausência ao serviço, no montante de 42.500$00 – (16º, 17º, 18º e 19º).

U) Em consequência do acidente referido em A), a autora faltou 12 dias ao trabalho para ir a consultas – (20º).

V) Em virtude dos factos aludidos nas alíneas anteriores a autora deixou de receber a quantia de Esc. 261.835$00 – (21º).

X) A autora foi sempre pessoa saudável até à ocorrência do facto especificado em A) e ficou angustiada com o risco que as operações envolvem – ( 22º e 23º).

Z) A autora sofreu dores que atingem o grau 3, na escala de 7, sendo o quantum doloris quantificável como “Moderado”- (24º, 25º e 26º ).

AA) Em virtude do acidente mencionado em A), a autora apresenta um dano estético quantificável como “Médio”, grau 4 na escala de 7 – (27º e 28º).

AB) Os serviços da ré pagaram à autora uma indemnização por salários no valor de 831.903$00; uma indemnização por transportes no montante de 43.900$00; uma indemnização por vestuário danificado no valor de 9.000$00 e uma indemnização por danos patrimoniais diversos, uma indemnização no valor de 13.940$00 (33º, 34º, 35º e 36º).

Mais se provou que:

AC) A propriedade do veículo […] foi registada a favor de A.[…] a partir de 19 de Março de 1982 – doc. fls. 37.

 B - Fundamentação de direito

A ré contestou opondo à autora a excepção de cessação do contrato de seguro, pelo facto de o mesmo não se transmitir quando o veículo foi alienado a A.[…].

O contrato de seguro de responsabilidade civil automóvel deve obrigatoriamente ser celebrado pelos sujeitos enumerados no artº 2º do Decreto-Lei nº 522/85, de 31 de Dezembro, maxime pelo seu proprietário.

O contrato de seguro não se transmite em caso de alienação do veículo, cessando os seus efeitos às 24 horas do próprio dia da alienação - artº 13°, nº 1 do DL 522/85 de 31/12.

Determina o artº 14º do DL nº 522/85 que “para além das exclusões ou anulabilidades que sejam estabelecidas no presente diploma, a seguradora apenas pode opor aos lesados a cessação do contrato nos termos do nº 1 do artigo anterior, ou a sua resolução ou nulidade, nos termos legais e regulamentares em vigor, desde que anteriores à data do sinistro.”

Ora, importa reter os seguintes factos:

- O acidente ocorreu no dia 4 de Julho de 1991;

- No acidente foram intervenientes a autora e o veículo Datsun, com a matrícula DL […] conduzido por A.[…].

- A responsabilidade civil por danos de circulação causados pelo veículo com a matrícula DL […] foi transferida para a ré Seguradora por contrato de seguro titulado pela apólice nº […].

- Os serviços da ré pagaram à autora uma indemnização por salários no valor de 831.903$00; uma indemnização por transportes no montante de 43.900$00; uma indemnização por vestuário danificado no valor de 9.000$00 e uma indemnização por danos patrimoniais diversos, uma indemnização no valor de 13.940$00 (1).

- A propriedade do veículo 19-03-82 foi registada a favor de A.[…]a partir de 19 de Março de 1982.

- A acção deu entrada em 27 de Junho de 1994.

Tendo o contrato de seguro sido celebrado entre a ré seguradora e D.[…], então proprietário do veículo, conforme resulta do documento de fls. 21 e 37, e tendo este sido alienado em data anterior ao acidente a A.[…], os efeitos desse contrato cessariam, em princípio, às 24 horas do dia da alienação – artº 13º nº1 do DL 522/85.

 Face ao regime deste diploma legal, a cessação de tais efeitos é oponível ao lesado (ora autora) nos termos do artigo 14º.

Todavia, a invocação que a ré fez contra a lesada da cessação dos efeitos do contrato de seguro, constitui um abuso de direito.


O abuso de direito na sua variante de venire contra factum proprium só existe quando o venire atinja proporções juridicamente intoleráveis, traduzindo-se em aberrante e chocante contradição com o comportamento anteriormente adoptado pelo titular do direito (2).
 
Há abuso de direito quando existem condutas contraditórias do seu titular a frustrar a confiança criada pela contraparte em relação a situação jurídica futura (3).

Havendo abuso de direito, o exercício deste fica paralisado, sendo ineficaz a conduta da ré ao invocar contra a autora a cessação dos efeitos do contrato, porque tal invocação é, em si, contraditória com a conduta anterior da ré.

A questão sub judice consiste em saber se existe ou não abuso de direito por parte da ré, face ao comportamento anterior que assumiu.

A ré seguradora, após o acidente, pagou à autora as indemnizações referidas na alínea AA) da fundamentação de facto, assumindo uma posição que só é compatível com a plena eficácia e validade do contrato de seguro do veículo DL- 79-20.
 
Assumiu a sua responsabilidade, como seguradora, pelo pagamento daquelas indemnizações pelos danos que a autora sofreu com o acidente. O que se compreende e até é perfeitamente natural, porque nunca terá deixado de receber os prémios de seguro em relação àquele veículo; caso contrário, teria invocado a resolução do contrato nos termos legais.

Assim sendo, a posterior invocação, contra a autora, da cessação dos efeitos do contrato de seguro representa um inadmissível “ venire contra factum proprium”.

A ré, com a sua conduta anterior, criou na autora a convicção de que assumia a responsabilidade pelo pagamento da indemnização devida pelos danos sofridos.

E foi com base nessa confiança legítima que a autora intentou a presente acção contra a ré, deixando de tomar a iniciativa de a propor contra o dono do DL […], o mencionado A.[…].

E decorridos que são mais de cinco anos sobre a data do acidente, é previsível que se a autora fosse agora demandar o A.[…], esbarrava com a invocação da prescrição, ficando sem qualquer possibilidade de ser ressarcida dos danos que sofreu.

Terminamos citando Baptista Machado: “ no domínio dos casos em que é aplicável a proibição do “venire contra factum proprium” a responsabilidade pela confiança funciona em regra em termos preventivos, paralisando o exercício de um direito, ou tornando ineficaz aquela conduta declarativa que, se não fosse contraditória com a conduta anterior do mesmo agente, produziria determinados efeitos jurídicos” (4).


Podemos,pois, concluir nos seguintes termos:
- Ocorrendo o acidente em 04/07/1991 e tendo a ré seguradora pago várias indemnizações à autora após o acidente, assumiu uma posição que só é compatível com a plena eficácia e validade do contrato de seguro do veículo DL.
- A ré seguradora age com abuso de direito ao invocar a cessação do contrato de seguro (efectivada ao abrigo dos artigos 13º e 14º do Decreto-Lei nº 522/85), por ter havido alienação do veículo em data anterior ao acidente, quando assumiu pagar as referidas indemnizações respeitantes a danos sofridos pela lesada e quando, em virtude de tal conduta da seguradora, a mesma lesada deixou de tomar a iniciativa de accionar o dono do veículo antes de findo o prazo de prescrição.
 
III - DECISÃO

Pelo exposto, julga-se improcedente a apelação, confirmando-se a sentença recorrida, embora por motivos diferentes e agora expostos.
Custas pela apelante.

Lisboa, 25 de Janeiro de 2007

Ilídio Sacarrão Martins
Teresa Prazeres Pais
 Carla Mendes



_________________________________
1.-Esta indemnização foi paga em 20.11.1991, conforme resulta dos documentos de fls. 21 a 26.

2.-Ac. STJ 24.01.2002, in CJ STJ I/ 02, pág. 51.

3.-AC. STJ de 30-11-2000 Revista n.º 3003/00 - 7.ª Secção (Miranda Gusmão), in dgsi.pt.

4.-RLJ Ano 117º, pág. 297.