Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
3554/2006-7
Relator: AMÉLIA ALVES RIBEIRO
Descritores: JULGADO DE PAZ
COMPETÊNCIA MATERIAL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 07/12/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: CONCEDIDO PROVIMENTO
Sumário: I- Não decorre da letra da Lei nº 78/2001, de 13 de Julho, explícita e imperativamente, que a competência dos julgados de paz seja exclusiva. Tal entendimento apenas se poderá defender com base na articulação de vários preceitos jurídicos com argumentos doutrinários por vezes de dúbia sustentabilidade.
II- Os julgados de paz e os tribunais judiciais têm idêntica competência material no tocante às matérias referenciadas na referida Lei nº 78/2001.

(SC)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na Relação de Lisboa

Procº nº 3554/06

7ª Secção

Recorrente/AA.: Ministério Público, José […] e Maria […]

Recorrido/RR.: António […]

Pretensão sob Recurso: Revogação do despacho proferido pelo Tribunal de 1ª Instância, no qual este se considera incompetente em razão da matéria, absolvendo o R. da instância (por ter considerado que seriam exclusivamente competentes os julgados de paz, atento ao disposto nos artigos 209º n.º 2 da C.R.P., 66º do CPC e art.º 9º n.º 1 alínea h) da Lei 78/2001 de 13 de Julho).

Não se conformando com a mesma dela interpuseram recurso o M.P. e os AA.

Em alegações o M.P. formulou as seguintes conclusões:

1. A douta sentença recorrida absolveu a Ré da instância, por incompetência absoluta do Tribunal de Pequena Instância Cível de Lisboa, nos termos do disposto no art.º. 288º, nº 1, alínea a) do Cód. Proc. Civil, sustentando que a competência para apreciação da matéria em discussão nos autos pertence ao Julgado de Paz instalado na comarca de Lisboa;

2. Fundamentou a sua posição no art.º. 9º, nº 1, alínea h) da Lei nº 78/2001, de 13 de Julho, no art.º 66º do Cód. Procº. Civil e no art.º. 211º da C.R.P.

3. Mas a natureza dos Julgados de Paz é alternativa e não exclusiva.

4. Não se encontrando o território nacional coberto pela instalação de Julgados de Paz, não faz sentido que esta jurisdição conheça, em exclusivo, de matérias apreciadas por Tribunais Judiciais em outras circunscrições territoriais.

5. Igualmente, o princípio da reserva de jurisdição, ou a disponibilidade das partes na possibilidade de submeterem os litígios materialmente judiciais nos tribunais judiciais, aponta para uma competência alternativa.

6. Acresce que a consagração da competência exclusiva expressa nos projectos de lei que antecederam a aprovação da Lei nº 78/2001, de 13 de Julho, não obteve consagração no texto da lei vigente.

7. Favorecem, de resto, a tese da sua competência alternativa os artigos 41º e 59º, nº 3 da sobredita lei, não fazendo sentido que os Tribunais Judiciais, inicialmente incompetentes, adquiram competência quando sejam suscitados incidentes não admissíveis no processo dos Julgados de Paz ou seja requerida prova pericial.

8. Os artigos. 66º do Cód. Procº. Civil e 211º da C.R.P., invocados no texto da sentença recorrida, não apontam para a competência exclusiva da Jurisdição de Paz, pois que o que está em causa é, justamente, a ausência de uma norma atributiva de competência a um Tribunal Judicial e outra atributiva de competência aos Julgados de Paz.

9. O reconhecimento de que um tribunal judicial e um julgado de paz têm idêntica competência material não implica qualquer entorse aos princípios gerais, uma vez que pertencem a estruturas jurisdicionais diversas.

10. A prolongada inércia legislativa no sentido de clarificar a competência – alternativa/exclusiva - dos Julgados de Paz não pode deixar de apontar no sentido do nosso entendimento.

11. Neste sentido foi emitido o Parecer nº 10/2005, da Procuradoria-Geral da República, publicado no D.R., II Série, em 2 de Setembro de 2005 (que constitui doutrina obrigatória para os Magistrados do Ministério Público, de acordo com o despacho de 10 de Maio de 2005 do Ex.mº Senhor Procurador Geral da República, nos termos dos artigos 12º, nº 2, alínea b) e 42º, nº 1 do Estatuto do Ministério Público).

12. Pelo exposto, o Tribunal de Pequena Instância Cível de Lisboa é competente, em razão da matéria, para apreciar o caso concreto.

13. Assim, a absolvição do Réu da instância, por incompetência absoluta deste tribunal, inobservou o disposto nos artigos. 9º nº 1, alínea g), 41º, 59º, nº 3 da Lei nº 78/2001, de 13 de Julho, 211º da Lei Fundamental e 66º do Cód. Procº. Civil.

Em sede de alegações formularam igualmente os AA as seguintes conclusões:

- A Sentença proferida pelo Meritíssimo Juiz a quo que absolveu o Réu da Instância considerando verificar-se uma situação de incompetência material dos Tribunais Judiciais em virtude das disposições conjugadas dos Artigos 211º da Constituição da República Portuguesa e 66º do Código de Processo Civil enferma, na opinião dos Recorrentes, de um lapso interpretativo quer destas normas, quer do teor global da Lei 78/2001;

- A competência atribuída aos Julgados de Paz nos termos da Lei 78/2001 deve ser considerada uma competência alternativa à competência dos Tribunais Judiciais, e não uma competência exclusiva “ainda que condicional” tal como é entendida na Sentença Recorrida;

- O texto da Lei 78/2001 possuiu exemplos que os Recorrentes reputam de claros nesse sentido, sendo por várias vezes repetido nesse normativo o facto de coexistirem ao mesmo tempo Tribunais com a mesma competência que os Julgados de Paz, sendo disso ilustrativos os seus Artigos 41º, 59º e 62º, que remetem para os Tribunais Comuns os processos que em razão de incidentes, prova pericial ou recursos não possam seguir os seus trâmites de acordo com o processamento próprio dos Julgados de Paz;

- O teor do Artigo 64º da Lei 78/2001, conjugado com a realidade atinente à instalação de Julgados de Paz em território português, não deixa dúvidas quanto ao carácter parcelar e experimental deste meio de resolução de conflitos, sendo que admitir uma exclusividade de competências aos Julgados de Paz, derrogando parcialmente em razão do território a competência dos Tribunais Comuns, configura a violação de princípios basilares do Ordenamento Jurídico português, mormente o Princípio da Igualdade;

- Existem diferenças de processo entre os Julgados de Paz e os Tribunais Comuns no sentido de uma maior simplicidade dos primeiros, justificada pelos Princípios Gerais previstos no Artigo 2º da Lei 78/2001, que não se compadecem com todas as situações factuais que cabem no âmbito das matérias previstas no Artigo 9º da mesma Lei, o que reforça a ideia de que se trata de um meio alternativo e condicional de resolução de conflitos;

- A competência dos Julgados de Paz é assim, no entendimento dos Recorrentes, condicional, territorialmente parcial e alternativa à competência dos Tribunais Comuns, não se tendo verificado com a entrada em vigor da Lei 78/2001 e instalação de Julgados de Paz nalguns pontos do território nacional uma derrogação de competência dos Tribunais Judiciais;

- E, consequentemente, também no caso vertente, os Juízos de Pequena Instância Cível de Lisboa são materialmente competentes para o julgamento dos presentes autos;

- Ao decidir diferentemente e ao absolver o Réu da Instância por incompetência material dos Juízos de Pequena Instância Cível de Lisboa, a Sentença Recorrida violou as normas previstas no Artigo 211º da Constituição da República Portuguesa e no Artigo 66º do Código de Processo Civil, por considerar incompetente um Tribunal Judicial porque uma determinada matéria se encontra referida no elenco de competências dos Julgados de Paz.

II. 1. A questão que cumpre resolver consiste em saber se os julgados de paz têm competência exclusiva ou alternativa para julgar o presente conflito.

II. 2. 1. Com relevo para a decisão de Agravo, importa considerar o constante do relatório e ainda que:

Os presentes autos configuram uma acção para efectivação de responsabilidade extracontratual, decorrente de acidente de viação.

O valor atribuído pelo autor à acção é de € 2.008,40, ou seja, inferior à alçada do Tribunal Judicial de Pequena Instância, razão por que o autor configurou a acção segundo a forma de processo sumaríssimo.

II. 2. 2. Apreciando:

Nos termos do artigo 9.º, n.º 1, alínea b) da Lei n.º 78/2001, de 13 de Julho, é da competência dos Julgados de Paz a apreciação e decisão sobre acções que respeitem à responsabilidade civil contratual e extracontratual.

Dispõe a norma do artigo 66º do CPC, articulada com o artigo 211º da CRP: Os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais.

São da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional.

Acrescenta-se no artigo 67º que: As leis de organização judiciária determinam quais as causas que, em razão da matéria, são da competência dos tribunais judiciais dotados de competência especializada..

Do mesmo modo dispõe o artigo 9º, nº1, alínea h) da Lei 78/2001 que Os julgados de paz são competentes para apreciar e decidir: h) As acções que respeitem à responsabilidade civil contratual e extracontratual; (…).

A doutrina e a jurisprudência têm vindo a pronunciar-se quer no sentido da competência exclusiva quer alternativa dos julgados de paz.

Cardona Ferreira (1) sustenta que a competência material fixada no art. 9º é exclusiva aquando da instauração da acção, sendo obrigatória a interposição nos julgados de paz. (2) 

Em idêntico sentido pronunciou-se a Relação do Porto, em 16 de Fevereiro de 2006, ao sustentar a sua decisão com base, entre outros na doutrina de Cardona Ferreira e Heinrich Ewald Hörster. (3) 

Sustentam que, antes de mais que: há que atender à ratio legis: se os julgados de paz tendem a servir a cidadania, um dos modos de o conseguir está em criar alívio na excessiva sobrecarga dos tribunais judiciais. E, neste particular, para além das necessárias: implementação e divulgação dos julgados de paz, bem como dimensões de competência, é elemento importante a diferenciação de áreas de intervenção e não concorrência, onde houver julgados de paz. O art.º 9º, ao prescrever, à luz daquela ratio legis, que os julgados de paz são competentes, em razão da matéria, para apreciar e decidir as acções que identifica, inculca a ideia de que aquela competência material é própria, e só própria, dos julgados de paz.

Este é o argumento de fundo que (pode entender-se) se prende com uma cultura de estimulação de recurso ao serviço dos julgados de paz que proporcionam, incontornavelmente, aos cidadãos uma justiça mais célere e mais barata [sendo norteados pelos princípios de simplicidade, adequação, informalidade, oralidade e absoluta simplicidade processual (art.º 2º, nº 2)].

Mas o legislador não deu indicações claras de uma tão decisiva opção legislativa.

Também, como ficou dito, a jurisprudência tem divergido quanto à solução a dar à questão que cumpre resolver.

No sentido de que os julgados de paz são instâncias alternativas de resolução de conflitos, pronunciou-se esta Relação no acórdão datado de 18 de Maio de 2006, com argumentos que, francamente nos convencem: (a) O regime dos julgados de paz não os perspectiva como instrumentos substitutivos de administração de justiça relativamente aos tribunais judiciais; (b) a atribuição aos julgados de paz de um regime de exclusividade no tocante à competência em razão da matéria imprime-lhes decisivamente a marca de tribunais de substituição e não de tribunais alternativos para a resolução dos litígios; (c) Não resulta da referida Lei que haja um regime de exclusividade, não resulta igualmente esse entendimento à luz do elemento histórico auxiliar do intérprete que assume, no caso, particular relevância; (d) A especialidade […] da mediação que, no entanto, carece do acordo entre as partes e, por isso, se uma das partes intenta acção em tribunal judicial, isso significa que não está à partida interessada na mediação; (e) A forma como está regulamentada a tramitação processual nos julgados de paz admite que, por razões processuais, a acção neles proposta possa vir a prosseguir  no tribunal judicial; por isso, não é lógico que se imponha instaurar acção no julgado de paz, admitindo-se que esta possa vir a prosseguir no tribunal judicial e, assim sendo, também se deve concluir que a competência dos julgados de paz não é exclusiva.

Acresce que, como salienta o MºPº no recurso, o argumento histórico (ao deixar-se cair um projecto que apontava expressamente no sentido da exclusividade) é mais um contributo no sentido de que não são exclusivamente competentes para decidirem as acções previstas no art.º 9 da Lei 78/01.

É, pois, permitida às partes a possibilidade de optar entre jurisdição comum ou a jurisdição de paz

Em suma: não decorre da letra da lei, explícita e imperativamente, que a competência dos Julgados de Paz seja exclusiva. Tal entendimento apenas se poderá defender com base na articulação de vários preceitos jurídicos com argumentos doutrinários, por vezes, de dúbia sustentabilidade. Pelo que, aos tribunais e à doutrina vem cabendo uma tarefa que manifestamente compete às atribuições do poder legislativo, a quem está cometido o poder de clarificação da lei. Assim, entende-se que os Julgados de Paz não detêm competência exclusiva sobre a matéria em causa Daí que ás partes, se deverá, até melhor clarificação legislativa, facultar a possibilidade de optar.

III. Decisão:

Concede-se provimento ao recurso e, consequentemente, revoga-se a decisão proferida, julgando-se competente em razão da matéria o tribunal recorrido para apreciar a presente acção.

Sem custas.

Lisboa, 12 de Julho de 2006

(Maria Amélia Ribeiro)

(Arnaldo Silva)

(Graça Amaral)




__________________________
1.-Julgados de Paz, Organização, Competência e Funcionamento, pág. 29

2.-No mesmo sentido João Miguel Galhardo Coelho, Julgados de Paz e Mediação de Conflitos, Âncora Editora, pág. 27,

3.-A Parte Geral do Código Civil Português, 1992, págs. 335 e 336.