Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1981/14.2TBOER.L1-2
Relator: ANTÓNIO MOREIRA
Descritores: TELEVISÃO
DIREITO À IMAGEM
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 09/26/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: 1. O consentimento a que alude o art.º 79º, nº 1, do Código Civil, para a difusão de imagem e voz num programa de televisão, há-de ser uma “manifestação de vontade livre, específica e informada”, tal como decorre da definição contida na al. h) do art.º 3º da Lei 67/98, de 26/10 (tendo presente que a difusão se inicia no final de Janeiro de 2013).
2. Tal consentimento pode presumir-se a partir da conduta do titular desse direito à imagem (e voz), desde que esta se revele como inequívoca para a afirmação da aceitação da divulgação, nos termos em que a mesma ocorre.
3. Estando os AA. a assistir a um espectáculo de comédia que estava a ser registado em vídeo para posterior difusão na S. Radical, no âmbito de um programa de televisão que se previa irreverente e ousado (como o eram e são os programas emitidos por esse canal temático), tendo tal registo e subsequente difusão sido previamente anunciado e podendo os AA. constatar que a respectiva captação de imagens abrangia também imagens dos espectadores, aí se compreendendo as reacções à actuação do cabeça-de-cartaz (como é comum em qualquer espectáculo), e tendo os AA. reagido com actos e palavras que dirigiram ao actor em causa, não podiam deixar de saber da possibilidade das suas imagens (e voz) assim captadas poderem ser difundidas no referido meio televisivo.
4. Não tendo os AA. efectuado qualquer declaração no sentido de não aceitarem tal divulgação das suas imagens (e voz), até que a difusão tenha ocorrido, cerca de um ano depois da captação das mesmas, há que presumir o consentimento dos mesmos a essa divulgação pela R., no programa e canal identificados, pelo que não se assume a mesma como violadora do direito à imagem de cada um dos AA.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo assinados:
Manuel G. e Maria C. intentaram contra S., S.A. a presente acção declarativa com forma comum, pedindo a condenação desta:
a) A abster-se de imediato da prática de actos lesivos dos direitos à imagem e à palavra de cada um dos AA.;
b) A actuar junto de terceiros para que sejam de imediato removidos os conteúdos onde constem as imagens e palavras de cada um dos AA., nomeadamente do website youtube;
c) A destruir de imediato as filmagens onde constem cada um dos AA.;
d) A retirar de imediato do website da S.RADICAL os conteúdos onde constem a imagem de cada um dos AA.;
e) A indemnizar o A. no montante de € 30.000,00, a título de danos morais;
f) A indemnizar a A. no montante de € 20.000,00, a título de danos morais;
g) A indemnizar cada um dos AA. no montante mínimo de € 30.000,00, a título de sanção punitiva, sem prejuízo de virem a reclamar quantia mais elevada nos termos do artigo 569º do Código Civil;
h) No pagamento de uma sanção pecuniária compulsória à razão de € 200,00, para cada um dos AA., por cada dia de atraso no cumprimento das condenações que lhe vierem a ser determinadas.
Alegam para tanto, e em síntese, que:
· Em 18/1/2012 os AA assistiram no Teatro Mário Viegas em Lisboa, na companhia de amigos, a um espectáculo designado “João ..... Convida”, anunciado como sendo em formato stand up comedy, e protagonizado pelos humoristas Alexandre ..... e João .....;
· No decurso do espectáculo o humorista João ..... proferiu a seguinte afirmação: “Quem dava jeito aqui era o Fritzl, Joseph Fritzl, aquele austríaco. Sabem quem era o Fritzl? Aquele Austríaco que fechou os netos lá em baixo na cave e depois pumba, pumba, pumba (fazendo gestos de cariz sexual), anda cá canina, tumba ali, tumba, tumba, chiu, pouco barulho que a tua avó está lá em cima a passar a ferro. Pumba sempre ali nas caninas até, pumba, nem creminho metia, pumba ali nos caninas, até aguentar (…)”, mais se dirigindo a alguém do público e proferindo a seguinte expressão: “Afinal tu gostas disto....Ontem tiveste cá com um gajo e hoje vens com a preta”;
· Após estas expressões alguns espectadores abandonaram a sala;
· Os AA., que também estavam perturbados com tais afirmações, levantaram-se para abandonar a sala, altura em que foram interpelados por João ....., gerando-se uma troca de palavras, após o que os AA abandonaram o local;
· No início de Fevereiro de 2013, e sem que os AA. tivessem dado o seu consentimento, constataram que no espectáculo “João ..... Convida” as suas imagens tinham sido captadas, mediante gravação vídeo, durante todo o momento em que se mantiveram a assistir até à saída, filmagem que foi obtida tanto através de grandes planos, planos aproximados como também planos gerais, e incluiu igualmente a captação do som das suas vozes e as suas palavras, sendo o diálogo individualizado e descontextualizado;
· Tais imagens e sons foram colocados num encadeamento negativo para a pessoa de cada um dos AA., que passou a ser amplamente amplamente difundindo e globalizado como suporte à promoção do programa “O Humorista”, passando a incorporar não só um dos episódios da série televisiva “O Humorista”, como também as entrevistas, programas promocionais e trailers respectivos;
· Tais conteúdos foram obtidos sem conhecimento e autorização dos AA. e foram criteriosamente seleccionados os momentos em que estes se exaltaram com as provocações de João ....., os quais foram submetidos a um trabalho de edição e montagem e inseridas num contexto gráfico e musical, e com legendas, dando um efeito de paródia à custa de cada um dos AA., que passaram a ser o destaque da série e seus promocionais, passando a ser visionados em diversos locais da internet e na televisão, por milhares de pessoas;
· A imagem de cada um dos AA. permanece disponível, em vários canais on-line há mais de um ano, consecutivamente, sem interrupções, vendo os AA. as manifestações externas das suas personalidades, depois da provocação a que foram sujeitos, expostas sem limites e alvo de uma exploração pessoal e comercial, pelo que, sentindo-se lesados, reclamaram junto da R. um ressarcimento, que esta declinou afirmando que os AA. foram informados “por mais de uma via” que o espectáculo seria gravado e que tal informação “foi veiculada, aliás, pelo próprio João ..... logo no início do espectáculo”;
· Os AA. foram alvo de comentários trocistas, tiveram que dar explicações a terceiros, sofreram angústia, desgosto, irritação, humilhação e preocupação com a repercussão das imagens nas suas vidas profissionais, passando a isolar-se.
Citada a R., apresentou contestação onde alega, em suma, que foi a sociedade C., Unipessoal, Ld.ª que produziu e realizou a obra “O Humorista”, bem como o material publicitário desta, e que em 23/1/2012 a R. celebrou com aquela contrato de licenciamento de direitos para transmissão televisiva da obra no canal S. Radical, mediante remuneração, assumindo a C. a responsabilidade civil por quaisquer reclamações de terceiros perante a R. decorrentes da violação de direitos de personalidade. Conclui, assim, não deter qualquer responsabilidade por eventuais danos à imagem dos AA., sendo antes responsável a C., requerendo a intervenção principal provocada da mesma ou, subsidiariamente, a sua intervenção acessória, para efeitos de direito de regresso. Mais alega que os AA. foram informados que o espectáculo estava a ser gravado e registado em vídeo e não deduziram em momento algum qualquer oposição, mesmo quando as suas imagens foram para o ar e eles tomaram conhecimento das mesmas. Conclui ainda que a lei civil portuguesa não prevê a figura dos “danos punitivos” ou indemnização punitiva, devendo desde logo improceder os montantes de € 30.000,00 pedidos pelos AA. a este título, bem como os restantes pedidos.
Após exercício do contraditório foi admitida a intervenção acessória da sociedade C., Unipessoal, Ld.ª, tendo a mesma sido citada e apresentado contestação onde, no essencial, faz sua a contestação da R., mais suscitando a excepção dilatória da incompetência material.
Os AA. responderam às excepções contestantes da contestação da R., pugnando pelo seu indeferimento.
Em audiência prévia foi proferido o despacho saneador, aí sendo julgada improcedente a excepção dilatória da incompetência material, fixado o valor da causa, identificado o objecto do litígio, enunciados os temas da prova, com reclamação dos AA., desatendida, admitidos os meios de prova e organizadas as sessões da audiência final.
Após realização da audiência final foi proferida sentença que julgou a acção improcedente, absolvendo a R. dos pedidos.
Os AA. recorrem desta sentença, terminando a sua alegação com as seguintes conclusões, que aqui se reproduzem:
1) O presente recurso sindica a Sentença de 09.07.2018, quer no que tange à decisão sobre a matéria de facto, quer no que tange à decisão sobre a matéria de direito.
2) Consideram-se violadas as seguintes normas jurídicas:
i. de direito substantivo, entre outras:
· art.ºs 18.º, n.º 1 e 26.º, n.º 1, ambos da Constituição da República Portuguesa (tutela constitucional dos direitos de personalidade, no caso direito de imagem e de voz);
· art.ºs 70.º, n.º 1, 79.º e 81.º (tutela dos direitos de imagem e voz e questão do seu consentimento), 374.º, n.º 2 (regras sobre prova documental e ónus da prova da sua autenticidade), 483.º, n.º 1 (apreciação dos requisitos da responsabilidade extracontratual), 494.º e 496.º, n.ºs 1 e 4 (estabelecimento de quantitativo relativo aos danos não patrimoniais e danos punitivos), estes do Código Civil;
· art.ºs 3.º, alíneas a) e b), 5.º, n.º 1, alíneas a) e b) e 6.º, estes da Lei n.º 67/98 (Lei de Proteção de Dados Pessoais, relativas à necessidade de autorização expressa e específica quanto ao tratamento de dados pessoais, como a imagem e voz).
ii. de direito processual, entre outras:
· art.º 607.º, n.ºs 4 e 5 do CPC, relativos à apreciação crítica e fundamentada da prova junta aos autos e produzida em julgamento.
3) Face à prova carreada para os autos, entre prova documental, prova testemunhal, depoimento de parte do legal representante da interveniente acessória, declarações de parte dos autores, factos notórios e que não carecem de alegação e presunções judiciais aplicáveis, a decisão da matéria de facto terá de ser alterada, ao abrigo do art.º 662.º, n.º 1 do CPC.
4) Indica-se em seguida as alterações à decisão da matéria de facto, pelas quais se pugna neste recurso, apontando-se em cada um dos casos o respetivo suporte probatório (sendo certo que no caso, de declarações e testemunhos, as respetivas transcrições estão corporizadas na motivação do recurso e respetiva explicitação, para onde se remete).
5) Consideram-se que deviam ter sido dados como provados os seguintes factos:
– O website da S. Radical é controlado por esta, sendo a mesma quem decide quais os conteúdos a incluir e manter disponíveis, no seu site de acesso público, com o nome de domínio https://sicradical.sapo.pt/ (suportado nas declarações da testemunha Pedro M., início no minuto 38:22 e relevante para o tema da prova n.º 2);
– Que utilizadores privados – cuja identidade se desconhece – usaram as imagens difundidas pela Ré e também eles as propagaram on-line, onde se mantêm ainda hoje. (suportado pela prova documental, junta com a petição inicial, nos documentos n.ºs 3, 4, 5, 6 e 11, relevante para o tema da prova n.º 4);
– A Ré S. tem capitais próprios no valor de € 24.187.554,00 € e com rendimentos totais de € 171.093.157,00 referentes ao ano de 2016 – conforme publicitado em http://binaries.cdn.impresa.pt/dd6/20c/9356727/Sic-Lei-da‑Transparencia.pdf (requerimento dos autores de 24.02.2017 3 relevante para o tema da prova n.º 5);
– A Ré S. recebe das operadoras de cabo montante que não foi possível apurar (depoimento da testemunha Pedro M., com início no minuto 42:26, relevante para o tema da prova n.º 5);
– Dos documentos juntos pela Ré S., resulta que esta obteve um valor médio de faturação com publicidade de € 526,33, por cada um dos 6 (seis) episódios, num total de € 3.157,95 por todos os episódios, deduzidos os custos de aquisição do programa (documentos juntos com os seis requerimentos da Ré de 10.02.2017, ponto relevante para o tema da prova n.º 5);
– A Ré S. sabia como a C. filmava os seus espetáculos, nomeadamente em matéria de consentimento (declarações do legal representante da C., início no minuto 17:46 e relevante para o tema da prova n.º 7)
– Sabendo disso, a Ré S. não exigiu que maiores cautelas fossem adotadas, nomeadamente a prestação de consentimentos expressos dos autores (depoimento da testemunha Pedro M., início no minuto 6:31 e relevante para o tema da prova n.º 7)
– Conformou-se, mesmo tendo sido o trecho da discussão, entre os autores e o apresentador, objeto de análise antes da pós-produção, no âmbito da relação de colaboração entre a Ré S. e a C. (declarações do legal representante da C., início no minuto 17:46 e relevante para o tema da prova n.º 7).
– A Ré já foi anteriormente condenada pelo Conselho Regulador da Entidade Reguladora para a Comunicação Social, por Deliberação n.º 2/DF-TV/2007, datada de 14 de Março de 2007 “ao rigoroso cumprimento futuro das normas relativas ao direito à imagem e à palavra” como valores que beneficiam de proteção constitucional, criminal e civilística (condenação do Conselho Regulador da Entidade Reguladora para a Comunicação Social, por Deliberação n.º 2/DF-TV/2007 de 14.03.2007, bem como a Deliberação Deliberação ERC/2018/93 (CONTPROG-TV) de 08.05.2018, no caso do programa Supernanny, ambas constituindo jurisprudência relevante, no âmbito do presente recurso – relevante pra o tema da prova n.º 7).
6) Considera-se que deve ser corrigido o facto dado como provado na Sentença sob o n.º 74, nos seguintes termos:
– No episódio 2 do programa “O Humorista” existe uma interveniente, na zona dos bastidores, que acompanha o artista Ricardo ....., cuja imagem foi sujeita a “pixelização”, por forma a que não fosse possível reconhecer a sua identidade, o que foi feito porque esta pessoa solicitou à produtora do programa “O Humorista” que a sua imagem fosse protegida (o suporte probatório resulta do depoimento da testemunha João ....., com início no minuto 23:19 e é relevante para o tema da prova n.º 7)
7) Propugna-se ainda a consideração como não provados dos seguintes factos (tidos como provados):
– “65. No decurso das negociações entre a S. e a Interveniente C., tendentes à celebração do Contrato, o acordado em 64. constituiu condição expressa da S. para a aquisição dos direitos para transmissão televisiva (o suporte probatório resulta da consideração da cláusula nona, n.º 2 do próprio contrato, bem como das declarações do legal representante da interveniente acessória ao minuto 17:46 e do depoimento da testemunha Pedro M. ao minuto 6:31);
– 65-Os responsáveis da C., asseguraram que não haveria risco na transmissão da obra “O Humorista”, justificando que haviam sido tomadas todas as cautelas necessárias para o efeito (a prova em sentido contrário decorre das declarações do legal representante da interveniente acessória, com início no minuto 17:46 e do depoimento da testemunha Pedro M. ao minuto, com início no minuto 6:31);
– 66. No dia do espectáculo, a bilheteira do Teatro Estúdio Mário Viegas exibia uma mensagem tipográfica, constante de papel de tamanho A4, com o seguinte conteúdo: “Informamos que o espectáculo João ..... Convida será gravado e registado em vídeo. A Companhia Teatral do Chiado” (a prova decorre da impugnação de tais documentos e não cumprimento do ónus neste sentido, face aos depoimentos das testemunhas Isabel R. (início ao minuto 7:34), Maria M. (início ao minuto 21:26) e das declarações dos autores Manuel G. (início ao minuto 10:40) e Maria C. (início ao minuto 17:31);
– 67. A porta de entrada e saída da sala de espetáculos do Teatro Estúdio Mário Viegas, onde teve lugar o espetáculo “João ..... Convida… Alexandre .....”, exibia, nesse dia, uma mensagem manuscrita (em maiúsculas), constante de papel de tamanho A4, com o seguinte conteúdo: “INFORMAMOS QUE ESTE ESPECTÁCULO ESTÁ A SER FILMADO E REGISTADO. CTC [Companhia Teatral do Chiado]” (a prova decorre da impugnação de tais documentos e não cumprimento do ónus neste sentido, face aos depoimentos das testemunhas Isabel R. (início ao minuto 7:34), Maria M. (início ao minuto 21:26) e das declarações dos autores Manuel G. (início ao minuto 10:40) e Maria C. (início ao minuto 17:31);
– 68. No referido dia e espetáculo, todos os espectadores presentes foram ainda advertidos oralmente, pelo próprio humorista João ....., no início da sua actuação, nos seguintes termos:
« «João .....: Portanto…, como já viram, o espectáculo está a ser filmado; faz parte de um documentário sobre a minha vida…
Público: [Risos]
João .....: …hum…não percebi porque é que se riram…
Público: [Risos]
João .....: …hum…estava a dizer: faz parte de um documentário sobre a minha vida que vai passar na S. Radical a partir de…a partir de Março, e chama‑se “O Humorista”
[a prova que suporta a inexistência deste aviso oral assenta nos seguintes elementos:
i. referência no aviso verbal a março, que terá de ser entendido como março de 2012, como data para o programa ser televisionado, quando o próprio legal representante disse que essa data nunca foi pensada;
ii. João ..... disse que o aviso verbal era igual ao escrito, aliás disse que era ler o aviso escrito, quando os textos são diferentes;
iii. diversas declarações titubeantes das várias testemunhas que referiram existir um aviso verbal (Ricardo R., Tiago S.);
iv. testemunhas que não se lembraram do aviso oral (Gisela B.);
v. testemunhas que disseram que não houve aviso oral (Isabel R. e Maria M.);
vi. autores que atestaram que não houve aviso;
vii. antes do apresentador João ..... começar a dizer o aviso oral, já o público se está a rir, indiciando tratar-se de montagem da imagem com o som do aviso, que não corresponde ao som original;
viii. esta matéria respeita à exceção invocada pela ré (…), tendo esta o ónus de a demonstrar. Mesmo que se ache que permanece alguma dúvida, esta questão tem de ser decidida no sentido de se considerar não provada, por não ter sido preenchido o respetivo ónus probatório.
– 69-Os AA. estavam presentes na sala de espectáculos aquando do descrito em 68 (não tendo existido aviso oral, os autores não podem estar presentes, aquando do mesmo).
8) Operada a presente alteração à decisão da matéria de facto havida na sentença do tribunal a quo, importa agora indagar da aplicação do direito.
9) Não se deixa de notar que, mesmo sendo mantida a decisão da matéria de facto nos exatos termos em que foi estabelecida pelo tribunal a quo, a decisão da matéria de direito do mesmo tribunal deverá ser revogada, nos termos que infra se postulam.
10) A presente ação instaurada pelos autores tem como fonte da obrigação de indemnizar a responsabilidade extracontratual da Ré S., ao exibir as imagens e vozes dos autores na televisão nacional e consequências daí advenientes.
11) O tribunal a quo entendeu que não estava verificado o requisito da culpa, ignorando os factos que supra se referem dever ser dados como provados.
12) Ignorou que a Ré S. tinha bem presente o seguinte:
i. sabia como é que a C. e o seu responsável Nuno D., conhecido como G., trabalhavam, sem obter autorizações expressas dos intervenientes;
ii. sabia ainda que este trecho em que os autores discutem, de forma intensa, com o apresentador é muito relevante no programa, tanto que o legal representante da Chamada disse que o diretor de programas dos canais temáticos da S. pediu para ser feita uma chamada logo no início do episódio quatro, sobre a referida discussão.
iii. o programa não foi comprado, sem se conhecer o seu conteúdo, tendo a Ré S. intervindo na sua preparação e tendo-o visionado integralmente, antes de ir para o ar (e de igual modo o trailer de apresentação).
13) Os putativos avisos escritos e oral, cuja existência se contesta, são irrelevantes, já que nunca alertaram para a possibilidade de ser filmado e usado em televisão uma situação que pudesse ocorrer com o público.
14) O normal declaratário não os interpretaria, à luz do art.º 236.º, n.º 1 do Código Civil, no sentido de autorizar o uso da imagem e voz dos autores, como coprotagonistas do programa de televisão.
15) Quem lê e é informado que o espetáculo é gravado, não assume que o seu comportamento na plateia será filmado, de acordo com as mais elementares regras de experiência comum e presunções judiciais fixadas no art.º 351.º do Código Civil.
16) O silêncio dos autores, no espetáculo, nunca poderá ser entendido como consentimento tácito para usarem a sua imagem e voz.
17) Usarem a sua imagem e voz, no contexto em que a mesma é reproduzida, onde há uma evidente altercação e onde os autores são apelidados indiretamente de velhos e gordos, é manifestamente abusivo.
18) É até desleal presumir que alguém consentiria ver a sua imagem e voz usadas na televisão nacional, para fazer parte dum programa, onde surgem alterados, a discutir, e onde terminam enxovalhados com os epítetos de velhos e gordos.
19) Os autores, tendo presente a forma como a sua imagem e voz é usada, não são meros espectadores no caso corrente. Assumiram o papel de coprotagonistas, contra a sua vontade, fruto da utilização em televisão da discussão onde intervieram.
20) É por isso errado defender que o consentimento tácito, que possa ter sido dado pelo público, tem amplitude e objeto suficientes para abarcar tal utilização, tamanha extrapolação.
21) São realidades e conceitos manifestamente diversos: imagens do público, que assiste e aplaude ou vaia, e a cena de discussão, com os autores, utilizada no programa.
22) A Ré S. sabe muito bem distinguir estes conceitos, fruto da estrutura profissional que a suporta, ao longo de décadas de emissão na televisão nacional e titularidade das respetivas licenças.
23) Apesar disso, mesmo tendo presente a necessidade de um consentimento expresso e específico a obter dos autores, a Ré S. decidiu exibir o programa na televisão nacional.
24) Tanto assim, que a intervenção dos autores foi usada e capitalizada no programa e reputada como muito interessante pelo próprio diretor de programas da S. Radical, como já se salientou supra ao pedir um destaque de tal cena ao próprio produtor.
25) Razão pela qual, quanto aos autores, a S. devia ter adotado, por imperioso dever legal, os cuidados estabelecidos na lei, mormente no art.º 79.º, n.º 1, 1.ª parte do Código Civil ou exigido a comprovação, pela produtora, da obtenção de tais autorizações.
26) Exigia-se, ao invés, que a Ré S. fosse cautelosa e rigorosa no controlo das autorizações que a produtora C. referiu ter obtido. Devia ter pedido cópias ou provas da autorização expressa, específica e escrita e não o fez.
27) Não se devia ter bastado com a conversa informal que referiu ter existido entre o diretor de programas da S. Radical e a produtora.
28) Mesmo admitindo-se a existência dos avisos escritos e verbal – hipótese apenas equacionado por dever de patrocínio – deve ser desmascarada a tese de engodo, perpassada pela Ré S., que faz equivaler o uso de planos da plateia, com o uso durante largos minutos da imagem e voz dos autores em programa de televisão, numa situação claramente embaraçosa para eles (de resto, para qualquer pessoa).
29) Não é a mesma coisa ser espectador e ser-se protagonista. A Ré S. sabe-o.
30) E não o sabendo, é legalmente responsável por esta gravíssima incúria, face ao longo percurso e experiência acumulada na televisão nacional e no uso da imagem e voz de todos aqueles que protagonizam os seus programas.
31) Ou entenderá a S. que não necessita do consentimento escrito de todos aqueles que protagonizam os seus programas?
32) Acresce que a violação dos direitos de imagem e voz dos autores não se limitou à exibição na televisão nacional.
33) A S. manteve no seu website o episódio em questão (assim como os outros) e o trailer, conforme é dado como provado no item n.º 38 dos factos provados da Sentença: “Desde a data da sua estreia e até hoje o referido Episódio 4 ainda se mantém disponível no website da Ré, através do respetivo upload, bem como o Episódio 1 e o vídeo promocional do programa “O Humorista”.
34) Deu-se ainda como provado no item n.º 83 dos factos provados na Sentença que “O website da S. Radical é uma plataforma SAPO.PT.” e resultou das declarações do diretor de programas da S. Radical que a S. controla o seu site, como de resto seria de esperar.
35) Logo após a receção da carta enviada pelos autores, em junho de 2013, junta como documento n.º 17, a Ré S. devia ter retirado do website os episódios/vídeos, com a imagem e voz dos autores.
36) Não o fez.
37) Não o fez, após ter sido citada, para esta ação em 2014.
38) O seu diretor de programas reconheceu, em audiência de julgamento, em 2017, que devia ter feito.
39) Então, porque manteve disponível, anos e anos, no seu site a imagem e voz dos autores, mesmo depois de ter sido citada, para esta ação e ter sabido da oposição destes? A única resposta séria é senão uma intenção proposita de violação dos direitos dos autores (dolo direto), uma total indiferença face a tais direitos, mesmo tendo presente e consciencializado a oposição destes (dolo necessário).
40) A S. é obviamente responsável por estes atos e deve responder judicialmente pelos mesmos, sendo condenada na procedência da presente ação.
41) Acresce notar que a lei n.º 67/98 refere no art.º 3.º, alínea h) – atualmente revogada, mas em vigor à prática dos factos – definia o consentimento como “qualquer manifestação de vontade, livre, específica e informada, nos termos da qual o titular aceita que os seus dados pessoais sejam objecto de tratamento.”.
42) Em 2016, o ordenamento jurídico viu a questão do consentimento substancialmente reforçada, com a entrada em vigor do Regulamento Geral de Proteção de Dados (EU) 2016/679 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 27 de abril de 2016, relativo à proteção das pessoas singulares no que diz respeito ao tratamento de dados pessoais e á livre circulação desses dados.
43) Consta do considerando (31) do Regulamento que: “O consentimento do titular dos dados deverá ser dado mediante um ato positivo claro que indique uma manifestação de vontade livre, específica, informada e inequívoca de que o titular de dados consente no tratamento dos dados que lhe digam respeito, como por exemplo mediante uma declaração escrita, inclusive em formato eletrónico, ou uma declaração oral.” (sublinhado nosso).
44) Ora, no caso concreto as normas relativas à proteção de dados foram totalmente omitidas, num clamoroso erro quanto à aplicação do direito.
45) É afinal, também, disso que se trata o caso concreto, da utilização e exploração não consentidas de dados pessoais dos recorrentes.
46) Tanto mais quando essa utilização foi transversal a toda a ação judicial, porquanto mesmo após a citação a exploração das imagens foram mantidas.
47) Deverá, por isso, a Ré S. suportar os danos não patrimoniais peticionados, bem como os danos punitivos.
48) O Acórdão do STJ de 14.05.1998, prolatado há mais de vinte anos, foi pioneiro na abordagem do conceito de indemnização punitiva. Tratou-se de um caso de responsabilidade civil por danos não patrimoniais, decorrente da violação, por um jornalista da rádio, de direitos de personalidade de outrem.
49) Aí defendeu-se ainda a inclusão do lucro do lesante no cálculo da indemnização e criticou-se a pequenez da indemnização fixada, afirmando-se que o STJ só não aumentava tal montante, porque não tinha sido pedido pelo lesado/apelante, dando assim o sinal a futuros lesados.
50) Há factualidade e matéria probatória bastantes para a procedência deste pedido.
51) É necessário reforçar a tutela da pessoa humana relativamente à atuação dos agentes económicos, como é o caso dos pressentes autos.
52) A Ré moveu-se por um intuito puramente lucrativo, desconsiderando frontal e conscientemente os direitos de personalidade dos autores, mesmo quando, após receção da carta de junho de 2013, a questão do consentimento não se colocava.
53) Como vimos, a atuação da Ré S. foi muito leviana, sobre uma matéria em que é reincidente, à luz das deliberações supra referidas da Entidade Reguladora para a Comunicação Social.
54) O quantum indemnizatório dos danos punitivos deve ser determinado com recurso aos critérios de equidade, ao grau de culpabilidade do agente, à situação económica do agente, à situação económica do lesado e demais circunstâncias do caso, tal como se dispõe nos artigos 496º, n.º 3 e 494º ambos do Código Civil.
55) O Acórdão do STJ de 29.06.2000 conclui que “(a) circunstância da lei mandar atender à situação económica quer do lesante quer do lesado vem a significar que essa indemnização reveste uma natureza acentuadamente mista: visa compensar, de algum modo, os danos sofridos pela pessoa lesada e visa, ainda, reprovar a conduta do agente.”.
56) A extensão do tempo da lesão e a sua reprodução noutros órgãos, acentua especialmente a gravidade da culpa a imputar à ré.
57) Tanto mais quanto desta atividade danosa a ré, enriquece, obtendo uma vantagem patrimonial que se estima elevada, sempre à custa do vexame da humilhação e do sofrimento moral do autor e da autora.
58) Não há qualquer dúvida que, à relevância dos bens jurídicos abrangidos pela tutela geral da pessoa humana, a culpa da ré assume especial gravidade, sendo imperativa a sua condenação num montante punitivo a atribuir aos aqui lesados autor e autora, assim igualmente se prevenindo condutas idênticas no futuro.
59) E como decorre dos factos, atento o histórico da ré no desprezo pela interiorização do respeito de direitos fundamentais de terceiros, tal necessidade de prevenção é manifestamente necessária e adequada.
60) Destarte, deve ser estabelecida indemnização sancionatória peticionada nunca inferior a, pelo menos, €30.000,00 (trinta mil euros) para cada um dos peticionantes, considerando o lucro da lesante que se estima elevado, inclusive tendo presente os factos cujo aditamento aos factos provados se requer neste recurso, relativos aos ativos e lucros da Ré.
61)  Deverá, destarte, ser revogada a Sentença de 09.07.2018, alterada a decisão da matéria de facto e decisão da matéria de direito, e ser decidido integralmente procedente o petitório dos autores.
62) E, a final, decidirão Vossas Excelências ainda o que mais reputem necessário, sempre em Doutíssimo Suprimento.
A R. apresentou alegação de resposta, com ampliação do objecto do recurso, aí formulando as seguintes conclusões, que aqui se reproduzem:
1ª O facto pretendido aditar pelos Recorrentes relativo à manutenção do conteúdo no website da Ré não pode ser atendido, pois, ou bem que se trata de um facto essencial não alegado antes pelos Autores que, nessa medida, não pode ser considerado, ou então não serve para aferir da culpa da Ré na utilização das imagens dos Autores, caso em que se trata de um facto irrelevante para a boa decisão da causa, que, por essa razão, não importa aditar à matéria de facto provada [artigos 19.º a 27.º das presentes contra-alegações].
2ª Deve ser negada a pretensão dos Recorrentes de aditamento do facto d) da matéria dada como não provada, relativo à utilização das imagens do programa de televisão por terceiros não identificados, por irrelevante, na medida em que não são esses terceiros que figuram como réus nesta ação [artigos 28.º a 32.º das presentes contra‑alegações].
3ª O único facto com eventual relevância relativo aos supostos ganhos da Ré com o programa de televisão já se encontra provado sob o n.º 85, pelo que tudo o mais requerido pelos Recorrentes a esse respeito deve ser negado [artigos 33.º a 44.º das presentes contra-alegações].
4ª Nenhuma parte da argumentação dos Recorrentes é suscetível de colocar em causa conclusões alcançadas pelo Tribunal recorrido a respeito do facto provado 65, pelo que não pode ser atendida a sua impugnação [artigos 45.º a 58.º das presentes contra-alegações].
5ª Quanto à impugnação dos factos dados como provados sob os n.os 66 a 69, o que os Recorrentes pretendem agora inovatoriamente é impugnar a veracidade ou genuinidade dos documentos apresentados pela Ré, alegação que se reputa de manifestamente extemporânea e que não pode ser conhecida pelo Tribunal ad quem [artigos 59.º a 63.º das presentes contra-alegações].
6ª Ao contrário do que se pretende fazer crer no Recurso, a prova que suporta as conclusões alcançadas pelo Tribunal nestes factos é de teor documental; a prova testemunhal a este respeito constitui apenas complemento daquilo que já resultava dos documentos [artigos 64.º a 70.º das presentes contra-alegações].
7ª As testemunhas que depuseram sobre esta matéria foram isentas e credíveis, não obstante ter havido divergências menores entre os depoimentos (e entre os depoimentos e o teor dos documentos), o que, aliás, demonstra a absoluta espontaneidade dos depoentes que se pronunciaram de modo não estudado, nem instruído, com as contingências de memória do relevante decurso do tempo desde os factos. De outra parte, e quanto às testemunhas dos Autores, importa sublinhar que uma testemunha não se recordar de um facto não implica que esse facto não se tenha verificado, pelo que não permite, de maneira nenhuma, colocar em causa prova documental que atesta a sua verificação [artigos 71.º a 95.º das presentes contra-alegações].
8ª É aos Autores que incumbe alegar e provar a falta de autenticidade dos documentos oferecidos pela Ré. E o artigo 374.º, n.º 2, do CC, não tem aplicação, pois não há aqui qualquer questão de falsidade de letra ou assinatura [artigos 96.º a 105.º das presentes contra-alegações].
9ª O ónus da prova só funciona quando o tribunal se depare com uma dúvida insanável sobre a verificação ou não de facto, o que não ocorreu in casu [artigos 106.º a 109.º das presentes contra-alegações].
10ª Tudo o quanto os Recorrentes pretendem aditar através do ponto 112 das Alegações são supostos factos (conclusivos e de direito) que nunca foram sequer alegados pelos Autores, pelo que não podem obviamente ser considerados e ser dados como provados, muito menos em sede de recurso [artigos 110.º a 114.º das presentes contra-alegações].
11ª O “facto” alegado pelos Autores no ponto 94 da PI que é pretendido aditar à decisão da matéria de facto não o pode ser, à uma, porque não é realmente um facto suscetível de ser levado ao juízo de prova, e, à outra, porque o próprio facto está mal formulado, na medida em que a Ré S. não foi “condenada” pelo Conselho Regulador da Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC), mas sim “instada” [artigo 115.º das presentes contra-alegações].
12ª Não é ilícito o comportamento da Ré porque existiu consentimento (tácito), alicerçado num silêncio que durou um ano e meio, durante o qual nada fazia prever que os Autores teriam alguma objeção à divulgação da sua imagem, não havendo nenhuma normal legal que exija que o consentimento seja específico ou explícito [artigos 116.º a 136.º das presentes contra-alegações].
13ª Os Autores não são de todo protagonistas do programa de televisão “O Humorista”, nem tal circunstância justificaria a necessidade de consentimento explícito. Para além disso, o procedimento seguido para avisar os espetadores da captação da sua imagem e posterior transmissão neste caso é a regra e a prática neste tipo de espectáculos, existindo, portanto, um uso estabelecido no sentido de que perante aquela informação que é prestada aos espetadores, o seu silêncio será encarado como consentimento à utilização das imagens, pelo que não restam dúvidas que o silêncio vale como meio declarativo [artigos 137.º a 146.º das presentes contra-alegações].
14ª A reprodução da imagem dos Autores vem enquadrada no âmbito de um evento público, pelo que é também aplicável a exceção prevista no artigo 79.º, n.º 2, do CC, não sendo necessário o consentimento da pessoa retratada para a sua reprodução. [artigo 147.º das presentes contra-alegações]
15ª Também à luz da Lei da Proteção de Dados não haveria que exigir da Ré a obtenção de qualquer consentimento explícito e traduzido numa ação positiva por parte dos Autores. [artigos 148.º a 166.º das presentes contra-alegações]
16ª Ante este circunstancialismo, e como concluiu o Tribunal a quo, nada mais poderia ser exigível da Ré, pelo que esta agiu sem culpa. [artigos 167.º a 180.º das presentes contra-alegações]
17ª Os danos dos Autores configuram mero “incómodo” ou “contrariedade” que, pela sua falta de gravidade, não merecem a tutela do direito, e muito menos justificam os valores exorbitantes peticionados pelos Autores. [artigos 181.º a 187.º das presentes contra-alegações]
18ª Quanto aos danos punitivos peticionados pelos Autores, o nosso ordenamento jurídico não admite a condenação nesse tipo de indemnização, sendo que nenhuma doutrina ou jurisprudência portuguesas defende a consagração, de iure constituto, dessa figura, ao contrário do sustentado pelos Autores. De todo o modo, ainda que se configurasse a aplicação dessa figura nos autos, a mesma seria inadmissível no presente caso, atendendo à inexistência de uma culpa agravada da Ré e também considerando a não obtenção de ganhos por parte da Ré. [artigos 188.º a 227.º das presentes contra-alegações]
19ª A título subsidiário, caso tenha procedência alguma das questões suscitadas no Recurso, requer-se a ampliação do seu objeto, ao abrigo do disposto no artigo 636.º, n.º 2, do CPC, para impugnar os seguintes pontos da matéria de facto, não impugnados pelos Recorrentes, nos termos melhor descritos supra: factos 12, 14, 15, 38, 43, 44 e 46.
Os AA. responderam à ampliação do objecto do recurso, defendendo a improcedência da pretendida alteração da decisão da matéria de facto.
***
Sendo o objecto do recurso balizado pelas conclusões do apelante, nos termos preceituados pelos art.º 635º, nº 4, e 639º, nº 1, ambos do Novo Código de Processo Civil, as questões submetidas a recurso, delimitadas pelas aludidas conclusões, prendem‑se:
a) Com a alteração da matéria de facto;
b) Com a violação do direito dos AA. e sua reparação pela via indemnizatória
***
A sentença recorrida considerou como provada a seguinte matéria de facto:
1. Em 18/1/2012 os AA. assistiram no Teatro Mário Viegas, na companhia de amigos, a um espectáculo denominado “João ..... Convida”.
2. Esse espectáculo foi promovido como sendo uma apresentação em formato stand up comedy protagonizada por Alexandre ..... e João ....., este, na qualidade de “cabeça-de-cartaz”.
3. Os AA. assistiram à totalidade da primeira parte que integrou a actuação de Alexandre ..... e a parte da actuação de João ......
4. Aproximadamente a meio da sua actuação João ..... proferiu a seguinte afirmação:
Quem dava jeito aqui era o Fritzl, Joseph Fritzl, aquele austríaco. Sabem quem era o Fritzl? Aquele Austríaco que fechou os netos lá em baixo na cave e depois pumba, pumba, pumba (fazendo gestos de cariz sexual), anda cá canina, tumba ali, tumba, tumba, chiu, pouco barulho que a tua avó está lá em cima a passar a ferro. Pumba sempre ali nas caninas até, pumba, nem creminho metia, pumba ali nos caninas, até aguentar (…)”.
5. Prosseguindo, João ..... dirigindo-se a alguém do público proferiu o seguinte:
Afinal tu gostas disto... ontem tiveste cá com um gajo e hoje vens com a preta”.
6. Uma espectadora visivelmente incomodada com tais afirmações levantou-se em silêncio e abandonou a sala.
7. Tal atitude da espectadora mereceu a provocação do actor que pediu “uma salva de palmas para a senhora que se levantou”.
8. Desagradados, outros espectadores seguiram-lhe o gesto e começaram a sair.
9. Também os AA., igualmente perturbados com a forma como decorria o espectáculo, e após aquela afirmação que consideraram de conteúdo xenófobo, se levantaram para abandonar o local.
10. Já levantados, e em estado de nervosismo e consternação, os AA. e João ..... trocaram entre si, além do mais, as seguintes palavras:
1º A.: - “(…) Você devia seguir é o provérbio: Quem te avisa teu amigo é. Você já viu que a plateia não ri? Por isso estão a avisá-lo que você não está a ter piada.
João .....: - “Isto também não é para certas idades.
1º A.: - “Não, não…
João .....: - “Há certas idades que não entendem.
1º A.: - “Pois, a sua idade…
João .....: - “O Senhor se calhar vem de antes do 25 de Abril.
1º A.: - “Não, não…
João .....: - “Há pois, é que para vocês…
1º A.: - “Não, não...
João .....: - “Não, não, desculpe lá você o que acha, você provavelmente acha que eu não tenho liberdade para dizer aquilo que me apetece.
1º A.: - “Olhem, mas como eu tenho a liberdade de pagar o bilhete, também tenho a liberdade de não estar a ouvir, de não estar a ouvir a sua xenofobia.
João .....: - “Você se calhar até pagou com desconto, desculpe lá.
1º A.: - “E você vai passar atestado de estúpidos a outras pessoas, porque toda a pessoa…
João .....: - “O senhor se calhar veio de antes do 25 de Abril.
1º A.: - “Pois vem, pois vem…
João .....: - “Pois se calhar pensa que as pessoas não têm liberdade. A liberdade é de todos, o mundo é livre…
1º A.: - “Então meu amigo: Se você tem liberdade, eu também contribuí para ela.
João .....: - “Ah o mundo é livre está a ver?
1º A.: - “Oh meu amigo vá-se…
João .....: - “Oh por favor…”
1º A.: - “Sabe uma coisa? Siga outra profissão, que nessa não se safa.
João .....: - “Ah tá bem. Olhe, deixe estar que você também já deve ser reformado de qualquer coisa, de certeza.
1º A.: - “Por acaso está enganado.
João .....: - “Se calhar até é maçon, se calhar até é maçon.
1º A.: - “Olhe não me importava de ser.
João .....: - “Olhe, deixe estar, deixe estar, não vou estar agora…
1º A.: - “Mais valia ser maçon do que ser parvo como você.
João .....: - “Por favor…
1º A.: - “Adeus. Passe bem.
João .....: - “Eu explico, para a próxima eu trago aqui, eu faço aqui audiovisuais para explicar as piadas. Oh pá, oh amigo vá… vá andando. Faça favor…
2ª A.: - “Eu não sei é como é que você faz espectáculos. Não percebo.
João .....: - “Porque sou bom, minha senhora, porque sou bom.
2ª A.: - “Porque você é… Você é o espectáculo.
João .....: - “Porque sou bom.
2ª A.: - “Você é o espectáculo.
João .....: - “Porque sou bom.
2ª A.: - “Olhe é pena é aquele que foi mal tratado.
João .....: - “Meus amigos, porque sou bom, porque sou bom, está a perceber? Porque sou bom.
2ª A.: - “Porque é uma nulidade.
João .....: -“Porque sou bom. Isso é inveja uma coisa muito feia. Peço desculpa, oh Luciano chama os seguranças, tira as pessoas da sala desculpa lá.
2ª A.: - “Não, não, mas oiça, você não sabe quem é que está a assistir ao espectáculo. Disse aqui coisas graves a pessoas que estão aqui.
João .....: - “Claro que sim, claro que sim. Desculpa lá.
2ª A.: - “Isto é uma ofensa ao nome do Teatro…
João .....: - “Falei de pretos, não falei de gordos, nem de velhos. Não ofendi ninguém.
2ª A.: - “Olhe, olhe, olhe, você, você é a coisa pior que existe.
João .....: - “É a pior que existe. É, é, está bem.
2ª A.: - “Por respeito e por memória do artista que veio a ter este nome no teatro, você nem merecia autoridade para poder estar aqui.
João .....: - “Desculpe lá o João Villaret é uma pessoa que eu muito prezo. Peço desculpa. Por favor…Não é…
2ª A.: - “Isto é a maior ofensa ao nome deste Teatro.
João .....: - “Eh pá, fechem a porta por favor que eu tenho de continuar o espectáculo pá.
11. Sensivelmente no início de Fevereiro de 2013, os AA. começaram a receber telefonemas por parte de familiares e amigos dando-lhes conta que as suas imagens se encontravam a ser exibidas na S. Radical, canal temático da rede por cabo, propriedade da R.
12. Sem que tivessem sido previamente informados, e sem que tivessem prestado qualquer consentimento, os AA. constataram que no espectáculo “João ..... Convida” as suas imagens tinham sido captadas, mediante gravação vídeo, durante o momento em que se mantiveram a assistir até à saída, filmagem obtida tanto através de grandes planos, planos aproximados como também planos gerais e incluiu igualmente a captação do som das suas vozes e as suas palavras.
13. Na referida gravação o diálogo acima transcrito foi individualizado e descontextualizado, e passou a ser difundido e globalizado como suporte à promoção do programa intitulado “O Humorista”, passando os AA. a ser, também, o destaque da série e seus promocionais.
14. Das várias imagens dos AA., obtidas sem conhecimento e autorização destes, foram seleccionadas aquelas em que estes se exaltaram com as palavras de João ....., sendo que a selecção dessas imagens foi posteriormente submetida a um trabalho de edição e montagem e inseridas num contexto gráfico e musical, com legendas, com um efeito que se pretendia ser cómico.
15. Nos conteúdos associados à promoção da série “O Humorista” e ao actor João ....., e aos episódios que depois passaram na S. Radical, a imagem, voz, e palavras dos AA. foi amplamente reproduzida pelo referido canal de televisão, e em outros suportes de Media.
16. “O Humorista” tratou-se de uma série, com 6 episódios, que se descrevia como um documentário à carreira do actor João ..... inserido na programação do canal S. Radical.
17. A S. Radical é um canal temático da R., cuja programação é centrada em animação, humor, sitcoms, britcoms, música, talk-shows, e programas afins, destinado a um público específico.
18. Em 29/1/2013, no programa “Curto-Circuito”, exibido na S. Radical, João ..... foi entrevistado com o propósito de promover a estreia da série “O Humorista” que se anunciava para o dia 4 de Fevereiro, naquele canal.
19. Aos 02:01’’ da entrevista surge um plano aproximado das imagens de cada um dos AA., enquanto assistiam ao espectáculo supra referido.
20. Mais adiante, já no final da entrevista, aos 07:16’’ o programa exibe o trailer da série “O Humorista”, o qual corresponde ao seguinte extracto da imagem e voz do A.,: “(…) Você devia seguir é o provérbio: Quem te avisa teu amigo é. Você já viu que a plateia não ri? Por isso estão a avisá-lo que você não está a ter piada.
21. Toda a entrevista foi igualmente reproduzida na internet em 29/1/2013, mantendo‑se disponível na página com o endereço http://www.youtube.com/watch?v=YPCsD_MFJDK, pelo menos até 14/5/2013, sendo que nesta data contava já com 1539 visualizações.
22. Em 31/1/2013 o canal S. Radical exibiu o vídeo promocional que intitulou “O Humorista - Trailer”, tal como se encontra no ficheiro vídeo constante do CD que integra o documento 4 junto com a P.I., e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido.
23. Nesse vídeo, logo aos 00:40’’ surgem, em grande plano, as imagens de cada um dos AA., e aos 02:40’’ é o utilizado o extracto da imagem e a voz do A. referido em 20., legendado.
24. O vídeo promocional foi divulgado pelo menos durante 45 dias, ou seja, o período em que a série esteve no ar, sendo transmitido várias vezes durante o dia.
25. Tal vídeo foi ainda encontrado disponível na página da internet em http://www.youtube.com/watch?v=8r0XUgGk5J0 no formato (Oficial HD).
26. Em maio de 2013 tal vídeo apresentava 301 visualizações e em data muito próxima da entrada da acção (24/4/2014) esse vídeo, que ainda se encontra activo, contava já com 1092 visualizações.
27. O mesmo vídeo foi encontrado publicado noutra página da internet com o endereço http://www.youtube.com/results?search_query=o+humorista+-+trailer&sm=3, na qual se encontra activo há mais de um ano, contando já com 7203 visualizações.
28. E ainda na página com o endereço, http://videos.sapo.pt/J43flw45zZC2p0pkEEzu, tendo em data recente, registadas 243 visualizações.
29. Em 4/2/2013 estreou “O Humorista – Episódio 1”, com a duração de 21.27’’, tendo sido reproduzido no canal S. Radical, nos termos do ficheiro vídeo constante do CD que integra o documento 8 junto com a P.I. e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido.
30. No final desse episódio aos 20:36’’, sob a legenda “NOS PRÓXIMOS EPISÓDIOS”, e música de fundo, surge a imagem da 2ª A. e a imagem, voz e palavras do 1º A. – utilizadas fora do contexto – no momento em que abandonam o espectáculo no Teatro Mário Viegas em estado de exaltação, verbalizando o seguinte excerto:
1º A.: - “(…) você vai passar atestados de estúpidos a outras pessoas. As pessoas que estão aqui merecem respeito”.
31. O “Humorista - Episódio 1”, foi exibido no canal S. Radical pelo menos três vezes, em dias diferentes.
32. Esse episódio encontra-se publicado na íntegra na internet no endereço http://www.youtube.com/watch?v=Na8S3aAUtCk, há um ano activo, contando com 1787 visualizações em 6/4/2014.
33. Em 26/2/2013 foi exibido na S. Radical mais um episódio: “O Humorista – Episódio 4”, com a duração de 22.00’’
34. Aos 3:30´´ surgem a imagem e voz do 1º A. com o excerto:
1º A.: “E você vai passar atestado de estúpidos a outras pessoas, porque toda a pessoa…
João .....: - “O senhor se calhar veio de antes do 25 de Abril.
1ª A.: - “Pois vem, pois vem…
35. Aos 7:10’’ as imagens de cada um dos AA. surgem integradas num plano geral da plateia.
36. Aos 8:09’’ já as suas imagens captadas durante a primeira parte do espectáculo surgem em destaque, num plano aproximado.
37. Aos 10:45’’ repete-se o excerto passado aos 3:30’’ para, logo de seguida, dos 11:42’’ aos 14:22’’, fazer uso das imagens e vozes dos AA. no diálogo transcrito em 10.
38. Desde a data da sua estreia e até hoje o referido Episódio 4 ainda se mantém disponível no website da R., através do respetivo upload, bem como o Episódio 1 e o vídeo promocional do programa “O Humorista”.
39. Os AA. são reconhecíveis nitidamente em todas as imagens exibidas e divulgadas, bem como as suas palavras são totalmente audíveis, não constando, porém, a sua identificação.
40. Em 18/3/2014 o trailer da série “O Humorista” publicado no youtube, contava já com mais de 7000 visualizações.
41. A imagem dos AA. permaneceu disponível, em todos aqueles canais on-line há mais de 1 ano, consecutivamente, sem interrupções, e ainda hoje se mostra disponível em alguns sites da internet.
42. Antes de interporem a presente acção os AA. tentaram uma solução com a R., nos termos da carta registada que foi enviada pelos seus mandatários em Junho de 2013, com o teor que consta do documento 17 (fls. 70) junto com a P.I. e que aqui se dá por integralmente reproduzido, tendo a R. refutado qualquer responsabilidade, nos termos da carta com o teor que consta documento 18 (fls. 77) junto com a P.I. e que aqui se dá por integralmente reproduzido.
43. O 1º A. é Técnico Oficial de Contas e, apesar de exercer por conta própria, trabalha ainda junto da (…) tendo a seu cargo a contabilidade do P., auferindo mensalmente um rendimento de cerca de € 1.400,00 ilíquidos.
44. A 2ª A. é empresária do ramo alimentar e os seus rendimentos médios mensais são inferiores aos do 1º A.
45. No exercício das respectivas profissões os AA. têm contactos diários com diversas pessoas, sendo que a 2ª A. mantém contacto directo com os seus clientes do sector privado, e o 1º A. na sua actividade profissional tem clientes do sector privado e público com quem interage pessoalmente.
46. O sucesso da actividade profissional de cada um dos AA. depende, também, da imagem que transmitem aos seus clientes.
47. O 1º A. chegou a ouvir de um cliente “Que linda figura que você fez na S.!
48. Ambos os AA., por inúmeras vezes, tiveram que se explicar perante pessoas do meio onde trabalham, acerca das suas imagens que foram exibidas publicamente.
49. Os AA. residem na Portela de (…), localidade relativamente pequena, onde as pessoas se conhecem existindo alguma relação de proximidade e vizinhança.
50. Logo a seguir à exibição das imagens dos AA., estes viveram preocupados com a repercussão que as imagens podiam ter nas suas vidas, em particular na sua vida profissional.
51. Com a exibição das imagens dos AA. no contexto supra assinalado, estes sentiram‑se, na altura, ridicularizados, humilhados, e sentiram-se revoltados.
52. A 2ª A. sofreu durante um período distúrbios do sono e ambos os AA. passaram a evitar convívios sociais.
53. Qualquer pessoa que aceda aos vídeos associados ao programa “O Humorista” acede à página inicial do website da R. visualizando publicidade, pelo menos à HP, Unibanco e à marca Nissan.
54. Em paralelo com a exibição do Episódio 4 é transmitida publicidade da empresa Vodafone.
55. A preceder a exibição do Episódio 1 é divulgada publicidade pelo menos às marcas Trident e Fairy.
56. Ao aceder ao vídeo promocional do programa “O Humorista” o utilizador do website da R. visualiza igualmente publicidade à “P&G” (marcas gillette, pantene, ariel, dodot e fairy) e à “H&S” (Head & Shoulders).
57. A R. tem por objecto social o exercício de actividade no âmbito da televisão, multimédia, audiovisual e produção cinematográfica, bem como qualquer outra actividade de comunicação, nomeadamente, internet, vídeos em qualquer suporte e publicações de qualquer género.
58. A R. é titular do alvará e da licença para o exercício da actividade de televisão através do 3.º canal, sendo também detentora, entre outros, de autorização para a exploração do serviço de programas S. Radical.
59. A C., Unipessoal, Lda., tem por objecto a criação, produção e comercialização de espectáculos de televisão, teatro e música.
60. No âmbito da sua actividade, a C. produziu e realizou a obra “O Humorista”.
61. Em 23/1/2012 a R. celebrou com a C. um contrato de licenciamento de direitos para transmissão televisiva da obra “O Humorista”, com o teor que consta do documento 5 (fls. 169 a 172) junto com a contestação da R. e que se dá aqui por integralmente reproduzido.
62. De acordo com o respectivo clausulado, a C., detentora da titularidade dos direitos de propriedade intelectual sobre a obra “O Humorista”, licenciou com exclusividade os necessários direitos para a emissão televisiva da referida obra, com 6 episódios, com a duração aproximada de 30 minutos cada um, no serviço de programas S. Radical.
63. O material publicitário relativo à obra “O Humorista” (trailers, press-books, fotografias, diapositivos representativos da obra, sinopses, making-off) foi produzido pela C. e entregue à R. para transmissão televisiva, conforme estabelecido na Cláusula 6ª, n.º 1, alínea d), do contrato.
64. Nos termos da Clausula 3ª, n.º 1, b) do contrato, a R. e a C. acordaram que esta:
Detém as autorizações necessárias dos intervenientes na OBRA, com capacidade de licenciar para terceiros com o fim de emissão televisiva, dos direitos referentes à utilização da sua imagem, na vertente visual e sonora, do nome, fotografias e imagens representadas por qualquer meio plástico e dados bibliográficos;
E ainda, na al. c):
Que no que respeita aos direitos patrimoniais de propriedade intelectual e direitos de personalidade cuja autorização não tenha sido concedida por parte dos seus titulares, a Segunda Outorgante responsabiliza-se perante qualquer reclamação de terceiros perante a S.”.
65. No decurso das negociações entre a R. e a C., tendentes à celebração do contrato, o acordado em 64. constituiu condição expressa da R. para a aquisição dos direitos para transmissão televisiva.
66. Os responsáveis da C. asseguraram que não haveria risco na transmissão da obra “O Humorista”, justificando que haviam sido tomadas todas as cautelas necessárias para o efeito.
67. No dia do espectáculo a bilheteira do Teatro Estúdio Mário Viegas exibia uma mensagem tipográfica, constante de papel de tamanho A4, com o seguinte conteúdo:
Informamos que o espectáculo João ..... Convida será gravado e registado em vídeo.
A Companhia Teatral do Chiado”.
68. A porta de entrada e saída da sala de espectáculos do Teatro Estúdio Mário Viegas, onde teve lugar o espectáculo “João ..... Convida… Alexandre .....”, exibia, nesse dia, uma mensagem manuscrita (em maiúsculas), constante de papel de tamanho A4, com o seguinte conteúdo: “INFORMAMOS QUE ESTE ESPECTÁCULO ESTÁ A SER FILMADO E REGISTADO. CTC [Companhia Teatral do Chiado]”.
69. No referido dia e espectáculo, todos os espectadores presentes foram ainda advertidos oralmente, pelo próprio humorista João ....., no início da sua actuação, nos seguintes termos:
João .....: Portanto…, como já viram, o espectáculo está a ser filmado; faz parte de um documentário sobre a minha vida…
Público: [Risos]
João .....: …hum…não percebi porque é que se riram…
Público: [Risos]
João .....: …hum…estava a dizer: faz parte de um documentário sobre a minha vida que vai passar na S. Radical a partir de…a partir de Março, e chama-se “O Humorista””.
70. Os AA. estavam presentes na sala de espectáculos aquando do descrito em 69.
71. O espectáculo “João ..... Convida…Alexandre .....” foi gravado e registado por três câmaras de vídeo, encontrando-se as mesmas em local visível ao público, as quais captaram não apenas o que se passava no palco, como o que se passava na plateia.
72. Os AA. encontravam-se sentados na segunda fila a contar do palco, sensivelmente a meio dessa mesma fila.
73. O descrito em 67. a 69. corresponde ao procedimento usado por outras casas de espectáculos e eventos desta natureza.
74. Os AA. não dirigiram reclamação à organização/produção do espectáculo “João ..... Convida…Alexandre .....”, nem à produtora da obra “O Humorista”, nem quando tiveram conhecimento da divulgação das suas imagens, nem posteriormente.
75. No episódio 2 do programa “O Humorista” existe uma interveniente cuja imagem foi sujeita a “pixelização”, por forma a que não fosse possível reconhecer a sua identidade, o que foi feito porque esta pessoa solicitou à produtora do programa “O Humorista” que a sua imagem fosse protegida.
76. Entre outros conteúdos, os episódios de “O Humorista” são compostos por excertos de espectáculos de “stand-up comedy” ao vivo protagonizados por João ....., para os quais este convida outros comediantes – como Ricardo ..... e Carlos …. (episódio 2), Nilton (episódio 3), Alexandre ..... (episódio 4) e André …. (episódio 5) – para participar em parte dos espectáculos, apresentando também o seu material de comédia.
77. O episódio 4 contém excertos de um desses espectáculos – “João ..... Convida… Alexandre .....” –, que teve lugar em 18/1/2012 no Teatro Estúdio Mário Viegas.
78. A S. Radical é um canal temático explorado pela R. que é e sempre foi um canal comprometido com uma programação irreverente e ousada, tendo sido criada há 13 anos, e desde o seu lançamento, tem sido direccionado maioritariamente para o público jovem e adolescente, fazendo parte dos seus conteúdos programas de humor.
79. A R. não publicou no youtube quaisquer vídeos onde sejam exibidas imagens dos AA.
80. O programa “O Humorista” visava, além do mais, satirizar a figura do “mau comediante” ou do comediante mau profissional.
81. João ..... concedeu uma entrevista ao canal Q, inserida no talk-show intitulado “A Costeleta de Adão”, tendo sido exibida, nessa entrevista, uma parte do trailer da série “O Humorista”.
82. No que diz respeito ao caso dos canais temáticos da R., onde se inclui a S. Radical, a publicidade é genericamente vendida por faixa horária, pelo que, regra geral, os anunciantes não estão ligados a nenhum programa (i.e., os anunciantes não compram espaço publicitário para ser exibido/associado ao programa X ou Y, mas sim para ser exibido em determinado período do dia).
83. Os spots que passaram no break anterior ao programa “O Humorista” também foram transmitidos noutros horários.
84. O website da S. Radical é uma plataforma SAPO.PT.
85. O episódio 1 do programa “O Humorista” foi emitido 12 vezes e o episódio 4 do programa “O Humorista” foi emitido 13 vezes.
86. O valor bruto dos spots publicitários facturados no período de exibição do episódio 1 do programa “O Humorista” corresponde ao montante de € 336,97 e o valor bruto dos spots publicitários facturados no período de exibição do episódio 4 do programa “O Humorista” corresponde ao montante de € 715,68.
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A sentença recorrida considerou como não provado que:
a) Os AA., incrédulos com o que se estava a passar, visualizaram tudo quanto estaria a ser difundido acerca da série “O Humorista”;
b) A R. cedeu as imagens e vozes dos AA., permitindo a reprodução parcial do programa “O Humorista” ao canal Q, propriedade de P., S.A.;
c) Nos vídeos que reproduzem os episódios da série “O Humorista” objecto de upload no youtube, os que apresentam maior número de visualizações, são precisamente aqueles onde surge difundida a imagem dos AA.;
d) Utilizadores privados – cuja identidade se desconhece – usaram as imagens difundidas pela R. e também eles as propagaram on-line, onde se mantêm ainda hoje;
e) Na sequência da captação e transmissão das imagens na forma como acima se descrevem os AA. foram alvo de constantes comentários trocistas por parte de conhecidos e, particularmente, clientes;
f) Na localidade onde os AA vivem, as referências constantes ao episódio continuam a gerar nos AA. sentimentos de irritação, desgosto, angústia e mau estar permanente no seu dia-a-dia;
g) Os AA ainda vivem preocupados com a repercussão que as imagens têm nas suas vidas, em particular na sua vida profissional, e que vivem num vexame permanente;
h) O 1º A. ainda vive preocupado com a perspectiva de poder vir a perder clientes na sequência da divulgação das mencionadas imagens;
i) O uso daquelas imagens de forma repetitiva e prolongada cristalizou nos AA sentimentos de rebaixamento e humilhação;
j) Os AA. ainda se sintam, e sentir-se-ão de forma permanente, ridicularizados, humilhados e revoltados;
k) O 1º A. entrou num processo de frustração pelo facto de não conseguir demover a R. a eliminar as imagens com as quais se sente ridicularizado, sobretudo no meio onde exerce a sua profissão;
l) As imagens dos AA. foram usadas deliberadamente com o intuito de os ridicularizar;
m) Os AA. não tenham dirigido qualquer reclamação à R.
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Da alteração da matéria de facto
Decorre da conjugação dos art.º 635º, nº 4, 639º, nº 1 e 640º, nº 1 e 2, todos do Novo Código de Processo Civil, que quem impugna a decisão da matéria de facto deve, nas conclusões do recurso, especificar quais os pontos concretos da decisão em causa que estão errados e, ao menos no corpo das alegações, deve, sob pena de rejeição, identificar com precisão quais os elementos de prova que fundamentam essa pretensão, sendo que, se esses elementos de prova forem pessoais, deverá ser feita a indicação com exactidão das passagens da gravação em que se funda o recurso (reforçando a lei a cominação para a omissão de tal ónus, pois que repete que tal tem de ser feito sob pena de imediata rejeição na parte respectiva) e qual a concreta decisão que deve ser tomada quanto aos pontos de facto em questão.
Na sua alegação os AA. deram cumprimento formal aos preceitos legais em questão, já que nas conclusões da mesma elencaram as matérias que pretendem ver aditadas como factos provados e como factos não provados, mais identificando a prova documental e testemunhal que, no entender dos mesmos, conduz a tal alteração da decisão de facto.
Todavia, e como parte da matéria em questão não corresponde a factualidade que esteja contida no elenco de factos provados e não provados da sentença recorrida, importa desde já apreciar se, quanto a tal matéria, corresponde a factualidade com efectivo interesse para a decisão do presente recurso, tendo presente que o seu objecto se reconduz, em termos jurídicos, ao apuramento da responsabilidade da R. na violação dos direitos de personalidade dos AA.
Com efeito, e como resulta claro do disposto no art.º 581º do Novo Código de Processo Civil, estando aí consagrada a opção do legislador pela teoria da substanciação da causa de pedir, não está o tribunal obrigado a julgar todas as possíveis causas de pedir da situação jurídica configurada pelo pedido formulado, mas apenas aquela que decorre dos factos articulados pelos AA. e de onde decorre o pedido formulado.
Pelo que “a causa de pedir, servindo de suporte ao pedido, é integrada pelos factos (por todos os factos) de cuja verificação depende o reconhecimento da pretensão deduzida, nos termos dos arts. 5º, nº 1, e 552º, nº 1, al. d)” (Código de Processo Civil Anotado de António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, Vol. I, Almedina, 2018, pág. 24). O que equivale a afirmar, do mesmo modo, que é tão só integrada por tal núcleo factual essencial à afirmação do direito invocado (e sendo, por isso, que o ónus de alegação respectivo pertence à parte que dele se pretende fazer valer). Mas sempre sem prejuízo de tal núcleo factual essencial poder ser complementado ou concretizado, nos termos que resultem da instrução da causa, podendo ainda ser acompanhado de factos instrumentais e de factos notórios ou do conhecimento funcional do tribunal, tudo nos termos do disposto no nº 2 do art.º 5º do Novo Código de Processo Civil.
 E em sede de recurso importa ainda convocar a conjugação do disposto nos art.º 663º, nº 2, e 608º, ambos do Novo Código de Processo Civil, de onde decorre que deve haver lugar ao conhecimento de todas as questões suscitadas em sede de recurso, mas exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras.
Assim, e reconduzindo tais considerações ao caso concreto, logo se constata que a matéria elencada pelos AA., que não corresponde a factualidade contida no elenco de factos provados e não provados da sentença recorrida, em nada releva para a apreciação das questões suscitadas em sede de recurso, desde logo tendo presente a causa de pedir que decorre da P.I.
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Com efeito, e no que respeita à questão do controlo do website da S. Radical e determinação dos respectivos conteúdos, em momento algum dos articulados os AA. invocaram tal facto.
É que, no que respeita a conteúdos da internet, os AA. apenas alegaram os conteúdos existentes em www.youtube.com (art.º 35º, 41º, 45º e 51º da P.I.), em vídeos.sapo.pt (art.º 46º da P.I.) e no website da R. (art.º 59º da P.I.). E no que respeita ao website da S. Radical, os AA. apenas alegaram que a R. beneficia diariamente da publicidade no mesmo, pela persistência da divulgação dos conteúdos que reputam de violadores dos seus direitos de personalidade.
Por outro lado, resultando demonstrado que o website da S. Radical é uma plataforma SAPO.PT, o que, conjugado com o alegado no referido art.º 46º da P.I., só pode significar que a referência a tal website corresponde ao identificado domínio videos.sapo.pt/sicradical, é irrelevante a referência ao domínio sicradical.sapo.pt e seu controlo pela R., por ser distinto daquele primeiro, relativamente ao qual os AA. alegaram ser “depositário” dos conteúdos de som e imagem em questão nos autos, mas nunca o tendo alegado relativamente ao inovatoriamente agora mencionado.
O que equivale a afirmar a irrelevância dos factos em questão, ainda que pudessem decorrer do depoimento de uma das testemunhas inquiridas.
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Do mesmo modo, no que respeita aos capitais próprios e rendimentos da R. em 2016, bem como aos montantes que recebe das operadoras de cabo ou aos valores de facturação com publicidade em cada um dos seis episódios da série de televisão “O Humorista” inserida na programação do canal temático S. Radical, em parte alguma dos articulados os AA. alegaram os factos em questão.
Com efeito, os AA. apenas invocaram os benefícios económicos da R. que decorreram da utilização dos conteúdos de som e imagem ora em causa (e que correspondem aos que estão inseridos no episódio 4, sendo igualmente alegado que para a promoção do episódio 1 foram utilizados os mesmos conteúdos, mas nada sendo alegado quanto à utilização dos mesmos nos restantes episódios), através da publicidade apresentada em simultâneo com esses conteúdos e por causa deles, e apenas com referência aos episódios 1 e 4.
Assim, e por um lado, as apresentações dos episódios em questão (e da publicidade correspondente) não respeitam ao ano de 2016, mas a datas muito anteriores. Por outro lado, foram os próprios AA. que limitaram a relevância da publicidade emitida pela R. à constante dos episódios 1 e 4 (tendo inclusive identificado as marcas publicitadas), sendo apenas daí que retiram o incremento patrimonial da R., como decorre dos art.º 100º a 105º da P.I.
De onde resulta a total irrelevância da factualidade relativa aos capitais e rendimentos da R., bem como a relativa ao acréscimo patrimonial que resulta ou resultou da sua relação com operadoras de cabo e da venda de publicidade, para além daquele acréscimo que já resulta demonstrado no ponto 86. dos factos provados, relativo à publicidade ligada à exibição dos episódios 1 e 4 da série “O Humorista”.
O que equivale a concluir pela irrelevância da matéria em questão para a afirmação do direito que os AA. vieram fazer valer em juízo.
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Do mesmo modo, no que respeita ao conhecimento da R. sobre como a interveniente C. filmava os seus espectáculos, nomeadamente em matéria de consentimento, bem como da omissão da R. em pedir consentimentos expressos dos AA. e da conformação com a falta desses consentimentos expressos, trata-se de matéria que não se mostra alegada pelos AA. nos articulados, do mesmo modo que não se pode considerar como integrante da causa de pedir, ainda que a título instrumental, complementar ou concretizador.
É que, tendo os AA. invocado que a R. estava obrigada a pedir-lhes uma autorização para captar imagens dos mesmos, bem como uma outra autorização para utilizar essas imagens, e afirmando a R. que não solicitou aos AA. qualquer uma dessas duas autorizações, por entender que existiu um anúncio público de captação e utilização de imagens relativamente ao qual os AA. não apresentaram oposição, o que configurará a autorização em questão, é irrelevante apurar as matérias em questão. Com efeito, não só a questão da autorização (ou consentimento, se se preferir) se resolve no confronto das duas teses fácticas alegadas, e não através de matéria afirmada pelas testemunhas, mas igualmente decorre da mesma que se está perante conclusões afirmadas pelos AA., como é a consideração da posição da R. de não adoptar determinada conduta ou de se conformar com a conduta da interveniente C..
Em suma, também nesta parte há que afirmar a irrelevância da matéria em questão para a afirmação do direito que os AA. vieram fazer valer em juízo.
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Do mesmo modo, e relativamente à matéria que consta da al. d) dos factos não provados, apesar da mesma ter sido alegada pelos AA. na P.I., nenhum relevo apresenta para a decisão da causa.
Com efeito, visando os AA. a reparação dos seus direitos de personalidade, que entendem haver sido violados pela conduta da R., ao ter difundido imagens e sons dos mesmos sem consentimento para tanto, a conduta ilícita e culposa da R. esgota-se na referida difusão, sendo irrelevante a “amplificação” dessa difusão por terceiros não identificados, com recurso a meios que não estão no controlo da R (como é o caso da plataforma youtube).
Dito de outra forma, mesmo que se desse como provada tal utilização por desconhecidos das imagens difundidas pela R. (para além, naturalmente, da utilização que já emerge dos pontos 21., 25., ou 27.), a circunstância da R. ser alheia a tal actuação conduziria a que a mesma factualidade nada acrescentasse, no que respeita ao apuramento da responsabilidade da R. na violação dos direitos de personalidade dos AA. e sua consequente reparação, por não estar no domínio da mesma a modificação das condutas em causa.
Pelo que, também no que respeita a esta parte da pretensão dos AA., não há que operar qualquer alteração ao elenco de factos provados.
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Mais pretendem os AA. que se adite à factualidade provada a matéria alegada no art.º 94º da P.I., dando-se como provado que em 14/3/2007 a R. foi condenada pelo Conselho Regulador da Entidade Reguladora para a Comunicação Social, “ao rigoroso cumprimento futuro das normas relativas ao direito à imagem e à palavra”, e bem ainda que o foi novamente por deliberação do mesmo órgão de 8/5/2018.
Sendo certo que a segunda das deliberações é posterior aos factos em causa nestes autos, sendo mesmo posterior ao encerramento da audiência final, torna-se evidente a total falta de relevância desse facto para a decisão da causa que, recorde-se, se prende com a difusão pela R., em 2013, de imagens e sons dos AA., sem autorização dos mesmos para tanto.
E quanto à primeira das deliberações invocadas, desde logo não se trata de uma “condenação”, até porque a própria natureza da mesma deliberação e as competências do órgão que a emitiu não permite afirmar a existência de um poder para impor qualquer condenação à R. (no sentido do poder público sancionatório).
Pelo que é de todo irrelevante afirmar a referida “condenação” da R. que, não existindo e não podendo existir, não tem qualquer relevo para a determinação da medida dos direitos dos AA. e afirmação da sua violação em razão de uma conduta da R. ilícita e culposa.
Nesta medida, e também no que respeita a esta parte da pretensão dos AA., não há que operar qualquer alteração ao elenco de factos provados.
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Quanto ao facto dado como provado no ponto 75., que os AA. pretendem ver corrigido, não se alcança a relevância da referência à “zona dos bastidores”, nem à qualidade de acompanhante da interveniente cuja imagem foi sujeita a alteração digital (a referida “pixelização”).
Com efeito, se o que está em causa é a possibilidade que a C. teve de respeitar a solicitação de uma pessoa cuja imagem foi captada, no sentido de impossibilitar a sua identificação, e no âmbito da difusão do episódio 2 do programa “O Humorista”, é de todo irrelevante saber onde ocorreu a captação dessa imagem, designadamente “na zona dos bastidores”. E desde logo porque tal circunstância de lugar, se aplicada à referida realidade televisiva (o episódio 2 do programa “O Humorista”), não encontra qualquer sentido. Do mesmo modo, se está já identificada a pessoa cuja imagem foi captada como “uma interveniente” (no sentido de ter sido captada a sua imagem e ter sido incluída nos conteúdos visuais do referido episódio 2), a origem dessa “intervenção” é irrelevante porque, estando em causa a protecção da sua identidade, basta-se a mesma com a circunstância de existir a referida captação de imagem.
Nesta medida, e também no que respeita a esta parte da pretensão dos AA., não há que operar qualquer alteração ao elenco de factos provados.
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Quanto aos factos provados que constam dos pontos 65. e 66., entendem os AA. que não se pode dar como provado que “a assinatura do contrato de produção do programa teve, como condição essencial para a S., a obtenção das autorizações necessárias de todos os intervenientes”.
Só que a matéria de facto em questão não se refere a qualquer “condição essencial”, mas antes a uma “condição expressa”.
E que tal posição foi expressa pela R. à C. decorre claramente da conjugação dos depoimentos do representante desta última (Nuno D.) e da testemunha Pedro M. (director dos canais temáticos da R.), quando este último refere que questionou directamente o primeiro sobre as autorizações para a difusão de imagens dos diversos intervenientes nos episódios do programa “O Humorista” (e aí se incluindo as imagens de espectadores existentes nos locais onde foram as mesmas captadas, como é o caso dos AA.), o que é confirmado pelo referido Nuno D., e em consonância com o clausulado no nº 1 da cláusula 3ª do contrato de 23/1/2012.
Ou seja, porque não está em causa que a R. tenha colocado à C., como condição essencial para a assinatura do contrato, a existência das autorizações, mas antes que a R. deixou expresso à C. que adquiria o programa em questão porque a C. declarava que detinha todas as autorizações dos direitos referentes à utilização da imagem e voz dos intervenientes no mesmo, mais assumindo a responsabilidade por qualquer reclamação decorrente de faltas de autorização, e na medida em que a conjugação das declarações em questão com o teor do documento onde se corporiza o contrato permite afirmar essa realidade, fica demonstrada a factualidade vertida nos pontos 65. e 66., relativa à troca de declarações entre a R. e a C., no âmbito da relação contratual mantida entre as mesmas.
Nesta medida, e também no que respeita a esta parte da pretensão dos AA., não há que operar qualquer alteração ao elenco de factos provados.
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Relativamente aos factos provados que constam de 67. a 70., e que os AA. pretendem que sejam dados como não provados, o tribunal recorrido motivou pela seguinte forma a sua decisão:
 “A factualidade referente aos avisos de gravação feitos no espectáculo aqui em causa – factos 66º a 71º -mostra-se sustentada pelos documentos 6 a 9 juntos pela S., correspondendo os primeiros aos avisos escritos colocados na bilheteira e à porta da sala de espectáculos, e o ultimo ao vídeo onde se visualiza o actor João ..... a informar o público nos termos dados por assentes em 68, o que foi sopesado em conjugação com o depoimento do próprio actor João ....., que corroborou tal matéria, e de Tiago S., actor que também esteve presente durante o espectáculo, Ricardo R., operador de Camara e a filmar o espectáculo, Nuno D. também no local, e Gisella B., espectadora, tendo todos eles, de forma convicta, segura e com conhecimento directo, confirmado a existência dos avisos escritos e orais, nos moldes dados por assentes.
Por outro lado, apesar dos autores, e das testemunhas Isabel e Maria M. (também presentes no espectáculo), terem declarado não ter ouvido o João ..... a efectuar o aviso da gravação, nem visto os dizeres escritos, não se concebe, nem foi feita qualquer prova nesse sentido, de que a ré S. tenha forjado o vídeo com a gravação do espectáculo onde se vê o actor João ..... a informar o que consta de 68., e tenha manietado 5 testemunhas incluindo Camara Man’s para vir afirmar em julgamento algo que não ocorreu no espectáculo.
Na verdade, e quanto a tal questão, afigura-se mais consentâneo com a realidade da vida e da experiencia comum que tanto os autores, como as referidas testemunhas, estivessem distraídos e ou a conversar quando chegaram ao teatro e no inicio do espectáculo, e não tenham atentado nos referidos avisos.
De todo o modo, a prova supra assinalada produzida pela S. foi segura e convenceu o tribunal quanto a tal matéria”.
Está em causa a existência de duas peças escritas e de um registo audiovisual, todos concorrendo para a afirmação da informação prévia aos espectadores presentes no espectáculo “João ..... Convida… [Alexandre .....]”, relativamente à captação de imagem e som em tal espectáculo e sua posterior difusão televisiva.
Com a sua contestação a R. apresentou três fotografias com as quais pretende demonstrar a existência dos dois escritos, nos termos por si alegados (são as fotografias correspondentes aos documentos 6 a 8). Mais apresentou (como documento 9) um CD‑ROM contendo um excerto em vídeo da filmagem do referido espectáculo.
Em resposta (requerimento entrado nos autos em 3/9/2014, constante de fls. 210 e seguintes) vieram os AA. invocar (art.º 3º) que “Os referidos documentos (…) constituem meras fotografias, das quais não resulta a data e local aonde foram tiradas, pelo que se impugna a sua autenticidade nos termos dos artigos 444º do C.P.C. e 374º do C.C.”. Mais vieram invocar (art.º 11º) que “desconhecem o conteúdo dos documentos juntos sob Doc. 9 e Doc. 14 porquanto os mesmos não lhes foram entregues aquando da notificação da contestação”.
Relativamente às três fotografias, a afirmação dos AA. da impugnação da autenticidade das mesmas, nos termos dos art.º 444º do Novo Código de Processo Civil e do art.º 374º do Código Civil, não passa da afirmação genérica da falta de relevância das mesmas para dar como provados os factos alegados pela R. Com efeito, a referência ao disposto no art.º 374º do Código Civil só faz sentido para afastar a força probatória plena que decorre do art.º 376º do Código Civil, quanto à autoria e conteúdo das declarações constantes de documento assinado pelo seu autor, nos termos da primeira parte do nº 1 do art.º 444º do Novo Código de Processo Civil. Já estando em causa reproduções fotográficas, a impugnação da genuinidade das mesmas impõe que se coloque em crise a exactidão da reprodução em questão, nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 368º do Código Civil. Assim, e como os AA. não invocaram que impugnavam a exactidão das reproduções fotográficas apresentadas pela R., para efeitos das mesmas deixarem de fazer prova plena dos factos e coisas representadas, nos termos do art.º 368º do Código Civil, há igualmente que concluir que as três fotografias em questão fazem prova plena dos factos e coisas aí representados.
O que equivale a afirmar a existência das duas peças escritas aí exibidas, com os textos constantes das mesmas (correspondentes aos alegados pela R.), bem como a colocação das mesmas duas peças escritas nos locais alegados pela R. (a bilheteira e a porta da entrada da sala de espectáculos).
Acresce que a circunstância de ambos os AA. terem declarado não se lembrarem de ter visionado qualquer uma das duas peças escritas nos referidos locais (o que igualmente foi referido pela testemunha Isabel R.), apenas significa isso mesmo, ou seja, que não atentaram nesses “avisos” ou que, apesar de terem visto os mesmos, não lhes deram importância bastante para os reter em memória. Pelo que não se pode retirar destes meios de prova que a reprodução das duas peças escritas não respeita ao momento temporal correspondente ao dia do espectáculo (18/1/2012).
E como a testemunha Ricardo R., cameraman durante a captação das imagens do espectáculo, confirmou a existência de “um aviso escrito”, o mesmo tendo sido confirmado pela testemunha João ..... (o actor que deu o nome ao espectáculo e seu principal interveniente), não há como não acompanhar a fundamentação do tribunal recorrido, para dar como provada a matéria de facto que consta dos pontos 67. e 68.
Relativamente ao CD-ROM contendo o excerto em vídeo que os AA. afirmaram desconhecer (no referido art.º 11º, quando se pronunciaram sobre a apresentação de tal meio de prova), tal posição não pode significar a impugnação da sua exactidão, nos termos do disposto no art.º 368º do Código Civil.
E no articulado com o qual responderam às excepções constantes da contestação da R. os AA. pronunciam-se sobre o conteúdo do mesmo e concluem (art.º 27º) pela impugnação da força probatória do referido CD-ROM, não fazendo qualquer referência ao disposto no art.º 444º do Novo Código de Processo Civil e no art.º 368º do Código Civil, e não formulando qualquer pedido de declaração da falta de genuinidade desse meio de prova documental.
Assim, e sendo extemporânea a afirmação dos AA., porque feita apenas em sede de alegação de recurso, da falta de “autenticidade” (ou genuinidade) dessa reprodução audiovisual, o mesmo vídeo faz prova plena dos conteúdos aí reproduzidos, o que torna desde logo desnecessária a pronúncia sobre todos os argumentos apresentados pelos AA., relativamente à desconformidade entre esses conteúdos e o que resulta das suas declarações prestadas em audiência, bem como dos depoimentos testemunhais que identificam, por estar plenamente provado o conteúdo do mesmo, na parte da declaração de João ..... que consta reproduzida no ponto 69. dos factos provados, proferida no início do espectáculo em questão.
E relativamente à localização temporal dessa declaração, mais uma vez não se consegue retirar das declarações dos AA. nem dos depoimentos testemunhais identificados que a mesma declaração de João .....  não tenha sido proferida no dia do espectáculo a que os AA. assistiram (18/1/2012).
Com efeito, aquilo que resulta das declarações dos AA. é uma “não resposta” sobre se ouviram a declaração de João ....., sendo que o 1º A. não se lembra da mesma e a 2ª A. optou por misturar “avisos escritos” com “aviso verbal”, para além de avançar com a afirmação de não ter “passado” qualquer papel de autorização.
Do mesmo modo, o que resulta do depoimento da testemunha Isabel R. é que não logrou fazer a destrinça entre a questão da percepção da existência de meios de captação de imagem e da percepção do aviso dessa captação, afirmando depois não se recordar de “nada disso” e assim se apresentando o seu depoimento como inseguro e, por isso, não apto a fazer concluir pela inexistência da declaração de João ....., no dia do referido espectáculo.
Do mesmo modo, do depoimento de Maria M. decorre que a mesma não viu os “avisos escritos” não ouviu o “aviso sonoro” e não viu os meios de captação de imagem que estavam presentes na sala de espectáculo, o que apenas faz concluir pela total desatenção da testemunha (ou sua ausência física), e assim levando a desconsiderar tal depoimento.
Igualmente a testemunha Gisélia B. afirmou não se recordar do “aviso sonoro no início do espectáculo”, mas também não se recordava do início do espectáculo, o que leva a considerar que tal depoimento não pode ser apto a fazer concluir pela inexistência da declaração de João ....., no dia do referido espectáculo.
Por outro lado, e tendo o referido João ..... confirmado ter proferido a declaração oral em questão, no dia do espectáculo presenciado pelos AA., o que foi igualmente confirmado pelo cameraman Ricardo R. e por Tiago S. (que confirmaram estar presentes na referida data, embora ambos tenham manifestado hesitações que têm de se considerar normais, em função do tempo entretanto decorrido), bem como pelo representante da C., Nuno D., não há como não situar temporalmente tal declaração no referido dia do espectáculo em que os AA. estiveram presentes.
Assim, não há como não acompanhar a fundamentação do tribunal recorrido, para dar como provada a matéria de facto que consta dos pontos 69. e 70.
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Em suma, para além da matéria que não apresenta qualquer relevo para a decisão da causa e que, por isso, não justifica as pretendidas alterações à decisão sobre a matéria de facto, nos termos indicados pelos AA., os excertos dos depoimentos identificados pelos mesmos, bem como os documentos identificados, quando conjugados com o remanescente desses depoimentos e com a restante prova documental produzida, não têm o sentido fáctico que os AA. procuram retirar, mas aquele que foi encontrado pelo tribunal recorrido. E, deste modo, não conduzem à procedência da impugnação da decisão sobre a matéria de facto, nos termos vertidos nas conclusões 3) a 7) da alegação de recurso dos AA., assim se mantendo a decisão do tribunal recorrido sobre a matéria de facto em questão.
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Relativamente à alteração da matéria de facto visada pela R., refere a mesma que a impugnação em causa é apresentada a título subsidiário, nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 636º, nº 2, do Novo Código de Processo Civil.
Decorre de tal preceito legal que o recorrido pode, na respectiva alegação e a título subsidiário, impugnar a decisão proferida sobre pontos determinados da matéria de facto não impugnados pelo recorrente, prevenindo a hipótese de procedência das questões por este suscitadas.
Ou seja, o carácter subsidiário dessa impugnação determina que a mesma só será objecto de conhecimento quando tal se revele necessário, pela procedência da impugnação das questões de facto suscitadas pelo recorrente, ficando prejudicado tal conhecimento em caso de improcedência daquela impugnação do recorrente, e não carecendo o tribunal de conhecer dessa impugnação subsidiária, por força do disposto no art.º 608º, nº 2, ex vi art.º 663º, nº 2, ambos do Novo Código de Processo Civil.
Revertendo tais considerações para o caso concreto da impugnação da matéria de facto apresentada pela R., tendo presente o seu carácter subsidiário e tendo improcedido na sua totalidade a impugnação dos AA., fica então prejudicado o conhecimento daquela impugnação.
Pelo que, sem necessidade de outras considerações, mantém-se inalterada a factualidade provada e não provada acima elencada, tal como foi decidida pelo tribunal recorrido.
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Da violação do direito dos AA. e sua reparação pela via indemnizatória
Como bem se refere na sentença recorrida (e os AA. não colocam tais considerações em crise), “mostra-se assente e pacífico entre AA. e R. que esta, ao exibir material promocional da série O Humorista, que iria passar na S. Radical, e num dos episódios desta série, utilizou imagens, voz e expressões verbais dos autores quando, em 18 de Janeiro de 2012 estes assistiram no Teatro Mário Viegas, na companhia de amigos, a um espectáculo denominado “João ..... Convida”. As partes também não questionam que tais imagens foram utilizadas sem que os AA tenham dado uma autorização prévia expressa, e sem que a R. S. os tenha abordado antes de exibir as imagens, reproduzindo as mesmas um desiderato entre o actor João ..... e os autores.
O diferendo centra-se, então, no facto de os AA defenderem que, sem autorização expressa sua, a utilização das suas imagens, da forma como foi feita, foi abusiva e não consentida e por isso ilícita; ao passo que a ré defende que, tendo todos os espectadores incluindo os AA sido informados e avisados que o referido espectáculo iria ser gravado e filmado, bem como utilizado para a série O Humorista que iria estrear na S. Radical, e não tendo os AA manifestado qualquer oposição ou reserva, não tinha que prestar mais qualquer informação aos AA, ou solicitar a sua autorização prévia”.
E para decidir tal “diferendo” o tribunal recorrido sustentou que “no caso concreto, com o devido respeito por opinião diversa, não se crê que seja exigível da ré qualquer outro comportamento além daquele que adoptou, nomeadamente, que contactasse pessoalmente os intervenientes – entre eles os autores - do programa O Humorista, para saber se autorizavam a divulgação da sua imagem e voz, após lhe ter sido assegurado por quem realizou, produziu e vendeu o programa de que todas as autorizações de imagem, seja na vertente visual, sonora, nome, fotografias estavam concedidas, e não existia qualquer obstáculo quanto a tal questão.
Além do mais, as autorizações de imagem foram pressuposto essencial para a S. adquirir esse programa.
Ainda, resultou assente à evidência que, apesar dos avisos informativos não especificarem os termos concretos em que iriam ser usadas as imagens captadas no espectáculo de 18-1-2012, foi informado a todos os espectadores, incluindo os AA, que «Informamos que o espectáculo João ..... Convida será gravado e registado em vídeo», que «ESTE ESPECTÁCULO ESTÁ A SER FILMADO E REGISTADO»; e ainda pela própria voz do actor João ....., que declarou «como já viram, o espectáculo está a ser filmado; faz parte de um documentário sobre a minha vida, que vai passar na S. Radical a partir de…a partir de Março, e chama-se “O Humorista”».
Tanto assim que, neste seguimento, uma das pessoas veio a recusar o uso da sua imagem, aparecendo por isso «pixelizada», ou seja, distorcida de modo a não poder ser reconhecida, facto que só podia reforçar na S. a convicção de que as autorizações de imagens estavam devidamente regularizadas.
Ante este circunstancialismo, entende-se que não pode ser assacado à R. qualquer comportamento negligente e ou culposo, dito de outro modo, no caso não pode ser exigível da ré outro comportamento/ acção ou omissão, para além daquele que adoptou, na exibição da série O Humorista.
De onde, não se verificando um dos pressupostos basilares da responsabilidade civil aquiliana – a culpa - se conclui dever improceder a acção”.
Para contrariar tal entendimento os AA. sustentam, em primeiro lugar, que os “avisos escritos” e o “aviso oral” são irrelevantes, já que dos mesmos não decorre o alerta para a possibilidade de ser filmada e exibida em televisão uma situação que pudesse ocorrer com o público (como a que está provada que ocorreu entre os AA. e o actor João .....), e não sendo de interpretar esses “avisos” e o silêncio dos AA. relativamente aos mesmos como significando uma autorização tácita dada pelos mesmos para a utilização da sua imagem e voz, como intervenientes no programa de televisão onde foram utilizadas as filmagens em questão.
Mais convocam os AA. a definição de consentimento que consta da al. h) do art.º 3º da Lei 67/98, de 26/10, para daí retirar a ausência do mesmo para a utilização, pela R., da sua imagem e voz, captada no espectáculo de 18/1/2012.
O consentimento aqui em causa é aquele referido no art.º 79º do Código Civil, onde se dispõe que:
1. O retrato de uma pessoa não pode ser exposto, reproduzido ou lançado no comércio sem o consentimento dela; depois da morte da pessoa retratada, a autorização compete às pessoas designadas no n.º 2 do artigo 71.º, segundo a ordem nele indicada.
2. Não é necessário o consentimento da pessoa retratada quando assim o justifiquem a sua notoriedade, o cargo que desempenhe, exigências de polícia ou de justiça, finalidades científicas, didácticas ou culturais, ou quando a reprodução da imagem vier enquadrada na de lugares públicos, ou na de factos de interesse público ou que hajam decorrido publicamente.
3. O retrato não pode, porém, ser reproduzido, exposto ou lançado no comércio, se do facto resultar prejuízo para a honra, reputação ou simples decoro da pessoa retratada”.
A respeito da interpretação de tal preceito legal, o Supremo Tribunal de Justiça afirma no seu acórdão de 7/6/2011 (relatado por Gabriel Catarino e disponível em www.dgsi.pt) que “a lei permite – cfr. artigo 79.º do Código Civil - que a indisponibilidade do direito à própria imagem seja excepcionada se o titular do direito der o seu consentimento na captação, reprodução e publicitação da sua imagem. Exige-se que o consentimento seja “expresso” “o que constitui uma garantia de que, efectivamente, o titular está de acordo com a intromissão de um terceiro num bem da personalidade do próprio”. Não é, no entanto, exigível que o consentimento assume uma forma solene ou formal, mas tão só que ele seja dessumível ou inferível de “facta concludência”. Vale por dizer que para que alguém conceda o consentimento na captação, reprodução ou publicação da sua própria imagem não se torna imprescindível que o manifesto da sua vontade se submeta a uma forma predeterminada ou formalmente preconcebida, bastando, tão só, que a conduta actuada pelo titular do direito se torne compatível com a mencionada captação de imagem”.
Mais se refere, no mesmo acórdão, que “em situações limite, poderá ocorrer uma “presunção de consentimento” bastando para tal que a conduta do titular do direito à própria imagem revele um comportamento de tal modo alheado à sorte da captação de imagens que deles se possa dessumir uma anuência desprendida ou inane ao conteúdo e destino das imagens captadas”.
E refere-se ainda, naquele mesmo acórdão, que “para que ocorra uma situação de “consentimento tácito”, significação externa de autorização para captação, reprodução ou publicitação da imagem de quem quer, torna-se necessário que os sinais (significantes e exteriorizáveis) do titular do direito se revelem ou evidenciam como inequívocos ou desertos de qualquer dúvida”.
Ou seja, a “manifestação de vontade, livre, específica e informada” que corresponde à definição de consentimento contida na al. h) do art.º 3º da Lei 67/98, de 26/10 (em vigor à data dos factos, apesar de entretanto ter sido revogada pela Lei 58/2019, de 8/8, que assegura a execução, na ordem jurídica nacional, do Regulamento (UE) 679/2016, de 27 de Abril, o que para o caso concreto se revela indiferente, dado o seu carácter inovatório e não interpretativo) não corresponde, como pretendem os AA., a uma “autorização expressa, específica e escrita” (ou seja, à “manifestação de vontade, livre, específica, informada e explícita, pela qual o titular dos dados aceita, mediante declaração ou ato positivo inequívoco, que os dados pessoais que lhe dizem respeito sejam objecto de tratamento”, segundo a nova definição constante do art.º 4º do referido Regulamento (UE) 679/2016, de 27 de Abril).
Antes se deve afirmar, à face da referida interpretação jurisprudencial, que tal “manifestação de vontade, livre, específica e informada” pode presumir-se a partir da conduta do titular do direito à imagem, desde que esta se revele como inequívoca para a afirmação da aceitação da divulgação da sua imagem (e voz), nos termos em que a mesma ocorre.
Assim, e revertendo tais considerações à situação concreta dos autos, desde logo se constata que os AA. foram assistir a um espectáculo de comédia, sendo que no local do mesmo constavam afixadas duas menções escritas à sua gravação e registo em vídeo.
Constata-se ainda que no início da actuação do actor “cabeça-de-cartaz”, o mesmo complementou tal menção escrita, declarando oralmente aos espectadores que tal registo em vídeo integraria um “documentário sobre a minha vida que vai passar na S. Radical”, sob o título “O Humorista”.
E constata-se ainda que a captação de imagens em questão foi assegurada por três câmaras de vídeo que se encontravam em local visível aos referidos espectadores, as quais captavam imagens do que se passava no palco, bem como do que se passava na plateia.
Por outro lado, trata-se de um espectáculo de comédia cujo fim será, pela ordem natural das coisas, provocar reacções de satisfação nos espectadores presentes (e a sua exteriorização, como o riso, a gargalhada e/ou o aplauso).
Pelo que qualquer um dos espectadores presentes ficou a saber da possibilidade da sua imagem ser difundida no canal de televisão temático S. Radical, no âmbito do anunciado “documentário”, com o título “O Humorista”. E desde logo porque é sabido que a difusão da exteriorização das reacções em questão é que se revelaria apta (quando não, indispensável) a documentar a referida qualidade de humorista do “cabeça‑de‑cartaz” em questão.
Aliás, tal difusão televisiva da exteriorização das reacções dos espectadores de um qualquer espectáculo não é privativa da captação e registo de imagens num espectáculo de comédia. Ela surge em eventos (tão afastados entre si, do ponto de vista cultural e recreativo) como o espectáculo desportivo do futebol ou o espectáculo de música clássica, onde a visualização das imagens dos espectadores, não só em plano geral, como em plano aproximado, é recorrente e banal, servindo exactamente para documentar a aptidão do espectáculo em questão para atingir o seu fim junto do destinatário principal do mesmo (o espectador).
Do mesmo modo, qualquer um dos espectadores presentes no espectáculo de comédia aqui em causa (desde que minimamente atento à realidade cultural e televisiva que o rodeia) não podia deixar de saber que o canal temático S. Radical “é e sempre foi um canal comprometido com uma programação irreverente e ousada”, sendo “direccionado maioritariamente para o público jovem e adolescente, fazendo parte dos seus conteúdos programas de humor”.
Ou seja, qualquer um dos espectadores presentes (incluindo cada um dos AA.) não podia deixar de saber da possibilidade da sua imagem enquanto espectador (incluindo as suas reacções à performance do actor João .....) ser captada em vídeo no decurso do referido espectáculo, sendo depois difundida através da S. Radical, num programa de televisão que se previa irreverente e ousado, como o indiciava a conjugação do título do mesmo, o canal onde ia ser difundido e a qualidade do seu protagonista.
Acresce que, como resulta provado, cada um dos AA. exteriorizou as suas reacções à referida actuação, levantando-se do seu lugar (sensivelmente a meio da segunda fila a contar do palco) para abandonar o espectáculo, e bem assim começando por afirmar o 1º A. ao actor João ..... que “Você devia seguir é o provérbio: Quem te avisa teu amigo é. Você já viu que a plateia não ri? Por isso estão a avisá-lo que você não está a ter piada”, do mesmo modo começando a 2ª A. por afirmar ao actor João ..... que “Eu não sei é como é que você faz espectáculos. Não percebo”.
Ou seja, estando os AA. a assistir a um espectáculo de comédia que estava a ser registado em vídeo para posterior difusão na S. Radical, no âmbito de um programa de televisão que se previa irreverente e ousado (como o eram e são os programas emitidos por esse canal temático), podendo constatar que a respectiva captação de imagens abrangia também imagens dos espectadores, aí se compreendendo as reacções à actuação de João ..... (como é comum em qualquer espectáculo), e tendo tido as reacções que resultam demonstradas, designadamente as frases dirigidas ao referido actor, não podiam deixar de saber da possibilidade das imagens e sons com tais reacções poderem ser difundidas no referido meio televisivo.
É certo que os AA. invocam que as suas reacções terão ultrapassado a do “mero espectador”, passando a “co-protagonistas”, contra a sua vontade, e sendo que os “avisos escritos” e o “aviso oral” só seriam adequados para a utilização de imagens do público “que assiste e aplaude ou vaia”, mas não para público como os AA., que se alteraram e tiveram um discussão com o actor João ......
Só que a conduta dos AA. apenas aos mesmos é devida, não só porque da matéria de facto provada decorre que foram os mesmos que se levantaram voluntariamente, para abandonar o local do espectáculo, como igualmente porque decorre que foi cada um dos AA. que iniciou a “discussão” com o referido actor, começando por expressar a sua opinião sobre o trabalho do mesmo.
E tendo os AA. valorado o trabalho do actor em questão como humorista, caracterizando-o (o 1º A.) como alguém que está a ser avisado pela plateia que “não está a ter piada” e interrogando-o (a 2ª A.) sobre a sua aptidão para fazer aquele tipo de espectáculo, adjectivando-o ainda de “nulidade”, na dinâmica do “documentário” a que se destinava a captação de imagens e do canal de televisão onde ia ser emitido (nos termos explicados pelo próprio actor e do conhecimento prévio dos AA.), tornava-se praticamente obrigatório que aí fosse incluído aquele protagonismo desses dois espectadores do espectáculo de 18/1/2012, por se tornar um elemento imprescindível na documentação da já referida qualidade de “humorista” do “cabeça‑de‑cartaz” em questão.
Ou, dito de outra forma, foram os AA. que contribuíram activamente para a inclusão das suas imagens no referido programa, através da forma como quiseram ser espectadores, não meramente passivos, mas “elevando a fasquia” do padrão comportamental típico do espectador de comédia, dirigindo-se directamente ao comediante e expressando, no decurso do próprio espectáculo, a sua opinião sobre a competência profissional do mesmo, e apesar de já saberem que tal espectáculo se destinava (no que ao registo de imagens e sua subsequente difusão respeitava), a documentar tal competência profissional (ou falta dela).
Assim, mais se impunha aos AA. que, não concordando com a difusão da sua imagem (e voz), ainda por cima no contexto dessa “proactividade” atípica dos espectáculos de comédia, declarassem tal discordância à R. (atenta a qualidade desta de titular da autorização para a exploração do canal temático S. Radical), assim obrigando a mesma a respeitar o seu direito à imagem, não procedendo a essa difusão.
Resulta provado que os AA. não efectuaram qualquer declaração à R. (nem a qualquer outro interveniente no processo de produção e difusão do referido programa televisivo), no sentido de não aceitarem a divulgação das suas imagens e sons que foram recolhidos no espectáculo de 18/1/2012, até ao momento em que a R. iniciou a difusão televisiva do mesmo (incluindo a promoção respectiva), no final de Janeiro de 2013.
Mais resulta provado que não foi a R. quem produziu e realizou tal programa de televisão, mas sim a produtora C., a quem a R. adquiriu os direitos necessários para poder difundir tal programa no canal S. Radical, incluindo o material promocional do mesmo, também produzido pela mesma C..
E mais resulta provado que, nos termos do contrato celebrado entre ambos, a C. declarou à R. que detinha todas as autorizações necessárias à utilização da imagem dos intervenientes nesse programa (aqui se incluindo, naturalmente, a imagem de todos e cada um dos espectadores que estiveram presentes nos espectáculos gravados, cujos excertos serviram para produzir tal programa).
E mais resulta ainda provado que essa declaração da C. à R. constituiu condição expressa da R. para a aquisição dos direitos para a referida transmissão em televisão, tanto mais que a C. se declarou responsável perante a R. por qualquer reclamação decorrente de faltas de autorização relativas a direitos de personalidade.
Ou seja, tendo presente as trocas de declarações entre a R. e a C., e face ao referido silêncio dos AA., a R. podia presumir a existência da “manifestação de vontade, livre, específica e informada” dos AA. para a difusão das imagens e sons dos mesmos que foram captadas em 18/1/2012, no Teatro Estúdio Mário Viegas, durante o espectáculo “João ..... Convida… Alexandre .....”, ainda que não houvesse qualquer “autorização expressa, específica e escrita”, e mesmo que tais imagens e sons apresentassem os AA. como espectadores desagrados com a performance do actor João ......
E estando-se perante a referida “presunção de consentimento” dos AA., a reprodução das imagens e sons dos mesmos pela R. não constitui qualquer acto ilícito e culposo de violação do direito à imagem dos AA., já que tal intromissão nessa componente do direito de personalidade dos mesmos é autorizada pelos próprios, nos termos permitidos pelo art.º 79º, nº 1, do Código Civil, e face à definição de consentimento constante da al. h) do art.º 3º da Lei 67/98, de 26/10.
Por isso é que não há como não concordar com o afirmado na sentença recorrida, relativamente à ausência de verificação de “um dos pressupostos basilares da responsabilidade civil aquiliana – a culpa”, e assim se tornando desnecessário conhecer da questão dos danos e da determinação da medida da indemnização correspondente, incluindo a invocada “indemnização punitiva”.
Ou seja, na improcedência das conclusões dos AA., não há que fazer qualquer censura à sentença recorrida.

DECISÃO
Em face do exposto julga-se improcedente o recurso, mantendo-se a sentença recorrida.
Custas pelos AA.

Lisboa, 26 de Setembro de 2019
António Moreira
Carlos Castelo Branco
Lúcia Sousa