Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
2018/20.8YRLSB-2
Relator: GABRIELA CUNHA RODRIGUES
Descritores: TRIBUNAL ARBITRAL
COMPETÊNCIA
CONSUMIDOR
CONTRADITÓRIO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/11/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I - A Lei n.º 63/2019, de 16.8, procedeu à quinta alteração à Lei n.º 24/96, de 31.7 (Lei de Defesa do Consumidor), passando a prever-se no artigo 14.º, n.ºs 2 e 3, que os conflitos de consumo de reduzido valor económico (5 000 €) estão sujeitos a arbitragem necessária ou mediação quando, por opção expressa dos consumidores, sejam submetidos à apreciação de tribunal arbitral adstrito aos centros de arbitragem de conflitos de consumo legalmente autorizados.
II - O artigo 12.º, n.º 2, do Código Civil salvaguarda, em parte, o «estatuto do contrato», admitindo que os contratos estão submetidos, em princípio, ao longo de toda a sua vida, à lei vigente no momento da sua conclusão.
III - Porém, no caso estão em causa normas de cariz processual, protecionistas dos consumidores como parte «mais fraca», pelo que a autonomia contratual inerente ao «estatuto do contrato» deve sofrer uma compressão, permitindo-se a aplicação imediata da lei nova.
IV - O processo no Centro de Arbitragem do Sector Automóvel (CASA) tem início com a apresentação da reclamação e pode desenrolar se nas seguintes fases: informação, mediação, conciliação, instrução e arbitragem.
V - Afastada a data da celebração do contrato como leitmotiv da aplicação da lei no tempo, o momento a considerar é o da data da entrada do requerimento de arbitragem e não o momento da reclamação.
VI - O princípio da proteção da confiança deflui de um dos elementos materiais justificadores e imanentes do Estado de Direito: a segurança jurídica dedutível do artigo 2.º da CRP, cuja dimensão subjetiva aponta para a estabilidade, continuidade, permanência e regularidade das situações e relações jurídicas vigentes.
VII - A Lei n.º 63/2019 não preconiza uma mutação da ordem jurídica intolerável e opressiva dos mínimos de certeza e segurança, vindo apenas facultar ao consumidor uma forma adicional mais acessível de fazer valer os seus direitos, não se congeminando uma expetativa da outra parte a uma «decisão fora da arbitragem» tutelável pelo Direito.
VIII - Na falta de acordo entre as partes, os custos das peritagens poderão ser determinados pelo tribunal arbitral, sendo as partes encarregues de caucionar a peritagem, informadas previamente do valor a título de preparos que resulta do «orçamento» apresentado, como se retira das disposições conjugadas dos n.ºs 1 a 6 do artigo 48.º do Regulamento do Centro de Arbitragem do Sector Automóvel.
IX - Quando o n.º 7 do artigo 48.º do Regulamento alude ao cancelamento da perícia por falta de pagamento, contempla, por inferência lógica-jurídica segundo um argumento «a maiori ad minus», a asserção de que a parte que não procedeu ao pagamento do preparo pode ficar impedida de colocar questões ou de pedir esclarecimentos ao perito, inclusive em audiência de julgamento.
X - Segundo o princípio da autorresponsabilidade das partes, as partes sofrem as consequências jurídicas prejudiciais da sua negligência ou inépcia na condução do processo, que fazem a seu próprio risco.
XI - A Reclamada remeteu-se ao silêncio quanto ao objeto das questões submetidas ao Perito, bem como relativamente ao pagamento de metade dos preparos, mesmo depois de advertida de que, no caso de pretender colocar questões, deveria proceder a tal pagamento.
XII - Ao omitir o pagamento de preparo, num caso em que a perícia se traduziu tão-só na audição do Perito em audiência, a parte tinha de contar com uma decisão do Tribunal Arbitral em consonância com a «missão» que definiu para a peritagem (cf. artigo 47.º, n.º 2, alínea b), do referido Regulamento).
XIII - A impugnação da decisão arbitral apenas se pode fazer através do pedido da sua anulação, e nos estritos e taxativos termos e fundamentos do artigo 46.º da Lei da Arbitragem Voluntária, os quais se assumem como vícios ou irregularidades a latere do objeto/mérito do pleito.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa

I - Relatório
1. M…. Automóvel, Lda. intentou contra Valter… a presente ação declarativa de anulação da decisão arbitral proferida em 21.9.2020, invocando a incompetência do tribunal arbitral e o vício da nulidade por inobervância do princípio do contraditório, ao abrigo do artigo 46.º, n.º 3, alínea a), ponto i), e n.º 3, alínea a), ponto ii), e 30.º, respetivamente, da Lei n.º 63/2011, de 14.12 (doravante, LAV).
Alegou, para tal, que:
- A 27.8.2020, Valter … apresentou reclamação de garantia de peças que tinha adquirido à M… Automóvel, Lda. junto do Centro de Arbitragem do Sector Automóvel (CASA), instaurando o processo n.º 2150/2019, que culminou na decisão arbitral n.º 11/2020;
- Com a reclamação por si apresentada, o ora Requerido pretendia que a ora Requerente fosse condenada a ressarcir o primeiro no valor de 886,97 €,  montante pelo qual terá adquirido novas peças para montar na sua viatura;
- A referida reclamação tinha por objeto as peças que o Reclamante adquiriu no estabelecimento da Requerente em 3.4.2019, as quais, por terem apresentado problemas de funcionamento, e após uma avaliação preliminar pela Reclamada, foram enviadas para a fábrica de origem na Alemanha, para se proceder a uma peritagem técnica;
- Frustradas as possibilidades de mediação e conciliação perante o Diretor do Centro de Arbitragem do Sector Automóvel (CASA), o processo transitou para a fase de instrução, com vista à arbitragem;
- A Requerente não está legalmente vinculada à decisão arbitral, por se verificar a incompetência do Tribunal Arbitral;
- A Lei n.º 63/2019, de 16.8 alterou a Lei de Defesa do Consumidor, no sentido de prever que «os conflitos de consumo de reduzido valor económico estão sujeitos a arbitragem necessária ou mediação quando, por opção expressa dos consumidores, sejam submetidos à apreciação de tribunal arbitral adstrito aos centros de arbitragem de conflitos legalmente autorizados.»;
- Apesar de ter sido opção do consumidor sujeitar o presente litígio a arbitragem necessária, a alteração legislativa não se aplica, pois a reclamação em análise foi apresentada a 27.8.2019, pelo que, segundo o artigo 12.º do Código Civil, que estabelece que a lei só dispõe para o futuro, o litígio em questão não ficou sujeito a arbitragem necessária;
- A Requerente manifestou na contestação que não tinha intenção de prosseguir o litígio no Tribunal Arbitral, pelo que, legitimamente, requereu que o tribunal procedesse à sua absolvição da instância;
- Contrariamente ao decidido, a data relevante será, quando muito, a da reclamação junto do Centro (comunicada à Reclamada em 27.8.2019), tendo em consideração o disposto no artigo 11.º, n.º 1, do Regulamento do Centro de Arbitragem do Sector Automóvel, segundo o qual o processo tem início com a reclamação;
- Em bom rigor, deve aplicar-se a lei em vigor à data da celebração do contrato (3.4.2019);
- A sujeição deste litígio à alteração da Lei de Defesa do Consumidor, efetuada pela Lei n.º 63/2019, viola o princípio da proteção da confiança decorrente do princípio do Estado de Direito Democrático constante do artigo 2.º da Constituição da República Portuguesa;
- A inexistência de convenção arbitral, nem mesmo na modalidade de cláusula compromissória (artigo 1.º, n.ºs 1 e 3, e artigo 2.º, n.º 6 da LAV), implica a falta de jurisdição dos tribunais arbitrais sobre o caso;
- Uma vez que o Centro de Arbitragem do Sector Automóvel (CASA) pode decidir sobre a sua incompetência, atendendo ao disposto no artigo 18.º, n.º 1, da LAV, deveria ter declarado a absolvição da Requerente da instância;
- A inexistência de convenção arbitral implica, portanto, a incompetência do tribunal arbitral para dirimir o litígio, constituindo, nos termos do artigo 46.º, n.º 3, alínea a), ponto i), da LAV, fundamento de anulação da sentença arbitral;
- Por mera cautela, impugna a referida decisão arbitral também por violação do princípio do contraditório, nos termos dos artigos 46.º, n.º 3, alínea a), ponto ii) e 30.º, n.º 1, alínea c), da LAV;
- A Requerente conduziu um exame preliminar das peças que apontou para sobreaquecimento por uso indevido e reencaminhou as peças para o fabricante da respetiva marca, que corroborou a sua análise preliminar;
- Estes relatórios foram juntos ao processo de arbitragem n.º 2150/2019, através da contestação da Requerente, tendo por isso o Requerido tido conhecimento deles desde o início e a possibilidade de assim exercer o devidamente o contraditório;
- Na lista dos factos que a sentença arbitral deu como provados, consta, na alínea o), que: «O sobreaquecimento de uma embraiagem e volante de motor pode dever-se a três causas diferentes: defeito de fabrico de algumas peças, condução desadequada ou instalação incorrecta das peças (perito).»;
- Não consta dos factos provados a referência aos relatórios periciais apresentados pela Requerente, quer os da marca das peças, quer aqueles que realizou no momento da queixa do Requerido no seu estabelecimento;
- Lê-se, contudo, na alínea o) dos factos provados vertidos na decisão arbitral, entre parêntesis «perito», o que significa a consideração do depoimento do perito, sobre o qual a Requerente não teve oportunidade de se pronunciar;
- Após a enumeração dos factos que a decisão arbitral deu por provados, vem referido que «Os factos provados tiveram por base os documentos juntos aos autos, o depoimento das três testemunhas apresentadas e o depoimento do perito.»;
- Porém, na enunciação dos factos provados, como se pode ler na decisão arbitral, apenas é referido o perito;
- Vem ainda referido na decisão arbitral que «O perito foi claro na explicação das várias causas para o sobreaquecimento de uma embraiagem, ficando demonstrado que podem existir outras além da má condução, designadamente defeito de fabrico ou má instalação. (…)»;
- Para além de a avaliação do perito ter sido feita sem análise das peças objeto da reclamação, tratando-se de uma avaliação superficial e generalista, nunca foi dada oportunidade à Requerente para se pronunciar quanto à análise do perito, nem mesmo durante a audição do mesmo;
- Na verdade, sob o pretexto de que os honorários do perito, tinham sido suportados pelo Requerido, não foi permitido à Requerente colocar esclarecimentos e assim poder exercer o contraditório;
- A única prova que corrobora o sentido da decisão é o referido depoimento do perito, que foi feito sem análise das peças danificadas, tratando, em bom rigor, de meras possibilidades teóricas sobre causas de sobreaquecimento de qualquer peça igual àquelas que sofreram, de facto, avarias;
- Não bastasse o facto do depoimento do perito não ter versado concretamente sobre as avarias objeto da reclamação, em momento algum pôde a Requerente pronunciar-se quanto a esse depoimento – que teve influência decisiva e determinante na decisão do litígio;
- O princípio fundamental da igualdade processual impõe um tratamento não discriminatório das partes, de modo a que qualquer delas não se veja impedida, sem fundamento, de exercer um direito legítimo;
- O depoimento do perito foi absolutamente vago, não tendo versado sequer as peças na origem da reclamação, enquanto a avaliação feita pela Requerente, bem como a avaliação feita pela fabricante das peças notaram marcas de sobreaquecimento da embraiagem e gordura proveniente de fugas, devidas a uma utilização imprudente da mesma e possível má montagem;
- Nos termos da alínea a), ponto ii), do n.º 3 do artigo 46.º da LAV, releva como fundamento de anulação da decisão arbitral ter existido no processo a violação dos princípios referidos no artigo 30.º, n.º 1, de entre os quais, o da igualdade das partes e do contraditório, «com influência decisiva na resolução do litígio», o que tem o significado de, na citada causa de anulação da decisão arbitral, não caber qualquer violação, mas apenas a que influa decisivamente na resolução do litígio.
Regularmente citada, a Ré apresentou contestação, na qual pugnou pela improcedência da ação de anulação.
*
II - Questão a decidir
As questões que se suscitam na presente ação são as seguintes:
- Saber se se verifica a incompetência do tribunal arbitral;
- Indagar acerca da (in)obervância do princípio do contraditório, designadamente no que concerne à prova pericial.
*
III - Fundamentação
Dos factos
Os elementos factuais e processuais relevantes para a decisão são os seguintes:
Factos considerados provados na decisão arbitral
a)  O Reclamante celebrou um contrato de compra e venda com a Reclamada no dia 3.4.2019 para aquisição de peças para a sua viatura marca Mercedes, com a matrícula …DU-92 (fls. 11).
b)  Adquiriu um kit de embraiagem e um volante de motor da marca LUK, um rolamento de embraiagem da marca FTE, um kit de parafusos e seis parafusos (fls. 11).
c)  O valor total pago foi de 886,97 €, dividindo-se da seguinte forma (já com o IVA):
- kit de embraiagem: 330,87 €
- volante de motor: 424,35 €
- rolamento de embraiagem da marca FTE: 97,17 €
- um kit de parafusos: 19,15 €
- seis parafusos: 15,42 €
d)  As peças foram montadas no veículo do Reclamante por um mecânico escolhido por si.
e) O veículo é utilizado pelo Reclamante para fins não profissionais (audiência).
f)  Cerca de dois meses depois da compra, o Reclamante começou a ter dificuldades em colocar algumas mudanças.
g)  Comunicou esse facto à Reclamada que lhe disse que teria de desmontar as peças para poderem verificar a situação.
h) No dia 24.6.2019, o Reclamante deslocou-se à loja da Reclamada, já com as peças.
i) No que diz respeito ao rolamento de embraiagem da marca FTE, a Reclamada recebeu uma comunicação do agente da marca, reencaminhando uma mensagem do fornecedor, na qual se pode ler «Your claim has been accepted by goodwill. You will receive a credit note». (fls. 98)
j) Com base nesta comunicação a Reclamada está disposta a conceder uma nota de crédito ao Reclamante, permitindo-lhe adquirir uma peça na sua loja de igual valor - 97,17 €. (contestação).
k) A embraiagem e o volante do motor mostravam sinais de sobreaquecimento (alegado pelo Reclamante e confirmado pela Reclamada).
l)   A Reclamada elaborou relatórios técnicos, pelo menos, sobre o kit de embraiagem e sobre o volante do motor (fls. 26 e 31).
m) Além disso, enviou essas peças para o representante da marca LUK em Portugal que elaborou novos relatórios sobre as mesmas peças (fls. 23 e 25 e fls. 128-130).
n)  No dia 9.8.2019, o Reclamante comprou novas peças para a sua viatura noutro estabelecimento comercial.
o)  O sobreaquecimento de uma embraiagem e volante e motor pode dever-se a três causas diferentes: defeito de fabrico de alguma das peças, condução desadequada ou instalação incorreta das peças (perito).
Elementos do processo arbitral
A) No dia 5.8.2019, deu entrada no Centro de Arbitragem do Sector Automóvel uma reclamação de Valter … contra M….Automóvel, Lda. (fls. 1).
B) Por e-mail de 27.8.2019, o Centro de Arbitragem informou da reclamação apresentada por Valter…, referente à venda (Fatura 100028352) de peças para um veículo automóvel de marca Mercedes C220, com a matrícula …DU-92.
Consta ainda do referido e-mail que:
«Aproveitamos para informar que:
1. O Centro de Arbitragem promove a resolução de litígios através da mediação, conciliação e arbitragem;
2. Numa primeira fase poderá obter todas as informações que pretender sobre o modo de funcionamento do Centro, bem como sobre a situação jurídica relacionada com o litígio acima referido, através de contacto com a jurista abaixo indicada;
3. Posteriormente, e caso as partes aceitem, o processo transita para a mediação. A mediação é inteiramente gratuita, voluntária e sigilosa, ou seja, as partes são livres de apresentar as suas ideias e sugestões de resolução do problema, sem que fique qualquer registo no processo. Caso não cheguem a acordo, não resulta nenhuma consequência entre as partes.
4. Finda a mediação, o processo entra na fase da instrução, com vista à conciliação e arbitragem, fase igualmente voluntária (…)» - fls. 32.
C) No dia 19.12.2019, o Reclamante enviou um e-mail à Mandatária da Reclamada, com o seguinte teor:
«(…) Na sequência de reclamação que se encontra pendente no Centro de Arbitragem, uma vez estabelecidos contactos com V. Exas., não se disponibilizaram para a resolução do litígio.
Pelo exposto, venho informar que o processo vai transitar para a fase de instrução no âmbito da qual poderá o litígio ser submetido à apreciação do tribunal arbitral do Centro» (fls. 2).
 D) No dia 17.1.2020, a CASA enviou um e-mail ao Reclamante, com o seguinte teor:
«Encontrando-se o presente processo em fase de instrução, deve V. Exa. formalizar a reclamação, com vista a apresentação da mesma à entidade reclamada.
Para o efeito, muito agradecemos o preenchimento do impresso de reclamação (…).» (fls. 6)
E) No dia 20.1.2020, Valter … apresentou requerimento arbitral contra a M…Lda., no qual peticionou o ressarcimento do valor de 886,97€, referiu que a denúncia ocorreu no dia 5.8.2019 no livro de reclamações do estabelecimento da Reclamada e descreveu os factos que estão na origem do conflito, bem como juntou a fatura da compra e as mensagens trocadas com a empresa reclamada (fls. 8 a 18).
F) No dia 31.1.2020, o CASA notificou a M… da reclamação apresentada para, nos termos do artigo 15.º do Regulamento do Centro, contestar por escrito, no prazo de 20 dias a contar da notificação, a que deveriam ser anexados os documentos de prova entendidos por convenientes, podendo ainda indicar testemunhas a apresentar no julgamento arbitral (fls. 20).
G) No dia 19.2.2020, a Mandatária da Reclamada apresentou junto do CASA a contestação e documentos, tendo manifestado que não tinha intenção de prosseguir o litígio no Tribunal Arbitral e requerido a sua absolvição da instância (fls. 33 a 43).
H) No dia 20.2.2020, o CASA notificou o Reclamante da contestação apresentada e informou que o processo iria ser incluído nas listas para marcação de julgamento.
I) No dia 17.6.2020, o CASA informou as partes de que, nos termos do artigo 32.º, n.º 1, do Regulamento do Centro de Arbitragem do Sector Automóvel, procederam à nomeação de uma árbitra e notificou-as, nos termos do artigo 32.º, n.º 8, do mesmo diploma, para se pronunciarem em conformidade, no prazo máximo de quinze dias (fls. 69 a 72).
J) No dia 3.7.2020, o CASA notificou o Reclamante de que se encontrava designado o dia 23.7.2020, pelas 14.00h, para a realização da tentativa de conciliação e julgamento arbitral por videoconferência através da plataforma zoom (fls. 82 a 84).
Mais o notificou para efetuar o pagamento da sua responsabilidade, nos termos do n.º 3 do artigo 50.º do Regulamento do Centro, no montante de 70 euros, com comprovativo a remeter ao Centro de Arbitragem até ao dia 17.7.2020.
K) No mesmo dia 3.7.2020, o CASA notificou a Reclamada de que se encontrava designado o dia 23.7.2020, pelas 14.00h, para a realização da tentativa de conciliação e julgamento arbitral por videoconferência através da plataforma zoom (fls. 82 a 86).
Mais o notificou para efetuar o pagamento dos preparos da sua responsabilidade, nos termos do n.º 3 do artigo 50.º do Regulamento do Centro, no montante de 80 euros, com comprovativo a remeter ao Centro de Arbitragem até ao dia 17.7.2020.
L) As partes procederam ao pagamento dos preparos, conforme resulta de fls. 87 a 91.
M) No dia 23.7.2020, realizou-se a audiência, na qual se procurou alcançar um acordo entre as partes e se ouvira as duas testemunhas apresentadas pela M….
N) Consta da ata da audiência que:
«Finda a inquirição, foi colocada a possibilidade de o Reclamante requerer uma peritagem imparcial através do Centro de Arbitragem.
A audiência foi suspensa, tendo ficado combinado que o tribunal apresentará uma proposta quanto às perguntas a colocar ao perito, nos termos do artigo 48.º-2 do Regulamento do CASA. O Reclamante, que será o requerente da peritagem, poderá sugerir alterações ou aditamentos a essas perguntas. O Secretariado do Tribunal contactará posteriormente o Reclamante para o pôr a par do procedimento para requerimento da peritagem e recolher o seu consentimento para avançar com o pedido».
O) No mesmo dia 23.7.2020, foi proferido o seguinte despacho:
«A audiência de julgamento foi suspensa, conforme consta da respetiva ata, para o Reclamante decidir se pretende requerer uma peritagem, decisão essa que estará dependente dos custos da mesma.
Ficou combinado que o tribunal apresentaria uma proposta quanto às perguntas a colocar ao perito, nos termos do artigo 48.º-2 do Regulamento do CASA, o que se faz de seguida:
1. Qual o motivo da avaria das peças apresentadas?
2. Admitindo que a avaria se deveu a um sobreaquecimento das peças, o que pode causar esse sobreaquecimento? Apenas uma atuação do utilizador do veículo ou pode haver outras razões?
3. Imaginando que se tratou de má utilização do condutor, é possível que essa má utilização causa danos desta natureza em apenas dois meses?
4. Que tipo de atuação é necessária para causar este tido de desgaste na peça em dois meses?
O Reclamante que será o requerente da peritagem poderá sugerir alterações ou aditamentos a estas perguntas.
***
Solicita-se aos Serviços Administrativos que contactem o Reclamante para o informar quanto ao procedimento e custas para requerimento da intervenção de peritos e as várias modalidades dessa intervenção».
P) No dia 24.7.2020, o Reclamante enviou e-mail ao CASA a sugerir outras questões ao perito a ser chamado nos autos.
Q) No dia 1.9.2020, foi proferido o seguinte despacho:
«Na sequência do pedido do Reclamante, o CASA solicitou junto do CEPRA a indicação de um perito. Esta entidade indicou o nome de um perito independente – Eng. Daniel …– que foi contactado, tendo aceitado estar presente na continuação da audiência de julgamento para responder a questões. O perito não irá analisar as peças, mas apenas dar a sua opinião técnica sobre as causas que podem conduzir a um problema como o descrito nos autos.
O orçamento foi de 50 % mais IVA (portanto 61,65€).
Solicita-se ao Reclamante que declare se pretende que o perito referido esteja presente na audiência, pagando o valor apresentado.
Solicita-se à Reclamada que se pronuncie igualmente sobre se pretende ter também a oportunidade de colocar questões ao perito (além das que serão colocadas pelo Reclamante e pelo tribunal). Em caso afirmativo, deverá suportar metade do valor cobrado pelo perito.
Caso o Reclamante pretenda a presença do perito, a continuação da audiência será realizada (…)» (fls. 102).
R) No dia 2.9.2020, foram enviados e-mails a ambas as partes, notificando-as do despacho de 1.9.2020 (fls. 103).
S) Realizou-se a audiência de julgamento no dia 14.9.2020, com a audição do Perito.
T) No dia 17.9.2020, o Reclamante procedeu ao pagamento do valor de 61,50 € (fls. 124).
U) No mesmo dia 17.9.2020, a Reclamada enviou e-mail a juntar aos autos dois relatórios de garantia emitidos pela Sch…, bem como um e-mail em que a referida empresa explica os procedimentos relativos ao acionamento de garantias (fls. 127 a 132).
V) No dia 22.9.2020, foi proferida decisão arbitral com o seguinte dispositivo:
«8. Da decisão
- Condena-se a Reclamada a pagar ao Reclamante 802,72 € (relativos ao kit de embraiagem: 330,87 €; volante de motor: 424,35 € e custas: 47,5 €)
- Absolve-se a Reclamada do pedido no que diz respeito aos parafusos e à peça da FTE (quanto à qual aquela se comprometeu a disponibilizar uma nota de crédito ao Reclamante).» (fls. 134 a 143)
Do Direito
Da (in)competência do tribunal arbitral
Os presentes autos configuram uma ação de anulação de decisão arbitral.
Estabelece o artigo 54.º do Regulamento do Centro de Arbitragem do Sector Automóvel que:
«1. A decisão arbitral pode ser anulada, por acção interposta junto do tribunal estadual competente, no prazo de 60 dias a contar da sua notificação, nos termos e com os fundamentos previstos no nº 2 e no nº 3 do artº 46º da Lei nº 63/2011 de 14 de Dezembro.
2. Da decisão arbitral cabem para o tribunal da relação os mesmos recursos que caberiam da sentença proferida pelo tribunal de comarca.(…)»
Por seu turno, preceitua o artigo 46.º da LAV que:
«(…) 2 - O pedido de anulação da sentença arbitral, que deve ser acompanhado de uma cópia certificada da mesma e, se estiver redigida em língua estrangeira, de uma tradução para português, é apresentado no tribunal estadual competente, observando-se as seguintes regras, sem prejuízo do disposto nos demais números do presente artigo:
a) A prova é oferecida com o requerimento;
b) É citada a parte requerida para se opor ao pedido e oferecer prova;
c) É admitido um articulado de resposta do requerente às eventuais excepções;
d) É em seguida produzida a prova a que houver lugar;
e) Segue-se a tramitação do recurso de apelação, com as necessárias adaptações;
f) A acção de anulação entra, para efeitos de distribuição, na 5.ª espécie.
3 - A sentença arbitral só pode ser anulada pelo tribunal estadual competente se:
a) A parte que faz o pedido demonstrar que:
i) Uma das partes da convenção de arbitragem estava afectada por uma incapacidade; ou que essa convenção não é válida nos termos da lei a que as partes a sujeitaram ou, na falta de qualquer indicação a este respeito, nos termos da presente lei; ou
ii) Houve no processo violação de alguns dos princípios fundamentais referidos no n.º 1 do artigo 30.º com influência decisiva na resolução do litígio; (…)»
A ora Requerente considera-se não vinculada à decisão arbitral, por incompetência do Tribunal Arbitral, tendo manifestado na sua contestação que não tinha intenção de prosseguir o litígio e aí requerido a sua absolvição da instância.
Argui que a Lei n.º 63/2019, de 16.8, que alterou a Lei n.º 24/96, de 31.7 (Lei de Defesa do Consumidor), passando a prever a arbitragem necessária em conflitos como o presente, não se aplica ao caso, uma vez que a reclamação foi apresentada em 27.8.2019, data anterior à entrada em vigor da referida Lei (15.9.2019).
Invoca, para o efeito, o disposto no artigo 12.º do Código Civil, no segmento em que estabelece que a lei só dispõe para o futuro.
Argui que, contrariamente ao decidido, a data relevante a ter em linha de conta é a da reclamação junto do CASA (comunicada à Reclamada em 27.8.2019), atendendo ao disposto no artigo 11.º, n.º 1, do Regulamento do Centro de Arbitragem do Sector Automóvel, segundo o qual o processo tem início com a reclamação.
Sem conceder, entende que, em bom rigor, há que ter em consideração a lei vigente no momento da conclusão do contrato, em 3.4.2019.
Neste particular, lê-se na decisão recorrida que:
«Na contestação alega a Reclamada que o tribunal arbitral é incompetente, dado que o litígio surgiu antes da data da entrada em vigor da Lei n.º 63/2019, de 16 de agosto.
A Lei n.º 63/2019, de 16 de agosto, entrou em vigor a 15 de setembro de 2019 (art. 3.º).
Esta Lei altera a Lei de Defesa do Consumidor (Lei n.º 24/96, de 31 de julho), que passa a prever que "os conflitos de consumo de reduzido valor económico estão sujeitos a arbitragem necessária ou mediação quando, por opção expressa dos consumidores, sejam submetidos à apreciação de tribunal arbitral adstrito aos centros de arbitragem de conflitos de consumo legalmente autorizados" (art.14.º-2).
Não estabelecendo esta lei regime específico quanto à sua aplicação no tempo, importa aplicar as normas gerais do artigo 12.º do Código Civil para apurar os casos aos quais se aplica a norma referida.
Segundo o princípio geral do artigo 12.º-1 do Código Civil "a lei só dispõe para o futuro".
Entende-se que o artigo 12.º-2 do Código Civil salvaguarda, em parte, o "estatuto do contrato", admitindo que os contratos estão submetidos, em princípio, ao longo de toda a sua vida à lei vigente no momento da sua conclusão.
Esta limitação justifica-se pelo respeito ao princípio da autonomia privada das partes, entendendo-se que as partes estabelecem, tendo em conta a lei vigente à data da conclusão do contrato, "um certo equilíbrio de interesses que será como que a matriz do regime da vida e da economia da relação contratual".
Contudo, aquilo de que se trata quando se fala do estatuto do contrato é de direitos e obrigações substantivos e não de direitos processuais.
Aquilo que não pode ser tocado por uma lei nova é o equilíbrio entre as vantagens e sacrifícios que cada parte assume no contrato e os direitos e obrigações que existem em caso de incumprimento do contrato. Não está abrangido pelo estatuto do contrato a forma como cada uma pode fazer valer, de um ponto de vista processual, os seus direitos.
Assim, uma lei nova não se aplicaria se estabelecesse que o consumidor teria, por exemplo, um direito de arrependimento em contratos celebrados presencialmente, mas aplica‑se se estabelecer uma nova forma de fazer valer (processualmente) um direito que o consumidor já tinha.
Note-se aliás que, no caso que nos ocupa, o consumidor sempre poderia ter submetido o presente litígio aos tribunais judiciais. O art. 14.º-2 da LDC vem apenas facultar-lhe uma forma adicional de alcançar o mesmo propósito fazer valer os seus direitos. Aquilo que a empresa poderia alegar é que a arbitragem é uma forma mais acessível ao consumidor. Porém, parece-nos que o argumento de que a parte tinha a expectativa de que a outra tivesse maior dificuldade em exigir o cumprimento não é atendível.
Pelo exposto, conclui-se que a norma do n.º 2 do art. 14.º da Lei de Defesa do Consumidor não integra o estatuto material do contrato, pelo que se aplica a partir do momento da sua entrada em vigor (16 de setembro de 2019), mesmo no que diz respeito a contratos anteriores, pelo que o consumidor tem o direito de iniciar uma arbitragem nos termos da referida norma a partir dessa data.
No que diz respeito à data da reclamação, note-se que o CASA disponibiliza diversos serviços aos seus utilizadores: prestação de informação, mediação e arbitragem (art. 4.º do Regulamento do CASA). Estes são processos distintos, apesar de terem origem na mesma reclamação apresentada pela parte. Assim, a data relevante é a data da apresentação do requerimento arbitral (20/01/2020) e não a data da apresentação da reclamação junto do centro (comunicada à reclamada em 27/8/2019).
Na sequência dos Despachos Ministeriais n.º 532/99, de 23 de dezembro, n.º 26196/2002, de 27 de novembro, e n.º 14916/2008, de 9 de maio, foi criado, no âmbito da Associação de Arbitragem Voluntária de Litígios do Sector Automóvel, o Centro de Arbitragem do Sector Automóvel, que passará a ser designado por CASA.
O CASA é uma entidade legalmente habilitada a realizar arbitragens voluntárias institucionalizadas.
O Reclamante solicitou ao CASA a resolução do presente litígio, ao abrigo do artigo 14.º-2 da Lei de Defesa do Consumidor (Lei n.º 24/96, de 31 de julho), segundo o qual "os conflitos de consumo de reduzido valor económico estão sujeitos a arbitragem necessária ou mediação quando, por opção expressa dos consumidores, sejam submetidos à apreciação de tribunal arbitral adstrito aos centros de arbitragem de conflitos de consumo legalmente autorizados". Esta lei aplica-se ao presente processo, pelos motivos atrás descritos
Apreciando:
A resolução alternativa de litígios (RAL) proporciona o acesso dos consumidores à justiça através de uma solução extrajudicial mais simples e rápida e menos onerosa.
Para esse efeito, tem sido promovida a criação de entidades vocacionadas para a resolução extrajudicial de conflitos na área do consumo.
Em 1986 foi legalmente reconhecida a possibilidade de se dirimirem litígios através da arbitragem voluntária institucionalizada e, desde então, têm sido criados centros de arbitragem para solucionar os litígios na área do consumo.
Em 2011, o Decreto-Lei n.º 60/2011, de 6.5 criou a RNCAI - Rede Nacional de Centros de Arbitragem Institucionalizada e, no mesmo ano, foi publicada a nova lei regulamentadora da arbitragem voluntária – LAV -, que revogou a legislação de 1986.
A Lei n.º 6/2011, de 10.3, que alterou a Lei de Defesa do Consumidor, instituiu a arbitragem necessária para os serviços públicos essenciais, a qual tem lugar quando os utentes, enquanto pessoas singulares, optem expressamente por submeter o litígio à apreciação do tribunal arbitral dos centros de arbitragem de conflitos de consumo legalmente autorizados.
Entretanto, a Lei n.º 63/2019, de 16.8, alargou o âmbito da arbitragem necessária, ao permitir que os conflitos de consumo de reduzido valor económico sejam submetidos à apreciação de tribunal arbitral, procedendo-se, assim, à quinta alteração à Lei de Defesa do Consumidor. Tendo presente o disposto no artigo 3.º da referida Lei, esta alteração entrou em vigor no dia 15.9.2019 (30 dias após a publicação).
Preceitua o artigo 14.º, n.ºs 2 e 3, da Lei de Defesa do Consumidor que:
«2 - Os conflitos de consumo de reduzido valor económico estão sujeitos a arbitragem necessária ou mediação quando, por opção expressa dos consumidores, sejam submetidos à apreciação de tribunal arbitral adstrito aos centros de arbitragem de conflitos de consumo legalmente autorizados.
3 - Consideram-se conflitos de consumo de reduzido valor económico aqueles cujo valor não exceda a alçada dos tribunais de 1.ª instância.» (5 000 € - artigo 44.º, n.º 1, da LOSJ).
Na situação em apreço, está em causa um contrato de compra e venda celebrado no dia 3.4.2019 entre Valter …e M…, Lda. -  alínea A) da fundamentação de facto.
Por e-mail de 27.8.2019, o Centro de Arbitragem comunicou à M.. Lda., a entrada da reclamação apresentada, referente à venda de peças para um veículo automóvel de marca Mercedes C220, com a matrícula …DU-92 - alínea B) da fundamentação de facto.
No dia 20.1.2020, Valter …apresentou requerimento arbitral contra a M…Lda., - alínea D) da fundamentação de facto.
Estamos perante um problema de definição do âmbito de aplicabilidade da lei.
É a doutrina do facto passado, na formulação que lhe deu Nipperdey, que inspira o artigo 12.º do nosso Código Civil, artigo esse onde se contêm os princípios gerais sobre a aplicação da lei no tempo para todo o nosso ordenamento jurídico.
Estipula o referido artigo 12.º, n.º 1, do Código Civil que a lei só dispõe para o futuro, quando lhe não seja atribuída eficácia retroativa pelo legislador; e que, mesmo nesta última hipótese, se presumem ressalvados os efeitos já produzidos pelos factos que a lei se destina a regular.
Desenvolvendo o princípio da não retroatividade nos termos da teoria do facto passado, o artigo 12.º, n.º 2, do Código Civil distingue dois tipos de leis ou de normas: aquelas que dispõem sobre os requisitos de validade (substancial ou formal) de quaisquer factos ou sobre os efeitos de quaisquer factos (primeira parte) e aquelas que dispõem sobre o conteúdo de certas situações jurídicas e o modelam sem olhar aos factos que a tais situações deram origem (segunda parte).
As primeiras só se aplicam a factos novos, ao passo que as segundas se aplicam a situação jurídicas constituídas antes da lei nova, mas subsistentes ou em curso à data da sua entrada em vigor.
O n.º 2 do artigo 12.º do Código Civil deixa entrever a possibilidade de leis que regulem o conteúdo das relações jurídicas atendendo aos factos que lhes deram origem (sem abstrair destes factos).
Sintetizando a teoria da aplicação das leis no tempo, há que distinguir entre a constituição e o conteúdo das situações jurídicas.
À constituição das situações jurídicas (requisitos de validade, substancial e formal, factos constitutivos) aplica-se lei do momento em que essa constituição se verifica.
Ao conteúdo das situações jurídicas que subsistam à data da entrada em vigor da lei nova aplica-se imediatamente esta lei, pelo que respeita ao regime futuro deste conteúdo e seus efeitos, com ressalva das situações de origem contratual relativamente às quais poderá haver uma «sobrevigência» da lei antiga (cf. Baptista Machado, in Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Coimbra: Almedina, 13.ª reimp., 1982, pp. 233/234).
Recorrendo à nomenclatura da tradição doutrinal do direito internacional privado, Baptista Machado especificou os seguintes critérios: os «estatuto pessoal» e «estatuto real», sujeitos ao princípio da aplicação imediata da lei nova; o «estatuto do contrato», na parte em que não entre em conflito com regras imperativas do «estatuto pessoal» e do «estatuto real», regulado pela lei vigente ao tempo da conclusão do contrato; a responsabilidade extracontratual, naturalmente regulada pela lei vigente ao tempo de prática do facto gerador da responsabilidade; o «estatuto sucessório», regido pela lei vigente ao tempo da abertura da sucessão (obra citada, p. 234).
É tradicional contrapor ao «estatuto legal» o «estatuto contratual», sendo notório o contraste deste último regime com o princípio da aplicação imediata da lei nova nos restantes domínios jurídicos.
O fundamento do regime específico da sucessão de leis no tempo em matéria de contratos estaria no respeito pelo princípio da autonomia privada e por um certo equilíbrio de interesses que será como que a matriz do regime da vida e da economia da relação contratual.
Porém, como explica Baptista Machado, a doutrina tradicional sobre o critério de resolução dos conflitos de leis no tempo em matéria de contratos condizia perfeitamente com legislação de inspiração liberal, assente no reconhecimento de um largo papel à autonomia da vontade. Tal legislação tinha fundamentalmente um carácter supletivo (obra citada, p. 239).
Presentemente, o papel do legislador, nos quadros de uma conceção intervencionista do Estado na vida económica e social, leva-o a prosseguir objetivos e a utilizar meios inconciliáveis, quer com um amplo respeito do dogma da autonomia da vontade, quer com a subsistência do regime da lei antiga relativamente às situações contratuais em curso.
A eficácia da política económica e social supõe medidas de conjunto extensíveis a todas as situações jurídicas em curso. Daí que, quer a chamada «ordem pública económica de proteção» (medidas legislativas destinadas a tutelar o interesse da parte contratual mais fraca), quer a chamada «ordem pública económica de direção» (medidas de dirigismo económico destinadas a modificar a estrutura ou a equilibrar a conjuntura económica), pesem cada vez mais fortemente sobre as relações contratuais (cf. Baptista Machado, obra citada, pp. 239-240).
O que de facto acontece, diz o Autor, «é que o chamado «estatuto do contrato» (ou melhor, o estatuto da autonomia privada) sempre foi um “estatuto” subordinado relativamente aos restantes "estatutos". Por isso mesmo toda a LN que seja de qualificar como respeitante ao estatuto das pessoas ou dos bens, ou como relativa à organização da economia, à defesa dos direitos das pessoas ou à tutela das categorias sociais “mais fracas” (de cariz dirigista ou de cariz proteccionista, portanto), restringe o domínio da autonomia contratual e será em regra de aplicação imediata» (obra citada, p. 241).
Revertendo ao caso concreto, estão em causa normas de cariz processual, protecionistas dos consumidores como parte «mais fraca» no âmbito de um contrato, pelo que a autonomia contratual típica do «estatuto do contrato» deve sofrer aqui uma compressão, permitindo-se a aplicação imediata da lei nova.
Afastada a data da celebração do contrato como leitmotiv da aplicação da lei no tempo, cumpre indagar do momento a considerar para esse efeito.
O Centro de Arbitragem do Sector Automóvel – CASA é uma entidade legalmente habilitada a realizar arbitragens voluntárias institucionalizadas (Despachos Ministeriais n.º 532/99, de 2312, n.º 26196/2002, de 27.11, e n.º 14916/2008, de 9.5).
O processo segue os trâmites previstos no Regulamento do Centro de Arbitragem do Sector Automóvel.
Nos termos do artigo 57.º deste diploma, sob a epígrafe «Regra Supletiva», em tudo o mais é aplicável a LAV, no que respeitar à arbitragem institucionalizada (n.º 1), sendo que, se houver omissão, o tribunal arbitral pode conduzir a arbitragem, suprindo do modo que considerar apropriado, as regras processuais que não estiverem previstas no Regulamento (n.º 2).
O processo inicia-se com a apresentação da reclamação, que poderá ser realizada pessoalmente na sede do Centro, enviada por escrito (no sítio na internet, por correio eletrónico, fax ou carta) ou solicitada telefonicamente.
Porém, como se explicita no site do Centro de Arbitragem do Sector Automóvel (https://www.arbitragemauto.pt/quer-apresentar-uma-reclamacao/fases), o processo pode desenrolar-se em cinco fases: informação, mediação, conciliação, instrução e arbitragem.
Na fase de informação, é apresentado às partes o modo de funcionamento do Centro e feito o enquadramento jurídico do litígio.
A mediação é uma fase autónoma do processo de reclamação, que visa repor ou melhorar a comunicação entre os intervenientes para que possam construir um acordo que preencha os seus interesses e necessidades e resolva o conflito comum.
A conciliação pelo Diretor do Centro é um procedimento que tem por objetivo conduzir as partes à definição de um acordo que ponha termo ao litígio, através da identificação e da avaliação conjunta de soluções.
Se as partes não chegarem a acordo, o processo pode seguir para instrução, momento em que os litigantes devem definir formalmente a sua pretensão e trazer para o processo ou requerer os meios de prova que apoiem a sua posição.
Na fase de arbitragem, o Tribunal Arbitral começa por tentar conciliar as partes e, se tal não for possível, realiza o julgamento arbitral, aprecia a prova produzida e decide, pondo termo ao litígio, de modo definitivo.
Ora, no caso em apreço, os normativos ínsitos nos n.ºs 2 e 3 da Lei de Defesa do Consumidor aplicam-se apenas à fase da arbitragem, com a constituição de um Tribunal Arbitral.
O que significa que se deve considerar a data da entrada do requerimento de arbitragem, em 20.1.2020, como fundamenta o Tribunal Arbitral, e não o momento em que o CASA comunicou a entrada da reclamação, no dia 27.8.2019.
Em suma, o conflito em apreço foi legitimamente submetido a arbitragem necessária por opção do consumidor.
 Nem se diga que a sujeição deste litígio à alteração da Lei de Defesa do Consumidor efetuada pela Lei n.º 63/2019 viola o princípio da proteção da confiança, decorrente do princípio do Estado de Direito Democrático consagrado no artigo 2.º da Constituição da República Portuguesa.
O princípio da proteção da confiança «deflui de um dos elementos materiais justificadores e imanentes do Estado de Direito: a segurança jurídica dedutível do artigo 2.º da CRP. Enquanto associado e mediatizado pela segurança jurídica, o princípio da proteção da confiança prende-se com a dimensão subjetiva da segurança – o da proteção da confiança dos particulares na estabilidade, continuidade, permanência e regularidade das situações e relações jurídicas vigentes.» - cf. acórdão do Tribunal Constitucional n.º 862/2013, de 19.12.2013 (in http://www.tribunalconstitucional.pt),
Conforme vem sendo afirmado pelo Tribunal Constitucional «fora dos casos de retroatividade proibida expressamente previstos na Constituição, o juízo-ponderação de que o Tribunal Constitucional vem lançando mão para apreciar as restantes situações potencialmente lesivas do princípio da segurança jurídica assenta no pressuposto de que o princípio do Estado de Direito contido no artigo 2.º da CRP implica “um mínimo de certeza e de segurança no direito das pessoas e nas expetativas que a elas são juridicamente criadas”. Neste sentido, “a normação que, por sua natureza, obvie de forma intolerável, arbitrária ou demasiado opressiva àqueles mínimos de certeza e segurança (...), terá de ser entendida como não consentida pela lei básica” (cfr. Acórdão n.º 556/2003)» (acórdão do Tribunal Constitucional n.º 355/2013, de 19.12.2013, in http://www.tribunalconstitucional.pt).
Na situação sub judice não se verifica uma afetação de expetativas inadmissível.
Não estamos perante uma mutação da ordem jurídica intolerável e opressiva dos mínimos de certeza e segurança.
Como se escreveu na sentença arbitral, o artigo 14.º, n.º 2, da Lei de Defesa do Consumidor vem apenas facultar ao consumidor uma forma adicional mais acessível de fazer valer os seus direitos, não se congeminando qualquer expetativa da empresa a uma «decisão fora da arbitragem» tutelável pelo Direito.
Termos em que se julga não verificada a incompetência do Tribunal Arbitral para tramitar e decidir o litígio em apreço.
Da (in)obervância do princípio do contraditório
a) A M… Automóvel, Lda. impugna a sentença arbitral também por violação do princípio do contraditório, ao abrigo dos artigos 46.º, n.º 3, alínea a), ponto ii) e 30.º, n.º 1, alínea c), da LAV.
Argui que não teve oportunidade de se pronunciar sobre o depoimento do Perito quando, na verdade, as declarações daquele constituem o principal fundamento do decidido sob a alínea o) dos factos provados vertidos na decisão arbitral.
Argumenta que, para além da avaliação do Perito ter sido feita sem análise das peças objeto da reclamação, tratando-se de uma avaliação superficial e generalista, nunca foi dada oportunidade à Requerente para se pronunciar quanto à sua análise, nem mesmo durante a audição do mesmo, sob o pretexto de que os honorários do Perito tinham sido suportados pelo aqui Requerido.
Alega que o princípio fundamental da igualdade processual impõe um tratamento não discriminatório das partes, de modo a que qualquer delas não se veja impedida, sem fundamento, de exercer um direito legítimo.
Conclui que, nos termos do ponto ii) da alínea a) do n.º 3 do artigo 46.º da LAV, releva como fundamento de anulação da decisão arbitral ter existido no processo a violação dos princípios referidos no artigo 30.º, n.º 1, do referido diploma, de entre os quais o da igualdade das partes e do contraditório, a qual teve «influência decisiva na resolução do litígio».
Apreciando:
Preceitua o artigo 30.º da LAV, sob a epígrafe «Princípios e regras do processo arbitral», que:
«1 - O processo arbitral deve sempre respeitar os seguintes princípios fundamentais:
a) O demandado é citado para se defender;
b) As partes são tratadas com igualdade e deve ser-lhes dada uma oportunidade razoável de fazerem valer os seus direitos, por escrito ou oralmente, antes de ser proferida a sentença final».;
c) Em todas as fases do processo é garantida a observância do princípio do contraditório, salvas as excepções previstas na presente lei. (…)»
De harmonia com o princípio do contraditório, a lei oferece a cada parte a possibilidade de contestar e de controlar a atividade da outra ao longo de todo o processo – e não apenas na fase inicial (dos articulados).
Vale isto dizer que não podem ser tomadas quaisquer providências contra uma pessoa, sem que seja previamente ouvida. E que o juiz não pode decidir quaisquer questões de facto ou de direito, sem que as partes tenham tido a possibilidade de se pronunciarem sobre tais questões (artigo 3.º, n.º 3, do CPC).
O princípio da igualdade de armas decorre naturalmente do princípio do contraditório.
Ao longo de todo o processo, as partes devem ser tratadas à luz de um estatuto de igualdade substancial, mesmo que haja uma desigualdade de meios económicos ou desigualdade de poder no tráfego jurídico.
Isto significa que a ambas deve ser garantida a identidade de meios de defesa, a sujeição a ónus, cominações ou sanções processuais (artigo 4.º do CPC).
A prova pericial tem por fim a perceção ou apreciação de factos por meio de peritos, quando sejam necessários conhecimentos especiais que os julgadores não possuem, ou quando os factos, relativos a pessoas, não devam ser objeto de inspeção judicial - cf. artigo 388.º do Código Civil.
Dispõe o artigo 37.º, n.º 1, da LAV que «Salvo convenção das partes em contrário, o tribunal arbitral, por sua iniciativa ou a pedido das partes, pode nomear um ou mais peritos para elaborarem um relatório, escrito ou oral, sobre pontos específicos a determinar pelo tribunal arbitral.»
Preceitua o artigo 47.º do Regulamento do Centro de Arbitragem do Sector Automóvel que:
«1. Podem produzir-se perante o tribunal arbitral quaisquer provas admitidas em processo civil, sem prejuízo de o tribunal arbitral determinar a admissibilidade, pertinência e valor de qualquer prova produzida ou a produzir.
2. O tribunal arbitral, por sua iniciativa, ou a requerimento de uma ou ambas as partes, poderá, nomeadamente:
(…) d) designar um ou mais peritos, fixando a sua missão e recolhendo o depoimento e/ou relatório».
Por seu turno, lê-se no artigo 48.º do mesmo Regulamento que:
«1. Em qualquer fase do processo, ambas as partes, individualmente, ou em conjunto, podem requerer ao Centro a realização de uma peritagem, de uma análise ou de uma informação técnica escrita, desde que exista compromisso arbitral ou cláusula compromissória.
2. Na fase de conciliação e arbitragem cabe ao árbitro, por sua iniciativa, ou a pedido de uma ou ambas as partes, requerer a realização de peritagem, análise ou informação técnica escrita, devendo, nesse caso, formular os quesitos a apresentar aos peritos.
3. Os pedidos de peritagem ou exames requeridos nos termos dos números anteriores serão deduzidos em impresso próprio do Centro e posteriormente apresentados por este junto da entidade competente para o efeito.
4. As peritagens serão caucionadas pela parte ou partes requerentes.
5. O custo das peritagens será, em princípio, suportado pelos respectivos caucionantes, salvo acordo escrito e assinado pelos mesmos em contrário, ou, na falta desse acordo, conforme vier a ser determinado na decisão arbitral.
6. A parte ou partes encarregues de caucionar a peritagem serão previamente informadas do orçamento apresentado pela entidade responsável pela realização da peritagem, bem como da data e local para realização da peritagem.
7. Caso a parte aceite as condições indicadas no número anterior, será emitida guia para prestação de caução, que deverá ser paga, impreterivelmente até à data indicada, sob pena de cancelamento do pedido de peritagem. (…)»
Da análise concatenada destes preceitos deriva que o tribunal pode determinar, oficiosamente ou a requerimento de uma das partes, a comparência de um perito em audiência para responder às perguntas que as partes ou o tribunal queiram fazer-lhe, em princípio, sobre um relatório por ele apresentado, mas sem se precludir a hipótese da audição do perito em julgamento, ao abrigo do artigo 47.º, n.º 2, alínea b), do Regulamento.
Esta última hipótese coaduna-se com a celeridade que se pretende com o estabelecimento do prazo máximo de 90 dias para decidir os procedimentos de RAL previsto no artigo 7.º, n.º 1, do Regulamento (ainda que se tenha previsto no n.º 2 a prorrogação do prazo em litígios de especial complexidade).
São imanências do princípio do contraditório os normativos que contemplam o envolvimento das partes no processo.
Faz parte do «direito das partes a serem ouvidas» (vertente do princípio de contraditório), serem consultadas sobre a escolha do perito a nomear pelo tribunal arbitral e sobre os seus terms of reference.
Ao nomear o perito, o tribunal arbitral celebra com ele um contrato de prestação de serviços, mas fá-lo, habitualmente, em nome das partes.
Por força deste contrato, o perito nomeado pelo tribunal obriga-se a ser e permanecer independente e imparcial e a apresentar um relatório pericial sobre os pontos especificados na missão definida pelo tribunal arbitral ou/e a participar na audiência, para explicar o seu relatório ou/e ser interrogado pelo tribunal e pelas partes.
Este contrato constitui o fundamento do crédito que o perito terá sobre as partes relativo à remuneração que tenha sido ajustada entre ele e o tribunal arbitral e que este deve ter previamente discutido com as partes.
Na falta de acordo entre as partes, os custos das peritagens poderão ser determinados pelo tribunal arbitral, sendo as partes encarregues de caucionar a peritagem, informadas previamente do valor a título de preparos que resulta do «orçamento» apresentado, como se retira das disposições conjugadas dos n.ºs 1 a 6 do artigo 48.º do Regulamento.
Quando o n.º 7 do artigo 48.º do Regulamento alude ao cancelamento da perícia por falta de pagamento, contempla, por inferência lógica-jurídica segundo um argumento «a maiori ad minus», a asserção de que a parte que não procedeu ao pagamento do preparo pode ficar impedida de colocar questões ou de pedir esclarecimentos ao perito, inclusive em audiência de julgamento.
Não se pode, naturalmente, afirmar que estas «regras do jogo» constituem um desvio aos princípios do contraditório e da igualdade de armas.
Da análise do processo arbitral (vide descrição do processo na fundamentação de facto) ressalta que ambas as partes foram informadas das questões colocadas pelo Tribunal Arbitral e convidadas a colaborar com outras questões ou esclarecimentos a solicitar ao Perito.
No mesmo ato, estabeleceu-se que a audição do Perito em Tribunal implicaria o pagamento dos preparos, no montante de 61,65 €, a dividir por ambas as partes.
Recorde-se o despacho proferido no dia 1.9.2020:
«Na sequência do pedido do Reclamante, o CASA solicitou junto do CEPRA a indicação de um perito. Esta entidade indicou o nome de um perito independente – Eng. Daniel Santos – que foi contactado, tendo aceitado estar presente na continuação da audiência de julgamento para responder a questões. O perito não irá analisar as peças, mas apenas dar a sua opinião técnica sobre as causas que podem conduzir a um problema como o descrito nos autos.
O orçamento foi de 50 % mais IVA (portanto 61,65€).
Solicita-se ao Reclamante que declare se pretende que o perito referido esteja presente na audiência, pagando o valor apresentado.
Solicita-se à Reclamada que se pronuncie igualmente sobre se pretende ter também a oportunidade de colocar questões ao perito (além das que serão colocadas pelo Reclamante e pelo tribunal). Em caso afirmativo, deverá suportar metade do valor cobrado pelo perito.
Caso o Reclamante pretenda a presença do perito, a continuação da audiência será realizada (…)» (fls. 102).
A Reclamada remeteu-se ao silêncio quanto ao objeto das questões submetidas ao Perito, bem como relativamente ao pagamento de metade dos preparos, mesmo depois de advertida de que, no caso de pretender colocar questões ao Perito, deveria suportar metade do valor dos preparos.
Num processo que se pretende rápido e simplificado, e com baixos valores de preparos (o valor de metade dos preparos da perícia seria de 30,82 €), não se pode seguramente afirmar que o Tribunal tenha atuado sem lisura, contornando os princípios basilares do processo.
Na tensão dialética entre os princípios estruturantes do processo civil, a Requerente descura o princípio da autorresponsabilidade das partes.
Segundo o princípio da autorresponsabilidade das partes (cf. artigos 5.º, n.º 1, 6.º, n.º 1, ressalva, e 7.º, n.º 1, todos do CPC), as partes «sofrem as consequências jurídicas prejudiciais da sua negligência ou inépcia na condução do processo, que fazem a seu próprio risco» (acórdão do STJ de 12.11.2002, p. 02A2876, disponível em www.dgsi.pt).
Ao omitir o pagamento de preparo, num caso em que a perícia se traduziu tão-só na audição do perito em audiência, a parte tinha de contar com uma decisão do Tribunal Arbitral em consonância com a «missão» que definiu para a peritagem (cf. artigo 47.º, n.º 2, alínea b), do Regulamento).
b) A restante argumentação da Requerente prende-se com a sua discordância relativamente à factualidade provada sob a alínea o) da sentença arbitral.
A Requerente diverge, em absoluto, da valoração da prova feita pelo Tribunal Arbitral com arrimo nas declarações do Perito, em detrimento dos elementos probatórios que terá carreado para o processo arbitral, designadamente prova documental.
Ora, a impugnação da decisão arbitral apenas se pode fazer através do pedido da sua anulação, e nos estritos e taxativos termos e fundamentos do artigo 46.º da LAV, os quais se assumem como vícios ou irregularidades a latere do objeto/mérito do pleito.
Está, assim, vedada a apreciação desse mérito, não comportando a presente ação de anulação a reapreciação da prova produzida com vista à alteração da decisão sobre a matéria de facto.
Aliás, neste domínio, a jurisprudência maioritária perfilha o entendimento de que apenas a falta absoluta da fundamentação, por omissão dos factos ou total omissão do direito, ou a existência de erro lógico formal patente que não permita descortinar o raciocínio seguido ou que inelutavelmente o inquine, acarreta a nulidade/anulação da sentença arbitral - cf. entre outros, os acórdãos do TRC de 9.1.2018, p. 191/17.1YRCBR, de 26.11.2019 e de 21.1.2020, p. 211/19.5YRCBR e o acórdão do TRL de 16.5.2019, p. 2470/18.1YRLSB.L1-8, disponíveis em www.dgsi.pt.
c) Em face do que precede, cai por terra toda a argumentação relacionada com a audição do Perito e a valoração das suas declarações.
*
Neste contexto, tendo em atenção as considerações expendidas, é de concluir pela inexistência de fundamentos que determinem a anulação da sentença arbitral impugnada.
Vencida a Requerente, deverá ser condenada no pagamento das custas processuais – artigos 527.º, n.º 1, 529.º, e 607.º, n.º 6, do CPC.
*
IV - Decisão
Nestes termos, acordam os Juízes da 2.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar improcedente a presente ação de anulação de decisão arbitral.
Mais se condena a Requerente no pagamento das custas.
*
Lisboa, 11 de março de 2021
Gabriela Cunha Rodrigues
Arlindo Crua
António Moreira