Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1812/18.4T8BRR-H.L2-4
Relator: CARLOS CASTELO BRANCO (VICE-PRESIDENTE)
Descritores: SUSPEIÇÃO
CONDUTA DO JUIZ EM AUDIÊNCIA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/27/2024
Votação: DECISÃO INDIVIDUAL
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: SUSPEIÇÃO – ART. 120.º CPC
Decisão: INDEFERIDA
Sumário: Perante os elementos disponíveis e o contexto em que teve lugar a intervenção do Sr. Juiz, no âmbito das sessões da audiência de julgamento, podendo, porventura, considerar-se criticáveis ou mesmo supérfluas as afirmações aí produzidas, não se conclui que, objetiva e subjetivamente, se mostre posta em causa a imparcialidade do julgador, não se mostrando reunidos os pressupostos que materializam o incidente de suspeição, o que conduz à sua improcedência.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: “A” e “B”, autores nos autos principais, vieram apresentar incidente de suspeição relativamente ao Sr. Juiz “C”.
Para tanto, invocaram em síntese, que o Sr. Juiz, no âmbito das sessões de julgamento, praticou factos aptos a gerar um sentimento de suspeição e desconfiança sobre a sua imparcialidade e isenção, por, em seu entender, o Sr. Juiz ter já assimilado os factos imputados aos autores, como verdadeiros, apelidando o autor e ora requerente, quando lhe tomava declarações, de “carrasco”, bem como, no decurso da audição da testemunha “D”, o Sr. Juiz ter feito uma leitura dos factos que é sua, que ninguém fez, permitindo-se a equiparação a uma obra literária de 1838, que retrata a vida de crianças institucionalizadas e maltratadas, estando o Sr. Juiz “já convicto que os Autores agrediam aqueles jovens, não obstante a produção de prova ainda não ter terminado, permitindo-se expressar claramente a leitura que faz da prova, do sentido da decisão de facto, afirmando-a como a mais razoável de ter ocorrido”.
Por despacho de 16-05-2023, o incidente foi julgado extemporâneo.
Interposto recurso dessa decisão, a Secção (…) do Tribunal da Relação de Lisboa, por acórdão de 22-11-2023, veio a conceder provimento à apelação, determinando o prosseguimento do incidente.
O Sr. Juiz respondeu – cfr. despacho de 17-01-2024 – concluindo inexistirem razões válidas para sustentar a suspeição.
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Vejamos:
Vieram os requerentes deduzir o presente incidente de suspeição relativamente ao Sr. Juiz titular dos autos em apreço.
Nos termos do disposto no nº. 1 do artigo 120.º do CPC., as partes podem opor suspeição ao juiz quando ocorrer motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade, nomeadamente, as situações elencadas nas suas alíneas a) a g).
Com efeito, o juiz natural, consagrado na CRP, só pode ser recusado quando se verifiquem circunstâncias assertivas, sérias e graves.
E os motivos sérios e graves, tendentes a gerar desconfiança sobre a imparcialidade do julgador resultarão da avaliação das circunstâncias invocadas.
O TEDH – na interpretação do segmento inicial do §1 do art.º 6.º da CEDH, (“qualquer pessoa tem direito a que a sua causa seja examinada, equitativa e publicamente, num prazo razoável por um tribunal independente e imparcial, estabelecido pela lei”) - desde o acórdão Piersack v. Bélgica (8692/79), de 01-10-82 (https://hudoc.echr.coe.int/fre?i=001-57557) tem trilhado o caminho da determinação da imparcialidade pela sujeição a um “teste subjetivo”, incidindo sobre a convicção pessoal e o comportamento do concreto juiz, sobre a existência de preconceito (na expressão anglo-saxónica, “bias”) face a determinado caso, e a um “teste objetivo” que atenda à perceção ou dúvida externa legítima sobre a garantia de imparcialidade (cfr., também, os acórdãos Cubber v. Bélgica, de 26-10-84 (https://hudoc.echr.coe.int/ukr?i=001-57465), Borgers v. Bélgica, de 30-10-91, (https://hudoc.echr.coe.int/fre?i=001-57720) e Micallef v. Malte, de 15-10-2009 (https://hudoc.echr.coe.int/fre?i=001-95031) ).
Assim, o TEDH tem vindo a entender que um juiz deve ser e parecer imparcial, devendo abster-se de intervir num assunto, quando existam dúvidas razoáveis da sua imparcialidade, ou porque tenha exteriorizado relativamente ao demandante, juízos antecipados desfavoráveis, ou no processo, tenha emitido algum juízo antecipado de culpabilidade.
A dedução de um incidente de suspeição, pelo que sugere ou implica, deve ser resguardado para casos evidentes que o legislador espelhou no artigo 120.º do CPC, em reforço dos motivos de escusa que se refere o artigo 119.º do CPC.
A imparcialidade do Tribunal constitui um requisito fundamental do processo justo.
O direito a um julgamento justo, não se trata de uma prerrogativa concedida no interesse dos juízes, mas antes, uma garantia de respeito pelos direitos e liberdades fundamentais, de modo a que, qualquer pessoa tenha confiança no sistema de Justiça.
Do ponto de vista dos intervenientes nos processos, é relevante saber da neutralidade dos juízes face ao objeto da causa.
Com efeito, os motivos sérios e válidos atinentes à imparcialidade de um juiz terão de ser apreciados de um ponto de vista subjetivo e objetivo.
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Colocados os parâmetros enunciados que importa observar, analisemos a situação concreta.
Vejamos se o incidente de suspeição deverá proceder ou improceder.
Importa referir que, com precedência aos presentes autos, em 14-09-2020, dando origem ao apenso F, os ora requerentes deduziram incidente de suspeição relativamente ao mesmo Sr. Juiz, que, por decisão de 24-11-2020 veio a ser indeferido.
Dir-se-á desde já, que a apreciação objetiva que irá ser feita, se prende tão só com a materialização ou não dos requisitos do incidente, e não, com qualquer apreciação de natureza jurisdicional, a qual não nos incumbe nem poderemos efetuar.
No seu requerimento, os requerentes consideram que, pela conduta tida em audiência que o Sr. Juiz já formou convicção sobre os factos.
Mais referem os requerentes que o Sr. Juiz apelidou o autor de “carrasco” e fez uma leitura própria dos factos, que ninguém fez.
Cumpre salientar que, liminarmente, não se patenteia qualquer das circunstâncias a que se referem as alíneas a) a f) do n.º 1, do artigo 120.º do CPC.
Quanto à alínea g) – existência de inimizade grave ou grande intimidade entre o juiz e alguma das partes ou seus mandatários – tem-se entendido que “não constitui fundamento específico de suspeição o mero indeferimento de requerimento probatório (RL, 7-11-12, 5275/09) nem a inoportuna expressão pelo juiz sobre a credibilidade das testemunhas (RG 20-3-06, 458/06)” (assim, Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa; Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Almedina, 2018, p. 148).
Conforme se lê neste último aresto, o fundamento para a recusa do juiz, “não pode basear-se em considerações de direito ou juízos de valor, como a afirmação de que a sra. juiz “manifestou inqualificável impaciência com as arguidas e testemunhas de defesa, em claro tratamento de desigualdade…”, que “a sra. juiz disse às arguidas e às testemunhas J, F, A e M que estavam a mentir” e que “a testemunha A (foi) ameaçada com processo crime por falsas declarações”, pois isso revela apenas um modo de exercício dos poderes de direção da audiência que não pode ser censurado pela Relação, no âmbito do pedido de recusa.
As simples expressões através das quais o juiz revele a credibilidade que dá a determinada declaração, ou a outro meio de prova, não bastam para deduzir a sua recusa e a violação de alguma das regras sobre a aquisição da prova pode ser impugnada por vários os meios (desde a arguição de irregularidades ou nulidades até à interposição de recurso), mas nenhum deles passa pela dedução do incidente da recusa do juiz.
O processo de decisão do juiz não se inicia apenas depois de terminadas as alegações orais, pois, inevitavelmente, ele vai analisando e confrontando os diversos depoimentos e fazendo juízos sobre a credibilidade de cada um deles, mas o importante é que, até ao final das alegações, não feche o espírito à possibilidade de valorar todas as contribuições para a prova, quer confirmem ou infirmem os juízos que foi fazendo.
As regras da boa prudência aconselham que o juiz não revele os seus juízos, mas, como se referiu, por vezes deve tomar decisões que, ao menos implicitamente, indicam a credibilidade que, até aí, lhe parece merecer determinado depoimento, sem que, em todo o caso, da circunstância da convicção já estar em processo de formação, possa ser tirada a conclusão de que já existia um «pré juízo»”.
Ora, no caso em apreço, as menções efetuadas pelo Sr. Juiz no decurso da audiência, não patenteiam algum «pré-juízo» sobre a motivação decisória, o que também não se afere em face da referência à obra literária efetuada.
Também, do próprio excerto transcrito pelos requerentes se verifica que o contexto em que foi produzida a afirmação de “carrasco” foi explicitado pelo Sr. Juiz, sem referência à pessoa do autor, mas à conduta deste, o que, aliás, foi negado pelo próprio autor.
O mesmo se diga quanto à referência à expressão efetuada no decurso do depoimento da testemunha – “tu és uma puta, etc, etc, etc” – sendo que, se trata da produção de uma interpelação onde o Sr. Juiz expressa – com a expressão “alegadamente” – uma questão que formula à testemunha, sem que, daí se retire alguma formação de convicção antecipada sobre uma tal factualidade.
E o mesmo se diga quanto à “terceira hipótese” -e expressões efetuadas a esse propósito – aventadas pelo Sr. Juiz, as quais, podendo ser criticáveis, não demonstram alguma quebra da imparcialidade devida pelo julgador, nem consubstanciam algum motivo, sério e grave, que possa gerar desconfiança sobre a imparcialidade do Sr. Juiz.
A leitura pessoal e a comparação factual com uma obra literária, inserem-se, igualmente, neste âmbito. Poderão ser criticáveis em termos processuais, mas não denotam quebra alguma da imparcialidade do julgador.
Podemos entender que os requerentes se não revejam no conteúdo de posições tomadas, mas tal descontentamento não implica parcialidade do julgador, mesmo podendo considerar-se poderem padecer de crítica algumas das expressões empregadas pelo Sr. Juiz.
Os recursos são os mecanismos legais para se poder reagir em tais situações e para se aquilatar da correta ou incorreta aplicação da lei.
A Justiça é feita caso a caso, tendo em consideração a real e objetiva situação a dirimir.
O Juiz não é parte nos processos, devendo exercer as suas funções com a maior objetividade e imparcialidade, sabendo-se que nem sempre se consegue passar esta imagem, mas, o que releva é que esta conceção esteja materializada no julgador e que o utente da justiça a final a compreenda.
Perante os elementos disponíveis e o contexto em que teve lugar a intervenção do Sr. Juiz, no âmbito das sessões da audiência de julgamento, podendo, porventura, considerar-se criticáveis ou mesmo supérfluas as afirmações aí produzidas, não se conclui que, objetiva e subjetivamente, se mostre posta em causa a imparcialidade do julgador.
Assim sendo, entendemos não se encontrarem reunidos os pressupostos que materializam o incidente, o que conduz à sua improcedência.
Não se nos afigura a existência de litigância de má-fé dos requerentes.
Face ao exposto, indefiro a requerida suspeição relativamente ao Sr. Juiz “C”.
Custas a cargo dos requerentes.
Notifique.

Lisboa, 27-02-2024,
Carlos Castelo Branco (Vice-Presidente, com poderes delegados).