Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
2567/12.1TTLSB.L1-4
Relator: FRANCISCA MENDES
Descritores: PROCESSO DISCIPLINAR
MEIOS DE PROVA
DEVER DE RESERVA E CONFIDENCIALIDADE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/22/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Parcial: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA A DECISÃO
Sumário: 1- Estando o trabalhador obrigado a proceder ao voice recording, com vista ao suporte contratual da transacção celebrada com terceiro, a verificação de tal omissão pela entidade empregadora não consubstancia a utilização de uma gravação para controle do desempenho profissional do trabalhador (art. 20º, nº1, do Código do Trabalho), porque a gravação ( prestação a que o trabalhador se obrigou) não foi efectuada.
2- A audição, por amostragem, pela entidade empregadora dos voice recording efectuados pelo trabalhador não constitui violação dos arts. 20º e 21º do Código do Trabalho, dado que o meio de controle à distância ( registo telefónico do contrato celebrado com terceiro com autorização da CNPD) é efectuado pelo próprio trabalhador, sendo lícita à entidade patronal tal audição, a fim de verificar se as gravações estão de acordo com as normas legais e internas da empresa.
3- A prova obtida com base nas listagens em nome do trabalhador ( elaboradas sem o estabelecimento de regras pela entidade patronal quanto à utilização dos seus meios de comunicação ) das chamadas telefónicas ( incluindo as chamadas de natureza particular) efectuadas no local de trabalho deverá ser considerada nula, em virtude de ocorrer o tratamento de dados pessoais, de natureza privada, sem o consentimento previsto no art. 6º da lei nº 67/98, de 26/10.
4- Por não se verificarem as causas de invalidade do processo disciplinar consignadas no art. 382º, nº2 do Código do Trabalho, a nulidade de tal meio de prova não acarreta a nulidade de todo o processo disciplinar.
5- Tendo resultado provada a omissão repetida pelo trabalhador do registo telefónico dos contratos celebrados com terceiros e omissões das normas estabelecidas para a realização dos referidos voice recording ( não obstante já ter sido alertado previamente pela entidade empregadora para a necessidade de cumprir os parâmetros estabelecidos), dever-se-á considerar que estamos perante uma conduta culposa que, atenta a quebra de confiança verificada, torna impossível a subsistência da relação laboral.
(Elaborado pela Relatora)
Decisão Texto Parcial:Acordam os juízes na Secção Social do Tribunal da Relação de Lisboa:

I-Relatório

AA, residente na Rua (…), nº 31, bloco A, piso 11, Lisboa instaurou a presente acção de impugnação da regularidade e licitude do despedimento contra “P... A..., S.A.”, com sede na Av. ..., ..., 7º piso, Lisboa, pedindo que seja declarada a ilicitude ou a irregularidade do seu despedimento promovido pela R., com as legais consequências.
Realizou-se a audiência de partes e não foi obtido acordo.
A entidade empregadora apresentou articulado a motivar o despedimento, alegando em síntese que o trabalhador procedia à angariação de clientes para a R. através de contacto telefónico e não cumpriu no período de Novembro/Dezembro de 2011 as regras internas em 83% de voice recording .
Mais alegou:
- O voice recording regista formalmente o acordo celebrado entre a R. e o seu cliente, sendo por isso o sustentáculo da relação jurídica estabelecida;
- O trabalhador tinha também procedido, há mais de um ano, ao registo de cinco contratos e não tinha qualquer registo de voice recording dos mesmos;
- No período de Novembro e Dezembro de 2011 verificou-se a existência de oito contratos dados por “encerrados” em sistema que não tinham sido antecedidos de qualquer contacto telefónico pelo trabalhador;
- O trabalhador beneficiou com a pretensa celebração destes contratos, uma vez que esta teve um impacto directo na sua avaliação de desempenho profissional e nas comissões de venda por si recebidas;
- O trabalhador neste último período efectuou, no seu local de trabalho, 1325 chamadas telefónicas, das quais 443 não foram efectuadas no exercício das suas funções.
O A. apresentou contestação, alegando em síntese:
- O Trabalhador nunca admitiu que as 443 chamadas eram de carácter particular;
- A R. não prova que tais chamadas de carácter particular tenham interferido no desempenho profissional do A.;
- Não foi vedada pela R. a possibilidade de os seus vendedores e colaboradores realizarem chamadas particulares, utilizando para o efeito o equipamento telefónico da empresa;
- A R. efectuou o tráfego das chamadas particulares do trabalhador, utilizando para o efeito um mecanismo de vigilância à distância e violou o direito à reserva da intimidade da vida privada deste ( previsto no art. 16º do Código do Trabalho e nos arts. 26º, 34º e 35º da Constituição da República Portuguesa), escrutinando e divulgando perante terceiros o tráfego de dados das chamadas telefónicas de carácter particular do A.;
- A listagem de chamadas efectuada pela R. discrimina os números de telefone, a duração, a hora e a data do início e do fim da chamada telefónica;
- As chefias dos vendedores da R. entram várias vezes em linha, sem conhecimento destes, e escutam as conversas telefónicas;
- Por força do disposto no art. 20º do Código do Trabalho, o empregador não pode controlar o desempenho profissional do trabalhador através do mecanismo de registo de tráfego de dados de chamadas particulares;
- Os “checks de qualidade individual” efectuados pela R. aos voice recording de cada trabalhador não podem ser utilizados com a finalidade de controlar o desempenho profissional do trabalhador e também não pode ser utilizado para fins disciplinares ( art. 20º do Código do Trabalho);
- A R. utiliza o sistema de voice recording , bem como os mecanismos de controlo à distância que registam dados de tráfego de chamadas telefónicas, para avaliar o desempenho profissional do trabalhador e pretende utilizar tal sistema para fins disciplinares, com o intuito de despedir o trabalhador;
- Deverá, assim, ser considerada nula a prova obtida pelo empregador para fundamentar a justa causa de despedimento;
- O trabalhador, em virtude da suspensão preventiva e do despedimento, passou a sofrer de ansiedade e depressão e não consegue dormir;
- O A. teve de recorrer a apoio médico e psiquiátrico e teve de tomar medicamentos para combater os sintomas de ansiedade, de depressão e de insónia.
Termina, pugnando que:
- seja declarada a ilicitude do despedimento de que foi alvo;
- seja declarada nula a prova feita pela empregadora com recurso a meios de controlo à distância do desempenho profissional do trabalhador;
- seja a R. condenada no pagamento ao A. das retribuições que o autor deixou de auferir desde 08.05.2012 até ao trânsito em julgado da sentença, com as respectivas deduções previstas no nº 2 do artigo 390º do C. do Trabalho, no pagamento de uma quantia nunca inferior a € 7.000,00, a título de indemnização em substituição da reintegração e no pagamento de € 10 000, a título de indemnização por danos não patrimoniais.
A R. respondeu, reafirmando a licitude do despedimento e referindo que lhe foi dada autorização pela Comissão Nacional de Protecção de Dados para gravação e tratamento de dados pessoais ( autorização disponível “online” – http://cnpd.pt/bin/decisoes/aut/10_3901_2009.pdf).
Após realização de audiência de discussão e julgamento, foram considerados provados os seguintes factos:
(…)

Com base nos factos acima indicados, o Tribunal a quo julgou a acção não provada e improcedente e absolveu a R. dos pedidos.

O A. recorreu e formulou as seguintes conclusões:
(…)

A recorrida contra-alegou e formulou as seguintes conclusões:
(…)
O Exmº Procurador Geral Adjunto teve vista nos autos e emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.
*
II- Importa solucionar as seguintes questões :
- Apurar se ocorre nulidade do processo disciplinar;
- Verificar se a matéria de facto deve ser alterada;
- Determinar se ocorre violação das regras que regulam os meios de vigilância à distância ( arts. 20º e 21º do Código do Trabalho) e da lei da Protecção dos Dados Pessoais;
- Apreciar se o ocorre justa causa de despedimento.
*
III- Apreciação
Em primeiro lugar, cumpre referir que as conclusões das alegações delimitam o objecto do recurso.
Conforme refere António Santos Abrantes Geraldes in “ Recursos no Processo do Trabalho”, pags. 64 e 65, “ é uniforme a jurisprudência segundo a qual o objecto do recurso sobre o qual o tribunal tem de se pronunciar é integrado, em regra, apenas pelas questões suscitadas e que, atento o art. 685º-A do CPC, as conclusões delimitam a área de intervenção do tribunal ad quem”. O Tribunal deverá ainda conhecer das questões que, sendo do conhecimento oficioso, encontrem nos autos os elementos necessários à sua integração.
Defende o recorrente que o processo disciplinar é nulo.
Para o efeito, alega que a recorrida não requereu à Comissão Nacional de Protecção de Dados autorização para utilizar o mecanismo informático de gravações de chamadas telefónicas efectuadas pelos seus trabalhadores para controle do desempenho profissional dos mesmos e para utilizar esse sistema para efeitos disciplinares, pelo que é inválida a utilização daquele mecanismo, bem como o mecanismo de gravação de dados de chamadas telefónicas para efeitos disciplinares.
Consideramos que importa distinguir a nulidade de todo o processo disciplinar da nulidade dos meios de prova ( acerca desta distinção vide Ac. da Relação de Lisboa de 05.06.2008- www.dgsi.pt ).
Este último aspecto será infra apreciado.
As causas de nulidade do processo disciplinar estão previstas no art. 382º, nº2 do Código do Trabalho de 2009 e a situação em apreço não preenche qualquer das causas de invalidade de todo o processo disciplinar.
Conforme refere o Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 14.07.2010 ( www.dgsi.pt ) o regime especial de invalidade do processo disciplinar exclui o regime típico da nulidade previsto no Código Civil.
Assim e dado que não foi invocada causa de invalidade do processo disciplinar prevista no art. 382º, nº2 do Código do Trabalho de 2009, não decretamos a nulidade do processo disciplinar.
*
Vejamos, agora, se a matéria de facto deve ser alterada.
(…)
*
Importa, agora, apreciar se dos factos provados resulta violação das regras que regulam os meios de vigilância à distância.
Vejamos as normas constantes do Código do Trabalho referentes à questão ora em apreço.

Artigo 20.º
Meios de vigilância a distância
1 - O empregador não pode utilizar meios de vigilância a distância no local de trabalho, mediante o emprego de equipamento tecnológico, com a finalidade de controlar o desempenho profissional do trabalhador.
2 - A utilização de equipamento referido no número anterior é lícita sempre que tenha por finalidade a protecção e segurança de pessoas e bens ou quando particulares exigências inerentes à natureza da actividade o justifiquem.
3 - Nos casos previstos no número anterior, o empregador informa o trabalhador sobre a existência e finalidade dos meios de vigilância utilizados, devendo nomeadamente afixar nos locais sujeitos os seguintes dizeres, consoante os casos: «Este local encontra-se sob vigilância de um circuito fechado de televisão» ou «Este local encontra-se sob vigilância de um circuito fechado de televisão, procedendo-se à gravação de imagem e som», seguido de símbolo identificativo.
4 - Constitui contra-ordenação muito grave a violação do disposto no n.º 1 e constitui contra-ordenação leve a violação do disposto no n.º 3.

Artigo 21.º
Utilização de meios de vigilância a distância
1 - A utilização de meios de vigilância a distância no local de trabalho está sujeita a autorização da Comissão Nacional de Protecção de Dados.
2 - A autorização só pode ser concedida se a utilização dos meios for necessária, adequada e proporcional aos objectivos a atingir.
3 - Os dados pessoais recolhidos através dos meios de vigilância a distância são conservados durante o período necessário para a prossecução das finalidades da utilização a que se destinam, devendo ser destruídos no momento da transferência do trabalhador para outro local de trabalho ou da cessação do contrato de trabalho.
4 - O pedido de autorização a que se refere o n.º 1 deve ser acompanhado de parecer da comissão de trabalhadores ou, não estando este disponível 10 dias após a consulta, de comprovativo do pedido de parecer.
5 - Constitui contra-ordenação grave a violação do disposto no n.º 3.


Deverá ainda ser considerado o disposto na Lei de Protecção de Dados Pessoais ( lei nº 67/98, de 26/10).
O princípio geral que deverá nortear o tratamento de dados pessoais está consagrado no art. 2º desta lei.
De harmonia com este artigo, “o tratamento de dados pessoais deve processar-se de forma transparente e no estrito respeito pela reserva da vida privada, bem como pelos direitos, liberdades e garantias fundamentais.”
Esta lei “aplica-se à videovigilância e outras formas de captação, tratamento e difusão de sons e imagens que permitam identificar pessoas sempre que o responsável pelo tratamento esteja domiciliado ou sediado em Portugal ou utilize um fornecedor de acesso a redes informáticas e telemáticas estabelecido em território português” ( 4º, nº4 da referida lei, sublinhado nosso).
De acordo com a autorização concedida pela Comissão Nacional de Protecção de Dados à R. para gravação e tratamento de dados pessoais ( autorização disponível “online” – http://cnpd.pt/bin/decisoes/aut/10_3901_2009.pdf), a empresa “P... A...”, pode proceder ao tratamento de dados pessoais consistente na gravação de chamadas através dos quais se formalizam e comprovam os contratos comerciais relativos à publicidade nas P... A....
A referida autorização consagra a seguinte finalidade : “ Gravação de chamadas através das quais se formalizam ou comprovam contratos comerciais relativos a publicidade nas P... A...” e indica os seguintes dados pessoais tratados : “Dados de identificação dos responsáveis pelas empresas contratadas, comunicações verbais gravadas integradas nas chamadas.”
Este tipo de gravações está previsto no art. 4º, nº3 da lei nº 41/2004, de 18 de Agosto que estabelece que o princípio da gravação de chamadas “não impede as gravações legalmente autorizadas de comunicações e dos respectivos dados de tráfego, quando realizadas no âmbito de práticas comerciais lícitas, para o efeito de prova de uma transacção comercial nem de qualquer outra comunicação feita no âmbito de uma relação contratual, desde que o titular dos dados tenha sido informado e dado o seu consentimento.”
Conforme resulta dos factos provados constantes das alíneas k) a o), a gravação das chamadas que formalizavam contratos de terceiro com a R e os parâmetros a que deveriam obedecer tais gravações eram do perfeito conhecimento do A..
No caso em apreço, a R. foi confrontada com a reclamação de 5 “clientes” cujos os contratos tinham sido registados pelo A. no sistema administrativo da empresa sem registo de voice recording.
O facto de a R. ter verificado se tais gravações foram efectuadas implica a utilização de meios de vigilância à distância para efeitos de controlar o desempenho profissional do trabalhador ?
Consideramos que deve ser dada resposta negativa.
Em primeiro lugar, porque a R. não está a utilizar as gravações, porque estas não foram efectuadas.
Em segundo lugar, é conveniente não esquecer que a gravação é a própria prestação a que o trabalhador se obrigou ( e para a qual deu o seu assentimento no que respeita à sua intervenção) e, por isso, é lícito à entidade patronal verificar se ocorreu cumprimento contratual.
O mesmo se dirá no que tange à verificação dos restantes oito contratos ( alíneas ah) e ai) dos factos provados) sem voice recording.
No que concerne à irregularidades verificadas na gravações, defende o recorrente que a R. efectuava os acima indicados checks de qualidade individual para controlar o seu desempenho, o que não é admissível à luz do art. 20º, nº1 do Código do Trabalho.
Embora seja conveniente salientar que não está no caso concreto em causa a notação do trabalhador, resultou apurado que os Checks de Qualidade Individual efectuados pela R. eram considerados em sede de avaliação ao mesmo na parte atinente às competências a desenvolver ( facto acima aditado).
De acordo com o último preceito indicado, as gravações não podem ser utilizadas para avaliar o desempenho profissional do trabalhador e, por maioria de razão, não podem ser utilizadas em sede de processo disciplinar.
Não devemos, porém, esquecer que as gravações foram autorizadas para o efeito de prova de transacção comercial e os denominados “checks de qualidade” foram feitos com o conhecimento do trabalhador, tendo por finalidade verificar se as gravações obedeciam às normas estabelecidas.
Trata-se de verificação pela entidade patronal ( embora por amostragem) do cumprimento da prestação laboral a que o trabalhador se obrigou, ou seja a própria gravação. Não devemos distinguir a falta absoluta de gravação ( acima abordada) da omissão de aspectos relevantes da mesma.
A gravação não se destinava a ser utilizada no processo disciplinar, sendo lícita a sua audição ( único meio de a R. verificar se a mesma tinha obedecido às normas estabelecidas), por amostragem, pela entidade patronal.
A norma consagrada no art. 20º, nº1 do Código do Trabalho tem por finalidade evitar o controle do desempenho profissional do trabalhador de forma tendencialmente ininterrupta e salvaguardar a privacidade do mesmo.
A situação do caso em apreço é diferente, dado que o meio de controle à distância ( registo telefónico) é efectuado pelo próprio trabalhador, pelo que a entidade patronal pode ouvir as gravações e verificar se as mesmas estão de acordo com as normas legais e as normas internas da empresa.
Não estamos, assim, perante meios de prova inválidos e não ocorre violação do disposto nos arts. 20º e 21º do Código do Trabalho, sendo ainda certo que o trabalhador não impugnou os factos provados referentes à falta de realização dos VRs e dos factos provados resulta que aceitou ter omitido procedimentos obrigatórios nos registos efectuados ao referir que “esta situação correspondia ao seu perfil” ( vide pontos v) a x) dos factos provados).
*
Quanto às listas de chamadas efectuadas pelo trabalhador no local de trabalho ( incluindo as chamadas de natureza particular), constantes a fls. 179 a 184 do processo disciplinar, verificamos que estamos perante um ficheiro estruturado, em nome do trabalhador contendo dados pessoais ( vide art. 3º, c) da lei nº 67/98, de 26/10), pelo que está sujeito às normas contidas neste último diploma.
De acordo com as recomendações da Comissão de Protecção de Dados, de 29/10/2002 ( www.cnpd.pt) , « o registo e eventual informação, no seio da empresa, na sequência de realização de chamadas telefónicas no local de trabalho, o controle e verificação dos e-mails do trabalhador ou o grau de utilização da Internet- constituindo verdadeiros tratamentos de dados pessoais dos trabalhadores- suscitam problemas jurídicos relativos à salvaguarda da sua privacidade (…)
O Dec-lei nº 5/94, de 11/01 consagrou - em obediência à Directiva nº 91/533 CE- a obrigação de a entidade empregadora informar o trabalhador sobre as condições aplicáveis ao contrato e à relação de trabalho (…)
A entidade empregadora deve definir, com rigor, o grau de tolerância quanto à utilização dos telefones e as formas de controlo realizadas.
Não se pode pensar, de forma simplista, que os trabalhadores podem ser impedidos- no tempo e local de trabalho- de responder a necessidades estritamente privadas e que correspondem, em certa medida, à forma como se encontra estruturada a nossa sociedade. Há necessidades do dia a dia que não podem deixar de ser encaminhadas sem que se recorra ao telefone durante o tempo e no local de trabalho.
Caso tenha sido estabelecido o controlo das chamadas realizadas, não devem ser tratados dados não necessários às finalidades do controlo; o tratamento deve limitar-se à identificação do utilizador, à sua categoria/função, número de telefone chamado, tipo de chamada- local, regional e internacional- duração da chamada e custo da comunicação.
Tal como o assinante tem direito de exigir uma facturação detalhada com supressão dos últimos quatro dígitos (…) deve ser reconhecida ao trabalhador essa garantia, nomeadamente quando a listagem é acessível a outros trabalhadores.»
Resulta do disposto no art. 22º, nº2 do Código do Trabalho de 2009 que o empregador pode estabelecer regras de utilização dos meios de comunicação na empresa.
No caso em subjudice a R. não estabeleceu tais regras ( alínea an dos factos provados) e procedeu ao registo e divulgação de listas das chamadas ( incluindo as particulares) do trabalhador, contendo os números de telefone chamados.
Foi, assim, elaborado um ficheiro estruturado, com dados de natureza particular, e não resulta dos factos provados o necessário consentimento do trabalhador ( art. 6º da lei nº 67/98, de 26/10).
A Constituição da República Portuguesa consagra o direito à reserva da intimidade da vida privada ( art. 26º, nº1) e considera nulas todas as provas obtidas mediante abusiva intromissão na vida privada e nas telecomunicações ( art. 32º, nº8).
Por analogia com esta última norma referente ao processo criminal, a prova obtida com base nas mencionadas listagens em nome do trabalhador ( elaboradas sem o seu consentimento e contendo indicação completa dos números de telefone de chamadas particulares ) deverá ser considerada nula.
Verificamos, todavia, que os factos provados indicados sob as alíneas r) e s) – referentes ao número de chamadas particulares - não foram objecto de impugnação em sede de recurso.
Por outro lado, a nulidade do referido meio de prova não acarreta, conforme acima referimos, a nulidade de todo o processo disciplinar.
Cumpre ainda referir que, em sede de enquadramento jurídico da sentença recorrida, o número de chamadas particulares efectuadas pelo trabalhador não foi considerado relevante para efeitos de declaração da licitude da sanção disciplinar aplicada.
Atenta a ausência de regras estabelecidas pelo empregador quanto à utilização do telefone e porque não resultaram provados factos concretos que permitam ao Tribunal concluir que a realização de tais chamadas prejudicou o desempenho profissional do trabalhador, concordamos com esta posição.
*
Vejamos se os demais factos apurados permitem concluir que ocorreu justa causa de despedimento.
De acordo com o art. 351º, nº1 do referido Código do Trabalho, “constitui justa causa de despedimento o comportamento culposo do trabalhador que, pela sua gravidade e consequências, torne imediata e praticamente impossível a subsistência da relação de trabalho.”
Conforme refere Pedro Furtado Martins in “ Cessação do Contrato de Trabalho”, 3 ª edição, pág. 170, é “necessário reconduzir os factos que estão na base da justa causa -o comportamento culposo do trabalhador – a uma dada situação : a situação de impossibilidade de subsistência da relação de trabalho. Impossibilidade entendida não em sentido material, mas em sentido jurídico e como sinónimo de inexigibilidade : a verificação da justa causa pressupõe que não seja exigível ao empregador que prossiga na relação” ( sublinhado nosso).
A impossibilidade de subsistência da relação de trabalho deve ser apreciada de acordo com os padrões de uma pessoa normal colocada na posição do empregador. A este propósito refere Monteiro Fernandes in Direito do Trabalho, 15ª edição, pág. 595 : “Embora num plano de objectividade, o elemento “impossibilidade prática” reporta-se a um padrão essencialmente psicológico : o das condições mínimas de suporte de uma vinculação duradoura, implicando mais ou menos frequentes e intensos contactos entre os sujeitos. E mais adiante : … a confiança não pode ser senão um modo de formular o suporte psicológico de que a relação de trabalho, enquanto relação duradoura, necessita para subsistir.”
Consideramos que o registo de contratos pelo trabalhador sem registo de voice recording ( suporte contratual na transacção celebrada com terceiro) é uma falta grave.
Não obstante a obrigação da entidade patronal enviar uma carta de confirmação ao cliente, a omissão do trabalhador determinou a devolução dos valores cobrados aos cinco clientes que reclamaram e a penalização da R. junto da PT.
Esta falta foi repetida ( vide factos acima indicados sob a alínea ah) a ai).
Resultou ainda provado que, pontualmente, o sistema de gravação de chamadas implementado na empregadora fica inoperacional, tendo, contudo, a R. o cuidado de registar essas anomalias para que possam ser supridas eventuais falhas no registo da declaração da vontade negocial dos seus clientes.
Foram ainda apuradas omissões relevantes no registo dos voice recording ( com especial relevância para a omissão de 43% em sede de descrição das figurações contratadas no período de Novembro e Dezembro de 2011- alíneas q), u) e v) dos factos provados).
Importa também salientar o registo pelo A. no sistema de preços superiores aos acordados com os clientes ( alínea y) dos factos provados).
Não obstante não resultar que o A. tenha actuado com o intuito de aumentar as suas comissões e favorecer a sua avaliação perante a R., ocorreu omissão do dever de cuidado, não obstante os avisos anteriores da entidade patronal ( vide facto provado sob a alínea p).
No caso concreto verifica-se uma omissão repetida do dever de zelo e diligência previsto no art. 128º, nº1 c) do Código do Trabalho.
De acordo com o disposto no art. 351º, nº2, d) do Código do Trabalho, constitui justa causa de despedimento o seguinte comportamento do trabalhador : “desinteresse repetido pelo cumprimento, com a diligência devida, de obrigações inerentes ao exercício do cargo ou posto de trabalho a que está afecto.”
Concluímos, assim, que estamos perante uma conduta culposa do trabalhador, de natureza repetida que, atenta a quebra de confiança verificada, torna impossível a subsistência da relação laboral.
A sanção disciplinar aplicada mostra-se adequada ao caso concreto.
*

IV- Decisão
Em face do exposto, o Tribunal julga o presente recurso de apelação improcedente e mantém a decisão recorrida.
Custas pelo recorrente.
Registe e notifique.

Lisboa, 22 de Maio de 2013

Francisca Mendes
Maria Celina de J. de Nóbrega
Alda Martins
Decisão Texto Integral: