Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
666/2004-5
Relator: PULIDO GARCIA
Descritores: ADVOGADO
INJÚRIAS A MAGISTRADO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/29/2004
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário: Face à matéria de facto registada e transcrita devem julgar-se não provados os factos que integrariam a prática de um crime de injúria agravada, desta forma se absolvendo o arguido.
Decisão Texto Integral: Acordam na secção criminal (5ª) do Tribunal da Relação de Lisboa:

No Processo Comum-Singular, da 2ª Secção do 6º Juízo Criminal da Comarca de Lisboa, por sentença de 29-5-2003 (cfr.fls. 148-154) foi, no que ora interessa, decidido (transcreve-se):
« Pelo exposto, julgo a pronúncia parcialmente procedente e consequentemente,
A) Condeno o arguido como autor de um crime de injúrias agravadas, p. e p. pelos Art. 181º N.1 e 184º do C.Penal:
1) Na pena de 90 dias, à taxa diária de 7 €, no total de 630 (seiscentos e trinta) €.
2) [...]
B) Absolvo o arguido da prática de um crime de injúrias agravadas, p. e p. pelos Art. 181º e 184 do C.Penal.»

Por não se conformar com a sentença na parte em que o condenou, recorreu o arguido (A).
Na motivação apresentada formula o recorrente as conclusões que seguem (cfr.fls.159-210; transcrevem-se):
« I. O tribunal a quo fez um errado julgamento da matéria de facto ao considerar que o requerimento que apresentou continha afirmações aptas a ofender a honra e a consideração pessoal e profissional do magistrado a quem o mesmo foi dirigido.
II. E que o  arguido agiu dolosamente, apresentando o requerimento em juízo.
III. O tribunal a quo não podia extrair das palavras contidas no requerimento um sentido diverso do que elas próprias contêm, sob pena de subverter a própria lógica da linguagem.
IV. O que se julgou neste processo e o que motivou a punição do recorrente foi o exercício da sua liberdade crítica, em termos que ofendem, nomeadamente, o disposto no artº 37º da Constituição.
V. O tribunal cometeu um erro notório na apreciação da prova ao julgar como julgou a matéria de facto.
VI. Tanto os próprios textos como os depoimentos prestados em juízo e acima reproduzidos impõem decisão diversa da proferida.
VII. Pendendo em juízo uma execução há mais de três anos, havendo requerimentos sem obter pronúncia por mais de três meses, encontrando a exequente extrema dificuldade em haver o pagamento do montante depositado era licito ao advogado usar uma linguagem contundente em protesto contra o mau andamento do processo.
VIII. Não podia, de outro lado, concluir-se que, declarando como declarou, o recorrente, que “não sabe se o favorecimento em que a omissão resulta tem alguma coisa a ver com” o facto de o estabelecimento penhorado ser um bar de streap-tease, se possa dai extrapolar uma qualquer imputação a titulo de suspeita de comportamento menos próprio do tribunal.
IX. Porque dizer-se que não se sabe, significa isso mesmo e nada mais: que não se sabe.
X. Deve ser modificada a matéria de facto eliminando-se o ponto 8 e o ponto 9.
Termos em que requer
a) Que se proceda à reapreciação da matéria de facto tomando em consideração a prova documentada;
b) Se renove a prova no que se refere à motivação dos requerimentos apresentados, ouvindo-se o recorrente em juízo.
Tudo para, a final, julgar procedente o recurso, declarando-se que o que foi escrito pelo recorrente se insere no quadro do legítimo exercício da advocacia.
Assim farão Vªs Exªs a sempre esperada JUSTIÇA »

Admitido o recurso (fls.301), e efectuadas as necessárias notificações, foi apresentada resposta pelo MºPº (cfr.fls.306-307), na qual concluiu (transcreve-se):
«1- A prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente (artº. 127º do C.P.P.– Princípio da livre apreciação da prova).
2- Tal foi devidamente feito na douta sentença em crise.
3- A matéria em análise foi devidamente ponderada e avaliada.
4- Foi feito o devido enquadramento jurídico da matéria de facto, dada como provada.
5- Não foram coarctados quaisquer direitos ou o seu exercício ao arguido.
6- Não foi violado o disposto no artº 37º da C.R.P..
Pelo que, deverá ser o arguido condenado, nos precisos termos em que o foi na douta sentença.»

Remetidos os autos a esta Relação, depois de a fls.382 ter aposto o visto, a Exmª Procuradora-Geral Adjunta, a fls.391, pronunciou-se sobre a requerida renovação da prova, concluindo no sentido da sua não admissão.

Tendo sido dado cumprimento ao disposto no artº 417º, n.º 2 do C.P.P., respondeu o recorrente, pugnando pela «... renovação da prova com a requerida audição do recorrente.» - cfr.fls.393-396.
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Proferido o despacho preliminar de fls.397, que se pronunciou sobre a questão da pretensa renovação de prova, e não havendo quaisquer outras questões a decidir em conferência, prosseguiram os autos para julgamento em audiência nos termos dos artºs. 419º e 421º do C. P. P., após os vistos dos Exmºs. Desembargadores-Adjuntos .
Realizado o julgamento com observância do formalismo legal, consoante se alcança da respectiva acta, cumpre agora decidir.
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No que agora interessa, é do seguinte teor a sentença recorrida (cfr.fls. 148-154; transcreve-se ):
«II - MATÉRIA DE FACTO
Da discussão da causa resultou apurada a seguinte factualidade:
1. No âmbito do Processo Nº 56/97, que correu termos na 3ª Secção, 10ª Vara Cível da Comarca de Lisboa, o ora arguido, na qualidade de mandatário da exequente nesses autos, elaborou o requerimento que entrou em juízo em 9 de Fevereiro de 2000, junto a fls. 5 e 6, que se dá por reproduzido na íntegra.
2. No mesmo, o arguido afirma que:
«1 .Esta execução pende em juízo há mais de três anos, sem que se lhe veja o fim.
2. O Tribunal age com o mais veemente laxismo, sem nenhum respeito pelas normas processuais referentes a prazos, como se quisesse proteger a devedora relapsa que é a executada».
3. É francamente estranho o que está ocorrendo neste processo.
4. Onde os requerimentos de 3 de Novembro e de 15 de Novembro – já passaram mais de três meses – não lograram obter pronúncia.
5. A executada explora com sucesso um estabelecimento de strip-tease com bonitas bailarinas estrangeiras».
6. Não sabe a exequente se o favorecimento em que a omissão resulta tem alguma coisa a ver com isso, embora tenha a maior compreensão pelas fraquezas humanas.
7. O que sabe é que este negócio tem ondas e que a prosperidade que permite à executada pagar pode ser sol de pouca dura .
Termos em que R. Que prossiga a execução para completo pagamento da dívida exequenda.
3. No âmbito do mesmo processo e na mesma qualidade de mandatário da exequente, o arguido elaborou novo requerimento que deu entrada no tribunal no dia 14 de Março de 2000, junto a fls. 14 a 21, que se considera integralmente reproduzido.
4. A certa altura, o arguido afirma que «as mesmas leis são ofendidas pelos magistrados ou pelos funcionários, o que é manifestamente iníquo», e que é «simplesmente revoltante que se não aceite sequer o livre exercício do direito de protesto, como aconteceu neste caso em que uma execução se arrasta no tempo de forma vergonhosa e nem sequer se reconhece à parte o direito de protestas».
5. O arguido explica então que no requerimento anterior «limitou-se a manifestar a sua estranheza pelo facto de a execução não seguir o seu curso normal e a interrogar-se sobre a questão de saber se o facto de o estabelecimento penhorado e entregue a um fiel depositário ser agora um estabelecimento de strip-tease tem alguma influência sobre o não andamento do processo».
6. Acrescenta mais à frente que: «Há um óbvio mal entendido. Uma óbvia má interpretação do que foi escrito pelo signatário» e que  «não quis ofender ninguém».
7. O arguido realça ainda a dado passo que: «Para que não haja mais mal entendidos, porém sem conceder no que respeita às intenções que nunca foram de ofender alguém que fosse, fica aqui um claro pedido de desculpas a quem se tenha considerado ofendido pelo teor do requerimento antecedente, não porque se tenha querido ofender ou ferir alguém que fosse, mas porque se admite que possa ter havido má interpretação do que se disse
8. Ao elaborar o requerimento referido em 1. e 2. o arguido sabia que o mesmo continha expressões e afirmações aptas a ofender a honra e a consideração pessoal e profissional do magistrado destinatário.
9. Não obstante, o arguido apresentou esse requerimento em juízo, ciente de que infringia o direito.
10. Com o requerimento referido em 3. a 7., o arguido pretendeu esclarecer os motivos que o impeliram a elaborar o requerimento anterior e reagir à atitude da magistrada judicial titular do processo que determinou a extracção de certidão para fins de procedimento criminal e disciplinar.
11. Em julgamento, o arguido procurou explicar-se perante a magistrada judicial ofendida.
12. A Ordem dos Advogados decidiu instaurar um processo disciplinar ao ora arguido que culminou com o arquivamento dos autos.
13.  O arguido encontra-se inscrito na Ordem dos Advogados desde 04.06.1982 e nunca foi condenado em qualquer pena disciplinar.
14. É também jornalista.
15.  Goza de uma boa situação económica.
16. Não conta com condenações inscritas no registo criminal.
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Dos factos constantes da pronúncia, não se provou que:
- o arguido sabia que, ao dirigir as expressões e afirmações contidas no segundo requerimento, datado de 13.03.2000, a um Magistrado, no exercício das suas funções, ofendia a honra e a consideração pessoal e profissional que lhe eram devidas.
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A decisão fáctica antecedente fundou-se na ponderação global das declarações prestadas em audiência pelo arguido, pela ofendida, (M), magistrada judicial, bem como da ponderação global do teor das certidões juntas a fls. 3 a 9, 13 a 25, 47 a 52, 59 a 62, e 141 a 145.
O arguido negou a prática dos factos, isto é, que alguma vez quisesse ofender a honra e a consideração profissional do magistrado titular do processo, que aliás pensava ser do sexo masculino, porque se soubesse que era uma senhora talvez não tivesse utilizado o mesmo tipo de linguagem. O arguido admitiu que algumas afirmações e expressões utilizadas no primeiro requerimento podiam ser mal interpretadas, mas negou que tivesse a intenção de lançar alguma suspeita sobre o comportamento do magistrado ou tratá-lo de forma desprimorosa, e que pretendeu sobretudo desabafar de uma forma contudente com as delongas do processo judicial por estar a ser pressionado pela exequente, sua cliente. Simultaneamente, o arguido afirma que elaborou o requerimento pesando bem as palavras, pelo que não se consegue perceber, mesmo usando de alguma benevolência, como é que lhe poderia ter escapado a interpretação malévola que do texto ressalta. Acusa-se o tribunal de ser «laxista», como se «quisesse proteger» a executada, afirma-se que é «francamente estranho» o que está ocorrendo, enumera-se os atrasos sucessivos, e pouco depois indaga-se se tal não aconteceu porque a executada passou a ser «um estabelecimento de strip-tease», embora se «tenha a maior compreensão pelas fraquezas humanas» !!! Se o arguido pretendia protestar contra os atrasos no processo, podia tê-lo feito usando uma linguagem tão contudente ou mais, mas sem dar a entender que o tribunal está a proteger a parte contrária, pondo em causa a isenção e imparcialidade que é o dever primordial de todo o magistrado judicial, ainda que o arguido o faça em tom de chacota, e claramente dirigido a um magistrado homem . Aliás, no  segundo requerimento, o arguido procura explicar-se invocando que se limitou a interrogar-se sobre «se o facto de o estabelecimento penhorado e entregue  a um fiel depositário ser agora um estabelecimento de strip-tease tem alguma influência sobre o não andamento do processo». Mas não foi isto o que o arguido escreveu. Se tinha em mente o fiel depositário, não o referiu, falou no tribunal, realçando que os dois requerimentos anteriores , passados três meses, não obtiveram pronúncia, para logo de seguida colocar então a hipótese de tal se dever à situação em que se encontra o estabelecimento da executada, etc., – o visado é claramente o titular do processo, a quem compete despachar...  . O arguido esclareceu ainda que tem um estilo muito próprio de se exprimir e que utiliza a mesma linguagem no exercício da advocacia e na actividade de jornalista. Mas, decerto que o arguido enquanto advogado conhece perfeitamente o sentido e alcance da linguagem que utiliza, independentemente do estilo, e sabe que as palavras que escreveu se destinam a ficar reproduzidas num suporte que neste caso é um processo judicial, susceptível de ser lido não só por quem despacha, o juiz, como pelos funcionários que cumprem os despachos, ou até pelos inspectores judiciais que apreciam o trabalho do magistrado. Noutra perspectiva, não se vislumbra sequer de que modo o meio escolhido pelo arguido serve os fins que pretendia. O arguido afirmou em julgamento que ficou muito magoado com a existência deste processo crime, e que nunca fez queixa de nenhum magistrado ao Conselho Superior da Magistratura, nem de nenhum funcionário ao C.O.J. Mas das declarações da magistrada que originou os presentes autos decorre igualmente que se sentiu profundamente afectada ao ler o requerimento de 9.02.2000 , num processo em que ainda para mais despachava pela primeira vez. Não se trata de pôr em causa a liberdade de expressão que decorre do livre exercício da advocacia, ou de ignorar que está condicionada às necessidades do pleito, ou impedir que os advogados utilizem o direito de protesto. Assim como os juizes devem respeitar a dignidade e a consideração dos advogados, também estes que são auxiliares da justiça não devem de forma gratuita pôr em causa aquilo que é fundamental para um magistrado judicial, a sua isenção e imparcialidade, mas pelo contrário se entendem que há motivos para delas duvidar têm absolutamente a obrigação de o denunciar.

Relativamente ao segundo requerimento do arguido, entendeu-se que o arguido procurou explicar-se sobre as suas anteriores afirmações, ao mesmo tempo que reagia contra a decisão da juiz titular do processo que considerou excessiva. Assim, o arguido tece várias críticas sobre o mau funcionamento dos tribunais, o atraso dos processos, o desrespeito pelas normas processuais referentes a prazos, fá-lo de uma forma violenta, mas sem exceder os limites da liberdade de expressão que lhe assiste e que é consagrada constitucionalmente.

Por seu turno, a magistrada judicial ofendida confirmou que se tratou da sua primeira intervenção naquele processo e que ficou chocada com o conteúdo do requerimento apresentado em 9.02.2000, por considerar a terminologia utilizada despropositada e desadequada como forma de se dirigir a um juiz, independentemente de ser homem ou mulher, e retirando de algumas afirmações aí feitas a insinuação de condutas menos próprias por parte do magistrado judicial, incluindo a de estar a proteger a parte contrária, o que motivou a sua reacção, e no tocante ao segundo requerimento, também não o interpretou como um pedido de desculpas , pelo contrário, viu nele um ataque. A juiz esclareceu ainda que se sentiu ofendida na sua qualidade de magistrada pelas afirmações feitas pelo arguido advogado nos dois requerimentos e que, se havia atrasos nos processos  não lhe eram imputáveis mas ao excesso de serviço, pois sempre desempenhou com dedicação as suas funções, sendo certo que o processo do arguido nem sequer era daqueles que se arrastavam há mais tempo e que se o arguido entendia que havia atrasos inexplicáveis ou até demasiado graves só tinha que reagir através dos meios que lhe são legalmente facultados.

Por fim, atendeu-se às declarações do arguido para a caracterização dos aspectos pessoais e sócio-económicos e ao teor do certificado de registo criminal documentado a fls. 140 para os antecedentes criminais, bem como à certidão de fls. 141 a 145 para os antecedentes disciplinares.

III - MATÉRIA DE DIREITO

Para o preenchimento do tipo legal de crime de injúrias, p. e p. pelo Art. 181º do C.Penal,  requer-se que o agente impute a outra pessoa, mesmo sob a forma de suspeita,  factos, ou lhe dirija palavras, ofensivos da sua honra ou consideração.  No plano subjectivo, exige-se o chamado dolo genérico, isto é, que o agente tenha o propósito de ofender a honra ou considerações alheias ou no mínimo preveja essa ofensa como resultado provável da sua conduta e, mesmo assim, actue conformando-se com tal hipótese.

Tal como defendeu Beleza dos Santos, «nem tudo aquilo que alguém considere ofensa à dignidade ou uma desconsideração deverá considerar-se difamação ou injúria punível» (Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 92º, pág. 167).
Por honra pode entender-se o elenco de valores éticos que cada pessoa humana possui, como sejam o carácter, a lealdade, a probidade, a rectidão, ou seja, a dignidade subjectiva, o património pessoal e interno de cada um, e por consideração o merecimento que o indivíduo tem no meio social, ou seja, o bom nome, o crédito, a confiança, a estima, a reputação, que constituam a dignidade objectiva, o juízo que a sociedade faz de cada cidadão, em suma, a opinião pública («O Código Penal de 1982», de Leal Henriques e Simões Santos, vol. II, pág. 196).
No entanto estes conceitos devem ser avaliados tendo em atenção o lugar, o meio, a época e as pessoas.
No caso dos autos, o arguido actuou na qualidade de mandatário da exequente ao elaborar e apresentar em juízo dois requerimentos num processo executivo, dirigidos ao juiz titular do processo.
Considerando a factualidade apurada, constata-se que o arguido com o primeiro requerimento acusa o tribunal de agir com o mais veemente laxismo, porque não tem nenhum respeito pelas normas processuais referentes a prazos, como se quisesse proteger a devedora relapsa que é a executada. Logo aqui, existe uma insinuação de favorecimento da parte contrária. Mas o arguido prossegue, frisando que algo de estranho ocorre no processo, pois os seus dois requerimentos anteriores não foram objecto de despacho, para logo a seguir indagar em tom irónico se tal será porque a executada explora com sucesso um estabelecimento de strip-tease com bonitas bailarinas estrangeiras, não sabendo se o favorecimento em que a omissão resulta tem alguma coisa a ver com isso, embora tenha a maior compreensão pelas fraquezas humanas. E de seguida acrescenta que o que sabe é que este negócio tem ondas e que a prosperidade que permite à executada pagar pode ser sol de pouca dura.

Independentemente de ser feita num tom jocoso, há  uma nítida alusão a um eventual comportamento menos próprio do tribunal, uma forte insinuação de simpatia do julgador pela executada, o que é uma acusação grave, uma «suspeita» sobre a isenção e a imparcialidade a que um juiz está vinculado no exercício da sua profissão e que constituem as pedras basilares da sua reputação profissional. Afigura-se, portanto, que estas palavras são susceptíveis de ofender a dignidade e a consideração de um magistrado judicial, isto é, têm aptidão para produzir esse resultado.
Apurou-se que o arguido conhecia tal aptidão e, no entanto, não se absteve de elaborar e apresentar o requerimento em juízo, ciente de que infringia o direito. Agiu portanto com dolo necessário (Art. 14º do C.Penal). A sua conduta integra assim todos os elementos, objectivos e subjectivos, que constituem aquele tipo de ilícito, e sob a forma agravada, pois o visado é titular de um órgão de soberania, um magistrado judicial, e no exercício de funções – Art. 184º conjugado com a al. j) do Nº 2 do Art. 132º do C.Penal.

No tocante ao segundo requerimento, demonstrou-se que o arguido quis explicar-se sobre os motivos que o impeliram a elaborar o requerimento antecedente e reagir à atitude da magistrada judicial titular do processo que determinou a extracção de certidão para fins de procedimento criminal e disciplinar.
Nesse requerimento, o arguido tece várias críticas aos atrasos processuais e ao facto de eles existirem em prejuízo de diversas normas sobre prazos, além de dar mais explicações sobre o que tinha querido dizer anteriormente, e de realçar que foi mal interpretado. O arguido, contanto se justifique afirmando claramente que não quis ofender ninguém, não deixa ao mesmo tempo ao longo de todo o requerimento de mostrar revolta pela atitude da magistrada, que o pôs em «xeque» ao dar origem a processos contra ele. Não se vislumbra, porém, da linguagem e estilo utilizados que o arguido exceda os limites da crítica, ainda que violenta, a que tem direito como liberdade de expressão constitucionalmente consagrada num estado de direito democrático.
A conclusão a retirar é, portanto, a de que relativamente a este requerimento não se mostram integrados os elementos típicos do crime de injúrias, ao nível objectivo.

A moldura penal abstracta é de prisão até 3 meses ou multa até 120 dias, elevadas de um terço nos seus limites mínimo e máximo.
Em sede de dosimetria penal, há que atender aos critérios gerais estabelecidos nos Art. 70º e 71º do C.Penal, que apontam para a preferência por pena não privativa da liberdade e para a sua concretização em função da culpa e das exigências de prevenção, ponderando todas as circunstâncias que deponham a favor e contra o agente.

O arguido é primário e nunca sofreu qualquer pena disciplinar no exercício da advocacia. Mostra-se, portanto, adequado e suficiente optar pela pena de multa.
O arguido agiu com dolo necessário e com culpa. A sua qualidade de auxiliar da justiça impunha-lhe uma maior ponderação na conduta. Em julgamento, no entanto, procurou explicar-se na presença  da magistrada ofendida, o que deve ser relevado como atenuante. Há ainda a considerar a posição  social e económica do arguido.
Neste contexto, entendo ajustado situar a pena de multa em 90 dias, à taxa diária de 7 €, perfazendo o total de 630 €.»

E, por tudo isso, foi proferida a decisão que se deixou transcrita no início do presente acórdão.
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Dada a documentação dos actos da audiência (cfr. acta de fls.146-147 e transcrição de fls.313-377) este Tribunal da Relação conhece de facto e de direito, nos termos do artº 428º, com referência ao artº 364º, ambos do C.P.P..

Como decorre das respectivas conclusões, atrás integralmente transcritas -  que balizam o objecto do recurso, de acordo com os artºs 403º e 412º, n.º 1 do C.P.P.- as questões postas no recurso prendem-se, fundamentalmente, com a apreciação da prova, produzida e examinada em audiência, feita pelo Tribunal “a quo“, de que teria resultado pretensa existência do vício da al. c) do n.º 2 do artº 410º do mesmo Código - erro notório na apreciação da prova -, relativamente aos factos descritos sob os nºs 8 e 9 da matéria de facto provada, e pretensa violação do artº 37º, da C.R.P., já que, defende o recorrente, devia antes ter sido absolvido do crime pelo qual foi condenado.
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Vejamos:

Porque esta Relação, como já se assinalou, conhece de facto e de direito, averiguemos se houve, como o pretende o recorrente, uma errónea valoração das provas acontecidas em julgamento, relativas à matéria de facto que impugna, e como a impugna.

Dos factos considerados provados na sentença recorrida, que atrás se deixaram integralmente transcritos, os que respeitam à matéria fáctica que o recorrente impugna, por os considerar incorrectamente julgados, são os seguintes (transcrevem-se):
«[...]
8- Ao elaborar o requerimento referido em 1. e 2. o arguido sabia que o mesmo continha expressões e afirmações aptas a ofender a honra e a consideração pessoal e profissional do magistrado destinatário.
9- Não obstante, o arguido apresentou esse requerimento em juízo, ciente de que infringia o direito.
[...]»

É, pois, relativamente a tais factos, e no sentido de os considerar provados, ou não provados, que se evidencia agora relevante a decisão deste Tribunal da Relação.

Analisada a prova produzida e examinada em audiência e que serviu de base para a decisão do tribunal quanto à conduta do arguido no que respeita ao requerimento referido em 1 e 2 da matéria de facto dada como provada na sentença recorrida, que se mostra devidamente registada e transcrita (consoante atrás se deixou sublinhado), apreciando-a e valorando-a de acordo com o princípio de livre apreciação da prova, acolhido de forma expressa no artº 127º do C.P.P., e tendo obrigatoriamente como pressupostos valorativos as regras da experiência e os critérios da lógica, quanto a nós, temos por não provados os transcritos factos.

Queda-se, pois, como não provado, que:
« [...]
- 8- Ao elaborar o requerimento referido em 1. e 2. o arguido sabia que o mesmo continha expressões e afirmações aptas a ofender a honra e a consideração pessoal e profissional do magistrado destinatário.
9- Não obstante, o arguido apresentou esse requerimento em juízo, ciente de que infringia o direito.
[...]».

A convicção do Tribunal quanto a não se terem dado como provados tais factos, resulta de, em nosso entender, não terem eles, com o seu sentido e alcance, sido objecto de prova adequada e convincente, nomeadamente, porque:
- Desde logo, da leitura do requerimento em causa, junta a fls.5-6 destes autos, ressalta, à evidência, nada se descortinar que se possa considerar, de forma relevante, objectivamente ofensivo da honra e consideração da Magistrada queixosa e por causa do exercício das suas funções. Isto é, nada aí se encontra que se possa considerar, ainda que minimamente, e no que toca ao exercício das suas funções de Juiz, ofensivo da honra social ou exterior da mesma, que «... exprime o conjunto de apreciações valorativas ou de respeito e deferência de que cada um disfruta na sociedade»[1]. No caso, como Juiz e enquanto tal;
- Acresce que, consoante se pode concluir dos depoimentos do arguido (cfr., especialmente, fls. 328, 331-333) e da Magistrada queixosa (cfr., especialmente, fls.344-347), não se pode dar como provado que o arguido soubesse quem era o Magistrado que, naquela altura, tinha sob a sua responsabilidade o processo de execução em causa e ia apreciar o aludido requerimento, e daí que, como é óbvio, não podia ele, sem mais, admitir ou pretender «... ofender a honra e a consideração pessoal e profissional do magistrado destinatário», já que, para a ofensa ocorrer relativamente à Magistrada queixosa, e a mesma poder ser considerada efectivamente ofendida, tinha que resultar provado saber o arguido (ou prever) ser ela (ou poder ser) a destinatária do dito requerimento;
- Depois, porque, e salvo o devido respeito por diferente opinião, em nosso entendimento, a conduta do arguido no atinente ao requerimento em causa, não pode ser interpretada (nomeadamente no que concerne à sua natureza pretensamente ofensiva) e definida em termos diferentes daqueles que ocorreram no Processo Disciplinar de que o arguido também foi alvo (facto provado sob o nº 12 e certidão junta de fls.141-145), e que assim textuam (transcreve-se, no pertinente):
«[...] a conduta do senhor Advogado arguido, pese embora não tenha sido a adequada, acaba por ser compreensível devido aos motivos que alegou e provou documentalmente, não pode ser considerada violadora dos seus deveres profissionais, nomeadamente os consignados nos Arts. 76º nº 1 e 89º do E.O.A., conforme foi acusado.
Na verdade, entende-se que as expressões utilizadas e proferidas pelo Senhor Advogado arguido, não visaram ofender a honra e a dignidade da Senhora Juiz de Direito da 3a Secção, da 10a Vara Cível da Comarca de Lisboa.
Antes, consubstanciaram um desabafo do Senhor Advogado arguido perante as delongas a que o processo judicial em causa esteve sujeito, não tendo como objectivo qualquer ataque pessoal ou qualquer alusão deprimente ao comportamento da Senhora Magistrada.
Deste modo, e muito embora se admita que o Senhor Advogado arguido utilizou expressões infelizes nos requerimentos que subscreveu, conclui-se que não houve por parte do Senhor Advogado arguido qualquer falta de respeito à senhora Magistrada e nessa conformidade não se encontra violado o dever geral de urbanidade consagrado no Art 89º do E.O.A.
[...]»
+

Ao entender-se agora não terem ficado provados os factos atrás apontados, acolhe-se, inteiramente, no que a tal aspecto é atinente, a pretensão do recorrente.

E este ponto da matéria de facto, em que houve alteração relativamente à primeira instância, importa, só por si, alteração da qualificação jurídico-penal da conduta do arguido e que originou a sua condenação.

Na verdade, vindo o arguido-recorrente condenado pela prática de um crime de injúrias agravadas, p. e p. pelos Art. 181º N.1 e 184º, do Código Penal, tem de concluir-se que, agora, os factos provados não permitem, por si, e perante o acervo daqueles que ficaram por provar, manter essa qualificação jurídico-penal.

É que, se se quedou por provar o atrás apontado acervo de factos, inquestionável é que não se mostra comprovada a verificação de um dos elementos essenciais do referido tipo legal de crime – qual seja, a imputação, pelo arguido e através do requerimento em causa, à pessoa da Magistrada queixosa, Sr.ª Dr.ª. (M), no exercício e por causa das sua funções, «...de facto ou conduta, ainda que não criminosos, que encerre em si uma reprovação ético-social, isto é, que sejam ofensivos da reputação do visado» (anotação aos artºs 180º e 181º, do C.P., em C.P.Anotado, de Leal-Henriques e Simas Santos).

E, se é certo que os factos considerados provados não permitem, de forma bem visível aliás, manter a qualificação jurídico-penal da conduta do arguido levada a cabo na sentença recorrida, não é menos certo que não revelam eles a prática de qualquer outro crime por parte do arguido que imponha, ou permita, agora, legal convolação.

E, se assim é, a condenação do arguido relativamente ao crime por que foi condenado não se pode manter e tem, portanto, de dele ser, também, absolvido, com as consequências daí decorrentes.

Flui do expendido que o recurso merece, pois, provimento, devendo a sentença ser alterada nos termos aludidos.
*

Assim, do exposto, tudo visto e sem a necessidade de maiores considerações:
Acorda-se em, nos termos sobreditos, conceder provimento ao recurso do arguido (A) e, em consequência, alterando-se a sentença recorrida apenas nessa parte, absolve-se, também, o mesmo, do crime de injúrias agravadas, p. e p. pelos Art. 181º N.1 e 184º, do Código Penal pelo qual havia sido condenado na 1ª instância.

Sem custas, por não serem devidas.

Lisboa 29/06/04

Pulido Garcia
Vasques Dinis
Cabral Amaral

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[1] in Prof. Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, Tomo III, Pessoas, 2004, pág. 143.