Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
24/09.2TNLSB.L1-7
Relator: MARIA JOÃO AREIAS
Descritores: TRANSPORTE MARÍTIMO
CONHECIMENTO DE CARGA
CADUCIDADE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 07/14/2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I - A necessidade de segurança e de uma pronta definição das situações comerciais, impõe que o início de qualquer prazo de proposição de acções em Direito Marítimo seja exacta e concretamente determinável.
II - O nº6 do art. 3º da Convenção de Bruxelas de 1924, ao estabelecer como momento, a partir do qual se conta o prazo de um ano para instauração da respectiva acção, o data da entrega das mercadorias ou da data em que estas deveriam ser entregues, é claramente um prazo de caducidade, tal como vem sendo unanimemente considerado pela doutrina e jurisprudência.
(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa (7ª Secção):

1. RELATÓRIO
A (…), S.A., intenta a presente acção declarativa sob a forma de processo ordinário contra:
B (…), S.A., e
C (…), S.A.,
alegando, para tanto, em síntese:
no exercício da sua actividade, a A. celebrou com (…), S.A., um contrato de seguro através do qual assumiu para si o risco de transporte por via marítima, de produtos alimentares e outros de consumo doméstico de/para Portugal/Madeira;
a 9 de Setembro de 2006, a segurada da A. transmitiu à ora A. a ocorrência de um transporte de mercadorias no navio “Ilha da Madeira, a realizar de madeira para o Funchal”;
tal mercadoria foi acondicionada num contentor após este lhe ter sido entregue pela 1ª Ré;
a mercadoria e o contentor foi transportada de Lisboa para o Funchal pela armadora do identificado navio, a ora 1ª Ré, e descarregada a mercadoria a 14 de Setembro, as mercadorias transportadas apresentavam significativas alterações, tendo sido apresentada reclamação pelo segurado à L..., confirmando-se que a mercadoria não poderia ser aproveitada;
pelo estrago da mercadoria, a A. pagou ao seu segurado a quantia de 34.000,00 €, pagamento que efectuou a 25 de Maio de 2007;
entre a 1ª e a 2º R. foi celebrado um contrato de seguro através do qual aquela transferiu para esta o risco de responsabilidade civil emergente da sua actividade de transportadora por via marítima.
Em consequência, pede a condenação solidária das RR. a pagarem à A. a quantia de 36.040,00 € e juros de mora à taxa legal dos créditos das empresas comerciais desde a data da p.i., e até integral pagamento.
Ambas as RR. contestaram invocando a caducidade do direito da Autora, pelo facto de a presente acção dado entrada em tribunal decorrido o prazo de um ano previsto no nº6 do art. 3º da Convenção de Bruxelas de 25-08-1924, transposta para o direito interno pelo Dec. Lei nº 37.748, de 01.02.1950.
A Autora respondeu no sentido da improcedência de tal excepção, alegando que o prazo de um ano previsto na Convenção de Bruxelas é um prazo de prescrição e não um prazo de caducidade, pelo que tendo a A. demandado as RR. numa primeira acção que deu entrada em tribunal a 28.08.2007, o prazo prescricional foi interrompido em 02.09.2007, só se tendo reiniciado em 18.02.2008, data do trânsito em julgado da sentença que pôs termo ao mencionado processo.
Pelo tribunal a quo foi proferido saneador sentença que julgando a acção improcedente por extinção do direito de accionar as RR. por caducidade e, consequentemente, absolveu as RR. do pedido.
Inconformada com tal decisão, a Autora interpôs recurso de apelação, concluindo a respectiva motivação, com as seguintes conclusões:
a) Prescrição e caducidade são dois institutos muito similares, de difícil distinção, visando ambos a tutela da certeza e segurança jurídicas.
b) Os textos legislativos são, as mais da vezes, erróneos na linguagem utilizada, falando em prescrição quando se referem a situações de caducidade e vice-versa.
c) A qualificação deve, pois resultar da interpretação a dar a cada disposição legal em concreto, tendo sobretudo, mas exclusivamente, em atenção dois critérios: o da natureza privada ou pública dos interesses em causa; o da disponibilidade ou indisponibilidade dos direitos em análise.
d) Sendo que, em caso de dúvida, e porque o regime da caducidade é mais penalizador para o titular do direito, deve entender-se que o legislador quis estabelecer uma situação de prescrição e não de caducidade.
e) No caso dos autos, são privados os interesses em causa, como privadas são as pessoas jurídicas em confronto.
f) O direito em causa é completamente disponível.
g) Não se vislumbra qualquer razão ou argumento para qualificar o prazo para o exercício de um direito de natureza indemnizatória com critério diferente do que é utilizado para qualquer outro crédito com a mesma origem, até mesmo os que são originados por danos em mercadorias transportadas mas em meios de transporte diversos.
h) Com o que o prazo da norma em causa nos presentes deve ser qualificada como de prescrição, e não de caducidade, o qual se interrompeu com a citação para a primeira acção referenciada nos autos, nunca tendo decorrido o ano para o decurso do prazo legal até essa citação ou desde o trânsito em julgado da decisão dessa acção até ao quinto dia seguinte ao da propositura dos presentes autos.
i) Foram violadas as normas dos arts. 3º, nº 6, da Convenção Internacional para a Unificação de Certas Regras em Matéria de Conhecimento de Carga, 323º, 326º, 327º e 328º e seguintes, todos do C. Civil.
Conclui pela revogação da decisão recorrida, e pela sua substituição por outra que julgue improcedente a excepção de caducidade, como seria improcedente a excepção se qualificada como de prescrição, ordenando-se o ulterior trâmite dos autos.
As Rés apresentaram contra-alegações.
Foram dispensados os vistos, ao abrigo do disposto no nº4 do art. 707º, do CPC.

II – DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO
Considerando que as conclusões da alegação de recurso delimitam os poderes de cognição deste tribunal, a questão a decidir é unicamente a seguinte:
1. Se o prazo de um ano previsto no nº6 do art. 3º da convenção de Bruxelas é um prazo de caducidade ou de prescrição.

III – APRECIAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO.
A. Matéria de facto.
São os seguintes os factos dados como provados na decisão recorrida:
1. A R., B (…), S.A., acordou transportar, no navio “…”, o contentor frigorífico … ., selo … e com o seguinte conteúdo: 255 caixas queijo e 1 lote de produtos alimentaras e temperatura requerida 03 (três) graus centígrados positivos, do Porto de Lisboa para o do Caniçal, na Madeira;
2. O contentor pertencia à 1ª R. e foi por esta entregue à segurada da A. e, posteriormente, embarcado no navio … em 8 de Setembro de 2006.
3. O navio “…” chegou ao Caniçal às 06h00 de 11.09.2006 e o contentor foi entregue à segurada da A. pelo menos em 14 de Setembro de 2006.
4. A mercadoria foi destruída no dia 27 de Setembro de 2006;
5. Pelo menos em 9 de Setembro de 2006, os registos de temperatura do contentor indicavam que esta atingira 8º C.
6. Por fax datado de 25-06-2007, a 1ª R. informou a A. que relativamente ao sinistro relacionado com o contentor … … o processo já havia sido remetido à segurada, facultando os elementos identificativos da 2ª R..
7. Por correio electrónico com data de 31 July 2007, a segunda R. apresenta à A. uma proposta encimada com a expressão “WITHOUT PREJUDICE”, e com vista à solução do litigio de uma forma simples e rápida sem recurso à via judicial, no montante de 20 000 euros pagamento total e definitivo de todas as reivindicações que surjam relacionados com aquele conhecimento de carga.
8. A A. demandou as ora RR. pelos mesmos exactos pedidos e causa de pedir em acção que deu entrada em juízo em 28/08/2007 e que correu termos pela ..ª Vara Cível, …ª Secção, sob o nº …;
9. Por sentença datado de 31/01/2008, foi julgada válida a desistência da instância apresentada pela A. e aceita pelas RR.,
10. A decisão foi comunicada às partes por registo de 4 de Fevereiro de 2008.
11. A presente acção deu entrada neste Tribunal em 26 de Janeiro de 2009.
 B. O Direito
 1. Prazo de um ano previsto na Convenção de Bruxelas de 1924 – caducidade ou prescrição.
Considerando aplicável à situação em apreço o nº6 do art. 3º da Convenção de Bruxelas de 1924[1], e que o prazo de um ano aí previsto é um prazo de caducidade, o juiz a quo considerou extinto o direito da autora por caducidade.
Não se conforma a autora com tal decisão, por, em seu entender, nos encontrarmos perante um prazo de prescrição e não de caducidade.
Não discutem, assim, as partes a aplicabilidade da Convenção de Bruxelas, nem a sujeição do direito da autora ao prazo de um ano previsto no nº6 do seu art. 3º[2], encontrando-se unicamente em causa a natureza de tal prazo, questão que passamos a analisar.
Dispõe o citado nº6 do art.3º da Convenção:
“Em todos os casos, o armador e o navio ficarão libertados de toda a responsabilidade por perdas e danos, não sendo instaurada a respectiva acção no prazo de um ano a contar da entrega das mercadorias ou da data em que estas deveriam ser entregues”.
Como defende Nuno Manuel Castello-Branco Bastos, tal prazo merece ser curto “se se tiver em conta que, também no domínio comercial, se sente uma premente necessidade de segurança e de uma pronta definição das situações comerciais. E tanto mais que é certo que qualquer lide judicial ou extrajudicial, no âmbito das relações internacionais, importará não pequenos esforços e deslocações eventuais a um foro distante[3].
E, posição semelhante assume Hugo Ramos Alves, segundo o qual “a previsão de um prazo tão curto para a propositura da acção prende-se com a necessidade de regular de forma relativamente célere os litígios derivados do incumprimento do contrato de transporte internacional de mercadorias por mar, bem como facilitar às partes apresentação das provas que pretendem fazer valer[4]”.
De harmonia com o disposto no nº2 do art. 298º do Código Civil, quando, por força da lei ou por vontade das partes um direito puder ser exercido dentro de certo prazo, são aplicáveis as regras da caducidade, a menos que a lei se refira expressamente à prescrição.
Com fundamento em que não tendo o legislador na Convenção de Bruxelas efectuado qualquer referência expressa a que tal prazo seja prescricional, e sem outras explicações complementares, a doutrina[5] e a jurisprudência[6] têm vindo pacificamente a entender que se trata de um prazo de caducidade.
A definição da natureza de tal prazo terá de passar pela análise de cada um dos institutos em questão.
 Para a doutrina dominante, o fundamento específico da prescrição residirá na negligência do titular do direito em exercitá-lo durante o período de tempo indicado na lei, fazendo presumir ter ele querido renunciar ao direito ou tornando-o indigno de protecção jurídica[7].
 Já quanto à caducidade, o seu fundamento específico seria a necessidade de certeza jurídica, residindo em motivos puramente objectivos, prescindindo, por conseguinte, da negligência do seu titular[8].
Para José Dias Marques, a distinção entre a prescrição e a caducidade assentaria na diversidade da função do prazo: num caso mede a duração da negligência, no outro, mede a duração do direito[9].
 E, segundo Vaz Serra, a distinção entre prescrição e caducidade só poderá operar por via da interpretação de cada uma das disposições legais onde se fixassem prazos para o exercício de direitos, determinando, através da sua razão de ser e finalidade, se a lei pretenderia estabelecer um prazo de prescrição, ou antes, de caducidade[10].
“Pode, na verdade acontecer que a lei sujeite um direito a um prazo, dentro do qual pode ser exercido, e decorrido o qual, portanto, se extingue, se não for exercido a tempo, determinando-se a lei por razões objectivas de segurança jurídica, sem atenção à negligência ou inércia do titular, mas com o propósito de garantir que, dentro do prazo nela estabelecido, a situação se defina.
Na prescrição, intervêm também razões objectivas de segurança jurídica, pois a prescrição é também inspirada no interesse social da paz jurídica, mas tais razões não são exclusivas, aparecendo, antes, temperadas pela ideia de negligência do titular e pela disponibilidade da outra parte quanto a valer-se da prescrição.
É assim que a prescrição pode suspender-se e interromper-se; que o juiz não pode conhecer oficiosamente dela; que a prescrição não extingue o direito, dando apenas à outra parte a faculdade de recusar a prestação, e podendo, portanto, renunciar à excepção da prescrição, com o que o direito prescrito recupera o seu pleno valor, e, pagando o devedor a dívida prescrita, cumpre uma obrigação[11]”.
Ora, o nº6 do art. 3º da Convenção, ao estabelecer como momento a partir do qual se conta o prazo de um ano o da entrega das mercadorias ou da data em que estas deveriam ser entregues – e não o do conhecimento do direito – apontará no sentido de que nos encontramos perante um prazo de caducidade.
Com efeito, a opção por um elemento objectivo e facilitador da demarcação do início de tal prazo de propositura das acções aí previstas, denota a preocupação do legislador em promover a segurança e a estabilidade de tais relações jurídicas, preocupação esta que subjaz à fixação de prazos de caducidade.
Segundo Mário Raposo, que considera ser mais conforme à sua natureza qualificar tal prazo como de caducidade, “vale como regra de ouro a exacta e concreta determinação do dies a quo; o início de qualquer prazo de proposição de acções em direito marítimo tende sempre a ser uma realidade de natureza factual, facilmente configurável e certificável[12]”.
Como afirma Vaz Serra, a caducidade “é estabelecida com o fim de dentro de certo prazo se tornar certa, se consolidar, se esclarecer determinada situação jurídica[13]”.
Face às considerações expostas, nenhuma razão encontramos para nos afastarmos da doutrina e jurisprudência uniformes que consideram o prazo em questão como de caducidade.
Não se interrompendo tal prazo pela propositura da 1ª acção e tendo a presente acção sido interposta decorridos mais de dois meses sobre o trânsito em julgado da decisão que pôs fim à 1ª acção, o direito de acção encontrava-se extinto por caducidade, como bem entendeu o tribunal a quo – arts. 328º e nº3 do art. 327º, por força do art. 332º, todos do Código Civil.
Improcedem, na sua totalidade, as conclusões da apelante.


IV – DECISÃO
Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas a suportar pela apelante.

Lisboa, 14 de Julho de 2011

Maria João Areias
Luís Lameiras
Roque Nogueira
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[1] Convenção Internacional para a Unificação de Certas Regras em Matéria de Conhecimento de Carga, assinada em Bruxelas a 25.08.1924, a que Portugal aderiu por Carta de 05.12.31, publicada no DG, Iª Série, de 02.06.1932, cujos arts. 1º a 8º foram integrados na ordem jurídica portuguesa pelo DL 37.748, de 01.02.1950.
[2] Hugo Ramos Alves defende que, quanto aos transportes internos de mercadorias, a Convenção de Bruxelas será aplicável enquanto diploma interno (por força do DL 37.448), concorrendo com o DL nº 352/86, de 21 de Outubro, que, devido à sua maior actualidade, prevalecerá sobre a Convenção de Bruxelas –, “Da Limitação da Responsabilidade do Transportador na Convenção de Bruxelas de 1924”, Almedina, Abril de 2008, pag. 39 a 46. Em igual sentido se pronuncia Mário Raposo, em anotação ao Ac. do TRL de 25.10.2001, defendendo que o prazo aplicável aos transportes internos, isto é, aos que se processem entre portos nacionais, será o de dois anos previsto no nº2 do do art. 27º do DL 352/86 – Cfr., “Estudos Sobre Arbitragem Comercial e Direito Marítimo”, Almedina, Dezembro 2006, pag. 127, e “Transporte Marítimo de Mercadorias, Os Problemas”, estudo publicado in “I Jornadas de Direito Marítimo, 6 e 7 de Março de 2008, O Contrato de Transporte Marítimo de Mercadorias”, Almedina, Dezembro de 2008, pag. 78 –. Assim, e quanto ao caso em apreço, só não será aplicável o referido prazo de dois anos, pelo facto de no conhecimento de carga, ao abrigo do qual foi efectuado o transporte em causa, constar da sua clausula 2ª que o mesmo se rege pela Convenção de Bruxelas de 1924.
[3] “Direito dos Transportes”, IDET, Cadernos nº2, Almedina, pag. 272.
[4] “Da Limitação da Responsabilidade do Transportador na Convenção de Bruxelas de 1924, Almedina, pag. 123.
[5] Cfr., entre outros, Hugo Ramos Alves, “Da Limitação (…), pag. 124, e Mário Raposo, “Estudos Sobre Arbitragem Comercial e Direito Marítimo”, que, em anotação ao Acórdão do TRE de 25.10.2001, e ao Ac. do STJ de 17.02.2005, trás implícita a qualificação de tal prazo como de caducidade.
[6] Cfr., neste sentido, entre outros, Acórdãos do STJ de 14.04.2011, 16.09.2008, 19.09.2007, 17.02.2005, Acórdãos do TRL de 27.11.2008, de 15.01.2008, e de 25.11.2004, e do Tribunal da Relação do Porto de 18.04.2000, disponíveis in http://www.dgsi.pt/jstj., e Acórdão do TRP de 11.01.2001, in CJ Ano XXVI, T1, pag. 179.
[7] Cfr., Manuel de Andrade, “Teoria Geral da Relação Jurídica”, Vol. II, pag. 445 e 446.
[8] Cfr., neste sentido, Manuel de Andrade, obra citada, pag. 464, e Vaz Serra, “Prescrição Extintiva e Caducidade”, estudo publicado no BMJ nº 107, pag. 191 e 192.
[9] Cfr., “Teoria Geral da Caducidade”, Lisboa, 1953, pag. 45.
[10] Local e estudo citados, pag. 193.
[11] Vaz Serra, estudo e local citados, pag. 191.
[12] Cfr., “Sobre o Contrato de Transporte de Mercadorias por Mar”, estudo publicado in BMJ nº 376, Maio de 1988, pag. 11 e 14.
[13] Cfr., RLJ Ano 107, pag. 24.