Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
9450/2007-2
Relator: FARINHA ALVES
Descritores: ÂMBITO DO RECURSO
REDUÇÃO
LITIGÂNCIA DE MÁ FÉ
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/06/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Sumário: I - A limitação do objecto do recurso, feita no respectivo requerimento de interposição, torna-se imediatamente relevante, nos termos do art. 684º n.º 2 a 4 do CPC, produzindo-se o efeito de caso julgado em relação ao demais decidido, caso julgado que se impõe às partes e ao próprio tribunal.
II - Depois de assim ter sido limitado, o objecto do recurso ainda poderia voltar a ser reduzido pela recorrente em sede de alegações, mas não ampliado.
III - Sabendo os promitentes vendedores que não estava verificada a condição de que ficou dependente a celebração do contrato prometido, nem era previsível que viesse a estar no futuro, litigaram de má fé quando vieram requerer a fixação judicial de prazo para ser outorgada a respectiva escritura.
(FA)
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da relação de Lisboa

A., B., C. e D., e respectivos cônjuges, vieram propor contra E, Lda. a presente acção com processo especial de fixação judicial de prazo, pedindo a fixação de prazo não superior a trinta dias para a Ré proceder à marcação de escritura definitiva, para os quinze dias subsequentes, notificando o primeiro Autor, nos termos previstos no contrato-promessa de compra e venda celebrado entre as partes.

Alegaram em síntese:

Por contrato-promessa de 25 de Setembro de 2001 o 1.º A., com procuração dos demais, prometeu vender à R. o prédio urbano identificado no artigo primeiro da petição inicial, pelo preço de Esc. 161.000.000$00, tendo sido paga, a título de sinal, a quantia de Esc. 80.000.000$00.

Foi estipulado que a escritura de compra e venda se realizaria “mediante a comunicação da segunda outorgante (ora R.) ao primeiro outorgante, indicando-lhe dia, hora e local ou cartório notarial, com pelo menos 10 dias de antecedência e uma vez verificado o levantamento da licença de construção decorrente do projecto apresentado à Câmara Municipal de Coimbra, segundo os desígnios da segunda outorgante”.

Passaram mais de quatro anos e a Ré, a benefício de quem foi estabelecido o prazo, ainda não notificou para a celebração da aludida escritura definitiva.

O benefício do prazo foi estabelecido a favor da R. na condição de ela viabilizar, em prazo razoável, a emissão de licença de construção cujo projecto, conforme consta do contrato-promessa, já havia sido apresentado.

Não é razoável esperar quatro anos para o preenchimento de tal condição.

Citada a sociedade Ré, esta contestou, dizendo, em síntese, na parte que agora releva:

A celebração do contrato definitivo ficou dependente do prévio levantamento da licença de construção de um projecto imobiliário para o prédio prometido vender.

Essa licença nunca chegou a ser obtida uma vez que a Câmara Municipal, após consulta e apresentação de um estudo prévio elaborado para o efeito, informou da inviabilidade do projecto imobiliário para o local, tendo ainda dado início ao processo visando a aquisição amigável, ou a expropriação do imóvel, justificada pelo seu interesse histórico.

A R. ficou, deste modo, impossibilitada de cumprir o contrato-promessa, por causa que não lhe é imputável.

O que, tudo, era do conhecimento dos requerentes.

Com tal fundamento procedeu, por cartas de 12-01-2005 dirigidas a todos os comproprietários do imóvel, à resolução do contrato-promessa e reclamou a devolução do montante do sinal.

Tal resolução foi reiterada a todos os proprietários por cartas de 28-01-05.

Tendo conhecimento de todos estes factos, devem os Requerentes ser condenados, por litigância de má fé, em multa e indemnização decorrente dos custos suportados pela Ré com a presente lide, nomeadamente os honorários a pagar aos Mandatários da mesma, de montante não inferior a € 10 000,00 (dez mil euros).

Depois de ter sido averiguada a posição do Município de Coimbra em relação ao prédio dos autos, foi proferida decisão a julgar improcedente a acção e a condenar os Autores, solidariamente entre si, na multa de 7 UC, como litigantes de má fé, tendo sido relegada para momento posterior, uma vez ouvidas as partes nos termos do n.º 2 do art. 457 do CPC, a fixação da indemnização fundada na mesma litigância.

No seguimento vieram os AA., dizendo-se inconformados com a condenação por litigância de má fé, dela interpor recurso, apresentado e admitido como de apelação.
Entretanto, foi proferida decisão a fixar no montante de € 2.419,60 a indemnização a pagar pelos AA. à R., por litigância de má fé, da qual, inconformados, os AA. agravaram.

Mas apenas a Autora M apresentou alegações, onde formulou as seguintes conclusões:

A – No recurso de apelação:

I. O tribunal quo não podia concluir que a recorrida resolveu o contrato, porque não foi proferida nenhuma declaração resolutiva mas apenas considerações vagas e manhosas sobre o direito de resolução.

 II. Não podia, de outro lado, concluir o tribunal que foi apresentado projecto de obras à Câmara Municipal, pois que o sentido da palavra «apresentado» contida no contrato-promessa, por relação ao projecto, tem sentido futuro e não passado.

III. O facto de a recorrida pedir aos promitentes vendedores a devolução do sinal não implica a desvinculação dos mesmos do contrato promessa.

IV. Enquanto não fosse fixado prazo judicial, porque nenhuma declaração resolutiva clara e inequívoca foi proferida, sempre poderia a recorrida exigir o cumprimento do contrato, alegando não ter prazo para o mesmo nem para a apresentação do projecto de obras, que antecede o cumprimento da condição.

V. Tendo sido convencionado entre as partes que a escritura da compra e venda prometida seria celebrada em data a marcar pela promitente compradora, após o levantamento de licença de construção, na sequência da apresentação de um projecto de obras à Câmara Municipal de Coimbra e não tendo sido apresentado qualquer projecto de obras num período de cinco anos, tinham os promitentes vendedores o direito de pedir em juízo a fixação de prazo.

VI. Não tendo sido fixado prazo sequer para a apresentação à Câmara Municipal do projecto de obras seria razoável que o tribunal o fixasse.

VII. Estando o cumprimento da obrigação por parte da recorrida sujeito à condição de prévia obtenção da licença de construção e tendo sido estabelecido a favor dela o benefício do prazo, estava a recorrida obrigada, no mínimo, a apresentar à Câmara Municipal um projecto de obras e um pedido de licenciamento das mesmas.

VIII. A deliberação da Câmara Municipal declarando a tomada de posse administrativa, que foi posteriormente revogada, não nem nenhum interesse para a economia do contrato a que se refere estes autos.

IX. A impossibilidade do cumprimento do contrato só poderia demonstrar-se por via de indeferimento de um pedido de licenciamento de obras que declarasse a impossibilidade absoluta de edificar no prédio prometido vender.

X. Não tendo a recorrida apresentado nenhum projecto nem pedido nenhum licenciamento não podia, obviamente, resolver o contrato, como efectivamente não resolveu.

XI. O processo especial de fixação de prazo não admite resposta à contestação, pelo que não podia o tribunal considerar que os requerentes ocultaram factos relevantes, uma vez que tais factos nada têm a ver com a causa de pedir nem com o pedido.

XII. O tribunal a quo ofendeu o disposto nos art°s 777°, 2 do Código Civil e os art°s 1456° e 1457' do Código de Processo Civil.

XIII. O tribunal a quo ofendeu ainda o disposto no art° 456°,2 al. ), por relação com o art° 467°, 1 al d) e e) do CPC, pois que não só não era exigível aos requerentes que invocassem os factos referidos na sentença como tendo sido ocultos, como, de outro lado, eles seriam inúteis, por nada terem a ver com a causa de pedir.

XIV. Deve ser revogada a decisão, substituindo-se a mesma por outra que fixe prazo razoável à recorrida para cumprir o contrato ou declarar-se que ela o não que cumprir, pelo que não se deve fixar prazo.

XV. Deve, de outro lado, revogar-se a decisão no tocante à condenação dos recorrentes como litigantes de má fé, pois que nenhum facto relevante foi oculto, para além do mais porque não podiam os AA. responder à resposta da recorrida.

B – No agravo:

I. A douta decisão recorrida ofende o disposto no art. 457.º 1 do CPC, 1 do CPC, na medida em que não existe qualquer relação de causa e efeito entre a invocada má fé dos AA. e os custos ou prejuízos alegadamente sofridos pela recorrida.

II. A douta decisão recorrida deve ser revogada.

A recorrida contra-alegou longamente, defendendo a improcedência dos recursos e pedindo, mais uma vez, a condenação da recorrente por litigância de má fé, em multa e indemnização.

Salientou, designadamente, que o objecto do primeiro recurso foi limitado, no respectivo requerimento de interposição, à condenação por litigância de má fé.


Cumpre agora decidir.
***

Antes de prosseguir, importa definir a posição processual dos autores/recorrentes que não apresentaram alegações.

Como se viu, os recursos foram interposto por todos os AA., mas apenas uma A. apresentou alegações. A falta de alegações dos demais, implica a deserção do recurso em relação a eles, nos termos dos art.s 291.º n.º 2 e 690.º n.º 3 do CPC. Ou seja, os recorrentes que não apresentaram alegações, nem aderiram às alegações que foram apresentadas, deixaram de ter aquela qualidade, devendo ser declarada finda, em relação a eles, a instância de recurso.

Em relação a custas, e uma vez que está em causa um único recurso, esta deserção há-de ser tratada como um incidente desta instância e, como tal, tributado, independentemente da sorte do recurso. Pois que, aqui, não está em causa a tributação do próprio recurso, a fixar a final, mas a de um incidente a que estes recorrentes incontornavelmente deram causa quando omitiram a apresentação de alegações no recurso que interpuseram.

Concluindo-se, em conformidade, julga-se deserto, o recurso interposto pelos autores que não apresentaram alegações, (todos os AA. com excepção da recorrente M), declarando-se finda, em relação a eles, a presente instância.

Custas pelos referidos AA, com uma UC de taxa de justiça.

***

Passando ao conhecimento dos recursos, importa, antes de mais, delimitar o seu objecto, questão que, como se viu, vem suscitada nas alegações em relação ao primeiro recurso interposto.

Em relação a este recurso, interposto e admitido como de apelação, julga-se ser seguro que assiste razão à recorrida quando defende que o seu objecto foi limitado, no respectivo requerimento de interposição, à condenação dos recorrentes por litigância de má fé.

O requerimento em causa, cujos termos relevantes acima se deixaram transcritos, está a fls. 299 dos autos e, ao que se julga, o seu entendimento não deixa lugar a dúvidas, ficando claro que o recurso ali interposto é limitado à impugnação da decisão que condenou por litigância de má fé.

É certo que, como já se referiu, aquele recurso foi interposto como apelação, e não como agravo, sendo este, a nosso ver, o recurso que cabia no caso, mas não se vê que essa divergência possa ser valorada como algo mais do que um simples erro dos recorrentes na identificação do recurso que cabia, não podendo concluir-se daí que, afinal, os recorrentes pretendiam impugnar toda a decisão, e não apenas a sua condenação por litigância de má fé.

A limitação do objecto do recurso assim operada tornou-se imediatamente relevante, nos termos do art. 684º n.º 2 a 4 do CPC, produzindo-se o efeito de caso julgado em relação ao demais decidido, caso julgado que se impõe às partes e ao próprio tribunal. Depois de assim ter sido limitado, o objecto do recurso ainda poderia voltar a ser reduzido pela recorrente em sede de alegações, mas não ampliado.

Deste modo, a única questão que ora cumpre apreciar respeita à condenação por litigância de má fé. Fica, assim, prejudicada a reapreciação do pedido de fixação judicial de prazo, considerando-se transitada, nessa parte, a decisão recorrida. Em conformidade, as questões suscitadas nas alegações e conclusões de recurso só serão apreciadas na medida em que puderem relevar para a questão da litigância de má fé.

Posto isto, não decorrendo daí qualquer vantagem, para as partes ou para o processo, não se procederá à alteração da espécie do recurso, pois que isso ainda obrigava a uma prévia audição das partes.

***

Sendo o objecto do recurso limitado pelas respectivas conclusões, enquanto fundadas nas alegações, ressalvadas apenas as questões que sejam do conhecimento oficioso do tribunal, está em causa nos presentes recursos:

A) No recurso de apelação, saber se não deve ser mantida a condenação dos AA. por litigância de má fé e, designadamente:

- Se não está assente nos autos que a recorrida resolveu o contrato, nem que esta tenha apresentado, à Câmara Municipal de Coimbra, um projecto de obras para o prédio prometido vender.

- Se a actuação daquela Câmara em relação ao prédio dos autos nenhum interesse tinha para a economia do contrato-promessa.

- Se se mostrava justificada a iniciativa processual dos AA. de fixação judicial de prazo veiculada na petição inicial da acção.

B) No recurso de agravo saber se, a manter-se a condenação dos AA. por litigância de má fé, não há fundamento para a condenação em indemnização, seja por o patrocínio judiciário exercido no âmbito do processo, no interesse da ré, nada ter a ver com a pretensão de fixação judicial de prazo, seja por estarem em causa custos normais de patrocínio; vem ainda questionado, por excessivo, o montante fixado.

***

Nas alegações apresentadas no segundo recurso a recorrente invocou a violação do princípio do contraditório na condenação por litigância de má fé, mas esta não era a sede própria para tal invocação. É que, visando a própria condenação por litigância de má fé, esta alegação, que não respeita a matéria do conhecimento oficioso do tribunal, tinha de ser feita no âmbito das alegações e conclusões do recurso que visa essa decisão.

De qualquer modo, tal questão sempre improcederia uma vez que a questão da litigância de má fé foi suscitada pela R. na contestação, sendo claro que, em relação a ela, era admissível resposta dos AA. Não foi, assim, desrespeitado o princípio do contraditório.

***

Posto isto, vejamos agora as questões do presente recurso, começando, naturalmente, pelas atinentes à matéria de facto, identificadas nas duas primeiras conclusões do primeiro recurso.

Diz a recorrente:

I. O tribunal quo não podia concluir que a recorrida resolveu o contrato, porque não foi proferida nenhuma declaração resolutiva mas apenas considerações vagas e manhosas sobre o direito de resolução.

 II. Não podia, de outro lado, concluir o tribunal que foi apresentado projecto de obras à Câmara Municipal, pois que o sentido da palavra «apresentado» contida no contrato-promessa, por relação ao projecto, tem sentido futuro e não passado.

Ora bem, em relação à primeira questão o tribunal recorrido limitou-se a sintetizar, no ponto quinto do elenco dos factos considerados assentes, o conteúdo da carta ali referida, junta com a contestação da ré a fls. 127/128 dos autos. Não estando em causa o conteúdo da referida carta, nem o seu recebimento pelos AA., dela decorre, irrecusavelmente, a afirmação da pretensão da R. no sentido de ver resolvido o contrato em causa e restituído o montante do sinal. E essa pretensão foi reafirmada na carta subsequente, datada de 28-01-2005, junta a fls. 139, onde foi fixado prazo para restituição do montante do sinal.

Nem se vê como é que, na perspectiva da recorrente, aquele pedido de restituição do sinal poderia ser compatível com a subsistência do vínculo contratual decorrente do contrato-promessa. Qual seria, então, a causa da restituição do sinal passado no âmbito desse contrato-promessa?

Não merece, pois, censura, a matéria de facto que assim foi julgada assente.

Em relação à segunda questão julga-se ser claro que não assiste razão à apelante. É que, para além de o facto em causa nem sequer ter sido julgado assente na decisão recorrida, nem, ao que se julga, invocado na respectiva fundamentação, foram os próprios AA. que assim o alegaram no art. 8.º da petição inicial, repetido no texto das alegações de recurso. De tal modo que, na medida em que tal facto pudesse ser considerado desfavorável aos autores, deveria mesmo ser considerado confessado. Em qualquer caso, julga-se que não é lícito à recorrente vir impugnar a realidade de um facto que ela própria alegou.

E o certo é que, em relação a esta questão a R. alegou, no art. 48.º da sua contestação, ter apresentado à Câmara um estudo prévio elaborado para o efeito, tendo sido informada da inviabilidade do projecto imobiliário para o local, atento o interesse histórico do prédio, que a Câmara pretendia adquirir. E o interesse do Município de Coimbra no prédio em questão ficou claramente demonstrado nos autos em termos tais que permitem reconhecer razão à R. quando invocou a impossibilidade de ver aprovado para o local qualquer projecto de construção, a causa da celebração do contrato-promessa.

A matéria de facto a considerar é, pois, a que foi fixada na decisão recorrida, a saber:

1. Por contrato-promessa datado de 25 de Setembro de 2001, o Autor J, com procuração dos demais Autores, prometeu vender à Ré o prédio urbano sito na freguesia de Santa Cruz, concelho de Coimbra, descrito na Conservatória do Registo Predial de Coimbra sob o número e inscrito na respectiva matriz urbana sob os artigos da referida freguesia, pelo preço de Esc.: 161 000 000$00;

2. A título de sinal, foi pago o montante global de Esc.: 80 000 000$00;

3. Foi estipulado que a escritura de compra e venda se realizaria mediante comunicação da Ré àquele Autor, indicando-lhe o dia, hora e local ou cartório notarial com, pelo menos, 10 (dez) dias de antecedência e uma vez verificado o levantamento da licença de construção decorrente do projecto apresentado à Câmara Municipal de Coimbra, segundo os desígnios da segunda outorgante (ora Ré);

4. Até à presente data, a escritura prometida não foi realizada e jamais a Ré notificou o primeiro Autor para a referida celebração;

5. O dito imóvel mostra-se inscrito, além do mais, a favor dos terceiro a sétimo Autores, na referida Conservatória, sem determinação de parte ou direito;
6. Mediante comunicação escrita datada de 12 de Janeiro de 2005, dirigida aos promitentes vendedores do imóvel em causa, a Ré considerou resolvido o identificado contrato-promessa, invocando a inviabilidade de concretização do acordado e a evidência do propósito da Câmara Municipal de Coimbra quanto à expropriação do dito imóvel, encontrando-se então em curso a peritagem tendente a apurar o valor do mesmo para aquele efeito; mais reclamou a restituição do valor entregue a título de sinal;
7. Tal restituição foi reiterada pela Ré, mediante comunicação escrita com a data de 28 de Janeiro de 2005, enviada aos promitentes vendedores do imóvel;
8. Por deliberação da Câmara Municipal de Coimbra número , foi decidido tomar posse administrativa do referido imóvel, por interesse histórico e arquitectónico do mesmo, visando a sua aquisição amigável ou, se necessário, a respectiva expropriação;
9. Por deliberação da Câmara Municipal de Coimbra de 13 de Janeiro de 2003, foi revogada a tomada de posse administrativa (por preterição de formalidades legais), com reinício do procedimento administrativo para a realização de vistoria prévia e eventual realização de obras coercivas, no caso de não realização por parte dos comproprietários; e
10. Os Autores não desconheciam os factos acima descritos.

O Direito

             

Depois de enunciar, em termos que não suscitaram, nem suscitam, qualquer reparo, os fundamentos da condenação por litigância de má fé, a decisão recorrida justificou a condenação no caso concreto nos seguintes termos, itálico nosso:
«No caso dos autos, resultou provado que, por deliberação da Câmara Municipal de Coimbra de 1 de Julho de 2002, foi decidido tomar posse administrativa do imóvel, por interesse histórico e arquitectónico do mesmo, visando a sua aquisição amigável ou, se necessário, a respectiva expropriação. Por deliberação da Câmara Municipal de Coimbra de 13 de Janeiro de 2003, foi revogada a tomada de posse administrativa (por preterição de formalidades legais), com reinício do procedimento administrativo para a realização de vistoria prévia e eventual realização de obras coercivas, no caso de não realização por parte dos comproprietários. Os Autores não desconheciam (ou não podiam ignorar) os factos acabados de referir (tendo em conta, além do mais, a situação registral do prédio).
Na presente acção, nada disseram os Autores a tal propósito (factos sem dúvida relevantes, que até poderiam obstar à propositura desta acção especial).
Ora, convém não esquecer que a propositura de uma acção judicial se trata de um acto sério, que normalmente acarreta prejuízos e incómodos para o demandado. Por isso, a lei de processo impõe àquele que intenta uma acção um mínimo de cuidados e certos deveres que não pode deixar de respeitar (como exemplo de condenação por litigância de má fé, com negligência grosseira, cfr. Acórdão da Relação de Lisboa de 23.03.1999, Col. Jur., 1999, Tomo II, págs. 94 a 96, onde se verificou que a Autora intentou uma acção contra uma pessoa que nada tinha a ver com a relação jurídica discutida na causa, atribuindo-lhe factos e afirmações destituídos de verdade e omitindo o dever de diligência exigível a qualquer pessoa que interpõe uma acção judicial).
Entende o Tribunal, pois, que os Autores omitiram factos relevantes para a decisão da causa (cfr. artigo 456.º, n.º 1, al. b), do Código de Processo Civil), com dolo ou, pelo menos, com negligência grave, pelo que devem ser condenados como litigantes de má fé.»

Ou seja, a condenação dos AA. por litigância de má fé foi fundada pelo tribunal recorrido no facto de terem omitido, na petição inicial da acção, qualquer referência aos factos enunciados nos pontos oitavo e nono do elenco dos factos assentes, que traduzem o interesse do Município de Coimbra no prédio prometido vender, factos que foram considerados relevantes e que até poderiam obstar à propositura da presente acção.
O que a agravante contesta, defendendo que aqueles factos nenhum interesse tinham para o contrato, não podendo ser neles fundada a conclusão da impossibilidade do seu cumprimento.
Com todo o respeito, também aqui se nos afigura que não assiste razão à recorrente. Tendo, designadamente em conta a informação que foi prestada pelo Município de Coimbra a fls. 228 e seguintes dos autos, é incontornável a conclusão de que, pelo menos até à data em que foi instaurada a presente acção de fixação judicial de prazo, era absolutamente inviável o licenciamento municipal de qualquer projecto imobiliário a implantar no prédio prometido vender, pois que isso era incompatível com o propósito evidenciado pelo Município, de manter e recuperar as edificações nele existentes.
E tudo isso era do conhecimento dos AA. que, designadamente, impugnaram contenciosamente a deliberação camarária de 01-07-2002, através da qual foi decidido tomar posse administrativa do prédio. Para além do que lhes havia sido comunicado pela própria R., na sua carta de 12-01 e do pedido de restituição do sinal ali formulado e confirmado na carta seguinte.

Deste modo, quando intentaram a presente acção, os AA. sabiam, ou não podiam ignorar, que não era viável a aprovação de qualquer projecto imobiliário para o prédio prometido vender, não podendo, naturalmente, ser considerado como tal  a recuperação das edificações nele existentes. Sabiam também que,   com fundamento nessa inviabilidade, a R. já lhes havia comunicado a sua pretensão de ver resolvido o contrato e reclamara, por duas vezes, a devolução do sinal passado.

Ora, tendo em conta toda esta situação, inequivocamente assente nos autos, e independentemente de saber se, como foi alegado pela R., estavam em curso negociações entre as partes, era evidente que, na data em que foi intentada a presente acção, não estavam reunidas as condições para ser outorgada a escritura de compra e venda, nem era previsível que pudessem vir a estar no futuro.

O que, sem dúvida, legitimava a pretensão da R. no sentido de ver resolvido o contrato-promessa e devolvido o sinal passado, e tornava manifestamente infundada a propositura da presente acção.

O que os AA. não podiam ignorar.

Consequentemente, e visto o disposto no art. 456.º 2, a) e b) do CPC, litigaram de má fé, tal como se concluiu na decisão recorrida.

Que, assim, deve ser confirmada, tendo também em conta que não foi directamente questionada a medida da condenação.

***

Resta, respeitante ao recurso de agravo, a questão do montante da indemnização arbitrada, em relação à qual se julga que também não assiste razão à recorrente.

Como acima se concluiu, era manifesta a falta de fundamento da presente acção, que não deveria ter sido intentada. E, tendo em conta essa realidade, não se vê que a defesa da ré possa ser considerada, de alguma forma, injustificada ou excessiva. Ou seja, julga-se que toda a actividade desenvolvida no âmbito do processo, no interesse e sob o impulso da ré, se enquadra, tendo cabimento, no exercício do direito de defesa desta em relação à pretensão dos AA. Consequentemente, e nos termos do art. 457.º do CPC, assiste à ré o direito de ser indemnizada pelos AA. de todas as despesas a que a apresentação dessa defesa deu causa, e que a ré não teria tido se, como a nosso ver se impunha, a presente acção não tivesse sido intentada.

No seguimento, também se julga que não assiste razão à recorrente quando impugna, por excessivo, o montante da indemnização arbitrado. A decisão recorrida mostra-se, a nosso ver, adequadamente fundamentada, quer na fixação da base factual relevante, quer na determinação e aplicação dos critérios aplicáveis, em termos que não se mostram fundadamente impugnados nas alegações de recurso.

O que a agravante questiona fundamentalmente é que o patrocínio judiciário exercido no interesse da ré possa ser imputado a litigância de má fé, mas, como já se concluiu, não lhe pode ser reconhecida razão. Sendo censurável, em termos de litigância de má fé, a própria propositura da presente acção, deverá ser-lhe imputada toda a intervenção processual da ré, em que não se identifica falta de cabimento, ou de justificação.

Deve, assim ser confirmada também esta decisão.

Por último, embora se julgue que a intervenção da recorrente no âmbito dos presentes recursos não merece aprovação, admite-se que, apesar de tudo, se poderá revelar excessiva a sua penalização em sede de nova condenação por litigância de má fé. Uma vez que nos recursos estavam em causa condenações fundadas em litigância de má fé, e esta é uma matéria particularmente sensível e relevante, julga-se que, no caso, não se justifica ir além da simples improcedência dos recursos interpostos, não se qualificando de má fé a intervenção processual da recorrente nesta fase do recurso.

Assim se concluindo, acorda-se em julgar improcedentes os dois recursos, confirmando-se as decisões recorridas.

Custas, em ambos os recursos, pela recorrente.

Lisboa, 06-03-2008

(Farinha Alves)

(Paula Boularot)

(Lúcia de Sousa)