Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
7487/15.5T8LSB-A.L2-7
Relator: CONCEIÇÃO SAAVEDRA
Descritores: SANEADOR
LEGITIMIDADE
MÉRITO DA AÇÃO
CASA DE MORADA DE FAMÍLIA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 09/24/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: I– O juiz deve conhecer, no despacho saneador, das exceções
dilatórias e nulidades processuais que hajam sido suscitadas pelas partes, ou que, face aos elementos constantes dos autos, deva apreciar oficiosamente, mas tal não exclui que essa decisão seja relegada para final se sobre a factualidade correspondente se impuser a produção de outras provas;

II–Assim, não pode o Tribunal concluir, no despacho saneador, que a requerente não cumpriu o ónus probatório, de acordo com o art. 342, nº 1, do C.C., quando à mesma não foi ainda concedida, nessa fase processual, a oportunidade de produzir toda a prova por si indicada;

III–A legitimidade processual, distinta da legitimidade substancial ou substantiva, corresponde a um pressuposto relativo às partes que se afere, na falta de indicação da lei em contrário, pela relação material controvertida tal como é configurada pelo autor;

IV–No âmbito de uma ação de atribuição da casa de morada de família instaurada ao abrigo dos arts. 990 do C.P.C. e 1793 do C.C., o imóvel que constitui a casa de morada de família deve pertencer ao cônjuge demandado ou a ambos, demandante e demandado, sendo partes na causa os respetivos cônjuges ou ex-cônjuges;

V–Desse modo, a demonstração da titularidade ou contitularidade do imóvel por parte do requerido, ainda que através da figura da desconsideração da personalidade coletiva, interessa ao mérito da ação e não à legitimidade processual.

Sumário do Acordão (da exclusiva responsabilidade da relatora – art. 663, nº 7, do C.P.C.)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa.


I–Relatório:

A. veio, em 23.2.2017, e por apenso a processo de divórcio sem o consentimento do outro cônjuge, propor, contra B., ação de atribuição da casa de morada de família, ao abrigo do disposto nos arts. 990 do C.P.C. e 1793 do C.C.. Afirma, no essencial, que requerente e requerido têm residência em comum no imóvel sito no Pátio do Pimenta, nº 25, em Lisboa, desde o início do ano 2000, imóvel que adquiriram para esse efeito e como se fosse em compropriedade (uma vez que eram casados no regime da separação de bens), mas que registaram a favor de uma sociedade veículo, denominada C., Lda, de que são ambos sócios juntamente com os filhos, com vista a beneficiar de um tratamento fiscal mais favorável. Refere que a casa de morada de família goza do regime de defesa da posse previsto nos arts. 1276 e ss. do C.C. e que, mesmo assim não se entendendo, deve operar a desconsideração da personalidade jurídica da dita C., constituída como mero veículo da propriedade do imóvel, propriedade essa que deve ser efetivamente atribuída à requerente, ao requerido e aos filhos de ambos. Afirma que não tem, a curto prazo, acesso a qualquer bem que satisfaça as necessidades da sua habitação e que o requerido, para além de receber anualmente uma pensão de reforma de mais de € 200.000,00, é dono de um vasto património que inclui vários imóveis, auferindo ainda outros rendimentos. Requer, por isso, que, sem prejuízo da ação já interposta respeitante à restituição de posse do respetivo imóvel, lhe seja a casa de morada de família dada de arrendamento, com uma renda a fixar pelo Tribunal. Junta documentos e arrola testemunhas.

Em 6.3.2017, foi proferido despacho que declarou o tribunal incompetente para a apreciação da causa e competente a Conservatória do Registo Civil.

Interposto recurso desta decisão pela requerente, foi o requerido citado para os termos do recurso e da causa, tendo o mesmo apresentado contra-alegações e deduzido oposição (fls. 250 e ss.).

Por acordão deste Tribunal da Relação, de 30.1.2018, foi revogada a referida decisão e julgado o Tribunal a quo competente para apreciar do presente incidente.

Na oposição por si apresentada veio o requerido defender, além do mais, a sua ilegitimidade passiva, sustentando que o imóvel em causa pertence à sociedade C., Lda, terceira nestes autos, cujo capital social é repartido entre o requerido (70%), a requerente (20%) e os dois filhos de ambos (com uma quota de 5% cada), não podendo o requerido, individualmente, dispor do destino do imóvel, nem obrigar a sociedade a vincular-se à sentença a proferir. Mais impugna a factualidade alegada, invocando que a referida sociedade foi constituída para administrar os bens próprios imobiliários que pertenceriam a cada um dos cônjuges em nome próprio, na medida em que eram casados no regime da separação de bens, tendo o imóvel em questão sido adquirido exclusivamente através de suprimentos feitos com dinheiro próprio do requerido, e passando a família no mesmo a residir como comodatária, tendo sido arrendada, mais tarde, parte da referida casa a terceiros. Diz, por sua vez, que com a dissolução do casamento nenhuma razão existe para que se mantenha o comodato. Refere, ainda, que o imóvel necessita de obras urgentes, tendo a sociedade sido intimada pela CML para as realizar, encontrando-se sem condições de habitabilidade, o que implica a interdição do mesmo a qualquer das partes. Por fim, defende que a requerente dispõe de elevados rendimentos, quer a título profissional, quer decorrentes do património de que é proprietária e detentora, o que lhe permite sustentar-se e prover à sua habitação. Conclui pela sua absolvição da instância ou, em qualquer caso, pela improcedência do pedido.
Protesta juntar documentos e indica uma testemunha.

Convocados os ex-cônjuges para uma tentativa de conciliação, nos termos do art. 990, nº 2, do C.P.C., não houve acordo, sendo o requerido novamente notificado para deduzir oposição.

Reiterou, então, o requerido os argumentos já expendidos na anterior oposição, dando aquela por reproduzida.

Realizou-se audiência prévia e, em 18.12.2018, foi proferido despacho saneador que, apreciando da exceção de ilegitimidade passiva arguida, decidiu: “(...) Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, pertencendo a casa que foi de morada de família à sociedade C., Lda. e não a qualquer um dos ex-cônjuges, ao abrigo das disposições conjugadas dos arts.  30º, nºs 2 e 3, 278º, nº 1, d), 576º, nºs 1 e 2, 577º, e) e 578º do CPC, declaro o requerido parte ilegítima e absolvo o mesmo da instância.  
Custas pela requerente (art. 527º do CPC).”

Inconformada, interpôs novo recurso a requerente, culminando as alegações por si apresentadas com as seguintes conclusões que se transcrevem:

A)– Nos presentes autos está em causa a atribuição da casa de morada de família onde viveram Requerente e Requerido – que foram casados 40 anos –, tendo a ora Recorrente pedido que lhe fosse atribuída tal casa de morada de família, sendo-lhe a mesma dada de arrendamento, nos termos formulados no requerimento inicial.
B)– O Requerido invocou a sua ilegitimidade, uma vez que a casa em questão não é sua propriedade, mas sim de uma sociedade, a C., Lda.
C)– Na sua petição inicial, a Requerente alegou que a sociedade em apreço teria sido constituída para albergar o património do então casal, funcionando como uma sociedade veículo, em que a pessoa colectiva substituía formalmente as pessoas individuais, que usavam e fruiam daquela que era a sua casa de morada de família.
D)– Fizeram-no de comum acordo e essencialmente por questões fiscais, razão pela qual considera a Requerente que deveria ser desconsiderada a personalidade jurídica da sociedade, o que fundou designadamente na factualidade constante nos arts. 45.° a 58.° da p. i..
E)– A decisão recorrida – que defere a excepção de ilegitimidade invocada pelo Requerido – fundamenta-se no seguinte: “A Requerente não logrou fazer prova da sua versão quanto ao fim para que a sociedade C., Lda. foi constituída, pelo que não deve ser desconsiderada a personalidade jurídica da sociedade”.
F)– Trocando “por miúdos”, o tribunal a quo decidiu que a Requerente teria que ter feito prova “da sua versão”, considerando as regras do ónus da prova previstas no art. 342.°, n.° 1 do CPC; mas, por outro lado, o tribunal a quo proferiu o saneador/sentença de que ora se recorre sem realização de julgamento, conhecendo da excepção invocada pelo Requerido sem dar à Requerente a oportunidade de sobre a sua alegação – contestada pelo Requerido através da invocação da dita excepção – produzir a prova arrolada logo com o requerimento inicial, o que manifestamente não podia fazer.
G)– O tribunal a quo aplicou erroneamente a norma prevista no art. 278.°, n.° 1, d) do CPC, decidindo não conhecer do pedido por considerar o Requerido parte ilegítima – quando ele o é, efectuada a desconsideração da personalidade jurídica da C. –, bem como o art. 595.° do CPC, que só admite que no despacho saneador se conheçam as excepções dilatórias se a sua apreciação não estiver dependente de apreciação de prova, como no caso manifestamente acontecia.
H)– Veja-se o absurdo, de raiz kafkiana, do que aconteceu:
   A Requerente invocou a desconsideração da personalidade jurídica da C., o que fundou em factualidade concreta e circunstanciada;
A decisão recorrida reconhece que a posição processual da Requerente seria viável se fosse feita prova da sua versão quanto ao fim da C., de forma a poder desconsiderar-se tal personalidade jurídica;
   Porém, não permitiu que a Requerente produzisse tal prova – seleccionando os temas de prova para audiência de julgamento e aí inquirindo as testemunhas arroladas –, para depois concluir que a Requerente não logrou fazer uma prova que o tribunal não lhe permitiu fazer.
I)– A tese do tribunal é incompreensível e chega a consubstanciar uma situação de quase denegação de justiça, uma vez que julga a acção improcedente, por ilegitimidade do Requerido, por falta da prova de factos que o próprio tribunal impediu que fosse feita.
J)– O entendimento normativo dado aos arts. 30.°, n.ºs 2 e 3, 278.°, n.° 1, d), 576.°, n.ºs 1 e 2, 577.°, e) e 578.°, devidamente conjugados com o art. 595.°, todos do CPC, no sentido de que, no despacho saneador, o tribunal pode decidir uma excepção dilatória de ilegitimidade com base na falta de prova de pressupostos factuais que permitiriam considerar a legitimidade da parte, quando não deu oportunidade à parte para produzir a prova requerida, é inconstitucional, por violação do direito a um processo equitativo, tal como previsto no art. 20.° da CRP.
L)– Nestes termos, deve a decisão recorrida ser revogada, sendo substituída por outra que não tome para já posição sobre a legitimidade do Requerido, determinando o prosseguimento dos autos, designadamente para os efeitos do art. 596.° do CPC.”

Em contra-alegações, o requerido defende a manutenção do julgado.

O recurso foi admitido como de apelação, a subir nos próprios autos e com efeito devolutivo.

Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
***

II–Fundamentos de Facto:
A sentença fixou como provada a seguinte factualidade (“Conforme resulta da sentença proferida nos autos de divórcio sem o consentimento do outro cônjuge com o nº 7487/15.5 T8LSB, que correu os seus termos por este J5, sentença essa que transitou em julgado”):

– requerente e requerido casaram um com o outro no dia 15 de Outubro de 1976, com convenção antenupcial, estipulando o regime de separação de bens;  
– PV nasceu em 1 de Junho de 1980 e é filha da requerente e do requerido; 
– FS nasceu em 29 de Julho de 1983 e é filho da requerente e do requerido; 
– desde o início de 2000 que requerente e requerido estabeleceram a residência comum do casal na casa sita … em Lisboa;  
– a casa sita …, em Lisboa, foi casa a casa de morada de família da requerente e do requerido e pertence a C., Lda. (doc. de fls. 81 a 84);
– a requerente, o requerido e o respetivo agregado familiar passaram a usar este imóvel como casa de morada de família com o acordo da sociedade C., Lda., a título gratuito;
– o capital social da sociedade C., Lda. (de € 50.000,00) é repartido da seguinte forma:
– uma quota de 70% do capital social (€ 35.000,00) pertence ao requerido;
– uma quota de 20%  (€ 10.000,00) do capital social pertence à requerente; 
– duas quotas de 5% cada (€ 2.500,00 cada), pertencem cada uma delas, a cada um dos filhos do casal (doc. de fls. 85 a 92);
– requerente e requerido encontram-se divorciados por sentença proferida no processo supra identificado, sentença essa que transitou em julgado.

III–Fundamentos de Direito:
São as conclusões que delimitam o objeto do recurso (art. 635, nº 4, do C.P.C.). Por outro lado, não deve o tribunal de recurso conhecer de questões que não tenham sido suscitadas no tribunal recorrido e de que, por isso, este não cuidou nem tinha que cuidar, a não ser que sejam de conhecimento oficioso.

De acordo com as conclusões acima transcritas, cumpre ponderar se foi feita incorreta aplicação do disposto no art. 595 do C.P.C. ao concluir-se, no despacho saneador, sem produção da prova, pela ilegitimidade do requerido, e se é inconstitucional a interpretação feita deste normativo, bem como dos arts. 30, nºs 2 e 3, 278, nº 1, al. d), 576, nºs 1 e 2, 577, al. e) e 578, todos do C.P.C..

No caso, foi proferido saneador/sentença que, após discorrer genericamente sobre a atribuição da casa de morada de família, concluiu pela ilegitimidade do requerido nos seguintes termos: “(…) No caso vertente, não há dúvidas que a casa sita ... em Lisboa, foi a casa de morada da família. Foi nesta casa que os cônjuges, por acordo, passaram a habitar, foi nela que instalaram a sede da sua vida familiar e doméstica, era nessa casa que residiam estável e habitualmente que, portanto, constituía a residência da família (art. 217º e 1673º do CC).
A casa de morada de família não é propriedade de um ou de ambos os ex-cônjuges nem é arrendada.
A requerente, o requerido e o respetivo agregado familiar passaram a usar este imóvel como casa de morada de família com o acordo da sociedade C., Lda., a título gratuito, pelo que estamos em presença de um contrato de comodato.
Pertencendo a casa à sociedade C., Lda., e não a qualquer um dos ex-cônjuges, a presente ação deveria ter sido interposta contra a sociedade C., Lda. e não contra o requerido (dado que a sociedade é uma pessoa coletiva dotada de personalidade jurídica e personalidade judiciária, dispondo de capacidade para ser parte em ações judiciais, conforme se estatui nos arts. 157º e seg. do CC), sendo que o requerido não tem não tem sobre o imóvel em causa qualquer poder, em nome individual, que lhe permita dispor sobre o destino do imóvel, não podendo, nessa medida, ser-lhe oponível qualquer direito desta natureza.
Efetivamente, o requerido, a título individual não dispõe de poderes para vincular a referida sociedade quer a manter o contrato de comodato quer a celebrar um contrato de arrendamento em relação ao imóvel que foi a casa de morada de família dos ex-cônjuges.
Sustenta a requerente que ela e o requerido decidiram comprar a casa e colocar o património em nome da sociedade C., Lda. apenas por uma questão fiscal, devendo ser desconsiderada a personalidade jurídica da sociedade.
O requerido, por seu turno, sustenta que a referida sociedade não foi constituída com o fim único de adquirir o imóvel em causa. 
Alega o requerido que face ao património imobiliário de que, à data, era proprietário (ou ainda poderia vir a ser), bem como a requerente - herdeira de um vasto património - o requerido, devidamente aconselhado para o efeito, resolveu, conjuntamente com a ex-cônjuge mulher, constituir tal sociedade, tendo a mesma, como propósito, administrar os bens próprios imobiliários que pertenceriam à família (a cada um dos cônjuges, em nome próprio, atendendo ao regime de bens da separação), sem descurar o rendimento que daí poderia advir, só assim se explicando que a sociedade tenha sido constituída muito antes da concretização do negócio de compra e venda do imóvel em causa (quase um ano antes).
Requerente e requerido apresentam versões distintas quanto a esta questão. 
Nos termos do art. 342º, nº 1 do CC àquele que invocar um direito compete fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado. 
A requerente não logrou fazer prova da sua versão quanto ao fim para que a sociedade C., Lda. foi constituída, pelo que não deve ser desconsiderada a personalidade jurídica da sociedade.
***

Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, pertencendo a casa que foi de morada de família à sociedade C., Lda. e não a qualquer um dos ex-cônjuges, ao abrigo das disposições conjugadas dos arts. 30º, nºs 2 e 3, 278º, nº 1, d), 576º, nºs 1 e 2, 577º, e) e 578º do CPC, declaro o requerido parte ilegítima e absolvo o mesmo da instância.  
Custas pela requerente (art. 527º do CPC).”

No recurso, a apelante enfatiza que não poderia ter-se concluído, no despacho saneador, sem produção da prova, pela ilegitimidade do requerido, devendo relegar-se tal decisão para final, prosseguindo a causa.

Vejamos.

Estabelece o art. 595, nº 1, al. a), do C.P.C., que o juiz deve conhecer, no despacho saneador, das exceções dilatórias e nulidades processuais que hajam sido suscitadas pelas partes, ou que, face aos elementos constantes dos autos, deva apreciar oficiosamente.

Tal não exclui, naturalmente, que a decisão sobre tais exceções ou nulidades, mesmo após o cumprimento do disposto no nº 2 do art. 590 do C.P.C., seja relegada para final, se sobre a factualidade correspondente se impuser a produção de outras provas.

Neste contexto, é evidente que assiste inteira razão à apelante.

Com efeito, a decisão recorrida, que concluiu pela ilegitimidade do requerido, assenta no pressuposto de que a requerente não fez prova dos factos constitutivos do direito por si alegado – nomeadamente, “da sua versão quanto ao fim para que a sociedade C., Lda. foi constituída” – mas tal asserção carece de fundamento reportado ao momento processual do despacho saneador.

Tal como sublinha a apelante, para se concluir nesses termos seria indispensável que tivesse sido dada a oportunidade à requerente de produzir prova sobre a factualidade atinente, o que, como é evidente, não sucedeu, sendo certo que a requerente, além do mais, arrolou testemunhas.

Ou seja, se o Tribunal a quo entendia, como se afigura, que a decisão sobre a legitimidade passiva dependia da apreciação do reclamado levantamento da personalidade coletiva da sociedade C., Lda, então é manifesto que deveria ter relegado tal conhecimento para mais tarde, após a produção de toda a prova oferecida, determinando o prosseguimento dos autos ao abrigo do disposto no art. 990 do C.P.C..

O que não podia era, contraditoriamente, e salvo melhor entendimento, concluir que a requerente não cumprira o ónus probatório, de acordo com o art. 342, nº 1, do C.C., quando à mesma não fora ainda concedida a oportunidade de produzir essa prova.

Aqui chegados, cremos, no entanto, que a questão do levantamento da personalidade coletiva respeitará antes ao mérito da ação e não à legitimidade processual do requerido.

A legitimidade processual corresponde a um pressuposto relativo às partes que se afere, na falta de indicação da lei em contrário, pela relação material controvertida tal como é configurada pelo autor (art. 30 do C.P.C.). A falta dessa legitimidade constitui exceção dilatória que dá lugar à absolvição do réu da instância (cfr. arts. 576, nº 2, e 577, al. e), ambos do C.P.C.).

Coisa diversa é a legitimidade substancial ou substantiva, que se prende com a efetividade da tal relação material, com a posição das partes perante o direito subjectivo invocado, interessando já ao mérito da causa, pelo que a respetiva falta determinará a improcedência do pedido([1]).

A legitimidade processual define-se pelo interesse direto em demandar e contradizer, respetivamente, e quando a lei não disponha de outro modo, consideram-se titulares do interesse relevante para o efeito da legitimidade os sujeitos da relação material controvertida, tal como é configurada pelo autor (nº 3 do art. 30 do C.P.C.) ou, naturalmente, pelo reconvinte, tratando-se da reconvenção. O interesse em que assenta a legitimidade pode respeitar a várias pessoas e, assim, pode ser suficiente a intervenção de uma delas (art. 32, nº 2, do C.P.C.) ou mostrar-se indispensável que todas intervenham em conjunto (art. 33, nº 1, do mesmo Código).

No caso, estamos no âmbito de uma ação de atribuição da casa de morada de família instaurada ao abrigo dos arts. 990 do C.P.C. e 1793 do C.C..

Trata-se de um processo de jurisdição voluntária, que integra o elenco das denominadas providências relativas aos filhos e aos cônjuges, em que aquele que pretende a atribuição da casa de morada de família (nos termos do art. 1793 do C.C.) ou a transmissão do direito ao arrendamento (nos termos do art. 1105 do C.C.), deduz o seu pedido, indicando os factos com base nos quais entende dever ser-lhe atribuído o direito (cfr. art. 990 do C.P.C.).

Já o art. 1793 do C.C., em que a requerente fundamenta a sua pretensão, estabelece que: “1. Pode o tribunal dar de arrendamento a qualquer dos cônjuges, a seu pedido, a casa de morada da família, quer esta seja comum quer própria do outro, considerando, nomeadamente, as necessidades de cada um dos cônjuges e o interesse dos filhos do casal. 2. O arrendamento previsto no número anterior fica sujeito às regras do arrendamento para habitação, mas o tribunal pode definir as condições do contrato, ouvidos os cônjuges, e fazer caducar o arrendamento, a requerimento do senhorio, quando circunstâncias supervenientes o justifiquem. 3. O regime fixado, quer por homologação do acordo dos cônjuges, quer por decisão do tribunal, pode ser alterado nos termos gerais da jurisdição voluntária.”

Decorre da conjugação destes normativos que, em tais ações, o imóvel que constitui a casa de morada de família deve pertencer ao cônjuge demandado ou a ambos, demandante e demandado, sendo partes na causa os respetivos cônjuges ou ex-cônjuges.

Assim sendo, não podemos também concordar com a afirmação constante da decisão recorrida de que “Pertencendo a casa à sociedade C., Lda., e não a qualquer um dos ex-cônjuges, a presente ação deveria ter sido interposta contra a sociedade C., Lda. e não contra o requerido (…).”

A requerente alega que o imóvel, embora registado a favor de uma sociedade comercial, pertence, afinal, aos dois elementos do dissolvido casal e apela à figura da desconsideração da personalidade coletiva para justificar a sua pretensão.

Tal figura é, como sabemos, no essencial dirigida a evitar a utilização abusiva da personalidade jurídica, quando a personalidade coletiva é usada de modo ilícito, com o intuito de prejudicar terceiros, numa utilização contrária aos princípios gerais. Desse modo, perante certos tipos de utilização abusiva da personalidade jurídica, a doutrina e a jurisprudência construíram uma solução vulgarmente conhecida pela desconsideração da personalidade coletiva ou levantamento da personalidade coletiva([2]),que contraria a regra legal de que as sociedades são entidades juridicamente distintas dos seus sócios.

Por conseguinte, e não cabendo aqui antecipar qualquer decisão de mérito, cremos que a demonstração da titularidade ou contitularidade do imóvel por parte do requerido interessa ao mérito da ação e não à legitimidade processual.

Em conclusão, o requerido é parte legítima, nos termos e para os efeitos dos arts. 30 e 990 do C.P.C. e 1793 do C.C..

Já a questão de saber se deve ser convocada, na presente ação, necessariamente a título excecional, a figura da desconsideração ou levantamento da personalidade coletiva, se pode, nesta mesma ação, concluir-se que requerente e requerido são comproprietários do imóvel em apreço([3]), ou se devem ter-se por verificados todos os demais pressupostos necessários para a atribuição à requerente da casa de morada de família, são considerações que apenas respeitam ao mérito da providência e que não cumpre nesta sede ajuizar.

Não pode, pois, manter-se a decisão recorrida, ainda que por motivo não inteiramente coincidente com o invocado pela apelante.
***

IV–Decisão:
Termos em que e face ao exposto, acordam os Juízes desta Relação em revogar a decisão recorrida e julgar o requerido, B., parte legítima na presente ação de atribuição da casa de morada de família, prosseguindo os autos para decisão de mérito, com produção de prova sobre a matéria ainda controvertida.
Custas, nesta instância, pelo apelado.
Notifique.

***
Lisboa, 24.9.2019

                                                                                                         
Maria da Conceição Saavedra                                       
                                                                      
Cristina Coelho                                                                                          
Luís Filipe Pires de Sousa


[1]Sobre o tema, ver, entre outros, os Acs. da RL de 19.2.2015, Proc. 143148/13.OYIPRT.L1-2, e de 1.2.2007, Proc. 268/07-6, ambos disponíveis em www.dgsi.pt.
[2]Sobre a terminologia a adotar, ver A. Menezes Cordeiro, “O Levantamento da Personalidade Colectiva no Direito Civil e Comercial”, Almedina, 2000, págs. 102/103.
[3]De acordo com o alegado, terá sido interposta ação respeitante à restituição de posse do dito imóvel onde certamente se discutirá a propriedade do mesmo.