Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
10113/2006-2
Relator: JORGE LEAL
Descritores: APLICAÇÃO DA LEI NO TEMPO
COMPETÊNCIA TERRITORIAL
COMPETÊNCIA CONVENCIONAL
CONSTITUCIONALIDADE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 01/18/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: I – A Lei nº 14/2006, de 26 de Abril, que introduziu modificações às regras atinentes à atribuição de competência territorial dos tribunais judiciais para certos litígios, aplica-se às acções que se instaurem após a sua entrada em vigor, mesmo que relativamente a essas acções haja pacto de aforamento, celebrado antes da entrada em vigor da lei, que contrarie essas novas regras.
II – O entendimento exposto em I não viola os artigos 18º nºs 2 e 3 e 2º da Constituição da República Portuguesa.
(JL)
Decisão Texto Integral:
Acordam os juízes no Tribunal da Relação de Lisboa

RELATÓRIO
Em 28.6.2006 Banco intentou nos Juízos Cíveis de Lisboa acção com processo especial para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos, contra L M C, residente na Marinha Grande, pedindo que a Ré seja condenada a pagar-lhe determinada quantia em dinheiro, por alegado incumprimento de um contrato de mútuo, na modalidade de crédito ao consumo, que com ela celebrou em 17 de Janeiro de 2003. Alegou, além do mais, que aquele era o tribunal competente, por as partes o terem elegido no contrato supra referido, sendo inconstitucional a Lei nº 14/2006, de 26.4, na parte em que altera a redacção do art.º 110º nº 1 alínea a) do Código de Processo Civil, na interpretação que permita a aplicação do disposto no referido artigo a contratos celebrados anteriormente à publicação da referida lei em que as partes tenham optado, nos termos do art.º 100º, nºs 1 a 4 do Código de Processo Civil, por um foro convencional no que respeita à competência dos tribunais em razão do território.
Distribuído o processo ao 5º Juízo Cível de Lisboa, 1ª Secção, o Sr. Juiz proferiu despacho que declarou aquele tribunal territorialmente incompetente para tramitar e decidir aquela acção e determinou a remessa dos autos ao Tribunal Judicial da comarca da Marinha Grande, por ser o territorialmente competente para o efeito.
A A. agravou do aludido despacho e apresentou alegações em que formulou as seguintes conclusões:
(i) O despacho recorrido ao aplicar o disposto na alínea a), do n° 1 do artigo 110° do Código de Processo Civil, com a redacção que lhe foi dada pela Lei 14/2006, de 26 de Abril, à hipótese dos autos, atento o que consta do contrato aos mesmos junto com a petição inicial, em que as partes escolheram um foro convencional nos termos e ao abrigo do disposto no artigo 100°, n°s. 1, 2, 3 e 4 do Código de Processo Civil, violou o disposto nos artigos 5° e 12°, n°s. 1 e 2, do Código Civil;
(ii) O despacho recorrido, ao interpretar e aplicar, como o fez, a alínea a) do n° 1 do artigo 110° do Código de Processo Civil, com a redacção que lhe foi dada pela dita Lei 14/2006, de 26 de Abril, à hipótese dos autos e, consequentemente, ao não considerar válida e eficaz a escolha do foro convencional constante do contrato dos autos, atento a data da celebração do mesmo e o disposto no artigo 100°, n°s. 1, 2, 3 e 4, do Código de Processo Civil, do que então se dispunha no artigo 110° do mesmo normativo legal, maxime na alínea a) do respectivo n° 1, é inconstitucional por violação dos princípios da adequação, da exigibilidade e da proporcionalidade, e da não retroactividade consignados no artigo 18°, n°s. 2 e 3, da Constituição da República Portuguesa, e, também ainda, por violação dos princípios da segurança jurídica e da confiança, corolários ambos do principio de um Estado de Direito Democrático consagrado no artigo 2° da Constituição da República Portuguesa;
(iii) Impõe-se, pois, como se requer, a procedência do presente recurso, a revogação do despacho recorrido e a sua substituição por outro que reconheça a competência territorial do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa para conhecer dos autos onde o mesmo foi proferido, desta forma se fazendo Justiça.
Não houve contra-alegações.
Foram colhidos os vistos legais.

FUNDAMENTAÇÃO
Este recurso tem por objecto a determinação de qual o tribunal competente, quanto ao território, para julgar o presente litígio. A sua solução pressupõe a apreciação de duas questões: se ao caso sub judice são aplicáveis as alterações introduzidas pela Lei nº 14/2006 de 26 de Abril às regras de atribuição da competência territorial dos tribunais em processo civil; no caso de resposta positiva a essa questão, se essas regras, com essa interpretação, são inconstitucionais.
Haverá que levar em consideração o seguinte circunstancialismo:
1. Na acção sub judicio a A. exige o cumprimento de obrigações emergentes de um contrato de mútuo, na modalidade de crédito ao consumo, celebrado entre a A. e a R. em 17.01.2003.
2. A A. alega que o incumprimento iniciou-se em 10.12.2005.
3. O contrato supra referido foi reduzido a escrito, e nele ficou consignado que “para todas as questões emergentes do presente contrato estipula-se como competente o foro da comarca de Lisboa, com expressa renúncia a qualquer outro”.
4. À data da celebração do contrato a R. tinha domicílio em Portela, Marinha Grande, local onde, segundo alegou a A., continuava a residir à data da propositura da acção.
5. A A. tinha e tem a sua sede em Lisboa.
6. A acção foi proposta em 28.6.2006.
O Direito
Primeira questão (aplicação no tempo da Lei nº 14/2006, de 26 de Abril)
À data da celebração do contrato, o nº 1 do art.º 74º do Código de Processo Civil estipulava que a acção destinada a exigir o cumprimento de obrigações, a indemnização pelo não cumprimento ou pelo cumprimento defeituoso e a resolução do contrato por falta de cumprimento, seria proposta, à escolha do credor, no tribunal do lugar em que a obrigação devesse ser cumprida ou no tribunal do domicílio do réu.
Quanto ao lugar do cumprimento das obrigações, às obrigações pecuniárias aplica-se, supletivamente, o art.º 774º do Código Civil, nos termos do qual a prestação deve ser efectuada no lugar do domicílio que o credor tiver ao tempo do cumprimento.
Assim, à data da celebração do contrato, desconsiderando a cláusula atinente ao pacto de aforamento, o tribunal territorialmente competente para dirimir litígios dele emergentes era o da comarca de Lisboa ou o da comarca de Marinha Grande, à escolha da A.. Porém, as partes acordaram, por escrito, em atribuir a competência jurisdicional exclusivamente à comarca de Lisboa, o que lhes era permitido pelo art.º 100º nº 1, 2ª parte, do Código de Processo Civil, com a ressalva prevista no mesmo preceito, que são os casos a que se refere o artigo 110º do mesmo código. Neste artigo 110º, em que se enunciam as situações em que o tribunal pode conhecer oficiosamente da sua incompetência quanto ao território, não se incluíam, à data da celebração do contrato, litígios como o dos autos, ou seja, os integrados na previsão do nº 1 do art.º 74º do Código de Processo Civil.
Assim, antes da entrada em vigor da Lei nº 14/2006, de 26 de Abril, a comarca de Lisboa seria a competente para conhecer do litígio.
A Lei nº 14/2006, de 26 de Abril, que entrou em vigor em 31 de Abril deste ano (art.º 2º nº 2 da Lei nº 74/98, de 11.11), modificou o nº 1 do art. 74º do Código de Processo Civil, passando a estipular que a acção destinada a exigir o cumprimento de obrigações, a indemnização pelo não cumprimento ou pelo cumprimento defeituoso e a resolução do contrato por falta de cumprimento, é proposta no tribunal do domicílio do réu, podendo o credor optar pelo tribunal do lugar em que a obrigação deveria ser cumprida quando o réu seja pessoa colectiva ou quando, situando-se o domicílio do credor na área metropolitana de Lisboa ou do Porto, o réu tenha domicílio na mesma área metropolitana. Assim, quando o réu é pessoa singular, o tribunal competente será o do seu domicílio, ou um tribunal localizado na área metropolitana de Lisboa, quando tanto o credor como o réu tenham domicílio nessa área metropolitana.
Por força da alteração introduzida pela mesma Lei ao art.º 110º nº 1 alínea a) do Código de Processo Civil, o juiz deve zelar pelo cumprimento dessa norma de competência territorial, pois a sua violação passou a ser de conhecimento oficioso. Assim, por força da referida ressalva contida no art.º 100º nº1 do Código de Processo Civil (a de que as partes não podem afastar a aplicação das regras de competência em razão do território nos casos a que se refere o art.º 110º), as partes deixaram de poder validamente convencionar o afastamento da aplicação de tal regra. Quer isto dizer que, à luz do novo regime legal, em contratos como o dos autos o tribunal competente, quanto ao território, para dirimir os litígios dele emergentes, é o da comarca de Marinha Grande.
O pacto de competência ou de aforamento convencionado pelas partes era válido à data em que foi celebrado. Após a entrada em vigor da Lei nº 14/2006, de 26 de Abril, os pactos de aforamento que forem celebrados com sentido idêntico ao do sub judice são nulos, por violarem disposição legal de carácter imperativo (art.º 294º do Código Civil; qualificando de nulidade o vício de que enfermam pactos de aforamento contrários às regras de competência territorial, vide Lebre de Freitas, Código de Processo Civil anotado, vol. 1º, Coimbra Editora, 1999, pág. 185).
Põe-se, assim, um problema de aplicação da lei no tempo, ou seja, de apurar, de entre os conjuntos de normas que tocam a mesma situação jurídica, qual o que a irá regular: a “lei antiga” ou a “lei nova”.
No nosso direito ordinário, a regra é a de que a lei só dispõe para o futuro, ou seja, não tem efeitos retroactivos (art.º 12º nº 1 do Código Civil): e mesmo que lhe seja atribuída eficácia retroactiva, presume-se que ficam ressalvados os efeitos já produzidos pelos factos que a lei se destina a regular (art.º 12º, nº 1, 2ª parte).
Explicitando o teor do nº 1, o nº 2 do art.º 12º vem como que definir o que são e o que não são factos passados e efeitos dos factos passados, sendo certo que aos factos passados e aos efeitos dos factos passados aplica-se a lei antiga (J. Baptista Machado, Sobre a aplicação no tempo do novo Código Civil, Livraria Almedina, 1968, pág. 354). Esse número estipula que “quando a lei dispõe sobre as condições de validade substancial ou formal de quaisquer factos ou sobre os seus efeitos, entende-se, em caso de dúvida, que só visa os factos novos; mas, quando dispuser directamente sobre o conteúdo de certas relações jurídicas, abstraindo dos factos que lhes deram origem, entender-se-á que a lei abrange as próprias relações já constituídas, que subsistam à data da sua entrada em vigor.”
Assim, no nº 2 do art.º 12º distinguem-se, “dum lado, as normas relativas à validade de quaisquer factos ou aos efeitos de quaisquer factos (entendendo por efeitos não só os efeitos imediatos sob todos os aspectos, mas ainda o conteúdo duma situação jurídica duradoira que seja definido ou intrinsecamente modelado em função dos respectivos factos constitutivos), do outro lado, as normas que dispõem directamente sobre o conteúdo das situações jurídicas abstraindo dos factos que lhes deram origem.” (Baptista Machado, obra citada, pág. 354).
No caso dos autos, as partes celebraram um determinado contrato e, prevalecendo-se de norma legal que expressamente o permitia, acordaram na determinação prévia do tribunal judicial que seria territorialmente competente para julgar os litígios que viessem a emergir do contrato. Tal acordo era vinculativo, obrigatório para ambas as partes (art.º 101º nº 3 do Código de Processo Civil: “a competência fundada na estipulação é tão obrigatória como a que deriva da lei”).
O pacto de aforamento é usado com relativa frequência, especialmente dentro dos contratos de adesão (A. Varela, Manual de Processo Civil, Coimbra Editora, 1984, pág. 213). Pode servir interesses relevantes das partes, nomeadamente os do contratante que, vendo-se envolvido, em virtude da sua actividade, em grande número de negócios jurídicos, susceptíveis de originarem acções judiciais, beneficia com a centralização das demandas num só foro.
Ora, “o pensamento fundamental de que arranca a eficácia prospectiva da lei, tendo em linha de conta o sentido normalmente imperativo dos comandos normativos é o de, não podendo exigir-se às pessoas o dom de preverem as alterações legislativas do futuro, ser justo aplicar aos diferentes actos jurídicos as normas em vigor ao tempo da sua prática, por ser com os efeitos destas que os interessados, ao agirem, podem e razoavelmente devem contar.” (A. Varela, RLJ, ano 103º, pág. 187, citado por Abílio Neto, Código Civil anotado, Ediforum, 14ª edição, nota 13 ao art.º 12º, pág. 29). Assim, em caso de dúvida, entender-se-á que as normas que dispõem sobre a validade substancial ou formal de um negócio jurídico só visam factos novos, ou seja, negócios celebrados já sob a vigência da lei nova; os negócios celebrados anteriormente a essa data continuarão a regular-se pela lei antiga. Só não será assim se se constatar que a lei dispõe directamente sobre o conteúdo da relação jurídica, abstraindo do facto, nomeadamente do negócio jurídico, que lhe deu origem: nesse caso, entender-se-á que a lei nova abrange as próprias relações já constituídas, que subsistam à data da sua entrada em vigor (nº 2, 2ª parte, do art.º 12º do Código Civil). Atendendo a que o contrato é um acto de autonomia negocial, em que as partes tomam em conta, quando o celebram, a lei que então se acha em vigor, e que é em função dessa lei que elas realizam o equilíbrio das suas convenções, pode extrair-se o seguinte critério de orientação prática: em princípio, deve entender-se que a lei nova que tem incidência sobre situações jurídicas contratuais não abstrai dos factos que lhes deram origem e, por isso, só se aplica aos contratos futuros (Baptista Machado, obra citada, página 108 e página 112). Mas, se da interpretação da lei nova resultar que tal disposição visa o conteúdo ou os efeitos da situação jurídica contratual em si mesmos, ela será de aplicação imediata (Baptista Machado, obra citada, pág. 112).
Antes de mais, haverá que apurar se a lei nova nos aponta a solução.
A Lei nº 14/2006, de 26 de Abril, tem a sua origem na Proposta de Lei nº 47/X, a qual foi discutida na generalidade na Assembleia da República em 02.02.2006.
Na exposição de motivos dessa Proposta de Lei pode ler-se, no que ao caso interessa, o seguinte:
O Programa do XVII Governo Constitucional assumiu como prioridade a melhoria da resposta judicial, a consubstanciar, designadamente, por medidas de descongestionamento processual eficazes e pela gestão racional dos recursos humanos e materiais do sistema judicial.
A necessidade de libertar os meios judiciais, magistrados e oficiais de justiça para a protecção de bens jurídicos que efectivamente mereçam a tutela judicial e devolvendo os tribunais àquela que deve ser a sua função, constitui um dos objectivos da Resolução do Conselho de Ministros n,° 100/2005, de 30 de Maio de 2005, que, aprovando um Plano de Acção para o Descongestionamento dos Tribunais, previu, entre outras medidas, a «introdução da regra de competência territorial do tribunal da comarca do réu para as acções relativas ao cumprimento de obrigações, sem prejuízo das especificidades da litigância característica das grandes áreas metropolitanas de Lisboa e Porto».
A adopção desta medida assenta na constatação de que grande parte da litigância cível se concentra nos principais centros urbanos de Lisboa e do Porto, onde se situam as sedes dos litigantes de massa, isto é, das empresas que, com vista à recuperação dos seus créditos provenientes de situações de incumprimento contratual, recorrem aos tribunais de forma massiva e geograficamente concentrada.
Ao introduzir a regra da competência territorial do tribunal da comarca do demandado para este tipo de acções, reforça-se o valor constitucional da defesa do consumidor - porquanto se aproxima a justiça do cidadão, permitindo-lhe um pleno exercício dos seus direitos em juízo - e obtém-se um maior equilíbrio da distribuição territorial da litigância cível.
O demandante poderá, no entanto, optar pelo tribunal do lugar em que a obrigação deveria ser cumprida, quando o demandado seja pessoa colectiva ou quando, situando-se o domicílio do credor na área metropolitana de Lisboa ou do Porto, o demandado tenha domicílio nessa mesma área. No primeiro caso, a excepção justifica-se por estar ausente o referido valor constitucional de protecção do consumidor; no segundo, por se entender que este intervém com menor intensidade. Com efeito, nas áreas metropolitanas de Lisboa e Porto, não se afigura especialmente oneroso que o réu ou executado singular continue a poder ser demandado em qualquer das demais comarcas da área metropolitana em que reside, nem se descortinam especiais necessidades de redistribuição do volume processual hoje verificado em cada uma das respectivas comarcas.”
Sobre esta matéria a Proposta de Lei previa a alteração da redacção do nº 1 do art.º 74º do Código de Processo Civil, nos termos que vieram a ser consignados na Lei aprovada. Porém, a proposta propugnava a alteração do nº 1 do art.º 100º do Código de Processo Civil e não “mexia” no art.º 110º do mesmo diploma, ou seja, mantinha o regime do conhecimento oficioso da incompetência relativa. Quanto ao nº 1 do art.º 100º, acrescentava-se o inciso “e, quando uma delas seja pessoa singular, o nº 1 do artigo 74º e o nº 1 do artigo 94º”. Isto é, afastava-se a possibilidade de celebração de pactos de aforamento em contrário ao disposto no nº 1 do artigo 74º e do nº 1 do artigo 94º (esta, relativa à competência em matéria de execuções). Porém, como não se alterava a redacção do artigo atinente aos poderes de conhecimento oficioso, pelo juiz, da incompetência territorial (art.º 110º), o qual não incluía nessa possibilidade de intervenção os casos previstos no nº 1 do artigo 74º (nem os previstos no nº 1 do art.º 94º) o texto legislativo proposto deixava nas mãos das partes a possibilidade de serem desrespeitadas as novas regras de competência territorial, pois se o demandante as violasse e o demandado nada dissesse, o juiz nada poderia fazer.
Na reunião da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias, realizada em 01.3.2006, o Grupo Parlamentar do PSD propôs a eliminação da alteração sugerida pelo Governo ao art.º 100º, o qual manteria a redacção vigente e apresentou uma proposta de substituição da alínea a) do nº 1 do artigo 110º do Código de Processo Civil.
Conforme se relata no Diário da Assembleia da República, de 04.3.2006, II série-A, “o Sr. Deputado António Montalvão Machado, do PSD, apresentou as duas propostas, tendo começado por recordar que a iniciativa legislativa em causa visava alterar a regra da competência territorial do tribunal para as acções judiciais (declarativas e executivas) de dívidas, substituindo a regra da competência do foro do lugar do cumprimento da obrigação pela do domicílio do demandado, assim contribuindo para desafogar as comarcas de Lisboa e do Porto.
Assinalou, porém, que, caso tal alteração legislativa não fosse acompanhada de outra (a prevista para o artigo 110.0, em alternativa à proposta pelo Governo para o artigo 100.°), no sentido de a violação da nova regra de competência territorial ser de conhecimento oficioso, a norma seria inútil, uma vez que, caso o demandado não suscitasse a questão da incompetência territorial do tribunal (o que acontece actualmente na grande maioria dos processos executivos, em que não é deduzida oposição à execução), as acções continuariam a decorrer onde tivessem sido propostas (continuando a sobrecarregar os tribunais de Lisboa e do Porto), uma vez que o tribunal não poderia conhecer oficiosamente da excepção da sua incompetência territorial.”
As duas propostas de alteração ao texto sugerido pelo Governo foram aprovadas, na Comissão, por unanimidade dos partidos que se encontravam presentes na altura da discussão e votação (PS, PSD e CDS-PP) e correspondem às alterações introduzidas pela Lei nº 14/2006, de 26 de Abril, aos referidos artigos do Código de Processo Civil.
Tal como constava na Proposta de Lei, a Lei nº 14/2006 contém uma norma sobre “aplicação no tempo” (art.º 6º), com a seguinte redacção: “A presente lei aplica-se apenas às acções e aos requerimentos de injunção instauradas ou apresentados depois da sua entrada em vigor.” No que respeita à temática que nos ocupa, essa norma reitera o que já resulta do disposto no art.º 22º da Lei nº 3/99, de 13 de Janeiro (Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais – LOFTJ): “a competência fixa-se no momento em que a acção se propõe, sendo irrelevantes as modificações de facto que ocorram posteriormente” (nº 1) e “são igualmente irrelevantes as modificações de direito, excepto se for suprimido o órgão a que a causa estava afecta ou lhe for atribuída competência de que inicialmente carecesse para o conhecimento da causa” (nº 2). Assim, se a acção sub judice já se encontrasse instaurada à data da entrada em vigor da Lei nº 14/2006, mantinha-se a competência da comarca de Lisboa para julgar o pleito, por força do disposto no art.º 22º nº 2 da LOFTJ, mesmo que não existisse o preceito do art.º 6º da Lei nº 14/2006.
O art.º 6º terá pelo menos o efeito útil de obstar a que o juiz, por força da aplicação da nova redacção da alínea a) do nº 1 do art.º 110º do Código de Processo Civil (alargamento da possibilidade de conhecimento oficioso da incompetência territorial às acções previstas no nº 1 do art.º 74º do Código de Processo Civil), conheça imediata e oficiosamente, nas acções pendentes, de situações em que ocorria a violação das regras de competência territorial, tanto à luz das novas como das antigas regras de competência (figure-se uma acção de cumprimento de obrigações instaurada numa comarca que não era nem a do lugar do cumprimento da obrigação nem a do domicílio de qualquer das partes). Assim, o argumento da salvaguarda da utilidade dessa norma não poderá ser brandido para se dizer que a sua razão de ser é a de vincar que as novas regras de competência territorial são aplicáveis a todas as acções que se instaurem após a sua entrada em vigor mesmo quando relativamente a essas acções haja pactos de aforamento, celebrados antes da entrada em vigor da lei, que contrariem essas regras.
Porém, se porventura a razão de ser do art.º 6º não seja essa (vincar que as novas regras sobre a competência territorial abrangem os pactos de aforamento celebrados antes da entrada em vigor da Lei, caso a respectiva acção seja instaurada após a sua entrada em vigor), pode defender-se que essa regra geral, afirmada no art.º 22º da LOFTJ e reiterada no art.º 6º da Lei nº 14/2006, tem a virtualidade de apontar uma solução para o problema do confronto das convenções sobre a competência dos tribunais com leis sobre essa matéria entradas em vigor em momento posterior à celebração daquelas.
A propósito da Convenção de Bruxelas de 27 de Setembro de 1968, relativa à competência judiciária e à execução de decisões em matéria civil e comercial (aprovada para ratificação pela Resolução da Assembleia da República nº 34/91, publicada no D.R., I-A, de 30.10.1991; entrou em vigor em Portugal em 01.7.1992, conforme aviso nº 95/92, publicado no D.R., I-A, de 10.7.1992), a qual contém uma norma transitória (art.º 54º), que estabelece que as disposições da Convenção são aplicáveis apenas às acções judiciais intentadas posteriormente à sua entrada no Estado de origem, o Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias decidiu que aquele artigo, assim como o seu artigo 17º (que regula os pactos atributivos de jurisdição, nomeadamente em matéria de contrato individual de trabalho), devem ser interpretados no sentido de que, nas acções judiciais intentadas após a entrada em vigor da Convenção, os pactos atributivos de jurisdição, estipulados em contratos de trabalho celebrados anteriormente a essa entrada em vigor, devem ser tidos como válidos, mesmo que houvessem sido considerados nulos segundo as regras nacionais em vigor no momento da celebração do contrato (acórdão de 13.11.1979, Sanicentral c. Collin, processo 25/79, Colectânea de Jurisprudência do Tribunal de Justiça, 1979, página 3423 e seguintes). Segundo o Tribunal de Justiça, “o pacto escrito atributivo de jurisdição constante de um contrato de trabalho é, pela sua natureza, uma opção de competência que não produz efeitos jurídicos enquanto uma instância judiciária não seja accionada e que só tem consequências no dia em que a acção judicial é posta em movimento. Por isso, é nesse momento que nos devemos colocar para apreciar o alcance desse pacto face à regra jurídica aplicável nessa época. (…) “Desse artigo [artigo 54º da Convenção] resulta que a única condição necessária e suficiente para que o regime da convenção se aplique a litígios relativos a relações jurídicas constituídas antes da entrada em vigor da convenção é que a acção judiciária tenha sido intentada posteriormente a essa data (…)”.
A Convenção de Bruxelas foi substituída pelo Regulamento (CE) nº 44/2001, do Conselho, de 22.11.2000 (Jornal Oficial das Comunidades Europeias, de 16.01.2001), mas não só mantém muitas das soluções previstas naquela Convenção, como reafirma, quanto à sua aplicação no tempo, a regra enunciada na Convenção (art.º 66º), pelo que a referida jurisprudência do Tribunal de Justiça continua a ser actual.
Conforme pondera Dário Moura Vicente (Direito Internacional Privado – Ensaios, vol. I, Almedina, 2002, pág. 246), a propósito do âmbito de aplicação temporal das alterações às regras de competência internacional introduzidas no Código de Processo Civil pelo Dec.-Lei nº 329-A/95, na redacção dada pelo Dec.-Lei nº 180/96, de 25.9, as quais, segundo o diploma preambular, só são aplicáveis aos processos iniciados após a sua entrada em vigor, “a regra geral consignada no art.º 12º do Código Civil pareceria determinar aqui a inaplicabilidade da lei nova aos pactos de jurisdição anteriores à sua entrada em vigor, visto tratar-se de factos pretéritos”. Porém, aquele autor advoga a imediata aplicação da referida lei nova às acções intentadas após a sua entrada em vigor, ainda que isso envolva a aferição à sua luz de um pacto de jurisdição celebrado anteriormente, quando, como seria o caso da nova redacção do art.º 99º do Código de Processo Civil (sobre pactos privativos e atributivos de jurisdição dos tribunais portugueses), o novo regime aligeire os requisitos de forma a que se achavam submetidos os pactos privativos e atributivos de jurisdição, “sendo por isso a retroactividade da lei nova, neste particular, a solução mais conforme com o princípio da conservação dos negócios jurídicos que informa a nossa ordem jurídica. A aferição da validade formal daqueles actos segundo a lei antiga seria mesmo contrária à ideia de economia de meios na obtenção do resultado processual que domina o Processo Civil português, visto que poderia importar a absolvição do réu da instância ou o indeferimento em despacho liminar com fundamento na ineficácia de um pacto de jurisdição que as partes logo a seguir poderiam celebrar validamente segundo a forma que anteriormente haviam observado” (obra citada, páginas 246 e 247). Registe-se que quando a redacção original do art. 99º do Código de Processo Civil foi modificada pela Lei nº 21/78, de 03 de Maio, nela previu-se (art.º 3) que “os pactos que houverem sido efectuados em contravenção do artigo 99º do Código de Processo Civil, na sua anterior redacção, ficam validados se obedecerem aos termos deste diploma”. Assim, nesse caso a lei nova previu expressamente a sua retroactividade, tendo em vista a supra referida preocupação de validação de actos e de economia de meios.
Porém, Dário Moura Vicente também defende a aplicação da nova redacção do art.º 99º do Código de Processo Civil aos pactos anteriores à sua entrada em vigor nos casos em que o novo regime é mais restritivo do que a versão anterior do mesmo preceito – o que ocorre na medida em que o novo regime requer que a eleição do foro não envolva inconveniente grave para uma das partes e não recaia sobre matéria da exclusiva competência dos tribunais portugueses, a qual foi alargada a novos domínios. Com este regime restritivo “visa-se deste modo, manifestamente, tutelar interesses públicos atinentes ao funcionamento do poder judicial e o interesse social na protecção da parte mais fraca na relação jurídica, os quais devem prevalecer sobre quaisquer expectativas que as partes tivessem no momento da celebração do pacto quanto à possibilidade de atribuírem ou privarem de competência os nossos tribunais. Tanto basta para que a lei nova deva aplicar-se imediatamente, ainda que isso envolva restrição da autonomia privada” (obra citada, pág. 247).
Ora, também a Lei nº 14/2006 visa salvaguardar interesses de ordem pública, que são o descongestionamento de tribunais, mediante uma mais equilibrada distribuição dos processos pelo país e a defesa das partes mais fracas, em particular o cidadão consumidor, que beneficiará de uma aproximação territorial das instalações da justiça. Note-se que a defesa da parte mais fraca no que concerne à estipulação do foro regulador de eventuais litígios emergentes de contrato constitui preocupação presente no regime jurídico das chamadas cláusulas contratuais gerais, no qual se incluem, entre as cláusulas relativamente proibidas, consoante o quadro negocial padronizado, as cláusulas contratuais gerais que “estabeleçam um foro competente que envolva graves inconvenientes para uma das partes, sem que os interesses da outra o justifiquem” (alínea g) do art.º 19º do Dec.-Lei nº 446/85, de 25.10). Tal limitação aplica-se igualmente às cláusulas inseridas em contratos individualizados, cujo conteúdo previamente elaborado o destinatário não pode influenciar (nº 2 do art.º 1º do Dec.-Lei nº 446/85, na redacção introduzida pelo Dec.-Lei nº 249/99, de 07.7.).
No que concerne à temática da aplicação da lei processual no tempo, haverá que ter presente que “a autonomia da acção e da respectiva tutela judiciária por meio dela solicitada, desde logo, pelo menos em grande medida, leva a considerar irrelevante a lei reguladora dos meios de tutela e dos seus pressupostos ao tempo da constituição da relação jurídica, ou, por outras palavras, leva a separar nitidamente a lei aplicável à relação litigiosa propriamente dita – a lei material – da lei processual” (Artur Anselmo de Castro, Direito Processual Civil Declaratório, vol I, Almedina, 1981, pág. 46). “Não há que atender à lei reguladora à data da relação material que com o processo se visa tutelar ou efectivar. Sejam quais forem os meios de tutela da relação jurídica no momento em que ela se constitui, o que interessa são apenas os admitidos na altura da sua apresentação em juízo. Se posteriormente à constituição da relação material foram alterados os meios de tutela jurisdicional, seja no sentido de a ampliar, seja no sentido de a restringir, ou modificadas as formalidades do processo, ou até os próprios pressupostos processuais, não há que atender à lei vigente no momento do nascimento da relação material litigiosa. Isto resulta da independência do direito processual em relação ao direito material, ou seja, da autonomização da fase da realização jurisdicional ou autoritativa do direito frente à fase da sua realização pacífica” (A. de Castro, obra citada, pág. 53).
O art.º 63 [do Código de Processo Civil, na redacção anterior à introduzida pelo Dec.-Lei nº 329-A/95, de 12.12, que actualmente consta no art.º 22º da LOFTJ] destina-se justamente a solucionar os conflitos de diferentes leis que se sucedam no tempo e que suprimam ou concedam jurisdição ou que modifiquem o âmbito das regras distributivas da competência” (A. de Castro, obra citada, pág. 48).
A competência jurisdicional – isto é, a competência para o julgamento de uma causa ou de um recurso – é aferida segundo determinados elementos (como o objecto ou as partes da acção) tal como eles se apresentam no momento da sua propositura ou interposição (art.º 22º, nº 1, 1ª parte, LOFTJ), sendo irrelevantes, em princípio, quaisquer modificações de facto ou de direito (art.º 22º, nºs 1 2ª parte e 2, LOFTJ). É o que se chama perpetuatio fori (ou iurisdictionis)” (Miguel Teixeira de Sousa, A nova competência dos tribunais cíveis, Lex, 1999, pág. 23, sublinhado nosso). Este princípio implicará que, salvo solução legal ad hoc em contrário, os pactos de competência serão avaliados à luz da lei vigente à data da propositura da acção, mesmo que esta seja diversa da que vigorava à data da celebração do pacto. Este foi o entendimento expresso ou implícito nos acórdãos da Relação de Évora, de 28.01.1993 (Col. de Jur., ano XVIII, tomo I, pág. 267), do Supremo Tribunal de Justiça, de 12.6.1997 (BMJ nº 468, pág. 324) e da Relação de Lisboa, de 08.11.2005 (Col. de Jur., ano XXX, tomo V, pág. 84 e seguintes). Este é o entendimento mais consentâneo com o interesse público prevalecente nas normas que regulam o processo, maxime no que concerne à determinação do tribunal competente. Os pactos de competência traduzem-se num acordo de vontades, pelo que têm a natureza de contratos. Porém, são uma modalidade de contrato processual, isto é, de negócios com eficácia constitutiva ou extintiva num processo pendente ou futuro (Miguel Teixeira de Sousa, “A competência e a incompetência nos tribunais comuns, 3ª edição revista, A.A.F.D.L., 1990, pág. 84). São, quanto ao momento da sua conclusão, um negócio processual preparatório, pois são celebrados antes da propositura da acção (Miguel Teixeira de Sousa, Estudos sobre o novo processo civil, 2ª edição Lex, 1997, pág. 194). O seu objecto é a modelação de um pressuposto processual fundamental – a competência de um tribunal. Daí que há quem lhes atribua natureza híbrida, considerando-os um misto de contrato e acto processual, de direito público e privado (cfr, quanto aos pactos de jurisdição, Maria Victória Ferreira da Rocha, Competência internacional e autonomia privada, Revista de Direito e Economia, ano XIII, 1987, páginas 166 e 167). E daí que possam ser, como no caso sub judice, alvo de aplicação de lei não vigente à data da sua celebração. Ponto é que, uma vez que os pactos de competência só produzem os seus efeitos a partir do momento da propositura da acção relativa aos litígios a que o pacto se refere, a aplicação da lei nova a uma acção intentada já após a sua entrada em vigor não atinge quaisquer efeitos de direito produzidos pelo pacto anterior, assim se respeitando a ressalva tida em vista pelo nº 1, parte final, do art.º 12º do Código Civil (cfr. Dário Moura Vicente, Direito Internacional Privado, citado, pág. 247).
Mais do que uma situação jurídica contratual, na lei nova em análise o legislador regula uma questão jurídica de processo civil, um pressuposto fundamental do processo que é a competência territorial dos tribunais. Tal pressuposto fixa-se no momento da propositura da acção, ou seja, é nesse momento que essa situação jurídica (para utilizar a terminologia de Baptista Machado in Sobre a aplicação no tempo do novo Código Civil) se completa. A atribuição de competência a um determinado tribunal para julgar um determinado litígio resultará da conjugação dos elementos de facto com as normas jurídicas contemporâneas com o momento da propositura da acção. O pacto de aforamento será tão só um elemento, uma fase no processo constitutivo da relação jurídica processual perante um determinado tribunal, processo esse que se completa com a propositura da acção (art.º 267º nº 1 do Código de Processo Civil). Daí que a lei nova seja competente para regular tal situação jurídica, cujo processo constitutivo ou extintivo não estava concluído no momento da entrada em vigor daquela lei (Baptista Machado, obra citada, páginas 158 e 159).
Por tudo isto, entendemos que nesta parte o recurso não merece provimento.
Segunda questão (inconstitucionalidade do art.º 110º nº 2 alínea a) do Código de Processo Civil, na redacção introduzida pela Lei nº 14/2006)
O recorrente defende que é inconstitucional a interpretação da lei segundo a qual o art.º 110º nº 2 alínea a) do Código de Processo Civil, com a redacção que lhe foi dada pela Lei nº 14/2006, de 26 de Abril, é aplicável, invalidando-as, a escolhas convencionais de foro ocorridas antes da vigência dessa nova lei. Tal interpretação da lei violará os princípios da adequação, da exigibilidade, da proporcionalidade e da não retroactividade consignados no artigo 18°, n°s. 2 e 3, da Constituição da República Portuguesa e os princípios da segurança jurídica e da confiança, corolários ambos do princípio de um Estado de Direito Democrático consagrado no artigo 2° da Constituição da República Portuguesa.
O Tribunal Constitucional tem-se debruçado repetidas vezes sobre a questão da retroactividade das leis e ainda dos limites a que o legislador está sujeito ao modificar o regime jurídico aplicável às diversas situações da vida.
Sobre esta problemática o Tribunal Constitucional tem vincado que o princípio da não retroactividade da lei encontra-se consagrado na Constituição, de modo expresso, unicamente para a matéria penal (desde que a lei nova se não mostre de conteúdo mais favorável ao arguido) – números 1 e 4 do art.º 29º -, para as leis restritivas de direitos, liberdades e garantias – nº 3 do artigo 18º - e para o pagamento de impostos – art.º 103º nº 3 -, pelo que pode dizer-se que a lei fundamental não consagra como princípio a não retroactividade da lei em geral, ainda que não seja insensível a tal questão (cfr., v.g., acórdão nº 95/92, in “Acórdãos do Tribunal Constitucional, 21º vol, pág. 341 e seguintes; acórdão nº 173/2001, D.R., II série, de 07.6.2001, pág. 9648 e seguintes; acórdão 304/2001, D.R., II série, de 09.11.2001, pág. 18628 e seguintes; acórdão 302/2006, D.R., II série, de 12.6.2006, pág. 8549 e seguintes). De todo o modo, na esteira de jurisprudência já perfilhada pela Comissão Constitucional, o Tribunal Constitucional vem entendendo que o princípio do Estado de direito democrático (proclamado no preâmbulo da Constituição e, após a revisão constitucional de 1982, consagrado no seu artigo 2º), postula «uma ideia de protecção da confiança dos cidadãos e da comunidade na ordem jurídica e na actuação do Estado, o que implica um mínimo de certeza e de segurança no direito das pessoas e nas expectativas que a elas são juridicamente criadas», razão pela qual a «normação que, por sua natureza, obvie de forma intolerável, arbitrária ou demasiado opressiva àqueles mínimos de certeza e segurança que as pessoas, a comunidade e o direito têm de respeitar, como dimensões essenciais do Estado de direito democrático terá de ser entendida como não consentida pela lei básica» (acórdão nº 303/90, in “Acórdãos do Tribunal Constitucional, 17º vol, pág. 65 e seguintes e D.R., I série, de 26.12.1990). Todavia, como se pondera, entre outros, no acórdão nº 304/2001, de 27.06.2001, supra citado (D.R., II série, 09.11.2001, pág. 18630), “isso não leva a que seja vedada por tal princípio a estatuição jurídica que tenha implicações quanto ao conteúdo de anteriores relações ou situações criadas pela lei antiga, ou quando tal estatuição venha a dispor com um verdadeiro sentido retroactivo. Seguir entendimento contrário representaria, ao fim e ao resto, coarctar a «liberdade constitutiva e a auto-revisibilidade» do legislador, características que são «típicas», «ainda que limitadas», da função legislativa (cfr. Vieira de Andrade, Os Direitos Fundamentais na Constituição da República Portuguesa, p. 309). Haverá, assim, que proceder a um justo balanceamento entre a protecção das expectativas dos cidadãos decorrentes do princípio do Estado de direito democrático e a liberdade constitutiva e conformadora do legislador, também ele democraticamente legitimado, legislador ao qual, inequivocamente, há que reconhecer a legitimidade (senão mesmo o dever) de tentar adequar as soluções jurídicas às realidades existentes, consagrando as mais acertadas e razoáveis, ainda que elas impliquem que sejam «tocadas» relações ou situações que, então, eram regidas de outra sorte. Um tal equilíbrio, como o tribunal tem assinalado, será postergado nos casos em que, ocorrendo mudança de regulação pela lei nova, esta vai implicar, nas relações e situações jurídicas já antecedentemente constituídas uma alteração inadmissível, intolerável, arbitrária, demasiado onerosa e inconsistente, alteração com a qual os cidadãos e a comunidade não poderiam contar, expectantes que estavam, razoável e fundadamente, na manutenção do ordenamento jurídico que regia a constituição daquelas relações e situações. Em tais casos, a lei viola aquele mínimo de certeza e segurança que as pessoas devem poder depositar na ordem jurídica de um Estado de direito, impondo-se, então, a intervenção do princípio da protecção da confiança e segurança jurídica que está implicado pelo princípio do Estado de direito democrático, por forma que a nova lei não vá, de forma acentuadamente arbitrária ou intolerável, desrespeitar os mínimos de certeza e segurança, que todos têm de respeitar”.
No caso dos autos, não se poderá dizer que foram defraudadas justas expectativas de que o acordo de aforamento celebrado pelas partes determinaria definitivamente o tribunal competente para a resolução dos litígios emergentes do contrato. Como se viu, no momento da celebração do pacto já vigorava o princípio segundo o qual a questão da competência territorial do tribunal e, por conseguinte, da validade do pacto que a tivesse por objecto, seria regulada pela lei vigente à data da propositura da acção. Assim, podiam e deviam as partes contar com a possibilidade de o legislador modificar as regras definidoras da competência territorial dos tribunais, em termos que implicassem a invalidação da determinação que haviam acordado. Por outro lado, não se vislumbra que a aplicação do novo regime ao litígio surgido entre as partes implique um sacrifício intolerável dos seus interesses: além de não estar em causa a definição substantiva dos respectivos direitos, o tribunal apontado pela nova lei é adequado aos interesses do devedor, uma vez que se localiza na área do seu domicílio, e por outro lado não importa um sacrifício inadmissível para o credor, que é uma instituição de crédito, necessariamente dotada de uma estrutura organizativa adequada à prossecução dos seus interesses em todo o espaço nacional.
A aplicação do novo regime aos pactos de competência celebrados antes da sua entrada em vigor não é arbitrária, intolerável ou opressiva, antes é proporcional e adequada, uma vez que, sem sacrifícios significativos para as partes e sem que sejam defraudadas expectativas de imutabilidade do regime jurídico, que a lei não alimentava, evita que perdurem indefinidamente no tempo situações que contribuem para o congestionamento dos tribunais cíveis de Lisboa e Porto.
Por último, a lei constitucional não consagra nenhum direito à determinação convencional dos tribunais territorialmente competentes para julgar litígios privados, nem, como vimos, a não retroactividade de leis atinentes a essa matéria, pelo que é desajustada a invocação, feita pela Recorrente, da força jurídica conferida pelo art.º 18º da Constituição da República Portuguesa aos preceitos constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias nela consignados.
Conclui-se, pois, que o despacho recorrido e a Lei nº 14/2006, de 26 de Abril, na interpretação de que a nova redacção por ela dada ao art.º 110º nº 2 alínea a) do Código de Processo Civil é aplicável a pactos de aforamento celebrados antes da sua entrada em vigor, não violam os artigos 18º nº 2 e 3 e 2º da Constituição da República Portuguesa, pelo que o recurso improcede também nesta parte.
DECISÃO
Pelo exposto, julga-se o recurso improcedente e consequentemente mantém-se a decisão recorrida.
Custas do recurso pelo agravante.

Lisboa, 18.01.2007

Jorge Leal
Américo Marcelino
Francisco Magueijo