Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
2245/11.9TBCSC.L1-8
Relator: ANTÓNIO VALENTE
Descritores: ACÇÃO PAULIANA
DOAÇÃO
USUFRUTO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 01/21/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Texto Parcial: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: - Tendo o Réu contraído uma dívida com o Banco Autor e procedendo, posteriormente, à doação de um imóvel aos filhos, reservando-se o respectivo usufruto, não se provando que disponha de outros bens que possam garantir a satisfação do crédito do Banco, procede a acção de impugnação pauliana proposta por este, visando obter a declaração de ineficácia de tal doação.
- O usufruto é um direito de valor quase nulo em termos de mercado, até porque se trata de um direito que se extingue com a morte dos respectivos titulares.
- A acção pauliana procede contra a Ré mulher, que outorgou igualmente tal doação, já que, independentemente de a mesma ser ou não devedora do Banco, a declaração de ineficácia da doação se limita a colocar o imóvel, de novo, no património dos Réus, como se dele nunca tivesse saído.
(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Parcial: Acordam os Juízes no Tribunal da Relação de Lisboa.



I-Relatório:



Banco ..., intentou a presente acção com a forma ordinária contra J... e mulher M..., M..., e M..., pedindo, se declare ineficaz em relação ao Autor a doação efectuada pelos primeiros RR aos segundo e terceiro RR , ordenando-se a restituição do prédio doado na medida do interesse do Autor, de modo a poder este executá-lo no património dos obrigados à restituição para satisfação integral do seu crédito.

Sustenta para o efeito que, em 13/12/2005 foi celebrado um contrato de abertura de crédito entre o A. e uma sociedade da qual o 1 ° Réu era sócio-gerente, no valor de € 250.000,00, no âmbito do qual foi entregue uma livrança subscrita e avalizada pelo 1º Réu. A dita sociedade entrou em incumprimento pelo que o A. preencheu a livrança e apresentou-a a pagamento não tendo a mesma sido liquidada, pelo que foi movida acção executiva contra a sociedade, o primeiro Réu e outrem, para pagamento da quantia de € 59.589,31. Nesta acção executiva o A. não efectuou a penhora de quaisquer bens, tendo tomado conhecimento da doação de um imóvel feita pelos lºs RR à 2a e 3° RR, ocorrida em 2006. Dessa doação resultou a impossibilidade para o A. de ver satisfeito o seu crédito, ou pelo menos motivou o agravamento dessa impossibilidade. Acrescenta que o imóvel continua a ser a casa de habitação dos lºs RR.

Conclui que lhe assiste o direito de deduzir impugnação pauliana, para a qual não é exigida a má fé do adquirente já que se está perante um acto gratuito.
 
Os Réus apresentaram contestação onde dizem que o 1 ° Réu tem bens penhoráveis a começar pelo usufruto do prédio doado que foi reservado para os doadores, e de uma quota na sociedade K... Lda., avaliada em € 514.972,62. Dizem também que o A. há muito que tinha conhecimento da doação, e que é falso que os 2º, 3º, e 4° RR, tenham conhecimento da vida comercial do 1 ° Réu.

Concluem que da doação da nua propriedade não resultou qualquer impossibilidade de satisfação do crédito, devendo a acção ser julgada improcedente.
 
O Autor respondeu à contestação mediante réplica, onde refere que o direito de usufruto se encontra penhorado pelo BCP para garantia da quantia exequenda de € 443.789,94, além de que a quota invocada não tem o valor indicado uma vez que há muito que a sociedade K... está desactivada e têm vindo a ser instauradas acções executivas contra a mesma.

Conclui como na p.i.

A fls. 322 o tribunal determinou a realização de perícia com vista a apurar o valor do usufruto em Março de 2006, cujo relatório consta de fls. 383 a 390.

 Procedeu-se a julgamento com observância do legal formalismo, vindo a ser proferida sentença que julgou a acção procedente e em consequência declarou INEFICAZ - relativamente ao Autor Banco ... e na medida da satisfação do seu crédito, sem prejuízo dos direitos que assistam ao cônjuge do 1º Réu - o contrato de doação referido no ponto 10 dos factos provados, através do qual os Réus J... e mulher M... doaram aos Réus M..., e M..., com reserva de usufruto, o prédio urbano descrito na lª Conservatória do Registo Predial de Cascais sob o n° 7497/19990205, freguesia de Cascais, inscrito na respectiva matriz sob o artigo 10228.

Foram dados como provados os seguintes factos:

1) Os Réus J... e Ré M... casaram um com o outro em 1981, e são pais dos Réus M... e M....
2) Em 13 de Dezembro de 2005, J... e J... eram sócios gerentes da S... Lda. 
3) Naquela data, J... e J... declararam que S... Lda. se comprometia nos termos de documento de fls. 12 e no qual designadamente se lê:

"CONTRATO DE ABERTURA DE CRÉDITO ENTRE:

PRIMEIRO:
BANCO ..., com sede ..., matriculada ..., com o capital social de ..., daqui em diante designada abreviadamente por BANCO, representado pelos Senhores Dr. A... e pela Senhora Dra. G..., na qualidade de Procuradores;

SEGUNDA:
S... LDA., com sede ..., matriculada ..., com o capital social de ..., adiante designados abreviadamente por EMPRESA, representada pelos Senhores Dr. J... e Dr. J..., na qualidade de sócios gerentes,
é celebrado o presente contrato de mútuo, que se regerá pelos termos e condições constantes das cláusulas seguintes:

Cláusula Primeira.
(Montante, Finalidade e condição de desembolso).

1. Pelo presente contrato  o BANCO obriga-se a conceder, à EMPRESA o montante total de 250.000,00 (duzentos e cinquenta mil euros), que este se obriga a tomar de empréstimo.
2. Os fundos concedidos nos termos deste contrato destinam-se a apoio à tesouraria da EMPRESA.
3. O crédito que venha a ser utilizado pela EMPRESA nos termos do presente contrato, será desembolsado parcelarmente até 31/05/2006, por crédito na conta DO da EMPRESA, melhor identificada na cláusula 3ª infra, destinando-se os fundos exclusivamente para pagamento a fornecedores da S... Lda., através da emissão de cheques cruzados com identificação dos beneficiários e respectivos montantes, conforme lista anexa ao presente contrato (Anexo 1).

Cláusula Segunda.
(remuneração).

1. O crédito concedido, vencerá juros mensais e postecipados, à taxa nominal correspondente ao indexante taxa "EURlBOR a 6 meses" acrescida de 4% arredondada para o oitavo de ponto percentual imediatamente superior.
2. Por "Euribor a 6 meses" entende-se a taxa patrocinada pela Federação Bancária Europeia em associação com a Associação Cambista Internacional resultante do cálculo da média das taxas de depósitos interbancários para o prazo de 6 meses denominados em Euros, oferecidas na zona da União Económica e Monetária entre Bancos de primeira linha, cotada no segundo dia útil anterior à data de início de cada período de contagem de juros, para valor spot (TARGET  + 2), na base actual/360, e divulgada pela Bridge Telerate (anteriormente Dow Jones Markets) ou outra Agência que para o efeito a substitua, cerca das 11 horas de Bruxelas.
3. Os juros contar-se-ão diariamente e serão pagos mensal e postecipadamente, vencendo-se a primeira prestação em 30 de Junho de 2006.
4. Para cada período de contagem de juros o cálculo de juros será feito na base actual/360.

Cláusula Terceira.
(reembolso).

1. O crédito concedido será reembolsado em 31 (trinta e uma) prestações iguais e sucessivas de capital, com início em 30 de Junho de 2006.
2. O pagamento do empréstimo, respectivos juros e encargos serão efectuados por débito da conta de depósito à ordem nº 1-2179313.000.001-0003 que a EMPRESA é titular, pelo que a EMPRESA deverá tê-la provisionada, ficando o BANCO desde já autorizado a debitá-la.
3. O BANCO poderá debitar se necessário, para efectivar os pagamentos decorrentes deste crédito, quaisquer outras contas de depósito de que a EMPRESA seja titular, ou co-titular junto do BANCO (...).

Cláusula Sétima.
(titulação- livrança).

1. A EMPRESA entrega nesta data ao BANCO uma livrança em branco por si subscrita, e avalizada por  1) Dr. J...  natural de Socorro, Lisboa, residente ... e 2) J... natural de S. Sebastião da Pedreira, Lisboa, residente ..., a qual ficará em poder do BANCO para caucionar o integral cumprimento de todas e quaisquer obrigações e responsabilidades, actuais e futuras, decorrentes do presente contrato.
2. O BANCO fica expressamente autorizado a completar o preenchimento da livrança referida no número anterior, quando o entender necessário para a boa cobrança dos seus créditos, nela indicando o vencimento que lhe convier para tal fim, bem como a exercer todos os seus direitos que emergirem da livrança, podendo, nomeadamente, proceder ao seu desconto, utilizando o respectivo produto para amortização das responsabilidades dos EMPRESA. ( ... )".

4) Na sequência de conversações havidas entre o Autor e a S... Lda., em 03 de Agosto de 2006, as condições do supra citado contrato foram alteradas quanto ao prazo e reembolso do mesmo, declarando J... manter a sua qualidade de avalista.
5) O mesmo acontecendo, quer em 27 de Setembro de 2006 quer em 6 de Novembro de 2006.

6) Em 4 de Fevereiro de 2009, foi lavrado um aditamento ao supra citado contrato, no qual declararam J... e J... nos termos de doc. de fls. 27, e onde designadamente se lê:

"1. (reembolso).
O Reembolso do capital actualmente em dívida, no montante de € 59.01O, 58 e respectivos juros calculados de acordo com a cláusula segunda prevista no contrato referido, será efectuado em 11 prestações mensais e sucessivas de capital e juros, sendo as 5 primeiras no valor de € 1.000,00 cada e as restantes 6 do remanescente em dívida, vencendo-se a primeira em 28.02.2009 e as seguintes ao dia 30 dos meses subsequentes.

2. (garantias e outras obrigações).
Todas as garantias e outras obrigações. se mantêm em vigor, designadamente a livrança subscrita pela EMPRESA e avalizada por J... (...), para garantir as obrigações assumidas ou a assumir decorrentes deste aditamento e do contrato referido supra.".

7) O Autor preencheu a livrança mencionada no ponto anterior, onde o Réu J... apôs a menção "bom para aval ( ... )" seguida da sua assinatura, pelo valor de € 58.673,17.
8) A livrança foi apresentada a pagamento à sociedade sua subscritora e aos seus avalistas, incluindo o primeiro Réu, em 22/02/2010, não tendo sido paga então ou posteriormente.
9) O prédio urbano constituído por um lote de terreno para construção com a área de mil oitocentos e noventa e três metros quadrados, situado na Quinta da Marinha, designado por lote quarenta e sete, da freguesia e concelho de Cascais, descrito na Primeira Conservatória do Registo Predial de Cascais sob o número sete mil quatrocentos e noventa e sete, freguesia de Cascais, inscrito na respectiva matriz sob o artigo dez mil duzentos e vinte e oito, esteve registado, naquela Conservatória do Registo Predial, a favor de J... e M..., desde pelo menos 17 de Julho de 2003.

10) Em 22 de Março de 2006, J..., M..., M..., e M... declararam nos termos de documento de fls. 62, e onde designadamente se lê:

"No dia vinte e dois de Março de dois mil e seis, no Cartório Notarial de Lisboa, na Praça Marquês de Pombal, número quinze, terceiro piso, perante o Notário V...S...B..., compareceram como outorgantes:
PRIMEIROS  - J..., e mulher, M... (..)
SEGUNDOS  - M..., e M... (..)

DISSERAM  OS PRIMEIROS OUTORGANTES:
Que pela presente doam aos segundos outorgantes, seus filhos, em comum e partes iguais o prédio urbano constituído por um lote de terreno para construção com a área de mil oitocentos e noventa e três metros quadrados, situado na Quinta da Marinha, designado por lote quarenta e sete, da freguesia e concelho de Cascais, descrito na Primeira Conservatória do Registo Predial de Cascais sob o número sete mil quatrocentos e noventa e sete - freguesia de Cascais, onde a aquisição se encontra registada a seu favor pela inscrição G-UM,  (..) inscrito na respectiva matriz sob o artigo dez mil duzentos e vinte e oito, com o valor patrimonial de cento e setenta e quatro mil duzentos e nove euros e quarenta cêntimos (..) Que sobre este prédio incide uma hipoteca registada na dita conservatória pela inscrição C-UM(..). Que fazem esta doação nos termos seguintes:
Por conta das suas quotas disponíveis;
Com reserva de usufruto, simultâneo e sucessivo para eles doadores;
Atribuindo-se ao objecto desta doação o valor de oitenta e sete mil cento e sete euros e setenta cêntimos  (...).

DISSERAM  OS SEGUNDOS OUTORGANTES:
Que aceitam esta doação nos termos exarados  ( ... )".
11) O prédio em questão encontra-se hoje registado na Conservatória do Registo Predial a favor de M... e M..., com usufruto registado a favor de J..., M....
12) Sobre o usufruto do mesmo prédio foi inscrita penhora em 23.04.2008 a favor do Banco Comercial Português, para garantia da quantia exequenda de € 443.789,94.
13) Sobre o mesmo prédio mostra-se ainda registada hipoteca a favor do Banco Comercial Português, S.A., pela AP 12, de 2003/07/17.
14) J... declarou avalizar, nas mesmas e em seu nome pessoal, duas livranças em branco que o BCP subscreveu e preencheu pelos valores de €168.827,89 e €422.657,09 e uma livrança em branco que o Montepio Geral subscreveu, preencheu e executou pelo valor de €376.841,56, para garantir negócios de C... Lda., anteriormente chamada C... Lda.
15) J... é titular de uma quota com o valor nominal de € 2.222,00 no capital de € 5.000,00 da sociedade denominada K... Lda.
16) Correm termos no Juízo de Execução de Águeda, Comarca do Baixo Vouga, os autos de inventário/partilha de bens em casos especiais com o nº 1246/07.6TBAND-D, em que é requerente M..., e requerido J..., nos termos que constam da certidão junta a fis. 41 a 57.
17) Correm termos no Tribunal Judicial de Anadia os autos de execução com o nº 998/06.5TBAND contra a executada K... Ld", no qual foi efectuada a penhora dos bens referidos no auto de penhora junto a fls. 126.
18) Correm termos no Tribunal Judicial de Anadia os autos de execução com o nº 1382/05.3TBAND contra a executada K... Ld", no qual foi efectuada a penhora dos bens referidos no auto de penhora junto a fls. 130.
19) Correm termos pela Direcção Geral de Impostos - Serviço de Finanças de Anadia o processo de execução fiscal nº 0035200901030671 em que é executada Kobões Variações Actividades Imobiliárias, Ld" , cfr. resulta do doc. junto a fls. 138 a 146.
20) Correram termos na Comarca da Grande Lisboa-Noroeste - Sintra-Juízo do Comércio os autos de processo de insolvência da S... Ld", com o nº 3450/11.3SNT, os quais terminaram por desistência da instância, a qual foi Homologada por sentença, cfr. certidão junta a fls. 154 a 176.
21) Correram termos na Comarca da Grande Lisboa-Noroeste - Sintra-Juízo do Comércio os autos de processo de insolvência da S... Ld", com o nº 12500/11.2 SNT, cfr. certidão junta a fls. 177 a 189.
22) O Banco A. em 09-07-2010 deu à execução a livrança referida pelo valor de € 59.589,31, contra a S... Ld", o primeiro Réu e outrem.
23) Essa acção executiva corre seus termos pela 1ª Secção do 1º Juízo de Execução de Lisboa, sob o nº 13127/10.1YYLSB.
24) Nessa execução não foram penhorados bens.
25) Nessa execução, até 19/12/2011 não existia comprovativo de que os executados estavam citados nem havia dado entrada qualquer oposição à execução.
26) O Banco A. propôs a execução com o nº 21717/10.6YYLSB contra a S... Lda. apresentando como título executivo uma livrança no valor de € 129.864,98.
27) Nessa execução, até 19/12/2011 não existia comprovativo de que a executada estava citada nem havia dado entrada qualquer oposição à execução.
28) O imóvel mencionado em 9) continua a ser a casa de habitação dos Réus J... e M..., e foi a casa de habitação de M... e M... até estes saírem de casa.
29) É J... quem suporta todos os encargos inerentes a conservação e manutenção do imóvel mencionado em 9).
30) O usufruto do imóvel mencionado em 9. apresentava em 2006 o valor de € 1.039.050,00 de acordo com os critérios em vigor nas Finanças para apuramento do IMI, tomando por referência o valor potencial do imóvel à data.
31. A sociedade K... Lda. há muito que tem a sua actividade muito reduzida.
32. A sociedade K... Lda. há muito que está desactivada.
33) Há muito que vêm sendo instauradas várias acções executivas contra K... Lda., designadamente no valor total de €2.077.574,05.
34) A sociedade K... Lda. não apresenta as suas contas desde o ano de 2002.

Inconformado recorre o Réu J..., concluindo que:
A) Vem o presente recurso de apelação interposto da douta sentença que declarou ineficaz - relativamente ao Autor Banco ... e na medida da satisfação do seu crédito - o contrato de doação através do qual os RR J... e M... doaram aos seus filhos a nua propriedade do prédio urbano descrito na 1ª Conservatória do registo Predial de Cascais sob o nº 7497/19990205, freguesia de Cascais.
B) Nos termos do artigo 610º "Os actos que envolvam diminuição da garantia patrimonial e não sejam de natureza pessoal, podem ser impugnados pelo credor, se concorrerem as circunstâncias seguintes:
Ser o crédito anterior ao acto e resultar do acto a impossibilidade, para o credor, de obter a satisfação integral do seu crédito ou o agravamento dessa impossibilidade.
C) Incumbe ao credor a prova do montante das dívidas e anterioridade do crédito, recaindo sobre o devedor ou terceiro interessado na manutenção do acto o ónus da prova de que o obrigado possui bens penhoráveis de igualou maior valor.
D) Na matéria de facto dada como provada o Mmo Juiz a quo considerou que o usufruto do imóvel apresentava em 2006 o valor de € 1.039.050,00 de acordo com os critérios em vigor nas Finanças para apuramento em sede de IMI.
E) O relatório pericial de fls. 383 a 386 dos autos atribui ao usufruto o valor € 1.039.050,00.
F) A testemunha L..., ligado ao setor imobiliário afirmou em julgamento que o imóvel vale actualmente entre os 3,5 a 4,5 milhões euros e que o valor do usufruto corresponde a pelo menos 1/3 desse valor.
G) Os RR lograram, pois, demonstrar a existência de património suficiente para devedores de responder pela dívida, nomeadamente o referido usufruto.
H) O Mmo. Juiz apenas deu como provado que o usufruto tem o valor de 1.039.050,00 € para apuramento do valor tributável em sede de IMI, em contradição com a prova produzida.
I) Em face da prova produzida o art. 12º da base instrutória deve ser dado como provado.
J) E em consequência ser também dado como provado que o Recorrente possui bens penhoráveis de maior valor que o crédito invocado pelo Recorrido.
K) E, ainda, que da doação não resultou a impossibilidade do Recorrido obter a satisfação do referido crédito.
L) Não estando verificados os requisitos da impugnação pauliana não podia ter-se proferido a declaração de ineficácia do acto em relação à credora e aqui autora.
M) Ao decidir de forma diversa o Mmo juiz a quo violou as disposições legais contidas nos artigos 611 ° e seguintes do C. Civil.
N) À data da constituição da dívida pelo réu marido, este encontrava-se casado com a R. Maria Paula, tratando-se pois de dívida contraída na constância do casamento por um dos cônjuges.
O) No caso em apreço estamos perante um aval prestado em letras de câmbio emitidas para pagamento de transacção comercial em que foi interveniente sociedade de que aquele réu era sócio e gerente.
P) Os referidos títulos foram emitidos no âmbito de transacção comercial em que foram intervenientes a A. e a S... Lda, a dívida não foi contraída em resultado da actividade comercial do Recorrente.
Q) Ao Recorrente J... não pode ser reconhecida a qualidade de comerciante, pelo que a comunicabilidade da dívida terá de resultar do preenchimento da previsão da al. c) do nº 1 do art. 1691.°.
R) Recaía sobre o Recorrido o ónus de provar que, não obstante o Recorrente não deter a qualidade de comerciante, do aval prestado resultava directa e imediatamente um beneficio para o casal.
S) Em rigor, nem sequer se provou que a Ré M... beneficiasse de quaisquer proventos gerados pela dita sociedade.
T) Não tendo a Ré M... a qualidade de devedora, pode dispor livremente dos seus bens e, designadamente, da meação de que é titular na fracção identificada na escritura.
U) A ineficácia do acto em relação à autora, afectaria apenas a disposição da meação que pelo réu J... foi efectuada.
V) Daí que a sentença recorrida tenha violado igualmente o art° 1691°, n° 1, alínea c) do Código Civil.
W) Deve, pois, a sentença recorrida ser revogada e substituída por outra que absolva os RR. do pedido.

O Autor Banco BPI contra-alegou, sustentando a bondade da sentença recorrida.

Cumpre apreciar.

São duas as questões colocadas pelo recorrente.
A primeira diz respeito ao valor a atribuir ao usufruto do imóvel.
A segunda, ao facto de o recorrente não ter a qualidade de comerciante, devendo a acção improceder contra a Ré M...

No tocante ao valor do usufruto, invoca o recorrente o depoimento da testemunha L..., empresário, que afirmou que o imóvel tem um valor entre € 3.500.000,00 e € 4.500.000,00, e que o usufrutro vale cerca de 1/3 desse valor.

Esta estimativa nem sequer se mostra muito distante da dada como assente pelo tribunal a quo, no seguimento da peritagem junta a fls. 383 e seguintes: € 1.039.050,00.

Daí que reclame a recorrente contra o facto de não ter sido dado como provado, nos seus precisos termos, o teor do nº 12 da base instrutória, o qual questionava:
“O usufruto mencionado em J) tem valor para pagar dez vezes a quantia de € 59.589,31 ?”
A resposta, plasmada no nº 30 da matéria de facto assente, foi:
“O usufruto do imóvel mencionado em 9. apresentava em 2006 o valor de € 1.039.050,00 de acordo com os critérios em vigor nas Finanças para apuramento do IMI, tomando por referência o valor potencial do imóvel à data”.

Isto não significa contudo que exista menor coerência entre a factualidade assente sob o nº 30 e a parte não provada do nº 12 da base instrutória. O relatório do perito, fls. 384/386, reporta-se ao valor do imóvel atenta a localização e enquadramento, descrição da propriedade e cálculo de valores quanto ao terreno, habitação, telheiro, terraços, caves e diversos, aplicando-se em seguida a tabela em vigor nas Finanças, fazendo corresponder a 45% do valor global, o valor do usufruto.

Ou seja, no tocante ao usufruto, trata-se de um cálculo abstracto.

E sobre isto escreve o Mº juiz a quo na sentença recorrida:
“... o critério usado para aferir do valor do usufruto não teve em conta a facilidade ou dificuldade com que se transacciona no mercado português um direito de usufruto de imóvel (com inevitáveis reflexos no seu valor de mercado), sendo facto notório, se não, do nosso conhecimento funcional, de que se trata de um direito dificilmente transaccionável dadas as limitações inerentes (...)”.

E, mais adiante, acrescenta:
“Com efeito, embora os 1ºs RR continuem titulares do direito de usufruto do imóvel doado, é bem sabido que o direito de usufruto apresenta um valor de mercado quase nulo (independentemente do valor apurado para efeitos de tributação fiscal) já que suscita pouco interesse fora do núcleo familiar em que se integra (...) dado o seu regime jurídico, onde avulta a extinção com a morte do usufrutuário”.
Por outro lado, está igualmente provado que sobre o usufruto foi inscrita uma penhora a favor do BCP para garantia da quantia exequenda de € 443.789,94, estando o imóvel onerado com hipoteca a favor do mesmo BCP.

Concordamos inteiramente com a perspectiva do Mº juiz a quo. O que está aqui em causa é um valor de mercado, a possibilidade concreta de transaccionar um direito, e tal possibilidade, como exposto, é muito difícil e certamente nunca atingiria o valor de € 59.589,31.

É que existe uma grande diferença entre o cálculo do valor de mercado do imóvel, em si, e a aplicação de uma percentagem (decorrente de abstractos critérios tributários) de 45% para fixar o valor do usufruto. Um imóvel é um bem facilmente transaccionável no mercado. O direito de usufruto sobre tal imóvel, ao invés, não é quase nunca objecto de transacção por absoluta falta de apetência do mercado.

Nesta medida, há que entender que a doação feita pelos RR aos seus filhos, com reserva de usufruto, constituiu um acto que envolve diminuição da garantia patrimonial do crédito, nos termos do art. 610º do Código Civil, agravando a impossibilidade de o credor satisfazer o seu crédito.

O crédito do Banco ... resulta de um contrato de abertura de crédito, celebrado em 13/12/2005, no qual o Réu J... interveio, além do mais, enquanto avalista para garantia do cumprimento das obrigações resultantes de tal contrato.

A escritura de doação do prédio data de 22/03/2006, pelo que se verifica o requisito de anterioridade do crédito previsto na alínea a) do aludido art. 610º.

Os RR não provaram possuir outros bens penhoráveis ou susceptíveis de garantir a satisfação do crédito do Banco Autor, sendo que lhes cabia o ónus de tal prova (art. 611º).

Alega ainda o recorrente que lhe não pode ser reconhecida a qualidade de comerciante, já que o crédito do Banco Autor resulta de uma transacção comercial em que foram intervenientes o B... e a sociedade ..., tendo o Réu, além de intervir enquanto sócio-gerente de tal sociedade, outorgado o contrato enquanto avalista da sociedade.

Assim, cabia ao Banco Autor provar o disposto no art. 1691º nº 1 c) do Código Civil, ou seja, que a dívida foi contraída pelo Réu J... em proveito comum do casal                                                                                              
Discordamos desta perspectiva, na medida em que não está em causa saber se a dívida foi contraída em proveito comum do casal.
Com efeito, da impugnação pauliana não resulta diminuição do património dos 1ºs Réus. Pelo contrário, o bem doado volta à sua titularidade. Como se refere no Acórdão do STJ de 20/05/93, CJ/STJ 1993, 2, pág. 113, “na acção pauliana o pedido a formular pelo autor é o da restituição, material e jurídica, dos bens alienados ao património dos alienantes vendedores e não a rescisão do contrato celebrado”.

Ou seja, o que se visa com a acção pauliana é a declaração de ineficácia  do acto de disposição do bem, revertendo este ao património dos devedores.

O acto impugnado nestes autos é, para mais, um negócio jurídico gratuito, uma doação.

Pela sua clareza, passamos a citar o excerto do acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 14/12/2007, constante dos autos:

“Executando os bens alienados, como se eles tivessem retornado ao património do devedor e não se mantivessem na titularidade do adquirente, o impugnante pode executá-los na medida do necessário para satisfação do seu crédito (...) Temos assim que, pelo facto de a ré mulher não ser devedora do autor, nem por isso a impugnação pauliana terá de improceder quanto a ela.
Tudo se processará como se os bens não tivessem saído do património do devedor, podendo agora ser executados, encontrando-se na posse de terceiros.
Tal não altera, porém, a responsabilidade do devedor, nem aumenta as garantias do credor. O devedor é responsável na medida em que o era antes, não passando a ré mulher agora a ser também responsável pela dívida, como o já não era antes. Em termos de créditos e garantias, tudo permanece intocável”.

Conclui-se assim que:

- Tendo o Réu contraído uma dívida com o Banco Autor e procedendo, posteriormente, à doação de um imóvel aos filhos, reservando-se o respectivo usufruto, não se provando que disponha de outros bens que possam garantir a satisfação do crédito do Banco, procede a acção de impugnação pauliana proposta por este, visando obter a declaração de ineficácia de tal doação.
- O usufruto é um direito de valor quase nulo em termos de mercado, até porque se trata de um direito que se extingue com a morte dos respectivos titulares.
- A acção pauliana procede contra a Ré mulher, que outorgou igualmente tal doação, já que, independentemente de a mesma ser ou não devedora do Banco, a declaração de ineficácia da doação se limita a colocar o imóvel, de novo, no património dos Réus, como se dele nunca tivesse saído.
          
Assim e sem necessidade de maiores considerações, julga-se a apelação improcedente, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas pelo recorrente.


LISBOA, 21/01/2016


António Valente
Ilídio Sacarrão Martins
Teresa Prazeres Pais
Decisão Texto Integral: