Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | AGOSTINHO TORRES | ||
Descritores: | ABUSO DE CONFIANÇA FISCAL CONDIÇÕES DE PUNIBILIDADE NOTIFICAÇÃO | ||
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Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 07/03/2007 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
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Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | PROVIDO | ||
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Sumário: | I - A Lei n.º 53-A/2006, de 29/12, veio introduzir, com a al. b) do nº 4 do art. 105.º do RGIT, uma nova facilitação de pagamento das dívidas relativas a factos subsumíveis a crimes de abuso de confiança fiscal de montante superior a 1.000 euros, nos mesmos termos que constam do nº 6 do preceito. II - Considerar que o crime por montante não superior a 1000 euros existiria sempre e enquanto não fosse paga a dívida nos termos do nº 6 só se extinguindo pelo pagamento e que, acima dos 1000 euros (al. b) do nº 4) não existiria enquanto não fosse feita a notificação e decorrido o respectivo prazo, mas só haveria crime após o seu decurso, seria intolerável, imoral e totalmente contraditório com o verdadeiro escopo da alteração: apenas o da mera facilitação de pagamento. II - Por isso, não devem considerar-se descriminalizadas todas as situações que preencham os requisitos contemplados pela nova norma, sem que a condição se tenha verificado mas tão somente ordenar-se a notificação pela administração fiscal referida na al. b) do nº 4 do art. 105º do RGIT após o que, mostrando-se paga a dívida, só então declarar extinta a infracção. | ||
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Decisão Texto Integral: | ACORDAM EM CONFERÊNCIA OS JUÍZES NA 5ª SECÇÃO PENAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA
RELATÓRIO
1.1- No processo comum singular supra identificado os arguidos (L)- Sociedade Industrial e Comercial de Iluminação , Lda e (A) foram pronunciados a 3 de Junho de 2004 pela prática de factos ocorridos em Abril e Maio de 2001, consubstanciadores da prática de um crime de abuso de confiança fiscal na forma continuada p.p. , à data dos mesmos, pelos artigos 24º nºs 1 e 6, 7º nº 1 do RJIFNA ( DL 20-A/90 de 15 de Janeiro) e 30º nº 2 do CP e actualmente ( na data do despacho de pronúncia) pelos artº 105º nºs 1 e 4 e 7º nº 1 do RGIT ( lei 15/2001 de 5 de Junho) e 30º nº2 do CP. 1.2- O processo seguiu para julgamento. Porém, antes da sua conclusão, foi proferido a 5 de Março de 2007despacho de arquivamento por extinção do procedimento criminal, com o seguinte teor:
“Foi deduzida acusação e foram pronunciados para julgamento os arguidos "(L) e Sociedade Industrial Comercial de Iluminação, Lda.", e (A) pela prática de um crime continuado de abuso de confiança fiscal, previsto e punido nos art.°s 24°, n.°s 1 e 6, e 7°, n.° 1, do RJIFNA, actualmente punido nos art.°s 105°, n.°s 1 e 4, e 7°, n.° 1, do Regime geral das Infracções Tributárias, aprovado peia Lei n.' 15/2001, de 5 de Junho. Importa apreciar os efeitos da entrada em vigor, no dia 1 de Janeiro de 2007, da Lei n.° 53-N2006, de 29 de Dezembro (que aprovou o Orçamento do Estado para 2007), que introduziu alterações ao Regime Geral das Infracções Tributárias - cf. artigo 95° e segs. Em conformidade, dispõe agora o n.° 4 do artigo 105° do RGIT: "4 - Os factos descritos nos números anteriores só são puníveis se: a) Tiverem decorrido mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação; b) A prestação comunicada à administração tributária através da correspondente declaração não for paga, acrescida dos juros respectivos e do valor da coima aplicável, no prazo de 30 dias após a notificação para o efeito". Não refere a citada Lei qualquer disposição transitória relativamente à aplicação das alterações introduzidas ao RGIT, designadamente ao preceito em análise. Cumpre apreciar, então, se as alterações à norma em apreço, têm influência no andamento dos presentes autos. Apesar da controvérsia suscitada pela referida alteração, parece não haver dúvidas que as circunstâncias descritas nas duas alíneas do nº 4 do art.º 105° do RGIT, devem ser caracterizadas como condições objectivas de punibilidade. Como escreve Cavaleiro Ferreira: "(…) nem sempre a verificação da infracção penal acarreta, necessariamente, a sanção penal. A infracção é um facto que viola, que ofende um preceito penal primário, e nem sempre à violação desse preceito penal primário se segue a sanção penal. A aplicação do preceito penal secundário pode ficar dependente da verificação de outro facto que condicione a sua aplicabilidade, que condicione, em consequência o próprio direito de punir, o nascimento desse direito". Refere ainda o mesmo autor que "As condições de punibilidade, no sentido em que a expressão é tomada em direito penal, são estranhas ao crime, representam algo que, além do crime, pode ser indispensável para que tenha lugar a punição, para que seja aplicável o preceito penal secundário". Significa isto que as condições de punibilidade são estranhas à noção de facto ilícito, bem como ao conceito de culpa, porquanto não a fundamentam nem constituem pressupostos da reprovabilidade do facto pela lei, mas tão só da aplicação da respectiva sanção. Traduzindo-se a condição de punibilidade num facto acessório que condiciona os efeitos que, normalmente, estão ligados ao crime, ou seja, a responsabilidade penal, pertence ao direito substantivo, ao direito penal, divergindo, assim, das condições de procedibilidade, que constituindo pressupostos processuais, vão condicionar o exercício da acção penal. Se atentarmos na redacção anterior do artigo 105° do RGIT, constatamos que a condição de punibilidade agora vertida na alª. a) do n.° 4, já integrava o preceito, constituindo, então, o corpo do mesmo, que dispunha: "Os factos descritos nos números anteriores só são puníveis se tiverem decorrido mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação". Contudo, no que respeita à alª. b), a mesma não existia, pelo menos, com a actual configuração e amplitude. Na verdade, já o art.° 105°, n.° 6 previa (e mantém na actual redacção) uma causa de extinção da responsabilidade criminal restrita aos casos em que o valor da prestação tributária não exceda E 2000 (inicialmente E 1000), ao prescrever que "se o valor da prestação a que se referem os números anteriores não exceder E 2000, a responsabilidade criminal extingue-se pelo pagamento da prestação, juros respectivos e valor mínimo da coima aplicável pela falta de entrega da prestação no prazo legal, até trinta dias após a notificação para o efeito pela administração tributária" . Do acima referido impõe-se a conclusão que o legislador quis introduzir uma nova condição de punibilidade, ao lado da que já figurava na al. a) do preceito em análise, com aplicação apenas, salvo melhor opinião, aos casos em que a prestação (sem qualquer limite quanto ao respectivo montante) é efectivamente comunicada à administração tributária, por intermédio da correspondente declaração, mas, ainda assim, não é paga. Daqui parece resultar que o devedor que comunica a prestação tributária em divida, nomeadamente através das declarações periódicas, não obstante não a fazer acompanhar do correspondente meio de pagamento, é merecedor de uma maior consideração, que onera a administração, do que aquele contribuinte que não chega sequer a comunicar a prestação. Destarte, no que concerne à primeira situação, o facto só é punível se feita a comunicação através da correspondente declaração, a mesma não for paga, acrescida dos valores referidos na norma, decorridos 30 dias após a notificação para o efeito, por parte da administração tributária. Sobre esta recai, com uma relevância e âmbito de aplicação até agora inexistente (em termos de lei penal), um poder/dever que, sendo postergado, compromete o nascimento do direito de punir, associado à constatação da infracção penal, por não se mostrar verificada a condição de punibilidade. No caso em apreciação, resulta dos documentos juntos aos autos que os arguidos, embora tardiamente, remeteram à administração tributária as declarações periódicas mensais de IVA, sem que as mesmas se fizessem acompanhar do respectivo meio de pagamento. Compulsados os autos, verificamos que não resulta terem os arguidos sido notificados nos termos da alª. b) do n.° 4 do artigo 105°, do RGIT, na actual redacção (em vigor desde 1.1.2007). Os princípios da proibição da retroactividade da lei criminalizadora e da aplicação da lei mais favorável, constitucionalmente consagrados no art.° 29° da CRP, foram igualmente transpostos para o art.° 2° do Cód. Penal que, no seu nº 2 dispõe que "o facto punível segundo a lei vigente no momento da sua prática deixa de o ser se uma lei nova o eliminar do número das infracções ( )". Estabelece o n.° 4 do mesmo artigo que "quando as disposições penais vigentes no momento da prática do facto punível forem diferentes das estabelecidas em leis posteriores, é sempre aplicado o regime que concretamente se mostrar mais favorável ao agente, salvo se este já tiver sido condenado por sentença transitada em julgado". A este propósito, importa não confundir o âmbito de aplicação das duas normas em referência. Ensina, a propósito, Taipa de Carvalho que "a aplicação retroactiva da lei penal mais favorável pressupõe, ( ), que se esteja, relativamente ao caso sub iudice, diante de uma verdadeira sucessão de leis penais (CP, art.º 2°, 4); caso contrário a L.N. ou será penalizadora (criminalizadora) e só poderá aplicar-se aos factos praticados depois da sua entrada em vigor (CP, art.° 2°, 1) ou será despenalizadora, extinguindo, assim, retroactivamente, toda a responsabilidade penal (CP, art.° 2°, 2). Em suma, a questão da despenalização, ou não, do facto praticado na vigência da Lei antiga é prévia à problemática da determinação da lei mais favorável, o que significa que esta só tem cabimento se subsistir a relevância concreta do facto penal. Como se extrai da qualificação da condição imposta ex novo na alª b) do nº 4 do artigo 105° como condição objectiva de punibilidade, a mesma não faz parte do tipo de ilícito, nem do tipo de culpa, o que tem a consequência de a excluir do campo do dolo, não sendo, portanto, necessário que o dolo a abranja. Contudo, podemos afirmar que as condições de punibilidade, porque fazem parte do tipo de garantia, devem ser interpretadas e aplicadas com as mesmas restrições que se aplicam às normas incriminadoras propriamente ditas ou a quaisquer normas que definam pressupostos da ílicitude ou da culpa. Se a lei nova entende só dever punir sob condição, parece claro que passa a faltar motivo para punir o facto sempre que não se verifique a condição. Assim, as condições de punibilidade, embora não respeitando ao tipo legal, revestem natureza material, porque condicionam a efectivação da responsabilidade penal, já que só com a sua verificação o legislador entende necessária a pena. No caso em apreço, perante a posição que perfilhamos sobre a natureza das condições de punibilidade, a sua autonomia relativamente quer ao tipo de ilícito quer da culpa, a questão que se coloca com a lei nova não é de descriminalização, mas antes da aplicação do regime mais favorável, cujo âmbito de acção não se restringe às normas incriminadoras, estendendo-se, nos termos da lei, às "disposições penais" (artigo 2°, n.° 4 do C. Penal), onde se incluem, segundo Nelson Hungria, entre outras, as causas extintivas de punibilidade e as condições de procedibilidade. Não se nos afigura adequado, porém, determinar agora a notificação prevista na alínea b) do n.° 4 do art.° 105° do RGIT, não só tendo em conta a inexistência de norma transitória ou concretizadora da competência, termos e montantes da prestação, coima e acréscimos legais, como a mesma implicaria que o Tribunal acrescentasse à matéria da acusação e da pronúncia um facto negativo, ou seja, que os arguidos foram notificados para pagamento da prestação tributária, acrescida de juros e do valor da coima e não pagaram no prazo de 30 dias, o que nos parece ilegítimo. Na verdade, o objecto do processo mostra-se fixado pelo despacho de acusação e de pronúncia, não competindo ao tribunal substituir-se ao Ministério Público, acrescentando factos indispensáveis à condenação dos arguidos, sobretudo quando os mesmos ocorreram depois da dedução da acusação e da prolação do despacho de pronúncia. Por outro lado, sendo objectiva, a referida condição de punibilidade não depende de produção de prova. Face ao exposto, tendo o legislador introduzido no RGIT uma nova condição de punibilidade, inexistente à data da prática dos factos (não verificada no caso concreto), revestindo a mesma natureza material e integrando o tipo de garantia, a ser interpretada e aplicada com as restrições que se impõem às normas incriminadoras stricto sensu, tem lugar a aplicação aos arguidos do actual regime, introduzido pela Lei n.° 53 A/2006, de 29.12, por resultar mais favorável, o que determina o arquivamento dos autos, por não verificação da condição de punibilidade contemplada na alª. b), do n.° 4 do artigo 105° do RGIT (artigo 2°, n.° 4 do Cód. Penal). Por todo o exposto, ao abrigo das disposições legais citadas, por não ser actualmente punível a conduta descrita na acusação, declaro extinto o procedimento criminal contra os arguidos. Notifique. Dou sem efeito as datas designadas para julgamento. Oportunamente, arquive.”
1.3- Discordando deste despacho o Ministério Público recorreu. E em final de motivação do recurso apresenta as seguintes conclusões: 1. Nos presentes autos imputa-se aos arguidos um crime de abuso de confiança Fiscal, previsto e punido pelo art.° 24° n°s 1 e 6 do RGIFNA, actualmente pelo art° 105° do Regime Geral das Infracções Tributárias, aprovado pela Lei n° 15/2001, de 5 de Junho, conforme acusação deduzida em 22-09-2003, por factos ocorridos em Abril e Maio de 2001 (cfr. fls. 147 a 150).
2. Entretanto, em 1 de Janeiro de 2007 entrou em vigor a alteração que a Lei n° 53-A/2006, de 29 de Dezembro introduziu no Regime Geral das Infracções Tributárias (RGIT), concretamente no seu art° 105° n°4, adicionando uma condição objectiva de punibilidade relativamente aos infractores que cumpriram a obrigação declarativa acessória à prestação que não pagaram.
3. A Ma Juiz considerou o actual regime mais favorável, concluindo porém que, porque os arguidos não foram notificados nos termos da actual redacção da ai. b) do n° 4 do art° 105° do RGIT, em vigor desde 1.12007, não existindo norma transitória e concretizadora da competência, termos e montantes da prestação, coima e acréscimos legais, não sendo legitimo ao tribunal acrescentar à acusação um facto negativo (que o arguido foi notificado e não pagou) não era adequado determinar a notificação prevista na al. b) do no art.° 105° do RGIT e ordenou o arquivamento dos autos com fundamento na "não verificação da condição de punibilidade contemplada na al. b) do n° 4 do artigo 105° do RGIT".
4. O crime de abuso de confiança fiscal consuma-se quando termina o prazo para cumprimento da obrigação tributária e não se entrega a prestação devida. O n° 4 do art° 105° do RGIT estabelece condições objectivas de punibilidade. A nova condição agora introduzida consiste na não regularização da situação tributária declarada mas não paga, no prazo de 30 dias depois da notificação efectuada para o efeito.
5. A não punição resultará de uma atitude positiva do agente que obsta essa consequência penal pagando a divida. A notificação que lhe deve ser feita para pagamento não é condição de punibilidade mas sim a atitude que o contribuinte toma perante esse procedimento (de notificação) que agora se exige ao Estado.
6. Caso o contribuinte pague opera-se a descriminalização dos factos que não perdem a natureza ilícita pois o sancionamento a titulo contra-ordenacional mantém-se intacto (há que pagar a coima prevista no art° 114° para que se beneficie dessa condição).
7. Relativamente aos factos ainda não julgados, anteriores à vigência do novo regime, independentemente da fase em que estiver o processo, o novo regime deve ser aplicado por ser manifestamente mais favorável. Essa aplicação passa necessariamente pela possibilidade que se dá ao arguido de beneficiar de um novo requisito que, se satisfizer, impede a sua punição por factos pelos quais, antes, seria sempre sujeito a julgamento porque não dependiam da condição que agora nasceu.
8. O facto negativo referido no despacho não tinha que constar da acusação porque é posterior à sua dedução, não sendo exigida pela lei então em vigor e se, como refere o despacho, tal facto não depende da produção de prova, por ser objectiva a condição de punibilidade, por maioria de razão também não tem que constar da acusação.
9. A não verificação dos pressupostos enunciados no n° 4 do art° 105° do RGIT determina a subsistência de responsabilidade meramente contra-ordenacional e a perda de relevância penal dos factos típicos (falta de entrega da prestação). A punição satisfaz-se com a aplicação da coima.
10. Esta coima já estava prevista anteriormente, no art° 114° do RGIT quando refere " a não entrega desde que os factos não constituam crime", resultando a sua fixação dos critérios definidos no art° 27° do mesmo diploma, sendo os tribunais criminais competentes para a sua aplicação nos termos dos art.38°, 39°, 77° do Dec-Lei 433/82 e art.° 3° do RGIT.
11. Face à entrada em vigor do novo regime manifestamente mais favorável ao arguido, deve-se ordenar a notificação dos arguidos para no prazo de 30 dias efectuar o pagamento das prestações em divida, juros e coima pela sua não entrega no prazo legal (art° 114° e 27° do RGIT).
12. Decorrido esse prazo, se se verificar a regularização da situação tributária objecto do processo, então deverá considerar-se o facto não punível, arquivando-se o processo. Na negativa devem os autos prosseguir para julgamento.
13. Porque assim não fez e ordenou o imediato arquivamento dos autos, o despacho recorrido fez errada interpretação e aplicação do regime mais favorável, violando o disposto no art.° 105° n° 4 alª. b) do RGIT e art° 2° n° 4 do Código Penal, pelo que deve ser revogado e substituído por outro que ordene a notificação dos arguidos para efectuar o pagamento das quantias em divida, junto da Administração Fiscal.”
1.4- Admitido o recurso, os arguidos responderam pugnando pela manutenção do despacho recorrido por concordarem com respectivos fundamentos. 1.5- Recebido nesta Relação, a Exª Srª Procuradora Geral-Adjunta emitiu parecer no sentido de o recurso merecer provimento. 1.6- Na sequência de exame preliminar os autos foram então remetidos à presente conferência. Cumpre apreciar e decidir
II-CONHECENDO
2.1- O âmbito dos recursos encontra-se delimitado em função das questões sumariadas pelo recorrente nas conclusões extraídas da respectiva motivação, sem prejuízo, no entanto, das questões que sejam de conhecimento oficioso , cfr se extrai do disposto no artº 412º nº 1 e no artº 410 nºs 2 e 3 do Código de Processo Penal (c.p.p.) Isto, sem prejuízo do dever de conhecimento oficioso de certos vícios ou nulidades, designadamente dos vícios indicados no art. 410º, n.º2 do CPP[1]. Tais conclusões visam permitir ou habilitar o tribunal ad quem a conhecer as razões de discordância dos recorrentes em relação à decisão recorrida[2] 2.2- No presente recurso estão em apreciação as seguintes questões: a)- A recente alteração legislativa ao artº 105º do RGIT , com a introdução de uma nova alª (b) ao nº4, implica que nos processos crime pendentes por abuso de confiança fiscal o procedimento se considere extinto face à intervenção de uma nova condição objectiva de punibilidade? b) Ou, ao invés, deve defender-se tão somente que os arguidos devem ser notificados para pagamento nas condições ali previstos e, caso não cumpram, o processo prosseguirá seus termos normais ou, se cumprirem, então só nesse caso de extingue o dito procedimento?
O despacho recorrido defende a primeira posição enquanto que o recorrente se posiciona na segunda.
2.3- Esta novel questão tem vindo a ser objecto de aceso debate e a jurisprudência está ainda longe de pacificação.[3] 2.3.1-Na pendência do processo veio a ser publicada a Lei nº 53-A/2006, de 29.12, que no seu artigo 95º veio introduzir, por aditamento de uma nova alínea, (b) ao nº 4 do artigo 105º do RGIT. Regia assim o pretérito artigo 105.° Abuso de confiança (Redacção anterior à lei 53-A/2006, de 29.12): 1 – Quem não entregar à administração tributária, total ou parcialmente, prestação tributária deduzida nos termos da lei e que estava legalmente obrigado a entregar é punido com pena de prisão até três anos ou multa até 360 dias. 2 – Para os efeitos do disposto no número anterior, considera-se também prestação tributária a que foi deduzida por conta daquela, bem como aquela que, tendo sido recebida, haja obrigação legal de a liquidar, nos casos em que a lei o preveja. 3 – E aplicável o disposto no número anterior ainda que a prestação deduzida tenha natureza parafiscal e desde que possa ser entregue autonomamente. 4- Os factos descritos nos números anteriores só são puníveis se tiverem decorrido mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação. E o vigente planteia-se com a seguinte redacção: “Artigo 105º 1. – (…) 2.- (…) 3.- (…) 4 – Os factos descritos nos números anteriores só são puníveis se: a) Tiverem decorrido mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação; b) A prestação comunicada à administração tributária através da correspondente declaração não for paga, acrescida dos juros respectivos e do valor da coima aplicável, no prazo de 30 dias após notificação para o efeito. 5. – (…) 6. Se o valor da prestação a que se referem os números anteriores não exceder € 1000, a responsabilidade criminal extingue-se pelo pagamento da prestação, juros respectivos e valor mínimo da coima aplicável pela falta de entrega da prestação no prazo legal, até 30 dias após a notificação para o efeito pela administração tributária.” Para a solução dos problemas decorrentes da alteração legislativa enunciada , seguiremos de perto os argumentos contidos nos Ac RC de 21/3/2007 ( Relator Félix Almeida) e de 28/03/2007 ( relator Orlando Gonçalves) e também do STJ de 21/2/2007. [4] E que, no essencial, concluem pela seguinte ideia: “Tendo por referência a redacção modificada, o art. 105.º do Regime Geral das Infracções Tributárias (RGIT - aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 05-06), alterado pela redacção introduzida pela Lei do Orçamento de Estado para 2007 (Lei 53-A/2006, de 29-12), é mais favorável para os arguidos, tanto no que toca à possível extinção da punibilidade pelo pagamento (entrega da prestação), como no que concerne à punibilidade da conduta, pelo que, no caso dos autos, atento o disposto no art. 2.º, n.º 4, do CP, é de aplicar o novo regime. Assim sendo, a solução mais curial será ordenar-se a remessa dos autos à 1ª instância, para que aí se proceda à notificação aludida na al. b) do n.º 4 do art. 105.º do RGIT, com a redacção que lhe foi dada pela referida lei, e, após o decurso do prazo de 30 dias aí previsto, se decida pela subsistência ou não da aludida condição de punibilidade.” Esta jurisprudência desenvolve uma linha de raciocínio que não defende ter havido descriminalização, ao contrário do que aconteceu já com as posições assumidas na Relação de Coimbra- Ac de 18/04/2007- (para o qual a nova lei (53-A/2006) incluiu uma condição de punibilidade, seja positiva seja de exclusão, do crime de abuso de confiança fiscal a qual (art. 2º, n.º 4, o CPP) e só pode ter como efeito a aplicabilidade ou inaplicabilidade, imediata, da sanção penal contida na norma incriminadora ) , de 28-03-2007 (A lei 53-A/2006, de 29/12 ao introduzir uma nova condição de punibilidade pelo crime de abuso de confiança fiscal (al. b), do n.º 4, do art.º 105º, do RGIT) limitou o campo de actuação do preceito incriminador (n.º 1 do referido artigo) despenalizando as condutas que não preencham este requisito. E que se desenrolam em síntese pela forma seguinte: “O aditamento da alínea b) ao n.º4 do artigo 105º do RGIT tem gerado controvérsia nos tribunais, parecendo-nos haver quem entenda que criando-se por ela uma nova situação contraordenacional, a alteração conduziu à despenalização das situações anteriores à vigência da Lei n.º53-A/2006 face à diversa natureza dos crimes e das contra-ordenações, ao princípio da legalidade expresso no art.º 2º do DL. n.º 433/82, de 27/10 e à ausência duma norma transitória aplicável aos factos anteriores à nova lei. Efectivamente a situação criada é muito semelhante àquela que se encontra prevista no n.º6 do mesmo preceito para prestações em dívida de valor não superior a €2.000. Sobre este segmento legal tem-se entendido tratar-se duma clausula [objectiva] de extinção da responsabilidade criminal, subsistindo sempre uma responsabilidade contraordenacional1. Quanto a nós o aditamento configura uma condição [objectiva] de exclusão de punibilidade, ou seja, o crime não será punido se o agente repuser [em 30 dias contados da notificação a fazer-lhe] a situação tributária acrescida dos respectivos juros « e do valor da coima aplicável». Mas ao dispor como o faz, i é, ao fazer apelo «ao valor da coima aplicável» parece não haver dúvida de que o preceito é inovador, i é, parece ter criado uma situação nova de responsabilidade contraordenacional subjacente à responsabilidade criminal. Então, como resolver a questão relativamente às situações anteriores na falta duma norma transitória? A despenalização não nos parece que esteja presente nem na letra da lei nem no espírito do legislador. Mas também seria injusto que relativamente a estas situações [ i é, as anteriores à nova redacção do preceito ] se não desse a oportunidade ao agente de regularizar em termos semelhantes a sua situação beneficiando duma lei que certamente lhe é mais favorável. Efectivamente, tendo as condições [objectivas] de punibilidade natureza substantiva coloca-se quanto a elas a questão da determinação da lei mais favorável já que , como ensina o Prof. Cavaleiro de Ferreira [ Direito Penal Português, ed. Verbo, 1981] “(...) o carácter mais ou menos favorável da norma penal não depende apenas da sanção (...) mas de todo o seu regime: número e qualidade dos elementos constitutivos do tipo, disciplina das causas de justificação e de exculpação, regulamentação das condições de punibilidade (...)”. Também Teresa Beleza [ Direito Penal, II, pp. 329/334] esclarece que as condições objectivas de punibilidade são exteriores ao tipo. Ou como se refere no acórdão desta Relação proferido no processo 232/04.2IDGRD e relatado pelo desembargador Orlando Gonçalves, “as condições objectivas de punibilidade situam-se fora do tipo de injusto(...)”. A solução estará, então, a nosso ver , em se proceder a uma interpretação extensiva [ que nos parece no caso não proibida pelo art.º 1º/3 do Código Penal ] estendendo-se a condição criada a tais situações [ i é, às anteriores à alteração legislativa ] mas sem que atribua a natureza de «coima» àquele quantitativo que, de acordo com a dita alínea b), acresce ao montante das prestações em falta e respectivos juros. Ou seja, o facto criminoso não será punido relativamente às prestações comunicadas à administração tributária se o agente, em 30 dias contados da notificação a fazer-lhe, pagar as prestações em débito acrescidas dos respectivos juros e duma quantia equivalente à que seria devida se duma situação contraordenacional se tratasse. É que no espírito do legislador não esteve qualquer propósito de descriminalização. Antes, terá estado tão só o propósito de incentivar o sujeito passivo relapso em repor a situação tributária dando mais uma oportunidade àqueles que prestaram a declaração tributária [ e só a estes ... ] à administração fiscal mas não fizeram a entrega da prestação. Mas agora sem limitação de qualquer valor [em oposição ao n.º6 do dito artigo], para regularizarem a sua situação fiscal, pagando a dívida acrescida de juros e dum valor equivalente à coima referida. Para as situações anteriores à nova lei a expressão « e do valor da coima aplicável» apenas terá o significado útil da determinação duma quantia equivalente à da nova situação contraordenacional. Por conseguinte, tal como já foi entendido nos acórdãos desta Relação proferidos nos processos 232/04.2IDGRD, 1728/06-5 e 825/98.5TALRA, não se conhecerá de momento do objecto do recurso , antes devendo previamente dar-se cumprimento à notificação prevista na alínea b) do n.º4 do art.º 105º do RGIT . Porque a quantia correspondente à coima referida no preceito deve ser determinada pela Administração Tributária, será ela a notificar os arguidos nos termos e para os efeitos da referida disposição legal, oportunamente comunicando a este tribunal se os mesmos pagaram ou não pagaram a s importâncias em causa. “ 2.3.2-Para nós, o argumento decisivo , porém, e para além do antes se disse, poderá resumir-se desta forma: Não faz sentido que, se foi intenção do legislador descriminalizar quando e enquanto a notificação não seja efectuada, tenha mantido a redacção do nº 6 do artº 105º e que, excepto quanto à referência ao montante não superior a 1000 euros, por força das coisas, tenha acrescentado exactamente o mesmo ao nº 4 através da alª b). Isto é, seria contraditório, senão mesmo materialmente inconstitucional, que entendesse não haver crime para factos de maior gravidade (por dividas fiscais acima dos 1000 euros) enquanto não houvesse notificação nos termos da alª b) d nº 4 ou, havendo-a, não tivesse decorrido ainda o prazo de pagamento e , para factos relativos a dívida fiscal não superior a 1000 euros entendesse o contrario, isto é, existir crime até ao momento em que fosse feito o pagamento só se extinguindo com o pagamento. Seria uma contradição intolerável e até imoral, inaceitável de acordo com as inultrapassáveis regras da hermenêutica, tanto mais num momento e conjuntura de politica fiscal em que tudo parece exigir-se cada vez mais ao contribuinte, pelo que aceitar de barato uma nova “esponja legislativa de impunidade” não é a nosso ver o escopo que foi prosseguido pelo legislador. O momento histórico em que o novo preceito surge situou-se num quadro de implementação de regras fiscais que visaram levar à melhoria acentuada de cobrança de receitas, face às conhecidas e notórias dificuldades orçamentais do país e aos compromissos de estabilidade fiscal e orçamental exigidos internacionalmente perante a EU, o que é, no entanto, compaginável perfeitamente com a facilitação dos pagamentos devidos. Mas daí, a concluir que houve descriminalização intencional, num quadro em que o Estado Português tem vindo a exigir cada vez mais o respeito do contribuinte pelo cumprimento dos seus deveres fiscais, melhorando significativamente a sua máquina de cobrança e os mecanismos da sua efectivação, é um passo de gigante, mas trôpego. Por esta razão não faz sentido que, depois de tantos sacrifícios exigidos ao país para diminuição rápida do desequilíbrio orçamental, viesse agora o legislador intencionalmente , ainda que por meio de um mecanismo de facilitação de pagamento, alterar esse escopo sob a capa de uma, aparentemente, deficiente técnica legislativa, dando de barato o que pretenderia receber sem maiores garantias de cobrança efectiva. Como pensar, pois, o que acontecerá aos processos extintos se após notificação o contribuinte não pagar? Volta tudo ao princípio? Não podemos pois aceitar esta interpretação radical, ainda que apoiada em respeitosos argumentos de retórica dogmática sobre a natureza e estrutura das condições de punibilidade. Aquela comparação de preceitos ( nº6 e alª b) do nº4) é a nosso ver decisiva para fazer cair por base a tese da extinção por descriminalização. Embora arrisquemos dizer que, com a introdução da alª b) ao nº 4, o nº 6 até nem seria necessário pois aquela seria completamente abrangente de todas as situações. 2.3.3 - Posto isto, há que revogar o despacho recorrido, e ordenar-se na 1ª instância que a administração fiscal efectue aquela notificação em falta. Se for feito o pagamento, então, confirmado que seja, os autos serão arquivados por extinção do procedimento criminal. Não sendo efectuado o pagamento no prazo indicado, então os autos prosseguirão para julgamento.
III- DECISÃO
3.1- Pelo exposto, julga-se procedente o recurso do Ministério Público, revoga-se o despacho recorrido e determina-se que os autos baixem à 1.ª instância para cumprimento daquela notificação a efectuar pela administração fiscal aos arguidos.
Sem tributação
Lisboa, 3 de Julho de 2007
Os Juízes Desembargadores (texto elaborado em suporte informático , revisto e rubricado pelo relator artº 94º do CPP) Agostinho Torres José Adriano Vieira Lamim
_______________________________________________________________ [1] vide Ac. STJ para fixação de jurisprudência 19.10.1995 publicado no DR, I-A Série de 28.12.95 [2] vide ,entre outros, o Ac STJ de 19.06.96, BMJ 458, págª 98 e o Ac STJ de 13.03.91, procº 416794, 3ª sec., tb citº em anot. ao artº 412º do CPP de Maia Gonçalves 12ª ed; e Germano Marques da Silva, Curso Procº Penal ,III, 2ª ed., págª 335; e ainda jurisprudência uniforme do STJ (cfr. Acs. do STJ de 16-11-95, in BMJ 451/279 e de 31-01-96, in BMJ 453/338) e Ac. STJ de 28.04.99, CJ/STJ, ano de 1999, p. 196 e jurisprudência ali citada), bem como Simas Santos / Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 5ª ed., p. 74 e decisões ali referenciadas. [3] Entre outros e para além da jurisprudência que indicaremos no texto do acórdão ( do STJ e desta Relação de Lisboa), vide a posição assumida ( no sentido da descriminalização) nos Ac Relação de Coimbra 18/04/2007, de 28-03-2007 ( Gabriel Catarino) e de 28-03-2007- (Ataíde das Neves) e também o artigo de opinião do analista PEDRO DURO | JORNAL DE NEGÓCIOS | 27.03.2007 [4] Para além dos arestos indicados, cfr ainda o Ac TRL 5ª Sec 20-03.2007 procº 1092/06 e 12-04-2007- procº 3360/06. |