Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
9779/12.6YYLSB.L1-2
Relator: FARINHA ALVES
Descritores: CONTRATO DE ARRENDAMENTO
ATRIBUIÇÃO DA CASA DE MORADA DE FAMÍLIA
RESOLUÇÃO DO CONTRATO
FALTA DE PAGAMENTO DA RENDA
NRAU
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 07/11/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: O acordo de atribuição do uso da casa de morada de família, que foi estabelecido no âmbito da acção de divórcio e ali homologado por decisão judicial, consubstancia um contrato de arrendamento.
O senhorio pode socorrer-se dos meios previstos nos art. 1084.º, n.º 1 do C. Civil e 9.º, n.º 7 e 15.º, n.º 1 da Nova Lei do Arrendamento Urbano (NLAU), aprovada pela Lei n.º 6/2006 de 27-02, para fazer cessar esse contrato.
(FA)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: O presente recurso de apelação vem interposto do despacho que, com fundamento em falta de título executivo, indeferiu liminarmente a execução para entrega de coisa certa que Nuno requereu contra Marina.

O apelante remata as suas alegações com as seguintes conclusões:

1.ª- O Acordo entre exequente e executada em que aquele atribui a esta, mediante uma renda, a fracção autónoma pertença daquele que constitui o 4º andar letra A dos autos, cuja entrega é objecto desta execução, configura um contrato de arrendamento escrito em Acta, homologado por um Juiz;
2.ª- E é um contrato de arrendamento, não só em face das disposições dos artigos 1022° e 1023° do C. Civil, mas também contendo todos os elementos essenciais do arrendamento, em termos de substância e de forma escrita: artigos citados e artigos 219º e segs. e 1029º do C. Civil, este "a contrário".
3ª- Existe, pois, conforme resulta da Acta do divórcio, um normal contrato de arrendamento escrito, tendo como objecto uma fracção autónoma pertencente ao exequente, obtido ao abrigo da autonomia privada das partes, uma convergência de vontades livres, de que resultou ficar inquilina a executada ex-mulher daquele exequente,
4ª- E não uma atribuição, pelo Tribunal, de casa de morada de família, em consequência de divórcio, como se afirma na decisão recorrida;
5ª- Nem no Acordo se refere uma casa de morada de família, mas sim uma fracção autónoma certa e determinada;
6ª- Dele não pode extrair-se que se esteja perante "uma situação especial ditada por propósitos de solidariedade e protecção ..." como também se diz, sem razão, na mesma decisão ora em recurso;
7ª- Aliás, a invocação do disposto nos n.°s 1 e 2 do artigo 1793º do C. Civil, nos termos em que a faz o M.º Juiz "a quo" não é correcta, nem consente os argumentos que da sua interpretação a decisão recorrida extrai;
8ª- As disposições legais contidas naquele artigo 1793º conduzem a que em qualquer caso, o Acordo entre o exequente e a executada, no concreto divórcio de ambos, que está certificado nos autos, constitua um verdadeiro arrendamento, pois aquele artigo no seu n.º 1 refere que "pode o Tribunal dar de arrendamento a qualquer dos cônjuges a seu pedido a casa de morada de família ..." e no seu n.º 2 que até tal "arrendamento fica sujeito às regras do arrendamento para habitação...", quanto mais o Acordado pelas partes.
9ª- E as normas seguintes desse mesmo n.º 2 nada têm a ver com o que ocorreu no caso concreto do divórcio das partes nesta execução : o tribunal não atribuiu casa de morada de família nem definiu as condições do contrato, nem aqui se trata de o fazer caducar a "requerimento do senhorio...";
E o disposto no n.º 3 do mesmo artigo 1793º não existia quando do divórcio das partes e do Acordo do arrendamento dos autos, pois só foi ditado pela Lei nº 61/2008 de 31 de Outubro.
10ª- Também não é correcto afirmar, conforme consta da decisão recorrida, que " a norma do artigo 1793º nº 2 é complementada com o processo de jurisdição voluntária previsto no artigo 1413º, cuja decisão pode ser sempre alterada com fundamento em circunstâncias supervenientes que justifiquem a alteração (artigo 1411º do C.P.C.)",
Porque estes artigos, contendo matéria adjectiva apenas se referem aos meios processuais de obter a atribuição da casa de morada de família, a transferência desse direito e a alteração do mesmo direito, sendo certo que no caso concreto da presente execução o fundamento é a resolução do arrendamento por falta de pagamento de rendas – primeira das obrigações do locatário, conforme artigo 1038º do C. Civil;
11ª- Para mais, quanto muito, a executada poderia, se quisesse, ter pedido a alteração do contrato de arrendamento, designadamente do valor da renda, mas não o fez, tendo deixado, isso sim, de a pagar, desde Fevereiro de 2010;
12ª- E os relevantes valores de solidariedade e de protecção da família, também referidos na decisão recorrida, foram acautelados na homologação pelo Juiz do arrendamento dos autos e continuaram a sê-lo com a possibilidade, que à executada assistia, de pedir a alteração do contrato, inclusive do valor da renda;
Acresce que as disposições da Lei n.º 6/2006 são hierarquicamente superiores à lei processual e posteriores ao artigo 1793º do C. Civil;
13ª- A locação de um imóvel origina direitos e deveres estruturalmente obrigacionais: o arrendamento é um contrato sinalagmático e, nestes, por natureza e força da lei, nomeadamente artigo 428º do C. Civil, o não cumprimento de uma obrigação por uma das partes confere à outra o direito de não cumprir a obrigação respectiva;
E o que o exequente pretende, com a presente execução, mais não é do que ser desonerado do seu dever de continuar a proporcionar à executada, incumpridora, o gozo da coisa;
14ª- Ao contrário do que se afirma na decisão recorrida, não existe qualquer "situação especial em que relevem valores", os quais já foram acautelados quando do Acordo do arrendamento, até pela homologação de tal Acordo por um Juiz.
15ª- E as normas da Lei n.° 6/2006 de 27 de Fevereiro e o seu n.° 15 n.° 1 ai. e) que o exequente pretende ver aplicada na execução são posteriores, são uma evolução na história do regime do Arrendamento Urbano;
16ª- O exequente dispõe, portanto, nesta execução, de um título executivo, legal e próprio.
17ª - A decisão recorrida, ao indeferir liminarmente o requerimento executivo e declarar extinta a execução, com os fundamentos nela referidos, violou directamente a norma do art2 15°–, n° 1, ai. e) da Lei nº 6/2006, de 27 de Fevereiro, que devia ter aplicado e não aplicou, e, por erro de interpretação, as normas dos n°s 1 e 2 do art. 1793º do Código Civil, que pretendeu serem aplicáveis ao Acordo de arrendamento, celebrado em processa de divórcio por mútuo consentimento, Acordo esse celebrado na economia da autonomia privada e livre das partes, com todos os requisitos dos artigos 1022º e 1023º do C. Civil.
A decisão recorrida também enferma de incorrecta interpretação e aplicação do disposto nos artigos mencionados no texto da alegação ora apresentada, designadamente nos artigos 428º, 1022º e 10232º do C. Civil e artigos 1411° e 1413º do C.P.Civil.
18ª- Nestes termos, e com o douto suprimento de V. fica., deve ser dado provimento ao recurso, revogando-se a decisão recorrida e ordenando-se o prosseguimento da execução.

A pelada contra-alegou, defendendo a confirmação do julgado.
Defende, designadamente, que a atribuição da casa de morada de família, feita no âmbito do processo de divórcio, consubstancia a constituição de um direito de habitação, regulado no art. 1484.º do C. Civil. E que os valores de protecção à família, que justificam o regime estabelecido no art. 1793.º do C. Civil, não ficam assegurados se for determinada a entrega do imóvel uma vez que a apelada não dispõe de outra casa para residir com os filhos ainda menores.
Alega ainda que foi por atraso do exequente no pagamento da pensão de alimentos devida aos filhos que deixou de pagar a renda, tendo invocado a compensação de créditos.

Sendo o objecto dos recursos delimitado pelas respectivas conclusões, ressalvadas as questões que sejam do conhecimento oficioso do tribunal, na presente apelação está, fundamentalmente, em causa saber o acordo de atribuição do uso da casa de morada de família estabelecido no âmbito da acção de divórcio e ali homologado por decisão judicial, consubstancia um contrato de arrendamento.
E, na afirmativa, se o senhorio pode socorrer-se dos meios previstos nos art. 1084.º, n.º 1 do C. Civil e 9.º, n.º 7 e 15.º, n.º 1 da Nova Lei do Arrendamento Urbano (NLAU), aprovada pela Lei n.º 6/2006 de 27-02.

Com interesse para a decisão resultam dos autos os seguintes factos:

Os, ora apelante e apelada, foram casados entre si, no regime de separação de bens.
O casal teve instalada a sua vida familiar na casa identificada no requerimento executivo, da exclusiva propriedade do cônjuge marido, ora apelante.
Esse casamento foi dissolvido por divórcio decretado por sentença de 05 de Maio de 2006, proferida em processo convolado para divórcio por mútuo consentimento.
Nessa sentença foram homologados os acordos firmados pelos cônjuges em relação ao exercício do poder paternal, ao destino da casa de morada de família, à prestação de alimentos e ainda em relação à atribuição de determinados bens móveis.
Em relação ao exercício das responsabilidades parentais ficou acordado, em síntese, que as crianças ficavam confiadas aos cuidados e guarda da mãe, com regime de visitas ao pai.
Quanto a alimentos o pai obrigou-se a contribuir com a quantia mensal de € 600,00 (300,00 por cada menor), e a pagar metade da mensalidade dos colégios e os encargos com o seguro de saúde Médis relativamente a um dos filhos.
Em relação ao destino da casa de morada de família, foi acordado:
«O quarto andar letra A fica atribuído a título definitivo ao cônjuge mulher mediante o pagamento de uma renda ao requerido no valor de € 300, actualizável anualmente de acordo com as portarias legais, suportando ainda a requerente o pagamento do condomínio.
O réu compromete-se a sair da casa de morada de família no prazo de trinta dias a contar de hoje
No dia 22 de Dezembro de 2011, o ora autor requereu a notificação judicial avulsa da ora ré, nos termos que constam de fls.15 e seguintes, invocando que o acordo de atribuição da casa de morada de família consubstanciava um contrato de arrendamento e comunicando a resolução desse contrato com fundamento na falta de pagamento das rendas, desde a referente ao mês de Fevereiro de 2010, no montante mensal de € 325,90.
Essa notificação foi efectuada no dia 05 de Janeiro de 2012.

O Direito

Na presente execução, e no presente recurso, está fundamentalmente em causa, como se viu, saber se o acordo de atribuição do uso da casa de morada de família, que foi estabelecido no âmbito da acção de divórcio e ali homologado por decisão judicial, consubstancia um contrato de arrendamento.
Questão que, segundo se julga, deve ter resposta afirmativa.
Desde logo, em termos formais, é esse o tipo de contrato previsto no art. 1793.º, n.º 1 do C. Civil a norma de direito material que regula essa atribuição. Nos termos do n.º 1 desse artigo, o tribunal pode dar de arrendamento, a pedido de qualquer dos cônjuges, a casa de morada de família, quer seja comum, quer seja própria do outro. E, nos termos do n.º 2, esse arrendamento fica sujeito às regras do arrendamento para habitação.
Ou seja, é o próprio legislador a estabelecer que a atribuição da casa de morada de família nos termos do art. 1793.º do C. Civil resulta no estabelecimento de uma relação jurídica de arrendamento, sujeita às regras do arrendamento para habitação.
É certo que a lei prevê que, na falta de acordo dos interessados, seja o próprio tribunal a dar de arrendamento e a definir as condições do contrato, podendo ainda fazê-lo caducar, quando circunstâncias supervenientes o justifiquem. E que o regime fixado pode ser alterado nos termos gerais da jurisdição voluntária. Mas isso tem apenas a ver com a constituição, ou com determinadas possibilidades de modificação, da relação contratual que a própria lei qualifica de arrendamento e sujeita, na parte não directamente regulada, às regras do arrendamento para habitação, não descaracterizando a natureza contratual dessa relação jurídica.
Depois, e como o apelante começou por evidenciar, a relação contratual traduzida na atribuição à apelada, com destino à sua habitação, do gozo da casa, que é propriedade do apelante, contra o pagamento da quantia mensal de € 300,00, actualizável anualmente de acordo com as portarias legais, consubstancia, materialmente, um contrato de arrendamento, contendo os elementos essenciais desta figura contratual, definida nos art. 1022º e 1023º do C. Civil. Pois que dela resulta para uma das partes a obrigação de proporcionar à outra o gozo temporário de um bem imóvel, mediante retribuição.
E se a atribuição da casa de morada de família nos termos do art. 1793.º do C. Civil, tal como a atribuição do direito ao arrendamento, nos termos do art. 1105.º do mesmo Código, assenta em razões de protecção à família, ponderando também os interesses dos filhos do casal, essas razões manifestam-se, fundamentalmente, no próprio acto da atribuição, que pode ser imposto ao proprietário da casa, e na fixação das respectivas condições, que podem não se ajustar inteiramente às regras do mercado, e que podem ser alteradas com fundamento em circunstâncias supervenientes que o justifiquem.
Mas, dentro desses limites, o regime contratual estabelecido vigora plenamente entre os ex-cônjuges, não se comunicando aos filhos menores do casal, e obriga nos seus precisos termos. Ou seja, as condições estabelecidas no contrato, pelas próprias partes ou pelo tribunal, são plenamente vinculativas para as partes, que apenas podem obviar ao seu cumprimento obtendo a sua alteração que, na falta de acordo, apenas pode ser fundada em circunstâncias supervenientes – art.. 1793.º, n.º 3 do C. Civil e art. 1411.º do CPC.
Assim sendo, nos termos do referido acordo de atribuição da casa de morada de família o ora apelante ficou obrigado a assegurar à apelada, para habitação desta, o gozo da casa que foi de morada de família, de que é o único proprietário. O que, nos termos do art. 1031.º, al. b) do C. Civil, corresponde à principal obrigação do senhorio emergente do contrato de arrendamento. Por seu turno, nos termos do mesmo acordo, a ora apelada ficou obrigada a pagar a renda mensal estabelecida. O que, nos termos do art. 1038.º. al. a) do mesmo Código, corresponde à principal obrigação do inquilino emergente do contrato de arrendamento.
Estando, assim, em causa uma relação jurídica de arrendamento. Ficando, do mesmo passo, afastada a possibilidade, defendida pela apelada, de se reconhecer aqui a constituição de um direito de habitação, definido no art. 1484 do C. Civil.
Uma vez aceite que o acordo de atribuição da casa de morada de família destes autos consubstancia um contrato de arrendamento, segue-se que, nos termos do art. 1083.º, n.ºs 1 e 3 do C. Civil, a falta de pagamento de rendas por período superior a três meses constitui fundamento para a sua resolução. Sendo que, no caso, a resolução foi fundada na falta de pagamento de rendas vencidas desde a referente ao mês de Fevereiro de 2010 até ao dia 22 de Dezembro de 2011, envolvendo quase dois anos de rendas em falta.
Mostrando-se, assim, ao menos formalmente, verificado o fundamento de resolução do contrato de arrendamento que foi invocado, traduzido na falta de pagamento de rendas.
Assim sendo, e uma vez que são aplicáveis as regras do arrendamento para habitação, não se vê fundamento para recusar ao senhorio a possibilidade de fazer operar essa resolução extrajudicialmente, nos termos dos art. 1084.º, n.º 1 do C. Civil e 9.º, n.º 7 e 15.º, n.º 1 da NLAU, aprovada pela Lei n.º 6/2006 de 27-02.
Pois que é essa a forma normal de fazer operar a resolução do contrato de arrendamento com base na falta de pagamento de rendas. E a sua utilização não é excepcionada na lei, que se limita a remeter para as regras do arrendamento para habitação, onde aquele regime de resolução tem aplicação.
E, nos termos do art. 15.º n.º 1, al. e) da NLAU, aprovada pela Lei n.º 6/2006 de 27-02, o contrato de arrendamento e o comprovativo da comunicação prevista no n.º 1 do art. 1084.º do C. Civil, constituem título bastante para servir de base à execução para entrega de coisa certa, constituída pelo bem imóvel sobre o qual incidiu o arrendamento.
Concluindo-se, assim, que a presente execução foi fundada em título executivo bastante, não podendo ser mantida a decisão de indeferimento liminar.
A apelada também invoca a compensação da sua dívida de rendas com a dívida do exequente relativa a alimentos, mas essa é uma questão que não cumpre apreciar no âmbito do presente recurso, onde apenas estava em causa saber se a execução foi requerida com base em título executivo bastante, o que passava por saber se o acordo de atribuição da casa de morada de família configura um contrato de arrendamento.
Questões já apreciadas.

Nos termos expostos acordam em julgar procedente a apelação, revogando a decisão recorrida, e determinando a sua substituição por outra que dê seguimento à execução.
Custas pela apelada.

Lisboa, 11-07-2013

Farinha Alves
Tibério Silva
Ezagüy Martins