Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1083/2008-2
Relator: FARINHA ALVES
Descritores: CAUSA DE PEDIR
AMPLIAÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 04/17/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Sumário: I - Ao deduzir a sua pretensão em juízo, o demandante tem de identificar bem aquilo que pede, formulando o pedido, e de indicar os respectivos fundamentos, sendo estes a causa de pedir. Esta é sempre constituída por factos concretos, e não por conclusões, ou categorias abstractas.
II - Nas acções fundadas em incumprimento contratual, só relevam como causa de pedir as concretas situações de incumprimento que foram invocadas.
III - A posterior invocação de outra situação concreta de incumprimento contratual, como fundamento da ampliação do pedido de indemnização, traduz também uma ampliação da causa de pedir que, nos termos do art. 273.º n.º 1 do CPC, só é admissível na réplica.
(FA)
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa

Nos presentes autos de acção declarativa de condenação com processo ordinário, A, Lda demandou B, pedindo que este fosse condenado a pagar-lhe a quantia de € 12 852,15 acrescida de juros de mora à taxa legal, desde 10-07-2002 até pagamento, liquidados até à propositura da acção no montante de € 514,08.

Alegou para tanto, em síntese:

- Exerce a actividade de elaboração de projectos na área da construção civil e execução de trabalhos de construção por administração ou empreitada;
- No exercício dessa actividade, em Julho de 1999, elaborou uma proposta que respeitava a um orçamento para projectos e obras a realizar num andar propriedade do Réu;
- Tal proposta, no valor global de Esc. 3.550.000$00 mais IVA, foi aceite pelo Réu;
- As condições de pagamento propostas eram:
30% como adiantamento;
40% com a conclusão dos toscos;
30% com a conclusão dos trabalhos;
- Os trabalhos foram Iniciados em finais de Julho, tendo a Autora recebido, a título de adiantamento, por duas vezes, o montante total de Esc. 910.256$00.
- A obra sofreu atrasos provocados pelo não licenciamento da obra pela Câmara, IPPAR, EPAL e EDP, e também pela utilização da casa para acesso ao telhado e estaleiro de apoio às obras nas partes comuns do prédio.
- No princípio de 2000 o Réu solicitou alterações ao orçamento, de que resultaram trabalhos a mais e a menos que foram objecto de acordo verbal;
- Em Julho de 2000 a autora elaborou um mapa de trabalhos e pagamentos a mais e a menos que apresentava um saldo a favor da autora no montante de Esc. 2.027.244$00 mais IVA.
- O Réu não quis assinar o mapa de trabalhos a mais e a menos, recusou-se a efectuar mais pagamentos enquanto as obras não estivessem concluídas e não respondeu às cartas da A. de 25-08, 18-09-2000, nem a outra posterior.
Por isso, a A. requereu, a 22-04-2002, a sua notificação judicial avulsa, designadamente para pagar o montante de Esc. 2.202.244$00, apurado nos termos do “mapa de trabalhos e pagamentos” que acompanhou a notificação.

Citado, o Réu contestou, opondo em síntese:

- Pagou as quantias que lhe foram pedidas a título de adiantamento, perfazendo Esc. 1.065.000$00;
- O prazo de execução das obras era de 75 dias mas, dois anos após a celebração do contrato, as obras contratadas não se achavam realizadas e encontravam-se abandonadas pela autora;
- Desde o início da obra, a autora abandonou várias vezes os trabalhos, vindo a fazê-lo definitivamente em Junho de 2001;
- À data da interrupção dos trabalhos, os trabalhos executados pela autora estavam incompletos e com desconformidades e defeitos, que refere;
- O Réu nunca aceitou o mapa de trabalhos a mais e a menos e pagamentos, pelas razões que enumera;
- Os trabalhos executados pela autora não ultrapassam o valor de Esc. 1.057.000$00, incluindo Esc. 29.000$00 de trabalhos a mais.
- Em Julho de 2001, o Réu viu-se obrigado a corrigir e a prosseguir as obras por administração directa;

E deduziu reconvenção pedindo que a A. fosse condenada a pagar-lhe a quantia de € 14 793,40 sendo:
- € 39,90 a título de diferença entre o que pagou a título de adiantamento e o valor dos trabalhos efectivamente realizados pela A.;
- € 13.500, 00 pela privação do uso e fruição do andar, e,
- € 1.243,50 a título de acréscimo de custos para corrigir e completar a obra.

Alegou para tanto, em síntese:

O incumprimento do contrato pela autora teve as seguintes consequências:
- Privou o Réu do uso e fruição do andar, bem como do arrendamento do mesmo, durante pelo menos 18 meses, tendo o andar valor locativo não inferior a € 750,00/mês.
- Obrigou o Réu a recorrer, a partir de Julho de 2001, a outros profissionais do ramo para realizar as obras, tendo de suportar custos superiores, por efeito da inflação, em medida não inferior a 10%;
- Obrigou o Réu a suportar custos adicionais para correcção de obras realizadas com deficiência e com a limpeza do local;
- Obrigou o réu a prolongar a sua residência em casa de familiares;

A A. replicou.

Os autos prosseguiram para julgamento, realizado com registo da prova produzida.
No decurso da audiência o Réu apresentou um articulado superveniente de ampliação do pedido reconvencional.
Alegando a falta de licenciamento das obras realizadas no seu andar, pediu que a A. reconvinda fosse condenada a pagar-lhe uma indemnização correspondente a todos os danos, encargos e despesas em que este viesse a incorrer para obter a plena legalização do seu andar, e pela privação do uso do andar que se viesse a verificar, tudo em montante a liquidar posteriormente.
Pediu ainda a fixação de sanção pecuniária compulsória, nos termos do art. 829.º-A, n.º 4 do C. Civil, quer em relação ao pedido inicial, quer em relação ao resultante da ampliação.

Ouvida a parte contrária, que se opôs, foi aquela pretensão indeferida.

Inconformado, o reconvinte agravou do assim decidido tendo apresentado alegações onde formula as seguintes conclusões:

1 – A causa de pedir do Pedido Reconvencional é o incumprimento do contrato de empreitada reproduzido na Matéria Assente;
2 – A causa de pedir formulada pelo Réu/Reconvinte na Contestação/Reconvenção não se limita à mora e ao cumprimento defeituoso, abrangendo também, de forma expressa e inequívoca, o incumprimento definitivo, ainda que parcial.
3 – Ainda que se entenda – o que não se concede – que a causa de pedir indicada no Pedido Reconvencional se limita ao cumprimento defeituoso, o incumprimento da obrigação contratual de promover o licenciamento da obra constitui "defeito de direito", pelo que radicaria nessa mesma causa de pedir e não envolveria outra causa petendi.
4 – A ampliação do pedido reconvencional, na medida em que se refere à quantificação dos danos (novos danos) resultantes do incumprimento, está fundamentada nessa mesma (previamente alegada no pedido inicial) causa de pedir.
5 – Estando em causa a ampliação do pedido de indemnização por danos resultantes do mesmo incumprimento/causa de pedir, tal ampliação é consequência e desenvolvimento do pedido primitivo.
6 – O indeferimento da ampliação do Pedido Reconvencional envolve uma decisão antecipada – recusa - de considerar factos essenciais para a procedência da pretensão formulada Réu/Reconvinte, sem que tal decisão tenha sido precedida de debate de facto, debate de Direito e decisão sobre o mérito substancial.
 7 -- O Despacho recorrido violou os artigos 273°, n° 2, 2a parte e 264°, n° 3, do C.P.C.

Pelo que o douto Despacho de 15 de Fevereiro de 2007 deve ser Revogado (….) e substituído por decisão que admita a ampliação do pedido nos termos formulados pelo Réu/Reconvinte.

A agravada, remetendo para os fundamentos do despacho recorrido, defendeu a confirmação do julgado

Concluído o julgamento foi a matéria de facto respondida pela forma que consta de fls. 747-764, que foi objecto de reclamações por parte do Réu, apreciadas por despacho de fls. 769-771.

Seguiu-se a sentença, com o seguinte dispositivo:

«Termos em que se julga:
- parcialmente procedente por provada a acção e em consequência condena-se o Réu a pagar à autora:
a. A quantia de € 7 140,23, acrescida de juros de mora vencidos calculados à taxa de 12% desde 10.07.02. até 29.09.05., à taxa de juro aplicada pelo Banco Central Europeu á sua mais recente operação principal de refinanciamento efectuada antes do 1º dia de Janeiro ou de Julho, consoante se esteja respectivamente no 1° ou no segundo trimestre do ano civil, acrescida de 7%, taxa de juro esse que é divulgada no DR, 2ª Série, por aviso da Direcção Geral do Tesouro desde 30.09.05. até à presente data e os vincendos até integral pagamento, calculados à taxa de juro supletiva de juros moratórios relativamente a créditos de que sejam titulares empresas comerciais singulares ou colectivas que vigorar;
b. O valor da percentagem de realização dos trabalhos referidos nos items 2, 5 e 6 que, em liquidação em execução de sentença, se apurar seja superior a, respectivamente, 10%, 60% e 60% e o valor dos trabalhos referidos no item 10, a apurar também em liquidação em execução de sentença, quantias essas acrescidas de juros à taxa de juro supletiva de juros moratórios relativamente a créditos de que sejam titulares empresas comerciais singulares ou colectivas que vigorar, desde a data da liquidação,
absolvendo-o do mais peticionado;
- totalmente improcedente o pedido reconvencional, absolvendo-se a autora da sua totalidade.»

Inconformado, o R. apelou do assim decidido, tendo apresentado alegações, com onze extensas páginas de “conclusões”, que rematou com o seguinte pedido:

«Assim, deve a Sentença recorrida ser revogada e substituída por Sentença que:
a) tenha em conta a factualidade efectivamente provada, conforme o alegado na presente Apelação;
b) reduza o valor global da obra realizada pela Autora, conforme o alegado, a matéria provada e os critérios legais que obrigam a ponderar o desvalor global da obra incompleta e defeituosa;
c) proceda à compensação entre esse valor global e o valor que o Réu/Recorrente já pagou à Autora;
d) julgue procedente o pedido de indemnização do Réu/Recorrente pelo acréscimo de custos em que incorreu para completar a obra em falta pela Autora, sendo de considerar um valor não inferior a 10% do valor contratual das obras em falta, conforme peticionado;
e) julgue procedente o pedido de indemnização do Réu/Recorrente por privação de uso e/ou fruição do andar, a fixar, conforme peticionado, à razão de 750 € por mês para um período de privação de 18 meses;
f) julgado procedente o Agravo pendente, seja também julgado procedente o pedido de indemnização correspondente ao encargo necessário para a legalização do andar do Réu, considerando, para já, o valor de 5035 €, acrescido do valor de eventuais projectos e obras de correcção que eventualmente venham a ser ordenadas pelas autoridades competentes;
g) que ao valor global das indemnizações, resultante das alíneas anteriores, aplique os juros legais;
h) que aplique as regras legais em matéria de responsabilidade por custas;

A apelada contra-alegou, defendendo a confirmação do julgado.

Sendo o objecto dos recursos delimitado pelas respectivas conclusões, enquanto fundadas no texto das correspondentes alegações, ressalvadas as questões que sejam do conhecimento oficioso do tribunal, está em causa nos presentes autos:

A – No agravo, saber se deve ser admitida a ampliação do pedido, requerida no decurso da audiência de julgamento.

B – Na apelação: (…..)

Vejamos:

A – O recurso de agravo

Como se viu, está em causa, neste recurso, saber se deve ser admitida a ampliação do pedido requerida no decurso da audiência de julgamento. Mais concretamente, está em causa saber se aquela ampliação do pedido pode ser considerada “desenvolvimento ou consequência do pedido primitivo”, de modo a ser enquadrada na previsão da parte final do n.º 2 do art. 273.º do CPC.
Pois que é nestes termos que a questão se mostra equacionada pelo agravante, e não se vê que pudesse sê-lo noutros. Ou seja, julga-se ser pacífico, e aceite pelo próprio agravante, que a pretendida ampliação do pedido só terá cabimento processual se puder ser considerada “desenvolvimento ou consequência do pedido primitivo”, não podendo ter acolhimento ao abrigo de outra norma.
Deste modo, cumpre saber se, no caso dos autos, a ampliação do pedido pode ser considerada desenvolvimento ou consequência do pedido primitivo.

Com interesse para a apreciação, importa relembrar os termos, e os fundamentos, seja do pedido primitivo, deduzido na reconvenção, seja da ampliação, deduzida na fase do julgamento.

Assim:
O R. deduziu reconvenção pedindo que a A. fosse condenada a pagar-lhe a quantia de € 14 793,40 sendo:
- € 39,90 a título de diferença entre o que pagou a título de adiantamento e o valor dos trabalhos efectivamente realizados pela A.;
- € 13.500,00 pela privação do uso e fruição do andar, e,
- € 1.243,50 a título de acréscimo de custos para corrigir e completar a obra.
Para tanto alegou, em síntese, que o incumprimento do contrato pela autora teve as seguintes consequências:
- Privou o Réu do uso e fruição do andar, bem como do arrendamento do mesmo, durante pelo menos 18 meses, tendo o andar valor locativo não inferior a € 750,00/mês.
- Obrigou o Réu a recorrer, a partir de Julho de 2001, a outros profissionais do ramo para realizar as obras, tendo de suportar custos superiores, por efeito da inflação, em medida não inferior a 10%;
- Obrigou o Réu a suportar custos adicionais para correcção de obras realizadas com deficiência e com a limpeza do local;
- Obrigou o réu a prolongar a sua residência em casa de familiares;

Por seu turno, a ampliação do pedido foi formalizada num articulado superveniente, apresentado no início da audiência de julgamento, no qual o reconvinte, alegando a falta de licenciamento das obras realizadas no seu andar, de que só teria tomado conhecimento através da instrução dos autos, pediu que a reconvinda fosse condenada a pagar-lhe uma indemnização correspondente a todos os danos, encargos e despesas em que ele viesse a incorrer para obter a plena legalização do seu andar, e pela privação do uso do andar que se viesse a verificar, tudo em montante a liquidar posteriormente.
Pediu ainda a fixação de sanção pecuniária compulsória, nos termos do art. 829.º-A, n.º 4 do C. Civil, quer em relação ao pedido inicial, quer em relação ao resultante da ampliação.

É este pedido de indemnização pelos danos decorrentes da falta de licenciamento das obras que o agravante pretende ver admitido, defendendo que o mesmo é desenvolvimento ou consequência, do pedido inicial, respeitando a novos danos decorrentes da mesma situação de incumprimento contratual, sendo esta a causa de pedir da presente acção.

Com todo o respeito, julga-se ser seguro que não assiste razão ao agravante, devendo antes ser confirmada a decisão recorrida.
Ao deduzir a sua pretensão em juízo, o demandante tem de identificar bem aquilo que pede, formulando o pedido, e de indicar os respectivos fundamentos, sendo estes a causa de pedir. Esta é sempre constituída por factos concretos, e não por conclusões, ou categorias abstractas. E os factos alegados só relevam como causa de pedir quando são invocados como fundamento de pretensões deduzidas sob a forma de pedido. Não consubstancia causa de pedir o facto que é alegado como simples fundamento de contestação.
Ou seja, a causa de pedir da presente acção não é, como pretende o agravante, constituída pelo incumprimento do contrato de empreitada celebrado com a reconvinda, como uma categoria onde caberiam quaisquer situações de incumprimento, mas pelas concretas situações de incumprimento que foram invocadas. A causa de pedir, repete-se, é constituída pelos factos concretos em que se analisa o incumprimento do contrato, cuja valoração jurídica há-de permitir, ou não, reconhecer o direito invocado. Mas a causa de pedir é constituída pelos factos, perspectivados em função do reconhecimento do direito invocado, não assumindo esta valoração jurídica qualquer autonomia em relação aos factos que a fundamentaram.
No caso, e como bem de ponderou na decisão recorrida, o reconvinte invocou, como fundamento do seu pedido de indemnização, duas causas, ou situações de incumprimento contratual. Por um lado, não foi cumprido o prazo da empreitada, do que resultou a indisponibilidade da casa pelo período do atraso verificado; por outro, não foram concluídas as obras, do que resultou o encarecimento das mesmas, em função da inflação.
São estas duas situações muito concretas, em que foi consubstanciada a alegação de incumprimento do contrato, que constituem a causa de pedir da presente acção. A posterior invocação de outra situação concreta de incumprimento contratual, como fundamento da ampliação do pedido de indemnização, traduz também uma ampliação da causa de pedir que, nos termos do art. 273.º n.º 1 do CPC, só é admissível na réplica.
É verdade que, como refere o agravante, o incumprimento da obrigação contratual de providenciar pelo licenciamento das obras foi por si alegado na contestação/reconvenção. Mas foi-o, tão-só, como fundamento de contestação, e não como causa de pedir de qualquer pretensão reconvencional, que só viria a ser formulada no requerimento de ampliação do pedido.
Em todo o caso, aquela alegação deixa claro que o reconvinte já então tinha conhecimento da falta de licenciamento, sendo, pois infundada a alegação de superveniência, que também não respeita, certamente, às alterações que foram introduzidas na estrutura interna do andar onde foram realizadas as obras. Ou seja, a alegação de superveniência era claramente inconsistente.
Conclui-se, assim, que, no questionado articulado superveniente, o reconvinte não se limitou a ampliar o pedido, tendo ampliado simultaneamente a causa de pedir, enxertando no processo uma nova acção, com um novo pedido, fundado numa nova causa de pedir. O que, como já se referiu, só era admissível na réplica.
Deve, pois, ser confirmada esta parte da decisão recorrida, negando-se provimento ao agravo.

B – A apelação (…..)

Lisboa, 17-04-2008


(Farinha Alves)
(Tibério Silva)
(Ezagüy Martins)