Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
4195/2006-7
Relator: PIMENTEL MARCOS
Descritores: PROPRIEDADE HORIZONTAL
PARTE COMUM
OBRAS
ABUSO DO DIREITO
COMPROPRIETÁRIO
COMPROPRIEDADE
LEGITIMIDADE
CONDOMÍNIO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/24/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONCEDIDO PROVIMENTO
Sumário: I- Não pode o condómino de prédio constituído em propriedade horizontal realizar obras num vestíbulo, que é parte comum, traduzidas na construção de uma parede em alvenaria que suprimiu metade da área desse vestíbulo.
II- Não afasta a ilicitude dessa construção a circunstância de os vestíbulos servirem exclusivamente cada andar por estarem separados da escada de serviço, através de uma porta, sendo o único meio de acesso ao vestíbulo o elevador principal apenas utilizado pelos condóminos proprietários da fracção correspondente ao andar (artigos 1420.º, 1421.º e 14222.º/1 do Código Civil.
III- Não constitui abuso do direito o pedido de demolição dessa parede ,pois não é lícito aos condóminos fazerem sua parte comum do imóvel, por meio de obra que constitui inovação (artigo 334.º do Código Civil).
IV- O pedido de demolição dessa parede, edificada em parte comum, pode ser deduzido por qualquer condómino dada a sua qualidade de comproprietário dessa parte comum (artigos 1405.º e 1406.º do Código Civil).

(SC)
Decisão Texto Integral: Recurso  nº  4195/06 (1).
Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa.

M.[…] intentou a presente acção com processo ordinário
contra
A[…] e M.[…], pedindo a condenação destes a levarem a efeito,  através de empreiteiro para o efeito devidamente licenciado, as seguintes obras de construção civil: demolição da parede que fizeram construir no hall ou vestíbulo do 5º andar do edifício e a reporem a configuração do mesmo hall ou vestíbulo, tal como se encontram os restantes halls ou vestíbulos dos  outros andares;  demolição integral da laje do tecto da sala adjacente à sala de estar da fracção autónoma da autora. - que serve de pavimento na fracção correspondente ao 5º andar, direito, dos RR.-   prolongando-se esta demolição para os dois compartimentos contíguos, em 0,50 metros, reconstrução, de acordo com todas as regras regulamentares vigentes, da laje mencionada anteriormente, execução de todos os acabamentos, com nova aplicação de estuque no tecto e novos rebocos das paredes, e pintura dos mesmos; demolição de todas as paredes que os RR. fizeram construir de novo nas fracções designadas pelas letras "L" e "M" - 5°direito e 5° esquerdo - e que não constam da planta do edifício e do projecto de construção do mesmo existentes na Câmara Municipal de Lisboa; reconstrução de todas as paredes interiores das mesmas fracções, de harmonia com a configuração interna das fracções referidas anteriormente, tal como consta das plantas relativas ao edifício existentes na Câmara Municipal de Lisboa; e ainda a  indemnizarem a A. por todas as despesas que esta tiver que suportar com as rendas relativas ao arrendamento de um andar, de iguais dimensões, condições de habitabilidade e conforto, e com igual localização, durante o período em que decorrerem as obras atrás referidas, até à sua conclusão, o transporte do recheio da casa da A. - designadamente do mobiliário, electrodomésticos, roupas, louças, piano, livros - para o andar em causa nos autos, imediatamente antes do início das obras e deste para a fracção da A., depois de elas concluídas, estas a liquidar em execução de sentença, a  compensarem a A., pelo trabalho e pelos incómodos que vai ter com as mudanças e a inerente arrumação das suas coisas, por quantitativo não inferior a Esc. 300.000$00.
 
Alega para tanto, e em síntese, que é proprietária da fracção autónoma correspondente ao 4º andar direito do prédio sito na Rua […] e que os RR., proprietários do 5º andar esquerdo e direito, efectuaram obras nas referidas fracções, que envolveram a demolição de várias paredes interiores e alteração dos apoios, alguns dos quais efectuados sobre a laje de pavimento que é simultaneamente a laje do tecto da sala do andar da A..

E diz que, em consequência dessas obras, a laje do tecto da sua sala de estar ficou partida, apresentando forte deformação e formação de linha de ruptura, originando também o desprendimento dos estuques e rebocos.

Acrescenta que, sem autorização do condomínio, os RR ligaram fisicamente as duas fracções e efectuaram obras no vestíbulo do 5º andar, construindo uma parede que suprimiu aproximadamente metade da área do vestíbulo, que utilizam como coisa exclusivamente sua, impedindo a sua utilização pelos demais condóminos.

Afirma que a reparação desse dano importa a demolição integral da laje do referido compartimento, prolongando-se esta demolição para os dois compartimentos contíguos em cerca de 0,50 metros, para depois se proceder à reconstrução da mesma, e para, posteriormente, se proceder à execução de todos os acabamentos – nova aplicação de estuque no tecto e novos rebocos das paredes, entretanto destruídos ou danificados.

E diz finalmente que as obras em causa tornarão completamente inabitável a sua fracção, pelo que terá de arranjar novo local para habitar e guardar os seus bens enquanto não terminarem essas mesmas obras.
**
Contestaram os RR. dizendo que a A. não tem qualquer interesse na utilização do vestíbulo, o qual é utilizado apenas pelos condóminos do respectivo andar. E dizem que as obras que efectuaram não prejudicaram a A. nem a linha arquitectónica do prédio, sendo certo que a A. mantém fechado à chave o vestíbulo do andar em que se situa a sua fracção, em seu proveito exclusivo.

A fls. 55-6 foi proferido despacho de aperfeiçoamento, convidando-se A. e RR. a esclarecerem aspectos dos respectivos articulados.

Em sede de audiência preliminar a A. apresentou articulado superveniente, dando conta do agravamento da situação da sua fracção e ampliando o pedido no sentido de os RR. serem ainda condenados no pagamento da quantia de € 3.917,91, acrescida de juros de mora desde a apresentação do articulado.

Responderam os RR. a fls. 140 e s.s., reiterando a sua posição no sentido de que os danos alegados pela autora não lhes são imputáveis.

Foi proferido despacho saneador e fixada a matéria de facto relevante a fls. 146 e s.s..

Procedeu-se a audiência de julgamento.

Seguidamente foi proferida a competente sentença, tendo a acção sido julgada improcedente

Dela recorreu a autora formulando as seguintes conclusões:

1.    A fundamentação dada pela Senhora Juiz "a quo" à decisão da matéria de facto não está de acordo com a imposição resultante da nova redacção dos artigos 653º, nº 1 e 712º, nº 5 do C.P.C. que, por isso, se mostram violados.
2. Com efeito, foi elaborada uma fundamentação em bloco, não se referiu ao concreto conteúdo dos depoimentos das testemunhas, não foram concretamente expostos os meios que formaram a convicção do Tribunal, designadamente porquê que, perante duas versões opostas – a do Relatório Pericial e a do auto de vistoria de fls. 79 a 81 - , se escolheu a tese favorável aos recorridos e não foram expostos nos meios que formaram a convicção do Tribunal sobre a não veracidade do facto ou que impedem uma convicção sobre a sua veracidade.
3. A recorrente, desde já, nos termos do artigo 690°-A do C.P.C., impugna a decisão proferida sobre a matéria de facto, por considerar incorrectamente julgados os seguintes concretos pontos de facto – factos nºs 4 a 14 e 17 a 20 da Base Instrutória – que foram considerados não provados.
4. Tais factos devem ser considerados provados, nos termos e com os fundamentos que se passam a referir:
. Facto n° 4: "Os Réus suprimiram uma viga que se encontra entre as fracções "L" e "M" – viga V6 – com as dimensões 0,45 x 0,15 metros". Deve ser considerado provado. Com fundamento no teor do auto de vistoria de fls. 79 a 81 e ao depoimento da testemunha Joaquim […], autor deste auto de vistoria (depoimento gravado na cassete 1 de 03.06.05 – lado B ; – de volta 0636 a 2379 e cassete II do mesmo dia – lado A – de volta 000 a 061). Não sendo relevante o relatório dos Senhores Peritos, já que estes esclareceram, em Tribunal, que, devido à existência de um tecto falso não verificaram se a viga existia ou não (os esclarecimentos do Senhor Perito do Tribunal estão gravados na cassete 1 de 03.06.05 — lado A de volta 000 a 1092 e os esclarecimentos do Senhor Perito da recorrente estão gravados na cassete 1 de 03.06.05 — lado A de volta 1093 a 1612).
. Facto nº 5: "Os Réus fizeram sobrelevar, com alvenaria e pedra, relativamente ao restante pavimento das fracções, o pavimento do quarto adjacente à sala, sobre a laje danificada, correspondente à sala de jantar da Autora". Deve ser considerado provado que "os Réus fizeram sobrelevar com lajes de pedra, relativamente ao restante pavimento das fracções, o pavimento do quarto adjacente à sala, sobre a laje danificada de um dos compartimentos da fracção A". Fundamentos: auto de vistoria de fls. 79 a 81 e depoimento da testemunha Joaquim Paulo da Silva Correia, autor deste auto de vistoria (depoimento gravado na cassete 1 de 03.06.05 — lado B de volta 0636 a 2379 e cassete II do mesmo dia — lado A de volta 000 a 061).
. Facto nº 6: "As obras referidas nos pontos 1 a 5 da Base Instrutória provocaram a danificação da laje do tecto da sala de jantar da Autora". Deve ser considerado provado com fundamento nos acima referidos depoimentos das testemunhas João […] (depoimento gravado na cassete 1 de 03.06.05 — lado A — de volta 1613 a 2379 e lado B — de volta 000 a 0635), Senhor Eng. Joaquim […] (depoimento gravado na cassete 1 de 03.06.05 — lado B — de volta 0636 a 2379 e cassete II da mesma data — lado A — de volta 000 a 061), Senhor Eng. Fernando […] (depoimento gravado na cassete II de 03.06.05 — lado A — de volta 062 a 1093) e Senhor Eng. Carlos […] (depoimento gravado na cassete 1 de 04.07.05 — lado A — de volta 000 a 1620).
. Facto nº 7: "A estrutura do edifício mencionado foi construída numa altura em que coexistiam numa mesma construção as estruturas resistentes de betão (lajes, vigas e pilares) e de alvenaria resistente (paredes de tijolo resistente suportando lajes de betão";
. Facto nº 8: "No perímetro do edifício existem vigas e pilares, mas nos compartimentos interiores foi adoptado o sistema de paredes resistentes suportando lajes de betão";
. Facto nº 9: "A supressão das paredes resistentes das vigas provocou um aumento no vão da laje provocando-lhe deformações e transmitindo para as estruturas resistentes do 4º andar esforços adicionais para os quais não estão dimensionadas". Devem ser considerados provados. Com fundamento nos depoimentos das testemunhas, Senhor Eng. Joaquim […] (depoimento gravado na cassete 1 de 03.06.05 – lado B – de volta 0636 a 2379 e cassete II do mesmo dia = lado A – de volta 000 a 061), Senhor Eng. Fernando […] (depoimento gravado na cassete II de 03.06.05 – lado A – de volta 062 a 1093) e Senhor Eng. Carlos […] (depoimento gravado na cassete 1 de 04.07.05 – lado A – de volta 000 a 1620).
. Facto nº 11: "No pavimento referido no artigo 5ª da Base Instrutória, já depois de suprimidas as vigas e as paredes existentes, os Réus colocaram por cima da laje milhares de quilos de cimento, areia e pedra que aí mantiveram durante mais de 3 meses". Deve ser considerado provado que "No pavimento referido no artigo 5ª da Base Instrutória, já depois de suprimidas as vigas e as paredes existentes, os Réus colocaram por cima da laje milhares de quilos de pedra". Atendendo ao depoimento da testemunha, Senhor Eng. Joaquim […] (depoimento gravado. na cassete 1 de 03.06.05 – lado B – de volta 0636 a 2379 e cassete II do mesmo dia – lado A – de volta 000 a 061).
. Facto n° 12 "Em resultado das obras de construção civil referidas, a laje do tecto da sala de jantar da Autora ficou partida, apresentando forte deformação e formação de linha de ruptura, originando também o desprendimento dos estuques e rebocos". Deve ser considerado provado, atendendo as fotografias de fls. 118 a 130, relatório técnico de fls. 134 e depoimento das testemunhas João […] (depoimento gravado na cassete 1 de 03.06.05 – lado A – de volta 1613 a 2379 e lado B de volta 000 a 0635), Senhor Eng. Joaquim […] (depoimento gravado na cassete 1 de 03.06.05 – lado B de volta 0636 a 2379 e cassete II do mesmo dia – lado A de volta 000 a 061), Senhor Eng. Fernando […] (depoimento na cassete II de 03.06.05 – lado A de volta 062 a 1093), Senhor Eng. Carlos […]  (depoimento gravado na cassete 1 de 04.07.05 – lado A – de volta 000 a 1620) e Senhor David […] (depoimento provado na cassete 1 de 04.07.05 – lado a de volta 1621 a 1724).
.Facto n° 13: "A reparação dos estragos provocados pelos Réus na fracção da Autora importa a demolição integral da laje da sala de jantar, prolongando-se esta demolição para os dois compartimentos contíguos em cerca de 0,50 metros, para depois se proceder à reconstrução da mesma, e para, posteriormente, se proceder à execução de todos os acabamentos – nova aplicação de estuque no tecto e novos rebocos das paredes, entretanto destruídos ou danificados";
. Facto no 14 "As obras de reparação vão tornar completamente inabitável a fracção autónoma da Autora quer em virtude das obras de construção civil, quer em virtude de, durante a obra, passar a haver comunicação entre as fracções, com afectação da privacidade da autora e da segurança dos seus bens". Devem ser considerados provados, atendendo ao depoimento da testemunha Fernando […] (depoimento gravado na cassete II de 03.06.05 – lado A – de volta 062 a 1093).
.Facto nº 17: "Durante as obras terá a Autora que passar a viver noutro andar, com iguais dimensões, condições de habitabilidade e conforto, e com igual localização, e onde possa guardar convenientemente os seus pertences, designadamente o seu mobiliário, louças, roupas, e os seus instrumentos de trabalho, em especial um piano de cauda";
. Facto nº 18: "Terá ainda que proceder à mudança dos seus haveres para o local em que transitoriamente irá residir e, depois de completamente reparada a sua fracção, realizar nova mudança para a sua fracção autónoma, com os inerentes trabalhos e incómodos, para além de ter que suportar todas as despesas relativas às mudanças". Devem ser considerados provados, atendendo ao depoimento da testemunha Ana […] (depoimento gravado na cassete II de 03.06.05 – lado A – de volta 1879 a 2157) e Maria […] (depoimento gravado na cassete II de 03.06.05 – lado A — de volta 1505 a 1878).
. Facto nº 19: "Na pendência da acção a fractura da laje começou a ameaçar derrocada não só da laje como outros elementos construtivos do prédio";
. Facto nº 20: "Em consequência da fractura da laje agravou-se a fendilhação do reboco de revestimento ocasionando o seu desprendimento e queda". Devem ser considerados provados com a seguinte redacção: "Na pendência da acção e fractura da laje foi aumentando, com fendilhação do reboco de revestimento, ocasionando o seu desprendimento e queda, atendendo ao relatório técnico de fls. 134, às fotografias de fls. 118 a 132 e aos depoimentos das testemunhas João […] (depoimento gravado na cassete 1 de 03.06.05 — lado A — de volta 1613 a 2379 e lado B — de volta 000 a 0635) e Paulo […] (depoimento gravado na cassete II de 03.06.05 — lado A — de volta 1094 a 1504).
5. É evidente o nexo de casualidade entre as obras que os recorrentes levaram a cabo nas suas fracções (factos nºs 1 a 5 da Base Instrutória) e os danos por estas causados na casa da recorrente (factos nos 6, 12, 19 e 20).
6. As obras levadas a cabo pelos recorridos são consideradas actividades perigosas, pela natureza dos meios utilizados, dado que suprimiram elementos estruturais do prédio (paredes resistentes e uma viga) e colocaram milhares de quilos de pedra sobre a laje da recorrente.
7. Ocorre, assim, a presunção de culpa a que alude o artigo 493°, n°2 do Código Civil. E, nos casos em que ocorre presunção legal de culpa, recai sobre o autor da lesão o ónus de demonstrar que nenhuma culpa teve (artigo 4870, n°1 do CC.), o que os recorridos não lograram provar.
8. Mas, mesmo considerando, sem prescindir, que não havia lugar à assinalada presunção, sempre a actuação dos recorridos seria culposa, pois levaram a cabo trabalhos de construção civil sem licença camarária para o efeito e sem observarem, consequentemente, as disposições técnicas aplicáveis.
9. Verifica-se, assim, que a sentença recorrida violou os artigos 483°, 487°, n°1, 493°, n°2, 562° e 563° do Código Civil que mal interpretou e aplicou.
10. A recorrente, ao pedir a demolição da construção em alvenaria de uma parede no hall do 5° andar, que permite que os condóminos das duas fracções aí situadas, tenham subtraído e se tenham apropriado de metade do hall, não excede manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim económico ou social do direito respectivo, não preenchendo, por isso, o conceito do abuso de direito do Código Civil.
11. Assim não considerando, a sentença recorrida violou o art. 334° do Código Civil.
12. Violado se mostra, também, o disposto no art. 1425° n° 2 do Código Civil, já que os recorridos, com o seu comportamento, violaram de forma violenta e grosseira esta norma, o que não foi, minimamente, considerado pela sentença recorrida.

E termina dizendo que deve ser dado provimento ao recurso, proferindo-se acórdão que:

A - Nos termos do art.º 712º nº 5 do C.P.C. determine a baixa do processo à 1ª instância para que esta fundamente, devidamente, a decisão proferida sobre a matéria de facto.

Caso, porém, assim não se entenda,

B – Julgue procedente a impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto e de direito, revogando a sentença recorrida e substituindo-a por decisão que condene os recorridos no pedido da acção.

Os apelados não juntaram contra-alegações.

Colhidos os vistos legais cumpre apreciar e decidir.

Na 1ª instância foram dados como provados os seguintes factos:
1. O prédio urbano sito […] em Lisboa, é um edifício composto de loja com cave, 1º, 2º, 3º, 4º , 5º, 6º, e 7º andares, casa para porteira e dois terraços, que se encontra descrito […] ).
2. O referido edifício encontra-se sujeito ao regime da propriedade horizontal, instituído por escritura pública levada ao registo na sequência da apresentação nº […] de 1981/10/16, nos termos da qual o prédio deu origem  a dezasseis fracções autónomas, designadas pelas letras A, B, C, D,  E, F, G, H, I, J, L, M, N, O, P e Q. (artigo 2º dos factos assentes).
3. A propriedade de fracção autónoma designada pela letra “I”, correspondente ao 4º andar, lado direito, do prédio referido no anterior artigo 1º, destinada a habitação, composta de cinco divisões assoalhadas, duas casas de banho, cozinha e despensa, por a haver adquirido, por compra e venda à P.[…] S.A., encontrando-se definitivamente registada a favor da A. pela inscrição […] lavrada na sequência da apresentação nº […] (artigo 3º dos factos assentes).
4. Encontra-se registada a favor dos RR. a fracção autónoma designada pela letra “M”, correspondente ao 5º andar esquerdo, destinado a habitação, composta, de harmonia com o que consta dos elementos matriciais e com o projecto de construção que se encontra na Câmara Municipal de Lisboa, de cinco divisões assoalhadas, duas casas de banho, cozinha e despensa, tendo a aquisição sido levada ao registo, pela inscrição […] na sequência da apresentação nº […](artigo 4º dos factos assentes).
5. Apesar de ainda se encontrar inscrita no Registo Predial em nome de P.[…]  S.A, a fracção designada pela letra “L” do mencionado edifício, correspondente ao 5º andar direito, também composto, segundo a matriz e os elementos do projecto de construção e demais elementos constantes na Câmara Municipal de Lisboa, por cinco divisões assoalhadas, duas casa de banho, cozinha e despensa, a referida fracção foi adquirida pelos RR., apresentando-se estes, designadamente perante o condomínio e os condóminos, como seus proprietários (artigo 5º dos factos assentes).
6. A A. tem a sua residência no 4º andar direito e os RR. no 5º andar direito e esquerdo do prédio em causa (artigo 6º dos factos assentes).
7. O 5º andar é composto pelas fracções “L” e “M” (artigo 7º dos factos assentes).
8. Os RR. ligaram fisicamente as fracções “L” e “M”, e no espaço que fica delimitado pelas escadas de acesso ao 5º andar, a saída do ascensor para o mesmo piso, bem como as paredes exteriores das fracções autónomas “L” e “M”, e as portas de entrada delas (vestíbulo), levaram a efeito uma construção em alvenaria de uma parede, suprimindo aproximadamente metade da área do referido vestíbulo, que ocupam (artigo 8º dos factos assentes).
9. No 5º andar direito e esquerdo foi alterada a compartimentação, com supressão de algumas paredes e fecho de vãos e portas (resposta ao artigo 1º da base instrutória).
10. Foram suprimidas as paredes entre a cozinha e o quarto da criada (resposta ao artigo 2º da base instrutória).
11.  Foi suprimida, até ao nível do tecto, a parede entre a sala comum e o quarto adjacente (resposta ao artigo 3º da base instrutória).
12. A supressão das paredes resistentes das vigas é susceptível de provocar a transmissão de esforços adicionais para as estruturas resistentes do piso superior, 6º andar (resposta ao artigo 10º da base instrutória).
13. Consta de fls. 42 uma informação/decisão relativa ao pedido de dispensa de licenciamento formulado pelo R., relativamente a obras a efectuar no 5º andar esquerdo e direito, o qual foi deferido (artigo 10º dos factos assentes).
14.  Os vestíbulos de cada andar estão separados da escada  de serviço, através de uma porta, sendo o único meio de acesso ao mesmo o elevador principal, apenas utilizado pelos condóminos proprietários da fracção correspondente ao andar (resposta ao artigo 26º da base instrutória).
15. A A. mantém o vestíbulo do 4º andar fechado à chave (resposta ao artigo 29º da base instrutória).
16. De acordo com o artigo 5º, alínea c), do Regulamento do Condomínio do Prédio em que se inserem as fracções em causa, são consideradas partes comuns as entradas, vestíbulos, escadas e corredores de uso ou passagem comum a dois inquilinos (incluindo iluminação, passadeiras, tapetes, etc.)  (artigo  9º dos factos assentes).
17. A fls. 80 e 81 consta um auto de vistoria, relativo ao 4º andar direito, datado de 99.07.99 (artigo 11º dos factos assentes).
18. A A., que é professora de piano, tem que preparar diariamente as suas lições (aceite pelos RR., e dado como facto assente, conforme fls. 292, e artigo 12º dos factos assentes).
19. A A. dá aulas na sua residência (aceite pelos RR., e dado como facto assente, conforme fls. 292).
20. A A. colocou vigas na sala (resposta ao artigo 21º da base instrutória).
21. E como acabamento colocou um tecto falso em gesso cartonado, e pintou  o mesmo a tinta de água (resposta ao artigo 22º da base instrutória).
22. Tendo ainda procedido à picagem do reboco da parede, reboco da mesma e pintura de acabamento (resposta ao artigo 23º da base instrutória).
23. As obras foram concluídas em Julho e tiveram o custo de € 3.796,16 (resposta ao artigo 24º da base instrutória).
24. A A. despendeu com as fotografias juntas a fls. 118 a 132, a quantia de € 148,75 (resposta ao artigo 25º da base instrutória).

O DIREITO
São as seguintes as questões a decidir:

1. Falta de fundamentação das respostas à matéria de facto.
2. Alteração da matéria de facto.
3. Responsabilidade dos RR pelos danos invocados pela autora.
4. Abuso de direito.

I
Alega a apelante que a fundamentação dada pela Senhora Juiz "a quo" à decisão sobre a matéria de facto não está de acordo com a imposição resultante da nova redacção dos artigos 653º  e 712º, nº 5 do C.P.C. que, por isso, se mostram violados.

Parece-nos que não tem razão.

Nos termos do nº 2 do artigo 653º, o juiz declara quais os factos provados e os não provados, analisando criticamente as provas e especificando os fundamentos que foram decisivos para a convicção do julgador.

A decisão sobre a matéria de facto deve, pois, ser fundamentada. E daí a necessidade de o juiz analisar criticamente as provas produzidas e depois indicar quais as que foram decisivas para a decisão tomada. Por isso não pode limitar-se a dizer, por exemplo, que respondeu “provado” aos “quesitos” com base no depoimento das testemunhas inquiridas e dos documentos juntos, ou seja, não pode limitar-se a indicar os meios de prova que serviram da base à formação da sua convicção. Mas também não tem que fazer um resumo dos depoimentos prestados por cada uma das testemunhas.

Nem sempre o juiz poderá formar a sua convicção com base no depoimento de cada testemunha e muito menos deixar-se orientar pelo “critério da maioria”. Por vezes é mesmo decisivo o silêncio duma testemunha em relação a um determinado facto.

Daí que não possa a parte interessada exigir que o julgador responda “provado” a um determinado facto só porque duas ou três testemunhas (ou mais) responderam de certa maneira e no mesmo sentido.

Pela fundamentação das respostas dadas aos vários artigos da BI há-de ficar a saber-se por que razão foi decidido dum maneira e não de outra, sem no entanto exigir a lei que se faça uma fundamentação exaustiva.

“O Tribunal deve indicar os fundamentos suficientes para que, através das regras da ciência, da lógica e da experiência, se possa controlar a razoabilidade daquela convicção sobre o julgamento do facto provado ou não provado” (2).

“Por conseguinte, quer relativamente aos factos provados quer quanto aos factos não provados, deve o tribunal justificar os motivos da sua decisão, declarando por que razão, sem perda da liberdade de julgamento, garantida pela manutenção do princípio da livre apreciação das provas (art. 655º do CPC), deu mais credibilidade a uns depoimentos e não a outros, julgou relevantes ou irrelevantes certas conclusões dos peritos, achou satisfatória ou não a prova resultante de documentos particulares, etc.”. (3)

Ora, como consta de fls. 338 a 341, o julgador indicou pormenorizadamente que baseou a sua convicção no relatório dos peritos e dos esclarecimentos por estes prestados em audiência de julgamento e nos depoimentos das testemunhas que refere. Em relação a cada uma destas indicou os factos para os quais contribuiu o seu depoimento e a sua razão de ciência. Foi ainda referido, por exemplo, por que razão “não foi feita prova convincente relativamente aos factos 13, 14, 17 e 18” e que, quanto aos factos 11, 27, 28, 31, 32 e 33,  não foi feita qualquer prova.

Foram ainda especificados os documentos que, feita uma análise crítica, ajudaram a formar a convicção do Tribunal.

Assim, ao contrário do alegado pela apelante, “a Senhora Juiz a quo” não se limitou a elaborar “uma fundamentação em bloco”.

A decisão sobre a matéria de facto encontra-se, pois, devidamente fundamentada.

II

A apelante pretende que seja alterada a decisão recorrida relativamente aos factos 4, 5, 6, 7, 8, 9, 11, 12, 13, 14, 17, 18, 19 e 20 da BI.

Vigora entre nós o regime de livre apreciação da prova (artºs. 655º do CPC e 396º do CC) na sequência, aliás, dos princípios da imediação, oralidade e concentração (a que se opõe o regime da “prova legal”) (4). Por isso, o tribunal aprecia livremente as provas e responde segundo a convicção que tenha formado acerca de cada facto a que é chamado a pronunciar-se. Mas é diferente a questão da apreciação dos meios de prova da questão da selecção ou admissibilidade desses mesmos meios. Uma coisa é saber quais os elementos que a lei admite que possam ser utilizados para formar a convicção do juiz acerca da existência de um determinado facto, e outro, bem diferente, é apurar o valor que revestem, para a formação da convicção do julgador, os meios de prova admitidos. Por isso, o tribunal que julga a matéria de facto não se pronuncia sobre os meios de prova com força probatória plena nem sobre factos que só por um meio com essa força possam ser provados (art.º 646º, nº 4 do CPC). Com efeito, apenas lhe compete apreciar as provas sujeitas à livre apreciação do julgador. O juiz que proferir a sentença apreciará os meios de prova legais.

“Prova livre quer dizer prova apreciada pelo julgador segundo a sua experiência e a sua prudência, sem subordinação a regras ou critérios formais preestabelecidos, isto é, ditados pela lei. Daí até à afirmação de que o juiz pode decidir como lhe apetecer, passando arbitrariamente por cima das provas produzidas, vai uma distância infinita. Quando o tribunal se permite tal atitude, não aprecia livremente as provas: despreza-as. A aberração é manifesta” (5).

Perante a prova produzida, o tribunal decidirá, pois, consoante a convicção que formou e tendo em consideração as regras da experiência e as disposições legais aplicáveis.

A Relação pode alterar a matéria de facto nos termos do artigo 712º do CPC.

Resulta do teor das alegações da recorrente que o enquadramento apenas poderá ser feito, à partida, no âmbito da 2ª parte, da citada al.a), por força da qual, a decisão de facto pode ser alterada pela Relação se, tendo ocorrido gravação dos depoimentos prestados, tiver sido impugnada, nos termos do art.690º-A, a decisão com base neles proferida.

Este último artigo, aditado pelo DL nº39/95, de 15/2, e, posteriormente, alterado pelo DL nº183/2000, de 10/8, veio estabelecer um particular ónus de alegação e fundamentação a cargo do recorrente que impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto. Ónus esse que, segundo Lopes de Rego, se traduz do seguinte modo:

a) na necessidade de circunscrever ou delimitar o âmbito do recurso, indicando claramente os pontos da matéria de facto que considera incorrectamente julgados;

b) no ónus de fundamentar, em termos concludentes, as razões porque discorda do decidido, concretizando quais os meios probatórios (constantes de auto ou documento incorporado no processo ou de registo ou gravação nele realizado) que implicavam decisão diversa da tomada pelo tribunal;

c) quando os meios probatórios incorrectamente valorados pelo tribunal apenas constem de registo ou gravação, no ónus de indicar os depoimentos em que se funda o invocado erro na apreciação das provas, por referência ao assinalado na acta, nos termos do disposto no nº2, do art.522º-C.

Não cumprindo o recorrente os aludidos ónus, o recurso deve ser liminarmente rejeitado, por força do disposto nos nºs 1 e 2, do citado art.690º-A.

Tal solução é justificada no preâmbulo do citado DL nº39/95: «A garantia do duplo grau de jurisdição em sede de matéria de facto, nunca poderá envolver, pela própria natureza das coisas, a reapreciação sistemática e global de toda a prova produzida em audiência – visando apenas a detecção e correcção de pontuais, concretos e seguramente excepcionais erros de julgamento, incidindo sobre pontos determinados da matéria de facto, que o recorrente sempre terá o ónus de apontar claramente e fundamentar na sua minuta de recurso».

No caso sub judice foi cumprida esta disposição legal

No entanto, em sido entendimento dos nossos Tribunais Superiores que a reapreciação da matéria de facto pela Relação, no âmbito dos poderes conferidos pelo art.712º, do C.P.C., não pode confundir-se com um novo julgamento, antes se destinando, essencialmente, à sanação de manifestos erros de julgamento e de falhas, mais ou menos evidentes, na apreciação da prova (cf., entre outros, o recente Acórdão do STJ, de 14/3/06, C.J., Ano XIV, tomo I, 130). Daí que o art.690º-A, do C.P.C., aditado pelo DL nº39/95, de 15/2, tenha estabelecido um particular ónus de alegação e fundamentação a cargo do recorrente que impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto.

Procedeu-se à leitura dos depoimentos transcritos e à audição das “cassetes” nas partes consideradas necessárias.

Vejamos cada um dos factos:
4. "Os Réus suprimiram uma viga que se encontra entre as fracções "L" e "M" – viga V6 – com as dimensões 0,45 x 0,15 metros".

As testemunhas inquiridas não afirmaram peremptoriamente que a viga não existia no local. O auto de vistoria de fls. 79 a 81 também nada esclarece a esse respeito.

O depoimento da testemunha Joaquim […] também não é decisivo para que se possa dar como provado este facto. O seu depoimento baseia-se mais em suposições e menos na observação dos factos. De resto é ele o autor do auto de vistoria de fls. 80 e 81 e nele apenas refere que “terá sido suprimida” a viga.

E há que ter em consideração os depoimentos dos peritos, que de forma alguma confirmaram a tese da autora apesar de, como é óbvio, terem tido acesso aos andares.

Também não se conclui do relatório elaborado pelos peritos de fls. 221 a 224 que a viga foi retirada.

Facto nº 5: "Os Réus fizeram sobrelevar, com alvenaria e pedra, relativamente ao restante pavimento das fracções, o pavimento do quarto adjacente à sala, sobre a laje danificada, correspondente à sala de jantar da Autora". 

Com base no relatório de fls. 80 e 81 e no depoimento da testemunha Joaquim […] entende-se que deve ser dado como provado que “o pavimento do quarto adjacente à sala comum dos RR, sobre a laje danificada, encontra-se sobrelevado em relação ao restante pavimento da fracção”.

Com efeito, parece-nos que este facto se encontra devidamente provado e pôde ser constatado in loco.

Facto nº 6: "As obras referidas nos pontos 1 a 5 da Base Instrutória provocaram a danificação da laje do tecto da sala de jantar da Autora". 

Com base nos depoimentos das testemunhas inquiridas apenas nos permite dar como provado o seguinte: a laje do tecto da sala de jantar da autora encontra-se danificada.

Com efeito, os senhores peritos que elaboraram o relatório de fls. 222 a 224 não puderam chegar a outra conclusão. Os depoimentos das testemunhas também não nos permitem dar como provado que os factos referidos nos números 1 a 5 da BI provocaram danos na laje. Uma coisa é constatar-se que a laje se encontrava danificada e outra, bem diferente, quais as causas desses danos.

É possível que  as obras feitas pelos RR tenham provocado tais danos ou que, pelo menos, tenham contribuído para a sua produção. A verdade é que competia à autora fazer a respectiva prova (art.º 342º, nº 1 do CC) o que, salvo melhor opinião, não foi feito. Os depoimentos das várias testemunhas não nos permitem dar como provado tal facto. E, por exemplo, nos esclarecimentos prestados em relação ao relatório elaborado pelos peritos, por unanimidade, foi referido a fls. 293 que as paredes divisórias em alvenaria ou similar não têm função resistente, pelo que a sua supressão/demolição não implica danos colaterais.

Também não é possível dar como provados os factos atrás descritos sob os nºs. 7, 8 e 9, os quais estão relacionados entre si e com o nº 6.

Por um lado, dos documentos juntos não é possível retirar tal conclusão, o mesmo sucedendo com o relatório feito pelos peritos.

Também os depoimentos prestados pelas várias testemunhas em audiência de julgamento não nos permitem decidir de forma diferente do decidido em 1ª instância. Trata-se de matéria que  certamente melhor teria sido esclarecida mediante vistoria devidamente realizada.

Vejam-se os depoimentos prestados pelos senhores peritos.

Quer pelos depoimentos das testemunhas inquiridas quer pelos documentos juntos também não é possível dar como provado o facto referido sob o nº 11.

Com efeito, nenhuma das testemunhas inquiridas depôs de forma convincente a esse respeito.

. Facto n° 12 "Em resultado das obras de construção civil referidas, a laje do tecto da sala de jantar da Autora ficou partida, apresentando forte deformação e formação de linha de ruptura, originando também o desprendimento dos estuques e rebocos".

Diz a apelante que este facto deve ser dado como provado, atendendo às fotografias de fls. 118 a 130, relatório técnico de fls. 134 e depoimento das testemunhas João […] (depoimento gravado na cassete 1 de 03.06.05 – lado A – de volta 1613 a 2379 e lado B de volta 000 a 0635), Senhor Eng. Joaquim […] (depoimento gravado na cassete 1 de 03.06.05 – lado B de volta 0636 a 2379 e cassete II do mesmo dia – lado A de volta 000 a 061), Senhor Eng. Fernando […] (depoimento na cassete II de 03.06.05 – lado A de volta 062 a 1093), Senhor Eng. Carlos […] (depoimento gravado na cassete 1 de 04.07.05 – lado A – de volta 000 a 1620) e Senhor David […] (depoimento provado na cassete 1 de 04.07.05 – lado a de volta 1621 a 1724).

A verdade é que apenas pode ser dado como provado (em conformidade com a resposta agora dada ao facto nº 6) que a laje do tecto da sala de jantar da autora encontra-se danificada, apresentando forte deformação e formação de linha de ruptura, originando o desprendimento dos estuques e rebocos.

Com efeito, este facto foi constatado pela generalidade das testemunhas a ele inquiridas, e o mesmo resultou do auto de vistoria de fls. 79 a 81.

Todavia, nada foi possível apurar quanto às suas causas.

Por exemplo, o relatório de fls. 134 nada esclarece a este respeito. E os depoimentos das testemunhas inquiridas não se mostram suficientes para que se possa dar como provada a totalidade da matéria em causa.

Com base nos depoimentos prestados, nos relatórios e nos documentos juntos, e tendo em consideração o que foi referido, não é possível dar como provados os factos descritos sob os nºs 13, 14, 17, 18 a 20.

E também nada foi esclarecido a este respeito nos exames realizados.

O depoimento da testemunha Fernando […] não nos parece suficientemente esclarecedor  para que se possa responder “provado” aos factos 13 e 14.

Os factos referidos sob os nºs. 17 e 18 dependem da prova dos restantes danos causados no andar. Daí que os depoimentos das testemunhas C.[…]  e M.[…] sejam insuficientes para que possam ser dados como provados.

Pelas mesmas razões não podem ser dados como provados os factos 19 e 20.

E tenha-se em consideração o que foi referido no início deste capítulo sobre os poderes da Relação.
*
Por todo o exposto mantém-se a matéria de facto, excepto no seguinte:

Em relação ao nº 5 da BI fica provado: “o pavimento do quarto adjacente à sala comum dos RR, sobre a laje danificada, encontra-se sobrelevado em relação ao restante pavimento da fracção”.

Em relação ao nº 6 ficou provado: a laje do tecto da sala de jantar da autora encontra-se danificada.

Em relação ao nº 12 ficou provado: a laje do tecto da sala de jantar da autora encontra-se danificada, apresentando forte deformação e formação de linha de ruptura, originando o desprendimento dos estuques e rebocos.

III
Como foi referido na douta sentença, a autora fundamenta a acção na responsabilidade civil extracontratual dos RR. pelas obras por estes realizadas nas fracções autónomas de que são proprietários e que se situam nos andares imediatamente superiores ao seu.

Estão essencialmente em causa três pedidos:

1. condenação dos RR. a realizarem os trabalhos necessários a eliminar os danos alegadamente causados pelas obras que fizeram nas suas fracções e ainda a pagar-lhe uma indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais que sofrerá com a realização dessas obras;

2. condenação dos RR. a reporem o vestíbulo do 5º andar no estado em que se encontrava antes de aí construírem a aludida parede;

3.  reposição das fracções autónomas dos RR. no estado em que estas se encontravam antes das obras por eles realizadas, com demolição das novas paredes construídas  e reconstrução das anteriores.

Vejamos cada um deles.

A- Do pedido relativo à fracção pertencente à A (nº 1).

Pretende a A., designadamente,  a condenação dos RR. a executarem os trabalhos destinados a eliminar os danos alegadamente causados pelas obras que estes levaram a cabo nas suas fracções e ainda uma indemnização por danos patrimoniais (custo de alojamento alternativo e custos da mudança dos bens da autora) e não patrimoniais.

Nos termos do nº 1 do artigo 483º do CC, aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação.

E só existe obrigação de indemnizar independentemente de culpa nos casos especificados na lei (nº 2).  

Por sua vez determina o nº 1 do artigo 487º que é ao lesado que incumbe provar a culpa do autor da lesão, salvo havendo presunção legal de culpa. E estabelece o seu nº 2 que a culpa é apreciada, na falta de outro critério legal, pela diligência de um bom pai de família, em face das circunstâncias da cada caso.

São, assim, pressupostos da responsabilidade civil extracontratual:

a) um facto ilícito;
b) a imputabilidade desse facto ao lesante;
c) a verificação do dano;
d) o nexo de causalidade entre o facto e o dano.

Essencialmente, o que está em causa é saber se existe nexo de causalidade entre as obras realizadas pelos RR e os danos invocados pela autora.

Não se verificando tal nexo, a acção terá de improceder nesta parte.

Mas referiremos também a questão relativa à culpa e ao facto ilícito

Portanto, no domínio da responsabilidade extracontratual é necessário, em princípio, que o agente tenha agido com culpa.

Mas é ao lesado que compete provar a culpa do autor da lesão, salvo havendo presunção legal de culpa. E esta é apreciada, na falta de outro critério legal, pela diligência de um bom pai de família, em face das circunstâncias da cada caso.

É que, para que o facto ilícito gere responsabilidade civil é necessário que o autor tenha agido com culpa: é preciso que a violação ilícita tenha sido praticada com dolo ou mera culpa. E isto porque a responsabilidade objectiva ou pelo risco, tem carácter excepcional (6).

“A culpa exprime um juízo de reprovabilidade pessoal da conduta do agente: o lesante, em face das circunstâncias específicas do caso, devia e podia ter agido de outro modo (7)”. Assim, agir com culpa significa o agente actuar em termos de a sua conduta merecer a reprovação ou a censura do direito. Por isso, “a mera circunstância de a conduta na sua materialidade ou objectividade se mostrar contrária ao direito não coloca o sujeito em situação de responsabilidade se não se puder dizer no caso concreto que ele devia ter procedido por outra forma” (8).

Obviamente que não está em causa que os RR tenham agido com dolo. Por isso há apenas que averiguar se agiram com mera culpa ou por negligência, a qual consiste na omissão da diligência exigível ao agente.

A este propósito apuraram-se os seguintes factos:
 
- A A. tem a sua residência no 4º andar direito e os RR. no 5º andar direito e esquerdo do prédio em causa.

-  O 5º andar é composto pelas fracções “L” e “M”..

-  Os RR. ligaram fisicamente as fracções “L” e “M”, e no espaço que fica delimitado pelas escadas de acesso ao 5º andar, a saída do ascensor para o mesmo piso, bem como as paredes exteriores das fracções autónomas “L” e “M”, e as portas de entrada delas (vestíbulo), levaram a efeito uma construção em alvenaria de uma parede, suprimindo aproximadamente metade da área do referido vestíbulo, que ocupam.

- No 5º andar direito e esquerdo foi alterada a compartimentação, com supressão de algumas paredes e fecho de vãos e portas.

- Foram suprimidas as paredes entre a cozinha e o quarto da criada.

- Foi suprimida, até ao nível do tecto, a parede entre a sala comum e o quarto adjacente.

- A supressão das paredes resistentes das vigas é susceptível de provocar a transmissão de esforços adicionais para as estruturas resistentes do piso superior, 6º andar.

- o pavimento do quarto adjacente à sala comum dos RR, sobre a laje danificada, encontra-se sobrelevado em relação ao restante pavimento.

- a laje do tecto da sala de jantar da autora encontra-se danificada, apresentando forte deformação e formação de linha de ruptura, originando também o desprendimento dos estuques e rebocos.

E não logrou a A. provar os seguintes factos constantes da base instrutória:

4. Os RR. suprimiram uma viga que se encontra entre as fracções “L” e “M”, - viga V6 - com as dimensões 0,45 x 0,15 metros;

6. As obras referidas nos pontos 1 a 5 da base instrutória provocaram a danificação da laje do tecto da sala de jantar da A..;

7. A estrutura do edifício mencionado no anterior artigo 1º foi construída numa altura em que coexistiam numa mesma construção as estruturas resistentes de betão (lajes, vigas e pilares) e de alvenaria resistente (paredes de tijolo resistente suportando lajes de betão);

8. No perímetro do edifício existem vigas e pilares, mas nos compartimentos interiores foi adoptado o sistema de paredes resistentes suportando lajes de betão;

9. A supressão das paredes resistentes das vigas provocou um aumento no vão da laje provocando-lhe deformações e transmitindo para as estruturas resistentes do 4º andar esforços adicionais para os quais não estão dimensionadas;

11. No pavimento referido no artigo 5º da base instrutória, já depois de suprimidas as vigas e as paredes existentes, os RR. colocaram por cima da laje milhares de quilos de cimento, areia e pedra que aí mantiveram durante mais de 3 meses;

12. Em resultado das obras de construção civil referidas, a laje do tecto da sala de jantar da A. ficou partida, apresentando forte deformação e formação de linha de ruptura, originando também o desprendimento dos estuques e rebocos;

13. A reparação dos estragos provocados pelos RR. na fracção da A. importa a demolição integral da laje  da sala de jantar, prolongando-se esta demolição para os dois compartimentos contíguos em cerca de 0,50 metros, para depois se proceder à reconstrução da mesma, e para, posteriormente, se proceder à execução de todos os acabamentos - nova aplicação de estuque no tecto e novos rebocos das paredes, entretanto destruídos ou danificados;

14. As obras de reparação vão tornar completamente inabitável a fracção autónoma da A. quer em virtude das obras de construção civil, quer em virtude de, durante a obra, passar a haver comunicação entre as fracções, com afectação da privacidade da A. e da segurança dos seus bens;

17. Durante as obras terá a A. que passar a viver noutro andar, com iguais dimensões, condições de habitabilidade e conforto, e com igual localização, e onde possa guardar convenientemente os seus pertences, designadamente o seu mobiliário, louças, roupas, e os seus instrumentos  de trabalho, em especial um piano de cauda;

18. Terá ainda que proceder à mudança dos seus haveres para o local em que transitoriamente irá residir e, depois de completamente reparada a sua fracção, realizar nova mudança para a sua fracção autónoma, com os inerentes trabalhos e incómodos, para além de ter que suportar todas as despesas relativas às mudanças;

19. Na pendência da acção a fractura da laje começou a ameaçar derrocada, não só da laje como outros elementos construtivos do prédio;

20. Em consequência da fractura  da laje agravou-se a fendilhação do reboco de revestimento ocasionando o seu desprendimento e queda;

21. Atento ao agravamento da situação referida nos artigos 19º e 20º da base instrutória, que impedia a utilização da fracção e em especial a sala de jantar pela A.,  e a fim de evitar colocar a sua integridade física em perigo, a A. teve de proceder com urgência e como medida provisória, ao reforço estrutural da laje, através da colocação de perfis metálicos Igry He10 espaçados de um metro embutidos nos elementos resistentes no sentido transversal de modo a estabilizarem a flecha da laje e assim evitar a sua rotura (relativamente a este facto apenas ficou provada a colocação de vigas na sala).

Alega a apelante que as obras levadas a cabo pelos RR , suprimindo elementos estruturais do prédio, são consideradas actividade perigosa, pela natureza dos meios utilizados, pelo que se verifica a presunção de culpa a que alude o nº 2 do artigo 493º do CC.

Vejamos.

As presunções são legais e judiciais.

Quem tiver a seu favor uma presunção legal (aquela que resulta directamente da lei) escusa de provar o acto que a ela conduz (art.º 350º). É que, nestes casos, a lei, partindo da verificação de determinado facto conhecido, dá como provado um outro facto (este desconhecido). Assim, o interessado apenas terá que fazer prova do facto que serve de base à presunção, pois da prova deste infere a lei o facto presumido.  E dentro das presunções legais distinguem-se as presunções iuris et de iure  e  as presunções iuris tantum. As primeiras não admitem prova em sentido contrário, o que não sucede com as segundas.

Nos termos do nº 2 do artigo 493º, quem causar danos a outrem no exercício de uma actividade, perigosa por sua própria natureza ou pela natureza dos meios utilizados, é obrigado a repará-los, excepto se mostrar que empregou todas as providências exigidas pelas circunstâncias com o fim de os prevenir.

Ora, salvo melhor opinião, pelos menos para os efeitos em causa, que é o que importa considerar, a actividade exercida pelos RR (realização de obras no interior da casa de habitação) não pode ser considerada perigosa.

Ao aludir-se neste artigo às actividades perigosas, pretendeu o legislador referir-se apenas àquelas actividades que, pela sua especial perigosidade, requerem medidas especiais de prevenção. Ora, a realização das aludidas obras no interior de um andar não pode ser considerada actividade perigosa. E perante os factos referidos, não se vê que se possa considerar qualquer acto praticado pelos RR como culposo.
*
Ficou provado que não era necessária licença para a realização das obras, porquanto, como resulta do ponto 13 dos factos provados, consta de fls. 42 uma informação/decisão relativa ao pedido de dispensa de licenciamento formulado pelo R, relativamente a obras a efectuar no 5º andar esquerdo e direito, o qual foi deferido.

Mas diz a apelante que o pedido de licenciamento foi feito em 19.10.99 e que em 22.07.99  já haviam sido realizadas as obras a que se referem os factos nºs. 1 a 5, pelo que a dispensa de licenciamento que os recorridos obtiveram não se referia a essas obras mas sim a outras realizadas após Fevereiro de 2000.

A verdade é que, a ser assim ( o que não está demonstrado), por um lado, trata-se de obras do mesmo género e, por outro, as mesmas não estavam sujeitas a licenciamento municipal, pelas razões referidas a fls. 42 e 43.

Portanto, as obras não foram feitas em contravenção aos regulamentos administrativos, pelo que não se verifica o aludido pressuposto do facto ilícito, improcedendo as conclusões 5 a 8.
*
Por outro lado, a A. não logrou demonstrar que os danos causados na sua fracção e respectivas consequências tivessem sido  provocadas  pelas obras  que os  RR.   levaram a cabo na sua fracção.

Com efeito, isso resulta claramente dos factos dados como provados, e sobretudo dos que não ficaram provados, nomeadamente os referidos anteriormente sob os números 4, 6, 7, 8, 9, 11, 12 e 13.

As alterações introduzidas à matéria de facto nesta Relação em nada podem modificar a decisão jurídica proferida em 1ª instância.

Ficou provado que a supressão das paredes resistentes das vigas é susceptível de provocar a transmissão de esforços adicionais para as estruturas resistentes do piso superior, ou seja, o 6º andar.

Ora, a verificar-se a existência de qualquer dano, com este fundamento, afectaria os donos deste andar e não a autora, proprietária do 4º andar.

Assim, ao contrário do referido na conclusão nº 5, não se provou o nexo de causalidade entre as obras feitas pelos RR e os danos alegados pela autora, sobretudo porque não ficaram provados a generalidade dos factos aí invocados.

Face ao exposto, a pretensão da A. relativamente aos danos provocados na sua fracção e outros prejuízos conexos, não pode deixar de improceder, tal como foi decidido em 1ª instância.

B- Do pedido na parte relativa ao vestíbulo (nº 2)

A autora pede a  condenação dos RR. a reporem o vestíbulo do 5º andar no estado em que o mesmo se encontrava antes de aqueles aí construírem a referida parede, com o fundamento de os mesmos terem efectuado as obras sem autorização da assembleia de condóminos e impedirem a sua utilização pelos restantes proprietários dos andares.

Trata-se de uma parte comum do edifício, o que agora não vem posto em causa.

Nos termos do artigo 1425º, nº 1, C.C., as obras que agora constituam inovações dependem da aprovação da maioria dos condóminos, devendo essa maioria ser aprovada por dois  terços do valor total do prédio. E o nº 2 acrescenta que nas partes comuns não são permitidas inovações capazes de prejudicar a utilização, por parte de algum dos condóminos, tanto das coisas próprias como das comuns.

Está assente que os RR. efectuaram as obras sem o consentimento dos demais condóminos, em parte comum do edifício, pelo que, em princípio, deveriam ser condenados a demolir a parede que mandaram construir, pois, ainda que se trate de uma obra que pode ser feita mediante autorização, a mesma não foi dada.

Entretanto foi referido na douta sentença que tal facto não é suficiente para a procedência da acção nesta parte.

E isto essencialmente pelo seguinte:

Em primeiro lugar porque o vestíbulo do 5º andar, onde os RR. realizaram as obras, apesar de ter o estatuto de parte comum, serve apenas as fracções dos RR., e não qualquer outra. “Significa isso que não existe qualquer prejuízo quer para a A., quer para qualquer outro condómino, tal como alegaram os RR. na contestação, falecendo a argumentação de que as referidas obras impedem a sua utilização aos demais condóminos”.

Em segundo lugar porque a própria A. mantém fechada à chave a porta que dá acesso ao vestíbulo do seu andar, sendo certo que o referido vestíbulo serve outra fracção para além da fracção da Autora (cada piso é composto por duas fracções). Por isso, “a conduta da A. é mais lesiva do que  a dos RR., porquanto impede qualquer acesso ao vestíbulo do 4º andar, o que não sucede com o 5º andar, já que continua a haver acesso ao mesmo, quer pelas escadas, quer pelo elevador”. E daí que, no entender do Mº juiz,  o comportamento da A. tenha de ser equacionado à luz do instituto do abuso de direito, “problemática aflorada na contestação, embora não autonomizada”

Vejamos.

Nos termos do artigo 334º do C.C.“é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social e económico desse direito”.

Adopta-se aqui a concepção objectiva do abuso de direito. Daí que não se exija a consciência de se excederem, com o seu exercício, os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico do direito, bastando que se excedam esses mesmos limites. "Não pode, em qualquer dos casos, afirmar-se a exclusão dos factores subjectivos nem o afastamento da intenção com que o titular tenha agido, visto esta poder interessar, quer à boa fé ou aos bons costumes, quer ao próprio fim do direito" (9)

Exige-se, contudo, que esse excesso seja manifesto.

Em qualquer caso, o abuso de direito pressupõe a existência de um direito, mas cujo titular se excede no exercício dos seus poderes. Se uma pessoa pratica um acto para cujo exercício não tem qualquer direito, não se pode falar em abuso de direito, mas antes na inexistência do direito.

Mas em caso de abuso de direito tudo se passa como se o direito não existisse e, portanto, a conduta do agente é considerada ilícita. O exercício do direito é então considerado ilegítimo, por o seu titular exceder manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo seu fim social ou económico. Não se trata contudo da violação de um direito de outrem, mas do exercício anormal de um direito próprio. Trata-se de alguém que usa abusivamente dum direito de que é titular.

Por isso escreve Vaz Serra: "Quem abusa do direito utiliza-o fora das condições em que a lei permite, e o efeito deve ser, portanto, em princípio, o que resultaria do exercício de um direito só aparente, isto é, da falta de direito" (10). Mas o abuso de direito pressupõe a existência e a titularidade de um poder formal, que constitui a verdadeira substância do direito subjectivo.
 
Daí a noção dada pelo Prof. Antunes Varela: "Designa-se por abuso do direito o exercício do poder formal realmente conferido pela ordem jurídica a certa pessoa, mas em aberta contradição, seja com o fim (económico ou social) a que esse poder se encontra adstrito, seja com o condicionalismo ético-jurídico (boa fé; bons costumes) que, em cada época história, envolve o seu reconhecimento" (11)

A este propósito, apuraram-se os seguintes factos:

- Os vestíbulos de cada andar estão separados da escada  de serviço, através de uma porta, sendo o único meio de acesso ao mesmo o elevador principal, apenas utilizado pelos condóminos proprietários da fracção correspondente ao andar.

- Os RR. ligaram fisicamente as fracções “L” e “M”, e no espaço que fica delimitado pelas escadas de acesso ao 5º andar, a saída do ascensor para o mesmo piso, bem como as paredes exteriores das fracções autónomas “L” e “M”, e as portas de entrada delas (vestíbulo), levaram a efeito uma construção em alvenaria de uma parede, suprimindo aproximadamente metade da área do referido vestíbulo, que ocupam.

- A A. mantém o vestíbulo do 4º andar fechado à chave.

Como se disse, só existe abuso de direito quando o seu titular exceder manifestamente  os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito. É, pois, necessário que o titular exceda manifestamente tais limites.

Trata-se, contudo, de uma noção de difícil aplicação, pois estão em causa conceitos indeterminados que carecem de ser concretizados pelo julgador, a fim de possibilitarem a sua aplicação aos casos concretos.

Para o caso apenas nos interessa considerar o que deva entender-se por boa fé e pelo fim social e económico do direito, pois, decididamente, não estão em causa os bons costumes.

Agir de boa fé quer dizer que cada pessoa deve adoptar nas relações com as outras um comportamento honesto, leal e correcto, não defraudando a legítima confiança ou expectativa destas (pessoas).

Por isso escreve Vaz Serra na citada obra (pag. 265): "A ideia de abuso do direito pode muitas vezes estar incluída na violação da boa fé. É o que se dará, em regra, no domínio contratual, onde as partes devem proceder segundo a boa fé: aí, o abuso do direito será frequentemente uma ofensa da boa fé devida. De modo que não valeria a pena falar aqui em abuso de direito, bastando o dever de boa fé para basear as soluções, se é que a boa fé não é, por sua vez, uma aplicação da teoria do abuso de direito".

Mas, como diz Menezes Cordeiro, "o abuso do direito constitui a fórmula mais geral de concretização do preceito da boa fé" (12)

Com o princípio da boa fé está intimamente relacionado o princípio da tutela da confiança, que deve pautar as relações entre as pessoas de boa conduta.

O princípio da boa fé ou, até mesmo, o princípio da confiança, é um princípio ético-jurídico fundamental que a ordem jurídica não pode deixar de tutelar e preservar.

Como manifestação da teoria do abuso do direito, no segmento conexo com os limites impostos pela boa fé, tem-se desenvolvido o princípio da proibição do “venire contra factum proprium”, princípio que tutela em primeira linha a confiança interpessoal, bem como a expectativa que se tem relativamente ao comportamento alheio devido à convicção que, de algum modo, foi criada pelo sujeito do mesmo comportamento. A proibição da conduta contraditória em face da convicção criada, implica que o exercício do direito seja abusivo por ilegítimo. Nas palavras de Vaz Serra, in RLJ, ano 105.º, p. 28, o princípio da proibição do “venire contra factum proprium”  impede “que alguém exerça o seu direito em contradição com a sua conduta anterior em que a outra parte tenha confiado”. É a consagração do princípio da responsabilidade pela confiança.

Mas não nos parece que esteja aqui em causa a violação do princípio da boa fé.

Os RR, na referida parte comum do edifício, fizeram uma construção, em alvenaria, de uma parede, suprimindo cerca de metade da área relativa ao vestíbulo, sem autorização dos restantes condóminos. E, sabendo eles que tal espaço é comum, sendo, por isso, susceptível de ser utilizado pelos restantes condóminos, bem sabiam que não podiam fazer tal construção.

O facto de a autora ter fechado à chave a porta que dá cesso ao vestíbulo do seu andar não pode ser entendido como violação de tal princípio nem do “venire contra factum proprium”.

Trata-se notoriamente de situações diferentes, pois uma porta fechada facilmente poderá ser aberta, o que não sucede com a demolição duma parede. Em situações de emergência uma porta pode ser arrombada, o que não sucede, pelo menos com tanta facilidade, com o derrube duma parede.

Refere-se na douta sentença que “quem viola uma determinada norma jurídica não está legitimado a exercer um direito imputando a terceiro a violação dessa mesma norma”.

E na verdade, também o abuso de direito pode concretizar-se na expressão latina “tu quoque” (também tu”). Esta ideia reside no seguinte: aquele que viole uma norma jurídica não pode tirar partido dessa violação exigindo a outrem o acatamento das consequências daí resultantes. Se pretendesse fazê-lo, a sua conduta seria detida pela excepção tu quoque.

Com efeito, repugna à consciência ético-jurídica que alguém invoque um direito prevalecendo-se da própria violação. Mas também não é admissível que alguém possa levar a cabo violações jurídicas a pretexto de que outrem já fez a mesma coisa.

Mas tal não se verifica pelo facto de a autora ter fechado o vestíbulo do 4º andar, salvo melhor opinião.

Outra categoria de comportamentos abusivos é constituída pelo “desequilíbrio no exercício de posições jurídicas”, nomeadamente através do exercício danoso inútil (que consiste no exercício de um direito de modo inútil, com o único objectivo de provocar danos na esfera jurídica de outrem (13)) e da desproporcionalidade entre a vantagem auferida pelo titular e o sacrifício imposto pelo exercício a outrem: essa desproporcionalidade, ultrapassando certos limites, é abusiva, infringindo os princípios da boa fé (14).
 
Integram-se aqui as situações como o desencadear de poderes – sanção por faltas insignificantes, a actuação de direitos com lesão intolerável de outras pessoas e o exercício jurídico – subjectivo sem consideração por situações especiais.

Com a consagração do instituto do abuso de direito pretendeu o legislador criar uma válvula de segurança que impedisse que a aplicação estrita do direito conduzisse a situações de clamorosa injustiça, violadora de princípios e valores básicos da comunidade.

A função económica e social do direito tem a ver com a sua configuração real, a apurar através da interpretação. Se um direito é atribuído com certo perfil, já não haverá “direito” quando o titular desrespeitar tal norma constitutiva... (15) »

O exercício de um direito é abusivo quando ocorrerem circunstâncias excepcionais, nomeadamente, quando for exercido fora do seu escopo normal e sem razão justificativa, apenas com a finalidade de causar danos a terceiros e quando houver manifesta desproporção entre os benefícios visados pelo seu titular e o prejuízo causado a outrem ou quando a anterior conduta do seu titular se manifestar incompatível com tal exercício.

Assim sendo, não pode o titular do direito actuar de forma a desvirtuar as finalidades que estiveram na base da sua atribuição. Está assim vedado, designadamente, o exercício do direito de forma emulativa, apenas para causar um prejuízo a terceiro, sem que daí advenha qualquer benefício para o seu titular.

Mas a aplicação deste instituto depende de terem sido alegados e provados os respectivos pressupostos. Não obstante o abuso de direito ser de conhecimento oficioso, a verdade é que só pode ser aplicado mediante a prova dos respectivos factos.

Em jeito de conclusão foi referido na douta sentença: «No caso vertente, como já se referiu, nenhum prejuízo sofre a A. com a utilização que os RR. fazem do vestíbulo que serve unicamente as suas fracções, tanto mais que é possível o acesso de qualquer condómino, quer pelas escadas, quer pelo elevador……….

A pretensão da A. nesta parte não pode deixar de improceder por se configurar abusiva».

É certo que ficou provado que o vestíbulo é utilizado apenas pelos próprios RR, donos das facções. A verdade é que se trata de uma parte comum do edifício e nela fizeram os RR as referidas obras “suprimindo metade da área do vestíbulo que ocupam”.

As obras realizadas constituem inovações, e são capazes de prejudicar a utilização do vestíbulo pelos outros condóminos.

Portanto, ilegitimamente, fizeram sua  uma parte comum do edifício.

E se os restantes condóminos não têm agora necessidade de utilizar o vestíbulo, poderão necessitar de o fazer no futuro, dentro dos respectivos limites, não podendo, por isso, qualquer dos condóminos apossar-se de partes comuns.

Salvo melhor opinião, não se trata de uma situação de clamorosa injustiça relativamente aos RR. E nem sabemos (porque dos autos não consta) qual o prejuízo que efectivamente eles poderão sofrer com a demolição da parede. E parece-nos não se poder dizer que a autora está a actuar de tal forma que não retira qualquer benefício pessoal do exercício do direito, assim causando um dano considerável aos RR.

Os próprios apelados não invocam expressamente o abuso de direito, limitando-se a elencar os factos constantes do artigo 3º da contestação.

É certo que este pedido melhor teria sido feito pela administração do condomínio, mas nada impede que a autora o faça na qualidade de comproprietária que é do vestíbulo (artºs. 1405º e 1406º do CC).

E há que ter em consideração que as obras no vestíbulo foram feitas aquando das restantes realizadas nos andares dos RR, pelo que nem se pode dizer que a autora apenas teve em mente prejudicar os RR sem daí retirar qualquer benefício.

Em síntese: mediante os factos provados parece-nos não se poder dizer que a autora, no exercício do seu direito de exigir a demolição da parede, excedeu manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social e económico desse direito.

C- Do pedido na parte relativa às fracções dos R.R. (nº 3)

Resta analisar a terceira questão: reposição das fracções autónomas dos R.R. no estado em que se encontravam antes da sua intervenção, com demolição das novas paredes construídas  e reconstrução das antigas.

São os seguintes os factos apurados com relevância para esta questão:

- No 5º andar direito e esquerdo foi alterada a compartimentação, com supressão de algumas paredes e fecho de vãos e portas.

- Foram suprimidas as paredes entre a cozinha e o quarto da criada.

-  Foi suprimida, até ao nível do tecto, a parede entre a sala comum e o quarto adjacente.

- A supressão das paredes resistentes das vigas é susceptível de provocar a transmissão de esforços adicionais para as estruturas resistentes do piso superior, 6º andar.

- o pavimento do quarto adjacente à sala comum dos RR, sobre a laje danificada, encontra-se sobrelevado em relação ao restante pavimento da fracção.


E não se provaram os seguintes:

4. Os RR. suprimiram uma viga que se encontra entre as fracções “L” e “M”, - viga V6 - com as dimensões 0,45 x 0,15 metros;

7. A estrutura do edifício mencionado no anterior artigo 1º foi construída numa altura em que coexistiam numa mesma construção as estruturas resistentes de betão (lajes, vigas e pilares) e de alvenaria resistente (paredes de tijolo resistente suportando lajes de betão);

8. No perímetro do edifício existem vigas e pilares, mas nos compartimentos interiores foi adoptado o sistema de paredes resistentes suportando lajes de betão;

9. A supressão das paredes resistentes das vigas provocou um aumento no vão da laje provocando-lhe deformações e transmitindo para as estruturas resistentes do 4º andar esforços adicionais para os quais não estão dimensionadas;

A ligação de duas fracções  contíguas não carece de autorização dos restantes condóminos como resulta do preceituado no artigo 1422º- A, nº 1, C.C., na redacção  dada pelo Decreto-Lei 267/94, de 25.10. De qualquer forma as obras terão de ser feitas com respeito pelos direitos dos restantes condóminos.

Com efeito:
1. Cada condómino é proprietário da fracção que lhe pertence e comproprietário das partes comuns do edifício (art.º 1420º, nº 1);
2. Os condóminos, nas relações entre si, estão sujeitos, de um modo geral, quanto às fracções que exclusivamente lhes pertencem…às limitações impostas aos proprietários de coisas imóveis (art.º 1422º, nº 1)

Relativamente às demais obras realizadas nas fracções dos RR., importa determinar se as mesmas estão sujeitas à autorização dos condóminos, o que passa pela interpretação da norma constante do artigo 1425º, nº 1, que estabelece que as obras que constituam inovações dependem da aprovação da maioria dos condóminos, devendo essa maioria representar dois terços do valor total do prédio.

Mas este artigo diz respeito apenas às inovações nas partes comuns do edifício, não sendo, por isso, aplicável às inovações introduzidas nas fracções autónomas (Henrique Mesquita RDES, XXIII-139-nota 139).

Com efeito, não se vê qualquer razão para que as obras feitas nas fracções autónomas dependam da autorização dos demais condóminos. Sendo cada um deles proprietário exclusivo da fracção que lhe pertence – artigo 1420º, nº 1 - não se justifica que os outros condóminos possam interferir na realização dessas obras, desde que se mantenham dentro dos limites traçados no artigo 1422º, designadamente no nº 2, alínea a): desde que não prejudiquem  a segurança, a linha arquitectónica ou o arranjo estético do edifício.

Tratando-se de obras no interior da fracção apenas poderá estará em causa a segurança do edifício. E, como é evidente, essas obras não poderão prejudicar os restantes condóminos. Mas aqui nem se coloca a questão de essas obras serem autorizadas.

Portanto, os condóminos não poderão fazer obras que prejudiquem a linha arquitectónica ou o arranjo estético do edifício. Todavia, o artigo 1425º não é aplicável às inovações feitas pelos condóminos nas suas fracções autónomas, pois é pressuposto não serem visíveis do exterior. Nem isso é invocado na presente acção.

Como dissemos, cada condómino é proprietário exclusivo da fracção que lhe pertence. E, por isso, os condóminos, nas relações entre si estão sujeitos, de um modo geral, quanto às fracções que exclusivamente lhe pertencem, às limitações impostas aos proprietários de coisas imóveis. Daí poder cada condómino proceder à realização de obras nos termos referidos, sem autorização dos restantes.

Ora, da matéria de facto dada como provada não resulta que as obras efectuadas pelos RR. nas suas fracções tenham posto em causa a segurança do edifício nem que a compartimentação resultante dessas obras tenha provocado alteração do número de divisões relativamente ao que consta do título constitutivo da propriedade horizontal. E do mesmo modo não se provou que as obras feitas pelos RR possam causar prejuízos no andar da autora.
*

Pelo exposto acorda-se em julgar a apelação parcialmente procedente e em consequência altera-se a sentença recorrida nos termos seguintes:
1. Na parte relativa à alteração da matéria de facto, como consta do nº  II
2. Vão os RR condenados a demolir a parede que mandaram construir no “hall” ou vestíbulo do 5º andar e a reporem a configuração do mesmo tal como se encontrava antes das obras por eles realizadas.
3. No mais mantém-se a sentença recorrida.

Custas por apelante e apelados na proporção de ¾ e ¼ respectivamente.

Lisboa, 24.10.2006.

Pimentel Marcos
Abrantes Geraldes
Maria do Rosário Morgado



___________________________________________
1.-Na elaboração do relatório deste recurso foi utilizado o suporte informático enviado pelo tribunal recorrido, pelo que, no essencial, se transcreve.

2.-Teixeira de Sousa, In Estudos, pag. 348.

3.-Abrantes Geraldes, in “Temas da Reforma... Vol. II pag. 256.

4.-Não obstante a vigência entre nós do princípio da livre apreciação da prova, casos existem em que não podem ser dispensados certos formalismos, ou seja, existem limitações à regra da livre admissibilidade dos meios de prova, como por exemplo a prova por confissão, por documentos e por presunções legais ( nº 2 do artº 655º).

5.-Alberto dos Reis, in CPC Anotado, vol. IV, pag. 570.

6.-Cf. Pires de Lima e A. Varela em anotação ao artigo 483º do CC.

7.-A. Varela, Obrigações, I-456.

8.-I Galvão Telles, in “Direito das Obrigações, pag. 266 (1982).

9.-A. Varela in "Das Obrigações em Geral", vol. 1, pag 438 - 3ª edição.

10.-Abuso de Direito, nº 5.

11.-RLJ Ano 114, pag 75.

12.-Tratado de Direito Civil I, tomo I-191.

13.-O titular do direito actua de tal forma que não retira qualquer benefício pessoal do seu exercício, causando um dano considerável a outrem.
Menezes Cordeiro, ob, cit. pag. 211 e 212.
Menezes Cordeiro ob cit. pag. 194