Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
10933/2006-7
Relator: ABRANTES GERALDES
Descritores: EMBARGO DE OBRA NOVA
COMPETÊNCIA MATERIAL
CONTENCIOSO ADMINISTRATIVO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 12/21/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário: I- Procedendo-se a obra num imóvel na sequência de intimação da Câmara Municipal para realização de obras coercivas, a questão de saber se determinadas obras que estão a ser realizadas nesse mesmo imóvel se encontram ao abrigo dessa intimação não deixa de caber ao contencioso administrativo visto que, relativamente a todas as obras em curso, a entidade municipal actua ao abrigo do jus imperii exercendo a sua ampla competência em matéria de urbanismo e de verificação e sanação de situações de insalubridade e perigo
II- Por tal razão estava o tribunal judicial impedido de decretar o embargo de obra nova face ao disposto no artigo 414.º do Código de Processo Civil
III- E sempre a pretensão da requerente improcederia considerando a ilegitimidade passiva decorrente da falta de demanda do Município de Lisboa pois a sociedade demandada intervém tão somente como executora material de obras que lhe foram indicadas pela Câmara municipal de Lisboa e não na realização de um interesse próprio que é do Município.
IV- A circunstância de o auto de ratificação de embargo (artigo 418.º do Código de Processo Civil) poder ser assinado por quem dirigir a obra, se o dono não estiver presente, não afasta a regra da legitimidade passiva que é sempre do dono da obra.
(SC)
Decisão Texto Integral: I – E.[…] Ldª,

agravou do despacho que julgou improcedente o procedimento cautelar de embargo de obra nova que requereu contra

ED.[…], SA, e M.[…] SA.

Alegou a agravante que, apesar de ter impugnado o acto administrativo da Câmara Municipal de Lisboa (CML) relacionado com a intimação para a realização de obras coercivas e com a posse administrativa do prédio de que é proprietária, deve ser decretado o embargo da obra referente ao 5º andar e ao telhado do prédio que não ficaram abarcados por tal actuação administrativa.

Conclui a agravante que:
a) As obras que pretende embargar não se encontram abrangidas por qualquer decisão administrativa da Câmara Municipal de Lisboa, nos termos e para efeitos do art. 414º do CPC.
b) Além disso, a decisão camarária foi objecto de impugnação mediante instauração de acção administrativa.
c) As obras estão a ser executadas por entidades particulares num prédio que pertence à agravante, estando sujeitas ao disposto no art. 412º do CPC.


Não foram apresentadas contra-alegações, porquanto a decisão agravada foi proferida sem que as requeridas tivessem sido citadas para intervir.

II – Decidindo:

1. Decorre da decisão da matéria de facto, aliás, em correspondência com o que a agravante alegou no requerimento inicial e com os documentos que apresentou, que a agravante foi intimada pela CML a realizar obras de conservação num prédio de que é proprietária verificadas que foram as más condições de salubridade.

No auto de vistoria ficou expresso que o elemento estrutural que oferecia maior risco era a varanda corrida ao nível do 4º andar e que as causas da insalubridade estarão relacionadas com o deficiente isolamento da cobertura e das fachadas, assim com o estado das canalizações. Mas muitas outras deficiências foram detectadas, referindo-se designadamente que “o beirado, cimalha e mansardas da cobertura apresentam manchas negras de humidade e fissuração dispersa” ou que, relativamente à fachada lateral direita, “a cimalha apresenta manchas negras de humidade e verdete. O beirado apresenta telhas partidas, manchas negras de humidade e verdete. Nas mansardas a cimalha e o beirado apresentam manchas negras de humidade e verdete”. Quanto à cobertura ficou referido que “não foi possível visitar, presumindo-se que o sistema de impermeabilização se encontre deficitário”.

Por essas e outras deficiências se deixou expresso no referido auto que deveriam realizar-se obras de reparação no prédio, com vista à eliminação das anomalias indicadas, com prioridade atribuídas às anomalias referidas nos §§ 2 e 3, assim como deveriam realizar-se os trabalhos que no decorrer da obra se venham a verificar necessários.

Subsequentemente foi notificada a agravante nos termos que constam de fls. 22 a 24, designadamente para “executar as obras necessárias à correcção das deficiências descritas no auto de vistoria” e ainda as “restantes obras de conservação necessárias para manter a edificação nas condições existentes à. data da sua construção …”.

Como a agravante não as tivesse realizado no prazo fixado, a CML tomou a posse administrativa do imóvel e contratou as requeridas para executarem as obras coercivas que envolvem todo o prédio, incluindo o 5º andar e o telhado.

2. No despacho agravado considerou-se que as referidas obras também estavam abarcadas pelo acto administrativo, pelo que podem ser objecto de embargo, atento o disposto no art. 414º do CPC.

A agravante entende que o processo administrativo que conduziu à posse administrativa e à realização de obras coercivas apresenta irregularidades que permitem concluir que a intervenção situada ao nível do telhado e do 5º andar não está coberta pela intimação que lhe foi feita, correspondendo a uma actuação de facto sindicável nos tribunais judiciais, sem o impedimento que decorre do art. 414º do CPC.

Nos termos do art. 414º do CPC não podem ser embargadas (leia-se, embargadas através do procedimento cautelar específico denominado “embargo de obra nova”, previsto no CPC, da competência dos tribunais judiciais) obras de pessoas colectivas públicas quando o litígio se reportar a uma relação jurídico-administrativa e a defesa dos direitos ou interesses lesados deva efectivar-se através dos meios previstos na lei do processo administrativo contencioso.

Compreende-se facilmente este preceito, cuja redacção foi introduzida pela Reforma de 1996, com o intuito claro de reservar para os tribunais administrativos a competência para dirimir conflitos entre autoridades administrativas e os administrados, ainda que mediatamente esteja em causa um direito de natureza privada.

3. No caso concreto, o processo de intimação para a realização de obras coercivas abarcou todo o prédio, sendo também todo ele abarcado pela posse administrativa a favor da CML. Além disso, ainda que não tenha sido especificamente vistoriado o 5º andar, por não ter sido proporcionada a entrada dos peritos, o parecer final e o acto administrativo que se seguiu não deixam dúvidas quanto ao facto de a intimação camarária e a posterior determinação da realização de obras coercivas se reportarem a todo o prédio, sem exclusão daqueles espaços.

De modo algum pretensas insuficiências do processo administrativo relacionadas com tais espaços permitem cindir o litígio, reservando para os tribunal judicial, através do embargo de obra nova, a discussão em redor da legitimidade da ocupação do 5º andar e do telhado, mantendo-se no tribunal administrativo a discussão acerca da legitimidade da intervenção camarária ao abrigo dos seus poderes em matéria de urbanismo.

A argumentação da agravante é contrariada quando nos confrontamos com o facto de que obras de conservação geral, como as que foram determinadas pela CML, envolvendo elementos estruturais do prédio e canalizações, implicarem necessariamente também com o 5º andar e com o telhado. Aliás, o deficiente isolamento da cobertura foi considerado no auto de vistoria como uma das causas das deficientes condições de salubridade em que o prédio se encontra.

Assim, mesmo relativamente ao 5º andar e ao telhado, estamos perante um conflito jurídico-administrativo que deve ser dirimido pelos meios proporcionados pelo contencioso administrativo e dentro da esfera de jurisdição dos tribunais administrativos. Trata-se de uma situação em que o Município de Lisboa, através das requeridas, ainda actua ao abrigo do “jus imperii” de que é titular enquanto autoridade administrativa com larga competência em matéria de urbanismo e de verificação e sanação de situações de insalubridade ou de perigo.

Por conseguinte, estava o Tribunal a quo impedido de decretar o embargo de obra nova, atento o disposto no art. 414º do CPC.

4. Mas, ainda que outra fosse a solução em face do disposto no art. 414º do CPC, nem assim se verificariam condições para acolher a pretensão da agravante.

A tal obstaria a ilegitimidade passiva decorrente da falta de demanda do Município de Lisboa.

É a própria agravante que no requerimento inicial alega que as requeridas intervêm como executoras materiais de obras que lhe foram indicadas pela CML e não na realização de um interesse próprio.

Nestas circunstâncias, a entidade que no litígio tem um interesse próprio, directo e imediato é o Município de Lisboa. Tendo emanado deste a ordem de execução de obras por parte da agravante e, ante a inércia desta, a determinação da sua realização coercivas, é essa entidade quem está em posição de discutir com a agravante a legalidade dos procedimentos ou o âmbito material da actuação administrativa.

É verdade que o art. 418º, nº 2, do CPC, admite que possa ser notificado do embargo a entidade que esteja a executar as obras. Mas tal preceito apenas funciona no momento da notificação da decisão que decrete o embargo (ou em caso de notificação do embargo extrajudicial) não podendo extrair-se daí regra diversa da emerge do art. 26º do CPC, que a confere ao dono da obra (Moitinho de Almeida, Embargo ou Nunciação de Obra Nova, 2ª ed., pág. 42).

Seria, na verdade, estranho que, sendo da exclusiva responsabilidade do Município de Lisboa a posse administrativa que abarcou todo o prédio e a responsabilidade pelas obras que se estão processando, o procedimento cautelar pudesse prosseguir sem a sua intervenção, apesar de lhe pertencer o interesse directo em contraditar os factos e os argumentos invocados e a pretensão deduzida.

III – Face ao exposto, nega-se provimento ao agravo, confirmando a decisão recorrida.

Custas a cargo da agravante.

Notifique.

Lisboa, 21-12-06

(António Santos Abrantes Geraldes)