Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
842/18.0T9VFX-A.L1-3
Relator: MARIA PERQUILHAS
Descritores: RESPONSABILIDADE CIVIL SUBSIDIÁRIA
ABUSO DE CONFIANÇA FISCAL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 09/28/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário: O vertido no artigo 8°, n.°1, al. a) do RGIT não opera iuris tantum, pois que, verificada a falta de pagamento da pena de multa em que foi condenada a pessoa coletiva, o devedor subsidiário só pode ser demandado na ausência total ou parcial, de bens do obrigado principal e desde que se alegue e prove que atuou com culpa (dolo ou negligência) para a insuficiência dos bens da sociedade.


Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Lisboa


I–RELATÓRIO:


1–No dia 9 de dezembro de 2021 o MP promoveu o seguinte:
Atenta a data em que foi proferida sentença de declaração de insolvência da sociedade arguida, mostra-se desprovido de efeito útil requerer a extracção de certidão para efeitos de verificação ulterior de créditos, porquanto se mostram ultrapassados os prazos previstos no artigo 146° n.° 2 al. b) do CIRE. Promovo que seja dado cumprimento ao disposto no artigo 8° n.°1 al. a) do RGIT.

Em 25 de Janeiro de 2022 foi proferido o seguinte despacho:
Proceda como promovido.

Inconformado com este despacho veio CM_____recorrer para este Tribunal, apresentando as seguintes conclusões:
1.O presente recurso tem por objeto o despacho proferido, em 25/01/2022, pela Meretíssima Juiz a quo, a fls  mediante o qual decidiu proceder conforme promoção do Ministério Público, no sentido de dar cumprimento ao disposto no artigo 8° al. a) do RGIT. atribuindo responsabilidade subsidiária ao arguido CM_____pelo pagamento da pena de multa, do valor de 750.00C (setecentos e cinquenta euros).
2.Nos presentes autos de processo-crime, a sociedade arguida TRANSPORTES VALE DE SUMO, LDA, foi condenada pela prática de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, na pena de multa, do valor global de 750,00€ (setecentos e cinquenta euros) e o arguido, aqui recorrente, CM_____pela prática de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, na pena de multa, do valor global de 600.00€ (seiscentos euros). tendo o apontado arguido procedido ao pagamento da referida multa penal.
3.A sociedade arguida TRANSPORTES VALE DE SUMO, LDA, foi declarada insolvente, mediante sentença proferida em 10/05/2017, transitada em julgado em 06/06/2017, no âmbito do processo n° 1543/17.2T8VFX, que correu seus termos pelo Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Norte Processo, Juízo de Comércio de Vila Franca de Xira-Juiz 3, tendo a insolvência sido qualificada como fortuita, mediante sentença proferida em 10/10/2020, no âmbito do processo n° 1543/17.2T8VFX-F, que correu seus termos pelo Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Norte Processo, Juízo de Comércio de Vila Franca de Xira-Juiz 3.
4.Não tendo sido requerida atempadamente a verificação do crédito do Estado correspondente àquela pena multa, requereu o Ministério Público a declaração de responsabilidade civil subsidiária do arguido CM_____ pelo pagamento da pena de multa, do valor de 750.00C (setecentos e cinquenta euros), aplicada à sociedade arguida Transportes Vale de Sumo, Lda, declarada insolvente, previamente à condenação no apontado processo crime.
5.O recorrente discorda da decisão proferida, pelo que cumpre apreciar se estão verificados os pressupostos previstos no artigo 8º, n.° 1, al. a), do RGIT.
6.O vertido no artigo 8°, n.°1, al. a) do RGIT não opera iuris tantum, pois que, verificada a falta de pagamento da pena de multa em que foi condenada a pessoa colectiva, o devedor subsidiário só pode ser demandado na ausência total ou parcial, de bens do obrigado principal e desde que se alegue e prove que atuou com culpa (dolo ou negligência) para a insuficiência dos bens da sociedade, o que não se verificou nos presentes autos.
7.Tal pressuposto nunca se poderia ter como verificado, porque inexiste culpa sua na insuficiência de património da sociedade para efetuar ou assegurar o pagamento da multa em que foi condenada, tendo a sociedade arguida sido declarada insolvente por sentença judicial proferida em 10/05/2017, transitada em julgado, em 06/06/2017, insolvência que, por sentença proferida em 10/10/2020, no respetivo incidente de qualificação - que correu termos pelo Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Norte Processo. Juízo de Comércio de Vila Franca de Xira - Juiz 3. processo n° 1543/17.2T8VFX-F foi qualificada como fortuita.
8.Estando, como está, por demonstrar a culpa do ora recorrente na alegada insuficiência de bens da sociedade arguida, não se verificam preenchidos os pressupostos legais de que depende a aplicação do artigo 8°, n.° 1. al. a) do RGIT e consequentemente, a respetiva responsabilização subsidiária pelo pagamento da multa em questão.
padecendo o despacho recorrido, na parte em que fundamentado na citada norma, de ilegalidade.
9.Para além disso, a responsabilidade civil subsidiária a que alude o artigo 8°, n.° 1 do RGIT tem de ser declarada na sentença e atuada pelo mecanismo de reversão fiscal, o que também não verificou.
10.Transitada em julgado a decisão proferida, o Juiz vê esgotado o seu poder jurisdicional, não podendo, pois, imputar mais nenhuma responsabilidade ao arguido para além da que aquela decisão declarou e nos precisos e concretos termos do que ali foi declarado, podendo, tão- só, corrigi-la, nos termos do disposto no artigo 380° do CPP, sob pena de violação do princípio ne bis idem consagrado nos artigos 29°, n.° 5 e 18° n° 1 da CRP, do que resulta que não se pode ir para além do que na decisão que condenou o arguido se encontra declarado - seja em termos de condenação penal, seja em termos de responsabilidade civil.
11.Na decisão que condenou o ora recorrente nada se cotejou relativamente aos factos que, segundo o disposto no invocado artigo 8°. n.° 1. al. a), do RGIT. Constituem pressuposto da responsabilização subsidiária e, consequentemente, nada se dispôs relativamente à responsabilidade subsidiária do mesmo no que concerne ao pagamento da multa em que foi condenada a sociedade arguida.
12.Apenas, agora, na sequência da promoção do Ministério Público, foi pelo Tribunal a quo proferida decisão sobre tal matéria e declarada a responsabilidade em face do disposto no artigo 8o, n.° 1, al. a), do RGIT do ora recorrente.
13.artigo 8° do RGIT reporta-se a infrações fiscais em que o lesado seja a Administração Fiscal: isto é, aplica-se quando, por virtude da atuação de um gerente, o Fisco deixou de receber uma quantia que lhe era devida e que teria sido paga, caso não tivesse ocorrido o esgotamento culposo do património da sociedade.
14.Assim, há que concluir que o artigo 8° do RGIT é inaplicável a casos em que a eventual responsabilidade civil dos gerentes se funda numa condenação em pena de multa, proferida em processo-crime.
15.Considerando o supra exposto, a decisão recorrida viola, nomeadamente, o disposto no artigo 8º, n.° 1, al. a), do RGIT e artigo 491° do CPP, sendo, em consequência, ilegal o despacho recorrido.
16.Por outro lado, a aplicação da norma do artigo 8º, n.° 1, al. a) do RGIT, na situação em apreço, consubstancia, de facto, uma responsabilização pelo pagamento de uma sanção penal de outrem, estabelecida única e exclusivamente em função do responsável primário.
17.Ademais, considerando que se o “responsabilizado civil e subsidiariamente” efectuar o pagamento da multa em que foi condenada a sociedade arguida fica esta desobrigada de o fazer, o que significa que se entendem (embora não se perceba como, uma vez que a responsabilidade criminal é própria) satisfeitos os fins preventivos e repressivos que subjazem à aplicação de uma pena em processo crime, ter-se-á que concluir, também por este motivo, pela existência da transmissão para aquele da pena em questão.
18.Assim, está patenteada a violação dos princípios constitucionais ne bis idem (artigos 18° n° 1 e 29° n° 5 da CRP), da culpa (artigos 1o e 27° da CRP), da igualdade (artigo 13° da CRP) e proporcionalidade (artigo 18° da CRP) e, bem assim, por violação do princípio da intransmissibilidade das penas (artigo 30°, n.° 3, da CRP), razão pela qual se impõe a sua não aplicação, designadamente, no caso em apreço.
19.ora recorrente cumpriu integralmente a pena de multa que lhes foi autónoma e individualmente imposta pela sentença condenatória.
20.Pelos motivos acima vertidos, não poderá manter-se o despacho recorrido, que determina a responsabilidade subsidiária do ora recorrente pelo pagamento da multa em que foi condenada a sociedade arguida.
21.Não sendo sufragado o entendimento postulado anteriormente, ainda assim entende o recorrente, que o Ministério Público deveria ter acionado o mecanismo previsto no artigo 146°, n° 2 al. a) do CIRE, que, sob a epígrafe Verificação ulterior de créditos ou de outros direitos, consagra o seguinte: O direito à separação ou restituição de bens pode ser exercido a todo o tempo, mas a reclamação de outros créditos, nos termos do número anterior: a) Não pode ser apresentada pelos credores que tenham sido avisados nos termos do artigo 129°, excepto tratando-se de créditos de constituição posterior.
22.São créditos de constituição posterior, para efeitos do artigo 146°, n° 2 al. a) do CIRE, aqueles que se vencerem posteriormente ao terminus do prazo de impugnação da relação de créditos estabelecido no artigo 130° do CIRE.
23.crédito aqui em causa é de constituição posterior, pelo que poderia e deveria ter sido reclamado no processo de insolvência da sociedade arguida Transportes Vale de Sumo, Lda, cuja liquidação e rateio ainda se encontra por realizar.
24.Não deverá assim manter-se na ordem jurídica o despacho recorrido, porque, por um lado, não estão preenchidos os requisitos previstos no artigo 8°, n° 1, al. a) do RGIT, e, por outro lado, com a aplicação do artigo 8°, n.° 1, al. a) do RGIT, mostram-se violados os princípios constitucionais ne bis idem (artigos 18° n° 1 e 29° n° 5 da CRP), da culpa (artigos 1o e 27° da CRP), da igualdade (consagrado no artigo 13° da CRP), da proporcionalidade (artigo 18° da CRP) e, bem assim, da intransmissibilidade das penas (artigo 30°, n.° 3, da CRP).
Termos em que e nos mais de direito deve o presente recurso ser julgado provido e, consequentemente, ser revogado o douto despacho recorrido, concluindo-se não ser o recorrente responsável pelo pagamento da multa em que a sociedade arguida foi condenada, com o que se fará a
COSTUMADA JUSTIÇA!
*

Recebido o recurso, o M.P. na primeira instância apresentou a sua resposta pugnando pelo seu não provimento apresentando para o efeito as seguintes conclusões:

Conclusões:
1.Afigura-se não assistir razão ao arguido-recorrente, quando sustenta não lhe ser aplicável o disposto no artigo 8.° n.° 1 al. a) do RGIT, transcrito em sede de motivação, com fundamento na circunstância de que a insolvência da sociedade arguida foi julgada fortuita.
2.A sociedade arguida - Transportes Vale de Sumo, Lda., foi condenada na pena de 150 dias de multa à taxa diária de € 5,00, pela prática de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social na forma continuada, cujos factos típicos integrantes do ilícito foram praticados durante a gerência exclusiva, do arguido CM_____ora recorrente.
3.Decorre, além do mais, dos factos provados da sentença condenatória (a qual não foi objecto de recurso), parcialmente transcritos em sede de motivação, que “(• ••) desde 19 de Novembro de 1986, o arguido, CM____assume as actividades de gestão e administração da sociedade comercial supramencionada, administrando-a e decidindo em seu nome e no seu interesse, competindo-lhe determinar a afectação dos meios financeiros ao cumprimento das respectivas obrigações correntes (...)
4.Mais resulta que em momento anterior a Setembro de 2006 “o arguido, agindo em representação e no interesse da sociedade arguida, decidiu não fazer a entrega, nos cofres da Segurança Social, dos montantes que a sociedade viesse a deduzir dos salários dos respectivos trabalhadores e gerentes, a título de contribuições obrigatórias para aquela entidade, bem sabendo que lhe pertenciam e lhe deveriam ser entregues.” Actuação que manteve no período compreendido entre Setembro de 2006 e Maio de 2017, locupletando-se com os valores não entregues à Segurança Social no montante global de € 84.377,41 euros.
5.Mais decorre da motivação da douta sentença que o arguido CM_____agiu com dolo directo, na medida em que não entregou à segurança social os valores que lhe eram devidos, optando por afectar estes valores a outras despesas, como as remunerações de trabalhadores e a sua própria remuneração, pagamento a fornecedores e outras.
6.Assim, dúvidas não existem que o arguido agiu com culpa, nem poderia ser de outro modo, visto que sem culpa/dolo, não poderia o mesmo ser condenado por um crime de abuso confiança contra a segurança social, culpa que não é afastada pela qualificação da insolvência da sociedade como fortuita, ao contrário do pretendido pelo recorrente.
7.O objecto dos presentes autos reporta-se ao período entre 2006 e 2017, estando em causa a ausência da entrega de valores devidos à segurança social por período superior a 10 anos, pelo que não podemos deixar de referir que aferir a culpa para avaliar a prática de um crime de abuso de confiança contra a segurança social e a “contribuição” do arguido para a insuficiência de bens da sociedade, e aferir a culpa para avaliar uma insolvência como culposa são operações necessariamente distintas e temporalmente diversas.
8.Como resulta do Acórdão da Relação de Guimarães de 10.07.2014, in www.dgsi.pt “o n°. 1 do artigo 8° do RGIT estabelece a responsabilidade subsidiária a efectivar contra os administradores, gerentes ou outras pessoas que exerçam, ainda que somente de facto, funções de administração em pessoas colectivas, sociedades” ... etc.) se verificadas determinadas circunstâncias (reconduzíveis á falta de pagamento da multa por sua culpa), o que pressupõe que seja após a condenação da sociedade / ente colectivo pela infracção em pena de multa, e por falta de pagamento desta (ou sua cobrança coerciva), e como tal pode ser traduzida na emissão de uma decisão posterior à sentença condenatória e subsequente à falta de pagamento da multa e da verificação dos requisitos de que depende a efectivação dessa responsabilidade”.
9.Em face da conduta culposa do recorrente praticada no decurso do seu período de gerência da sociedade arguida, encontram-se verificados os pressupostos da responsabilidade subsidiária dos administradores e gerentes estipulados do artigo 8°, n.° 1, alínea a), do RGIT, o que naturalmente obriga o arguido CM_____a proceder ao pagamento da pena de multa em que a sociedade arguida foi condenada.
10.A aplicação do artigo 8° do RGIT não viola o princípio da intransmissibilidade das penas como decorre dos arestos do Tribunal Constitucional n.°s 129/2009, n.° 150/2009 e n.° 234/2009, ao contrário do pretendido pelo recorrente, desde logo porque a multa aplicada à sociedade, não é na realidade “transmitida” ao recorrente, porque se assim fosse, haveria a possibilidade desta ser convertida nos correspondentes dias de prisão subsidiária, em caso de não pagamento. E não é o que sucede no caso em apreço.
11.Não está em causa a transmissão da responsabilidade penal, mas uma responsabilidade própria uma vez que resultou provado que a colocação da sociedade em situação de não poder pagar o que estava obrigada ficou a dever-se a uma acção dolosa da sua parte.
12.Acresce que o recorrente fica tão só responsável pelo pagamento do valor correspondente à pena de multa, e não ao cumprimento desta enquanto pena.
13.Quanto à circunstância de não ter sido tempestivamente requerida a verificação ulterior de créditos, resulta do artigo 146.° n.° 2 al. b) do CIRE que esta apenas pode ser requerida “(...) nos seis meses subsequentes ao trânsito em julgado da sentença de declaração de insolvência [que ocorreu em 2017], ou no prazo de três meses seguintes à respectiva constituição, caso termine posteriormente. ”
14.No caso dos autos a sentença transitou em 07/11/2019. Contudo, exige a lei a realização de diligências tendentes ao pagamento voluntário do valor da multa, como seja a notificação do seu legal representante e a realização de pesquisas tendentes a apurar a eventual existência de bens, tendentes à obtenção coerciva de tal valor. Tais diligências não se compadecem com o prazo de três meses legalmente fixado para a verificação ulterior de créditos.
15.Aliás refira-se que, a primeira vista ao Ministério Público após o trânsito em julgado da sentença ocorreu em momento muito posterior aos aludidos três meses (08/10/2020), cf. ref.a 145967525 do Citius, o que sempre inviabilizaria a realização de quaisquer diligência com vista à verificação ulterior de créditos.
16.Pelo supra exposto, se conclui também inexistir qualquer violação do ne bis in idem. Dado que o recorrente não sofre nova condenação pelos mesmos factos. Apenas lhe é assacada a responsabilidade pelo pagamento do valor de uma multa aplicada à sua representada.
17.Por outro lado, pretender que o artigo 8.° do RGIT não se aplica a processos crime, é esvaziar a norma de conteúdo, dado que apenas em processos de natureza criminal são aplicadas penas de multa. Outras infracções tributárias, são punidas com coima.
18.Por último, sempre se dirá que decorrendo a responsabilidade subsidiária do recorrente da aplicação da lei, afigura-se, s.m.o., não carecer a mesma de ser declarada na sentença. O mesmo sucede, mutatis mutandis, com a pena de prisão subsidiária decorrente do não pagamento da multa, que não carece também de estar declarada na sentença.
19.Termos em que se entende que deverá manter nos seus precisos termos o despacho recorrido.
V. Ex.as, porém, e como sempre, farão JUSTIÇA!
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O Sr. PGA junto desta Relação emitiu parecer com o seguinte teor:

I.Recurso próprio e tempestivo, sendo correcto o efeito e regime de subida que lhe está atribuído, devendo ser julgado em conferência, nos termos do disposto no artigo 419º, do Código de Processo Penal.
II.Nesta instância, o Ministério Público acompanha a resposta da Exma. Magistrada do Ministério Público junto da 1ª instância à motivação do recurso interposto pelo arguido CM_____.
III.Assim, atentos os fundamentos expostos na citada resposta, emite-se parecer no sentido de que seja julgado improcedente o presente recurso, confirmando-se o despacho proferido pelo Tribunal a quo.
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Foi cumprido o disposto no art.º 417º, nº 2 do CPP, nada tendo sido dito.
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IIO âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente. Só estas o tribunal ad quem deve apreciar artºs 403º e 412º nº 1 CPP[1] sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso – art.º 410º nº 2 CPP.
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Questões a Decidir:
(i)–Se estão preenchidos os requisitos previstos no artigo 8°, n° 1, al. a) do RGIT.
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III–Fundamentação:

1-O Despacho recorrido, proferido a 25/01/2022, tem o seguinte teor:
Proceda como promovido.
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O referido despacho foi proferido na sequência da promoção do MP que se transcreve:
Atenta a data em que foi proferida sentença de declaração de insolvência da sociedade arguida, mostra-se desprovido de efeito útil requerer a extracção de certidão para efeitos de verificação ulterior de créditos, porquanto se mostram ultrapassados os prazos previsto no artigo 146° n.° 2 ai. b) do CIRE. Promovo que seja dado cumprimento ao disposto no artigo 8° n.°1 ai. a) do RGIT.
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São ainda relevantes para a decisão dos presentes autos os seguintes factos:
-Por sentença proferida nos presentes autos, transitada em julgado em 07 de novembro de 2019, a sociedade TRANSPORTES VALE DE SUMO, LDA., foi condenada pela prática de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, na pena de multa, do valor global de 750,00€ (setecentos e cinquenta euros) e o aqui recorrente, CM_____pela prática de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, na pena de multa, do valor global de 600.00€ (seiscentos euros).
O recorrente procedeu ao pagamento da referida multa penal que lhe foi aplicada.
Por sentença proferida em 10 de maio de 2017 transitada em julgado em 06 de junho de 2017, proferida no proc. 1543/17.2T8VFX, foi declarada a falência da sociedade TRANSPORTES VALE DE SUMO, LDA..
O MP não reclamou naqueles autos o pagamento do crédito correspondente à pena de multa aplicada à sociedade Transportes Vale e Sumo.
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2–Quid iuris?

A questão sob iuditio reside em saber se se mostram preenchidos os pressupostos de que depende a responsabilidade subsidiaria a que se refer o art.º 8.º, n.º 1 do RGIT.
O recorrente defende que não se mostram preenchidos os pressupostos da responsabilidade civil relativamente a si, uma vez que nenhum facto praticou que determinasse a falência da sociedade condenada, consubstanciando a interpretação realizada numa violação do princípio do ne bis in idem e da intransmissibilidade das penas, defendendo o MP que os pressupostos se mostram preenchidos desde logo porque o recorrente foi o gerente/administrador da sociedade condenada que deu causa ao processo crime e à prática dos factos por cuja prática foi condenado conjuntamente com a sociedade Transportes Vale do Sumo.
O n.º 1 do art.º 8.º do RGIT consagra a responsabilidade civil subsidiária pelo pagamento de indemnizações nos seguintes termos:
1Os administradores, gerentes e outras pessoas que exerçam, ainda que somente de facto, funções de administração em pessoas colectivas, sociedades, ainda que irregularmente constituídas, e outras entidades fiscalmente equiparadas são subsidiariamente responsáveis:
a)- Pelas multas ou coimas aplicadas a infracções por factos praticados no período do exercício do seu cargo ou por factos anteriores quando tiver sido por culpa sua que o património da sociedade ou pessoa colectiva se tornou insuficiente para o seu pagamento;
b)- Pelas multas ou coimas devidas por factos anteriores quando a decisão definitiva que as aplicar for notificada durante o período do exercício do seu cargo e lhes seja imputável a falta de pagamento.

Como se alcança da leitura da promoção do MP este invoca a al. a) transcrita. Promovendo que se dê cumprimento ao nela prescrito.
Nada alega, nomeadamente qualquer acto praticado pelo recorrente consubstanciador de culpa do mesmo na insuficiência ou impossibilidade de meios para pagamento da multa penal aplicada à sociedade.
Como é sabido, a responsabilidade prevista no n.º 1 deste artigo 8.º, é uma responsabilidade civil, pelo que têm que se verificar necessariamente preenchidos os pressupostos da mesma. E esta responsabilidade, ou melhor os seus pressupostos, ao contrário do que defende o MP, não se preenchem de forma automática com o preenchimento dos elementos constitutivos do tipo legal de crime tributário cometido pelo recorrente e pela sociedade. Por tais factos o recorrente já foi punido e cumpriu a sanção penal que lhe foi aplicada. Tal como a sociedade foi julgada e condenada, mas ao contrário do recorrente, não pagou a pena de multa que lhe foi aplicada como consequência da sua condenação, desde logo porque à data do trânsito em julgado da decisão que a condenou já a mesma se encontrava falida e em processo de, pelo menos, reclamação de créditos ou liquidação.
Dos factos provados na sentença penal não é possível concluir que o ora recorrente deu causa a qualquer falta de meios patrimoniais lato sensu que impedissem o pagamento da pena de multa aplicada à sociedade Transportes Vale do Sumo, de que foi gerente, pelo que o MP teria que ter alegado e provado que o não pagamento da pena de multa aplicado à sociedade não foi pago porque o recorrente praticou factos culposos que impediram tal pagamento total ou parcial.
Aceitar a tese defendida pelo MP seria repristinar a norma que se encontrava consagrada sob o n.º 7 do art.º 8.º do RGIT julgada inconstitucional com força obrigatória geral pelo Acórdão do Tribunal Constitucional 171/2014, de 13 de março (disponível in https://dre.tretas.org/dre/316066/acordao-do-tribunal-constitucional-171-2014-de-13-de-marco#text).
Como neste Ac. do TC se pode ler, a propósito da interpretação e âmbito de aplicação do n.º 1 do art.º 8.º do RGIT No acórdão do Tribunal Constitucional n.º 249/12 decidiu-se, por sua vez, em aplicação do citado acórdão 561/11, que o entendimento nele sufragado é transponível para o caso, também previsto nas referidas normas das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 8.º, em que esteja em causa a responsabilidade subsidiária pelas multas aplicáveis às pessoas coletivas em processo penal, reafirmando-se aí o argumento central de que se trata de efetivar uma responsabilidade de cariz ressarcitório, fundada numa conduta própria, posterior e autónoma relativamente àquela que motivou a aplicação da sanção à pessoa coletiva[2].

Os argumentos constantes da resposta apresentada pelo MP consubstanciam uma interpretação inconstitucional do n.º 1, al. a), por violação do princípio da intransmissibilidade das penas consagrado no art.º 30.º, n.º 3 da CRP.

Ora, a imposição de uma responsabilidade solidária a terceiro para pagamento de multas aplicadas à pessoa coletiva, independentemente de ele poder ser corresponsabilizado como coautor ou cúmplice na prática da infração - tal como admite o n.º 7 do artigo 8.º -, configura uma situação de transmissão da responsabilidade penal, na medida em que é o obrigado solidário que passa a responder pelo cumprimento integral da sanção que respeita a uma outra pessoa jurídica, implicando a violação do princípio da pessoalidade das penas consignado no artigo 30.º, n.º 3, da Constituição (Ac. TC 171/2014, supra identificado).

Nestes termos, uma vez que nem na promoção nem no despacho se verifica a indicação dos pressupostos de que depende a responsabilidade civil prevista no normativo em causa, tem o recurso necessariamente que proceder e o despacho proferido ser consequentemente revogado.
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Atento o que se conheceu supra ficam prejudicados os demais argumentos invocados, nomeadamente o alcance da declaração de falência fortuita invocada pelo recorrente.
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Decisão:

Pelo exposto, acorda-se nesta Relação de Lisboa, em:
Julgar provido o recurso interposto por CM_____e em consequência revoga-se a decisão recorrida.
- Sem custas.



Lisboa, 28 de setembro de 2022


Processado e revisto pela relatora (art.º 94º, nº 2 do CPP).



Maria Gomes Bernardo Perquilhas
Rui Miguel Teixeira
Alfredo Costa




[1]Acs. do STJ de 16.11.95, de 31.01.96 e de 24.03.99, respectivamente, nos BMJ 451° - 279 e 453° - 338, e  na Col Acs. do STJ, Ano VII, Tomo 1, pág. 247 o Ac do STJ de 3/2/99 (in BMJ nº 484, pág. 271);  o Ac do STJ de 25/6/98 (in BMJ nº 478, pág. 242); o Ac do STJ de 13/5/98 (in BMJ nº 477, pág. 263);
SIMAS SANTOS/LEAL HENRIQUES, in Recursos em Processo Penal, p. 48; SILVA, GERMANO MARQUES DA 2ª edição, 2000 Curso de Processo Penal”, vol. III, p. 335;
RODRIGUES, JOSÉ NARCISO DA CUNHA, (1988), p. 387 “Recursos”, Jornadas de Direito Processual Penal/O Novo Código de  Processo Penal”, p. 387 DOS REIS, ALBERTO, Código de Processo Civil Anotado, vol. V, pp. 362-363. 
[2]Sublinhado nosso.