Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
7956/2007-1
Relator: RUI VOUGA
Descritores: PROVIDÊNCIA CAUTELAR NÃO ESPECIFICADA
APREENSÃO DE VEÍCULO
LESÃO GRAVE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 01/08/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: CONFIRMADA A DECISÃO
Sumário: I - Indiciariamente provado que a Requerente é proprietária do veículo cuja apreensão requereu e que a Requerida já não goza da faculdade de o usar (por já se ter extinto o contrato de aluguer de veículo), o facto de a Requerida manter em seu poder tal veículo, com o inerente risco da sua perda total ou parcial e com o desgaste e desvalorização derivadas da utilização que ela lhe pode dar, e a circunstância de a Requerente estar impossibilitada de o locar a terceiros, não são, por si sós, suficientes para poder ser decretada a providência cautelar requerida (apreensão imediata do veículo em questão e entrega do mesmo à Requerente).
II - Releva, ainda, a circunstância de a Requerente apenas ter interposto o procedimento cautelar decorridos mais de 3 meses sobre a data em que o veículo em causa lhe devia ter sido voluntariamente restituído pela Requerida.
III - Os prejuízos decorrentes para a Requerente tanto da eventual perda total ou parcial do veículo, como do desgaste e desvalorização do mesmo e, bem assim, os lucros cessantes por ela deixados de auferir são, em princípio, ressarcíveis por via duma adequada indemnização em dinheiro (nos termos dos arts. 564º-1 e 566º-1, ambos do Código Civil).
IV - Só assim não seria se, porventura, a situação patrimonial da Requerida/Agravada for tal que ela não estivesse em condições de arcar com o pagamento da referida indemnização. Para tanto, far-se-ia mister que a Requerente tivesse curado de articular (e provar) factos concretos evidenciadores da precariedade da situação económico-financeira da Requerida.
V - O tribunal não pode presumir, oficiosamente, que a Requerida não disponha de meios que lhe permitam suportar o pagamento da indemnização devida à Requerente pelos prejuízos de índole exclusivamente patrimonial decorrentes da perda total ou parcial do veículo, bem como da sua depreciação, desvalorização ou desgaste e, bem assim, dos lucros cessantes deixados de auferir pela Requerente pelo facto de não estar ainda na posse do veículo (art. 264º, nºs 1 e 2, do CPC).
FG
Decisão Texto Integral: Acordam, na Secção Cível da Relação de LISBOA:
Inconformada com a decisão que julgou improcedente o procedimento cautelar comum por ela intentado contra “I, Lda.” e, consequentemente, não ordenou a requerida apreensão e entrega imediata à Requerente da viatura automóvel da marca Volkswagen, modelo Golf 1.9 TDI, objecto de um contrato de aluguer de veículo automóvel sem condutor celebrado entre Requerente e Requerida, a aí Requerente “G, Lda.” interpôs recurso da mesma decisão, que foi recebido como de agravo, para subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito suspensivo, tendo rematado as alegações que apresentou com as seguintes conclusões:
“A) Nos termos do disposto no Art.º 381, n.º 1 do C.P.C. sempre que alguém mostre fundado receio de que outrem cause lesão grave e dificilmente reparável ao seu direito, pode requerer a providência conservatória ou antecipatória, concretamente adequada a assegurar a efectividade do direito ameaçado.
B) Não são todavia aplicáveis as providências referidas no n.º 1 quando se pretenda acautelar o risco de lesão especialmente prevenido por alguma das providências tipificadas na secção seguinte (Art.º 381, n.º 3).
C) As providências cautelares previstas nos Arts. 381 e ss. do C.P.C. são decretadas desde que haja probabilidade séria da existência do direito invocado e se mostre suficientemente fundado o receio da sua lesão (Art.º 387, n.º 1 do C.P.C.).
D) A providência pode, não obstante, ser recusada pelo Tribunal, quando o prejuízo dela resultante para o Requerido exceda consideravelmente o dano que com ela o Requerente pretende evitar (Art.º 387, n.º 2 do C.P.C.).
E) Em suma, para que a providência seja decretada tem que se verificar a probabilidade séria da existência do direito, o fundado receio de que outrem, antes da propositura da acção ou na pendência desta, cause lesão grave e de difícil reparação, a adequação da providência à efectividade do direito ameaçado e a não adequação à tutela do direito de nenhum dos procedimentos cautelares tipificados.
F) Ora, a Requerente é proprietária do veículo cuja apreensão pretende e a Requerida incumpriu o contrato celebrado, o que implica a restituição do veículo, ou seja, a faculdade de a Requerida gozar do veículo em questão já se extinguiu, pelo que está indiciariamente demonstrada a existência do direito da Requerente recuperar o uso e fruição do veículo objecto do contrato.
G) A Requerente tem, pois, direito, enquanto legítima proprietária do veículo, a ver aquele voltar à sua posse (Art.º 1311 do Código Civil).
H) A Requerida mantém, todavia, em seu poder o veículo, com o inerente risco da sua perda total ou parcial, e com o desgaste e desvalorização forçosamente derivada da utilização que lhe der.
I) Com efeito, o facto de a Requerida continuar a usar o veículo causa a Requerente prejuízos de difícil reparação (desgaste do veículo, possibilidade de acidente, descaminho, impossibilidade de o locar a terceiros).
J) De facto, conforme se colhe do ensinamento de Moitinho de Almeida in O Processo Cautelar de Apreensão de Veículos Automóveis, 5ª Edição, p. 14., a apreensão de veículos constitui uma providência justificada pela necessidade de impedir a utilização de veículos automóveis, a fim de garantir a sua preservação, perante a evidência de que a manutenção da situação ocasiona a sua desvalorização ou importa o perigo de inutilização, colocando em causa a eficácia de uma eventual decisão favorável ao credor no processo principal.
K) A providência requerida é, assim, a mais idónea a evitar a lesão do direito de propriedade da Requerente, só ela obstando a que a Requerida continue a utilizar o veículo.
L) Não quadra ao caso vertente nenhum dos procedimentos cautelares tipificados.
M) Não resulta da providência prejuízo superior ao dano que esta visa evitar, pois que do decretamento da providência não resultará mesmo qualquer dano para a Requerida, já que esta não beneficia já de qualquer permissão normativa de uso do veículo, por a relação locatícia se mostrar já extinta.
N) Acresce ainda que o argumento invocado pelo Tribunal a quo, de que a Requerente apenas interpôs o presente procedimento cautelar decorridos mais de três anos, o que não se mostra adequado com a natureza célere e cautelar dos presentes autos, para desta forma justificar o indeferimento da providência, salvo o devido respeito não pode colher.
O) Efectivamente, não existe na lei qualquer prazo pré definido que tenha de ser respeitado pela Requerente, tanto mais que as providências cautelares, como se disse, têm por finalidade evitar o periculum in mora, visando objectar a que o decurso na definição do caso na acção principal já proposta a ou a propor cause lesão grave ou irreparável ao direito do requerente (cfr. Acórdão STJ, de 12.1.1999: BMJ, 483.º-157).
P) Por todas as razões aduzidas, o presente procedimento cautelar teria de proceder.
Q) Porém, ao decidir em contrário, o Meritíssimo Juiz a quo violou os Arts. 381, n.º 1, 382, n.º 1, 387, n.º 1 e 514, n.º 1 do C.P.C. e o Art.º 1311 do Código Civil.

Não houve contra-alegações.

O Exmº Sr. Juiz do tribunal recorrido proferiu despacho de sustentação, no qual manteve inalterado o despacho objecto do presente recurso de agravo.

Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
A  DECISÃO  RECORRIDA
A decisão que constitui objecto do presente recurso de agravo é do seguinte teor :
I - Relatório
Veio “G”, com os sinais dos autos, pedir que o Tribunal decrete providência cautelar comum, pedindo a condenação da requerida “I Lda., a entregar-lhe a viatura da marca Volkswagen, modelo Golf, alegando que celebrou com a requerida um contrato de aluguer de veículo automóvel sem condutor e que, no final do contrato o veículo  não lhe foi restituído, o que lhe causa prejuízos graves e irreparáveis, decorrentes da sua desvalorização, da falta de disposição e da impossibilidade de promover contactos com interessados na aquisição da viatura, receando que esteja a ser dado à viatura uma utilização diversa da que é exigível, que o desvalorize ainda mais
(…)
O direito
Dispõe o artº 381º do Código de Processo Civil que sempre que alguém mostre fundado receio de que outrem cause lesão grave e dificilmente reparável ao seu direito, pode requerer a providência, conservatória ou antecipatória, concretamente adequada a assegurar a efectividade do direito ameaçado. E nos termos do artº 387º do mesmo diploma  a providência é decretada desde que haja probabilidade séria da existência do direito e se mostre suficientemente fundado o receio da sua lesão.
Conforme se decidiu no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18/12/79: “Nas providências cautelares não especificadas, a probabilidade séria da existência do direito, que a prova sumariamente produzida terá que revelar na linguagem da lei (arts. 400º e 401º do Cód. Proc. Civil), não impõe a antecipação de um juízo que a sentença na acção declarativa terá de exprimir. A própria sumaria cognitio do incidente processual (art. 381º do Cód. Proc. Civil) outra coisa não permite senão “um juízo de probabilidade ou verosimilhança, uma aparência de direito, um fumus bonis juris” (in, BMJ, 292º-338).
Os requisitos, substantivos e formais, necessários ao decretamento de providência cautelar não especificada, nos termos dos artºs 381º e 387º, ambos do Código de Processo Civil, são além da probabilidade séria da existência de um direito (fumus bonis juris), o fundado receio de que a demora na solução do pleito causará um prejuízo irreparável ou de difícil reparação (“periculum in mora”), a adequação da providência solicitada para evitar a lesão (“a justeza de um procedimento cautelar afere-se pelo direito que se pretende defender” in, Ac. RP de 31/01/73, BMJ, 223º-283) e ainda que o prejuízo resultante do decretamento da providência não exceda o dano que, através dela, se pretende evitar (cfr. artº 387º nº 2 do Código de Processo Civil, Ac. STJ de 05/03/74, BMJ, 235º-199).
Além disso, terá ainda de se verificar o não cabimento da possibilidade de recorrer a qualquer tipo de providência nominada (cfr. artº 381º nº 3 do C.P.C., “o uso das providências não especificadas depende não da conveniência do requerente, mas de não se ajustar ao caso qualquer outro procedimento”, in, Ac. RP de 31/01/73, BMJ, 223º-283; Ac. STJ de 25/05/82, BMJ, 317º-215; Ac. STJ de 13/02/86, BMJ, 354º-452).
Para o decretamento do procedimento cautelar invoca a requerente a falta de devolução da viatura alugada no prazo estipulado, ou seja, em 09.05.2003.
Fundando a requerente o risco de lesão dificilmente reparável em dois tipos de razões: por um lado, a impossibilidade da requerente dispor da viatura para eventual venda; e por outro, a depreciação da viatura decorrente do tempo e da possibilidade de a requerida poder dar à viatura uma utilização diversa da que é exigível que o desvalorize ainda mais, não está verificado o fundado receio de que a demora na solução do pleito causará um prejuízo irreparável ou de difícil reparação (“periculum in mora”).
Sendo certo que a não entrega da viatura causa lesão grave no direito da requerente, decorrente do facto de não poder dispor de um bem que lhe pertence e da sua depreciação resultante do tempo e do uso por outrem (artº 514º nº 1 CPC), não basta verificar a gravidade da lesão, pois não é qualquer lesão, ainda que grave, que fundamenta o decretamento da providência. É necessário que estejamos perante uma lesão grave e de difícil reparação para a requerente.
A impossibilidade da requerente tirar rendimento das viaturas decorrente da sua actividade comercial e a depreciação da viatura decorrente do tempo e do seu uso não pode ser considerada, face à natureza da requerente, irreparável ou de difícil reparação. O que está em causa são interesses patrimoniais e, tendo em conta que os bens em litígio são viaturas automóveis, o prejuízo que a requerente tem ou poderá vir a ter em consequência do prolongamento da detenção do veículo pela requerida será eventualmente ressarcível por via de indemnização a peticionar contra esta, cujos meios para ressarcir a requerente são de todo desconhecidos dos autos, pelo que não se poderá concluir pela sua inexistência ou insuficiência para fundamentar o prejuízo em termos suficientes para o procedimento da providência (cfr. Ac. RL de 30.03.2004, Vaz das Neves, www.dgsi.pt).
Acresce que, não obstante a requerida não ter devolvido a viatura em 09.05.2003, a requerente apenas interpôs o presente procedimento cautelar em 29.12.2006, decorridos mais de três anos, factos que não se mostram adequados com a natureza célere (artº 382º nº 1 do CPC) e cautelar (artº 381º nº 1 do CPC) dos presentes autos.
IV - Decisão             
Pelo exposto, declaro improcedente o presente procedimento cautelar e, consequentemente, não ordeno a requerida apreensão do veículo.
Custas pela requerente (artº 446º C.P.C.).
Registe e notifique.”.
O  OBJECTO  DO  RECURSO

Como se sabe, é pelas conclusões com que o recorrente remata a sua alegação (aí indicando, de forma sintéctica, os fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão recorrida: art. 690º, nº 1, do C.P.C.) que se determina o âmbito de intervenção do tribunal ad quem[1] [2].

Efectivamente, muito embora, na falta de especificação logo no requerimento de interposição, o recurso abranja tudo o que na parte dispositiva da sentença for desfavorável ao recorrente (art. 684º, nº 2, do C.P.C.), esse objecto, assim delimitado, pode vir a ser restringido (expressa ou tacitamente) nas conclusões da alegação (nº 3 do mesmo art. 684º)[3] [4].
Por isso, todas as questões de mérito que tenham sido objecto de julgamento na sentença recorrida e que não sejam abordadas nas conclusões da alegação do recorrente, mostrando-se objectiva e materialmente excluídas dessas conclusões, têm de se considerar decididas e arrumadas, não podendo delas conhecer o tribunal de recurso.
No caso sub judice, emerge das conclusões da alegação de recurso apresentada pelo ora Agravante que o objecto do presente recurso está circunscrito a uma única questão:
Se, uma vez indiciariamente provado que a Requerente é proprietária do veículo cuja apreensão requereu e que a Requerida já não goza da faculdade de o usar (por já se ter extinto o contrato de aluguer de veículo sem condutor oportunamente celebrado entre ambas), o facto de ela (a Requerida) manter em seu poder tal veículo, com o inerente risco da sua perda total ou parcial (possibilidade de acidente ou descaminho), e com o desgaste e desvalorização derivadas da utilização que ela lhe pode dar, e a circunstância de a Requerente estar impossibilitada de o locar a terceiros são, por si sós, suficientes para poder e dever ser decretada a providência cautelar requerida (apreensão imediata do veículo em questão e entrega do mesmo à Requerente), irrelevando que a Requerente apenas tenha interposto o presente procedimento cautelar decorridos mais de 3 meses sobre a data em que o veículo em causa lhe devia ter sido voluntariamente restituído pela Requerida, visto inexistir na lei qualquer prazo pré-definido que tenha de ser respeitado pela Requerente.

FACTOS  PROVADOS
Mostram-se provados os seguintes factos, com relevância para o julgamento do mérito do agravo:

1. No exercício da sua actividade comercial, a Requerente ora Agravante celebrou com a Requerida aqui Agravada o contrato de aluguer de veículo automóvel sem condutor com o nº 300109, relativo à viatura da marca Volkswagen, com início em 07.02.2003 e termo em 09.03.2003 (documentos juntos a fls. 9 a 13);
2. A requerente/agravante colocou à disposição da requerida/agravada o veículo atrás identificado, em 07.02.2003;
3. Em 10.03.2003, a requerente/agravante enviou à requerida/agravada o fax que se mostra junto a fls. 15 e 16, com o seguinte teor:
Atingiu a data de devolução no dia: 09.03.2003 (Fim do Aluguer)
Nova data de devolução: 9/5/2003 (Prolongamento)
Obs.: Resposta urgente a este fax. Obrigado.
De maneira a regularizar a situação, solicitamos o reenvio deste fax indicando a nova data de devolução.”    
4. O fax atrás referido foi subscrito pela requerida/agravada;
5. A viatura não foi devolvida à requerente/agravante em 09.05.2003, nem em data posterior;
6. Em 21.05.2003, por telegramas enviados à requerida/agravada, de que existe cópia a fls. 18 e 19, a requerente/agravante solicitou-lhe a entrega do veículo;
7. A requerida/agravada apresentou em 23 de Maio de 2003 queixa junto da PSP de Lisboa contra J, por este não lhe ter entregue os veículos de matrícula (…), conforme declarações que se mostram juntas a fls. 20 e 21;
8. Mostra-se inscrita a favor da requerente/agravante a propriedade do veículo da marca Volkswagen, modelo Golf 1.9 TDI.
O  MÉRITO  DO  AGRAVO
Se, uma vez indiciariamente provado que a Requerente é proprietária do veículo cuja apreensão requereu e que a Requerida já não goza da faculdade de o usar (por já se ter extinto o contrato de aluguer de veículo sem condutor oportunamente celebrado entre ambas), o facto de ela (a Requerida) manter em seu poder tal veículo, com o inerente risco da sua perda total ou parcial (possibilidade de acidente ou descaminho), e com o desgaste e desvalorização derivadas da utilização que ela lhe pode dar, e a circunstância de a Requerente estar impossibilitada de o locar a terceiros são, por si sós, suficientes para poder e dever ser decretada a providência cautelar requerida (apreensão imediata do veículo em questão e entrega do mesmo à Requerente), irrelevando que a Requerente apenas tenha interposto o presente procedimento cautelar decorridos mais de 3 meses sobre a data em que o veículo em causa lhe devia ter sido voluntariamente restituído pela Requerida, visto inexistir na lei qualquer prazo pré-definido que tenha de ser respeitado pela Requerente.
A decisão recorrida louvou-se em dois argumentos para denegar o decretamento da providência cautelar inominada solicitada pela Requerente/Agravante (apreensão e entrega imediata à Requerente da viatura automóvel da marca Volkswagen, modelo Golf 1.9 TDI, objecto de um contrato de aluguer de veículo  automóvel sem condutor celebrado entre Requerente e Requerida mas cuja vigência já cessou), a saber:
a) A impossibilidade de a requerente tirar rendimento das viaturas decorrente da sua actividade comercial e a depreciação da viatura decorrente do tempo e do seu uso não pode ser considerada, face à natureza da requerente, irreparável ou de difícil reparação: o que está em causa são interesses patrimoniais e, tendo em conta que os bens em litígio são viaturas automóveis, o prejuízo que a requerente tem ou poderá vir a ter em consequência do prolongamento da detenção do veículo pela requerida será eventualmente ressarcível por via de indemnização a peticionar contra esta, cujos meios para ressarcir a requerente são de todo desconhecidos dos autos, pelo que não se poderá concluir pela sua inexistência ou insuficiência para fundamentar o prejuízo em termos suficientes para o procedimento da providência;
b) não obstante a requerida não ter devolvido a viatura em 09.05.2003, a requerente apenas interpôs o presente procedimento cautelar em 29.12.2006, decorridos mais de três anos, factos que não se mostram adequados com a natureza célere (artº 382º nº 1 do CPC) e cautelar (artº 381º nº 1 do CPC) dos presentes autos.
Quid juris ?
Como é sabido, o decretamento de providências cautelares não especificadas supõe a verificação simultânea de 4 (quatro) requisitos, a saber:
1) A probabilidade séria da existência de um direito por parte do requerente (arts. 381º, nº 1, e 387º, nº 1, do Cód. de Proc. Civil [ambos na redacção introduzida pelo art. 1º do Decreto-Lei nº 180/96, de 25 de Setembro];
2) O fundado receio de que outrém, antes da propositura da competente acção declarativa ou executiva ou na pendência desta (art. 383º, nº 1, do C.P.C. [na redacção introduzida pelo art. 1º do cit. Decreto-Lei nº 180/96]), cause lesão grave e de difícil reparação ao conteúdo de tal direito (citt. arts. 381º, nº 1, e 387º, nº 1, do C.P.C.);
3) A adequação da(s) providência(s) concretamente requerida(s) à efectividade do direito ameaçado (parte final do cit. nº 1 do art. 381º do C.P.C.);
4) A não adequação à tutela preventiva do direito do requerente de nenhum dos procedimentos cautelares tipificados na secção II do Capítulo IV do Título I do Livro III do Código de Processo Civil (nº 3 do cit. art. 381º).
No caso vertente, concorrem, manifestamente, os 1º, 3º e 4º destes requisitos.
Já não assim, porém, quanto ao 2º dos mencionados requisitos: o de que o direito de que é titular o requerente corra risco sério de sofrer uma lesão grave e de difícil reparação no seu conteúdo, antes da propositura da competente acção declarativa ou executiva ou na pendência desta.
Relativamente a este 2º requisito (fundado receio de lesão grave e de difícil reparação do direito do requerente), vem a jurisprudência entendendo, desde há muito, que «não basta um juízo de probabili­dade, tornando-se necessário um juízo de realidade ou de certeza ou, pelo menos, um receio fundado, não bastando, por isso, qual­quer simples receio, que pode corresponder a um estado de espírito que derivou de uma apreciação ligeira da realidade, num exame precipitado das circunstâncias»[5].
Por outro lado, «não é toda e qualquer consequência que previsivelmente ocorra antes de uma decisão definitiva que justifica o decretamento de uma medida provisória com reflexos imediatos na esfera jurídica da contraparte»[6]. «Só lesões graves e dificilmente reparáveis têm a virtualidade de permitir ao tribunal, mediante iniciativa do interessado, a tomada de uma decisão que o coloque a coberto da previsível lesão»[7].
«A gravidade da lesão previsível deve ser aferida tendo em conta a repercussão que determinará na esfera jurídica do interessado»[8]. É certo que, «pela protecção cautelar não se abarcam apenas os prejuízos imateriais ou imorais, por natureza irreparáveis ou de difícil reparação, mas ainda os efeitos que possam repercutir-se na esfera patrimonial do titular»[9]. «Porém, especialmente quanto aos prejuízos materiais, o critério deve ser bem mais rigoroso do que o utilizado quanto à aferição dos danos de natureza física ou moral, uma vez que, em regra, aqueles são passíveis de ressarcimento através de um processo de reconstituição natural ou de indemnização substitutiva»[10] [11].
A circunstância de o legislador haver ligado as duas expressões mostra, finalmente, que «não é apenas a gravidade das lesões previsíveis que justifica a tutela provisória, do mesmo modo que não basta a irreparabilidade absoluta ou difícil»[12]. «Ficam afastadas do círculo de interesses acautelados pelo procedimento cautelar comum, ainda que irreparáveis ou de difícil reparação, as lesões sem gravidade ou de gravidade reduzida, do mesmo modo que são excluídas as lesões graves, mas facilmente reparáveis»[13].
A ora Requerente invoca, para fundamentar o receio de que o seu direito de propriedade sobre o veículo automóvel cuja apreensão veio requerer venha a ser gravemente lesionado durante a pendência da acção principal, uma dupla circunstância:
a) por um lado, o risco da perda total ou parcial do veículo em questão (possibilidade de acidente ou descaminho), inerente ao facto de a Requerida manter em seu poder tal veículo, bem como a alta probabilidade de o mesmo veículo se desgastar e desvalorizar, seja em consequência da utilização (diversa da que é expectável dum utilizador médio) que ela (Requerida) lhe pode dar, seja pelo mero decurso do tempo (atenta a natureza do bem em questão);
b) por outro, a circunstância de a Requerente estar impossibilitada, na prática, de o locar a terceiros, bem como de promover contactos com quaisquer interessados na sua futura aquisição, enquanto ele permanecer em poder da Requerida.
Trata-se, em ambos os casos, de interesses meramente patrimoniais. Pelo que os prejuízos decorrentes para a Requerente ora Agravante tanto da eventual perda total ou parcial do veículo, como do desgaste e desvalorização do mesmo e, bem assim, os lucros cessantes por ela deixados de auferir são, em princípio, ressarcíveis por via duma adequada indemnização em dinheiro (nos termos dos arts. 564º-1 e 566º-1, ambos do Código Civil).
Só assim não seria se, porventura, a situação patrimonial da Requerida/Agravada for tal que ela não estivesse em condições de arcar com o pagamento da referida indemnização. Para tanto, far-se-ia mister que a ora Requerente/Agravante tivesse curado de articular factos concretos evidenciadores da precariedade da situação económico-financeira da Requerida/Agravada. Na ausência de alegação de quaisquer factos concretos que permitam ajuizar dessa situação económico-financeira, o tribunal não pode presumir, oficiosamente, que a Requerida/Agravada não disponha de meios que lhe permitam suportar o pagamento da indemnização devida à Requerente/Agravante pelos prejuízos de índole exclusivamente patrimonial decorrentes da perda total ou parcial do veículo, bem como da sua depreciação, desvalorização ou desgaste e, bem assim, dos lucros cessantes deixados de auferir pela Requerente/Agravante pelo facto de não estar ainda na posse do veículo (art. 264º, nºs 1 e 2, do CPC).
O que tanto basta para ter de se concluir – como fez o tribunal “a quo”, na decisão recorrida – pela reparabilidade dos prejuízos que a não entrega imediata do veículo à Requerente lhe acarreta e, consequentemente, pela não verificação do 2º dos mencionados requisitos cumulativos de que depende o decretamento de providências cautelares não especificadas, no quadro do procedimento cautelar comum instituído nos arts. 381º a 391º do CPC.
À luz de quanto precede, logo se vê que a decisão recorrida não merece qualquer censura, improcedendo, necessariamente, o agravo contra ela interposto pela ora Agravante.

DECISÃO
Acordam os juízes desta Relação em negar provimento ao presente recurso de Agravo, confirmando integralmente a decisão recorrida.
Custas do agravo a cargo da ora Agravante (art. 446º, nºs 1 e 2, do CPC).

Lisboa, 8/1/2008
Rui Torres Vouga (Relator)
José Gabriel Pereira da Silva (1º Adjunto)
Maria do Rosário Barbosa (2º Adjunto)_______________________________________
[1] Cfr., neste sentido, ALBERTO DOS REIS in “Código de Processo Civil Anotado”, vol. V, págs. 362 e 363.
[2] Cfr., também neste sentido, os Acórdãos do STJ de 6/5/1987 (in Tribuna da Justiça, nºs 32/33, p. 30), de 13/3/1991 (in Actualidade Jurídica, nº 17, p. 3), de 12/12/1995 (in BMJ nº 452, p. 385) e de 14/4/1999 (in BMJ nº 486, p. 279).
[3] O que, na alegação (rectius, nas suas conclusões), o recorrente não pode é ampliar o objecto do recurso anteriormente definido (no requerimento de interposição de recurso).
[4] A restrição do objecto do recurso pode resultar do simples facto de, nas conclusões, o recorrente impugnar apenas a solução dada a uma determinada questão: cfr., neste sentido, ALBERTO DOS REIS (in “Código de Processo Civil Anotado”, vol. V, págs. 308-309 e 363), CASTRO MENDES (in “Direito Processual Civil”, 3º, p. 65) e RODRIGUES BASTOS (in “Notas ao Código de Processo Civil”, vol. 3º, 1972, pp. 286 e 299).
[5] MOITINHO DE ALMEIDA in  "Provi­dências Cautelares Não Especificadas", Coimbra, 1981, p. 22.
[6] ANTÓNIO ABRANTES GERALDES in "Temas da Reforma do Processo Civil", III Vol., 5 – Procedimento Cautelar Comum, 1998, p. 83.
[7] ANTÓNIO ABRANTES GERALDES, ibidem.
[8] ANTÓNIO ABRANTES GERALDES in ob. e vol. citt., p. 84 in fine.
[9] ANTÓNIO ABRANTES GERALDES in ob. e vol. citt., p. 85.
[10] ANTÓNIO ABRANTES GERALDES, ibidem.
[11]  «Apesar disso, não deve excluir-se, como, aliás, a lei não exclui, a possibilidade de protecção antecipada do interessado relativamente a prejuízos de tal espécie, embora devam ser ponderadas as condições económicas do requerente e do requerido e a maior ou menor capacidade de reconstituição da situação ou de ressarcimento dos prejuízos eventualmente causados» (ANTÓNIO ABRANTES GERALDES ibidem).
[12]  A., ob. e vol. citt., p. 85.
[13]  Ibidem.

Caixa de texto: