Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1349/2008-6
Relator: OLINDO GERALDES
Descritores: CONTRATO-PROMESSA DE COMPRA E VENDA
DIVÓRCIO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/28/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA A DECISÃO
Sumário: I. Por efeito da autoridade do caso julgado formado por uma decisão não homologatória da desistência do pedido, com fundamento na existência de litisconsórcio necessário, não é possível voltar a discutir a questão da legitimidade da respectiva parte.
II. O art. 238.º, n.º 1, do Código Civil, obsta a considerar-se, na declaração negocial formal, um sentido que não tenha no texto um mínimo de correspondência.
III. O promitente vendedor, ainda que motivado, exclusivamente, na facilitação da outorga do contrato de compra e venda, cujo bem imóvel é pertença do outro promitente vendedor, seu ex-cônjuge, pode sofrer os efeitos jurídicos emergentes do incumprimento do contrato promessa, imputável aos promitentes vendedores.
O.G.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:
I. RELATÓRIO
M instaurou, no dia 2 de Outubro de 2004, no 4.º Juízo Cível da Comarca de Lisboa, contra C e Ma, acção declarativa, sob a forma de processo ordinário, pedindo que os Réus fossem condenados a pagar-lhe a quantia de € 16 933,70, acrescida dos juros vencidos, no montante de € 519,66, e vincendos.
Para tanto, alegou em síntese, que, em 6 de Setembro de 2001, celebrara com os Réus um contrato promessa de compra e venda, nos termos do qual lhe prometeram vender, enquanto ela prometeu comprar, a fracção autónoma designada pela letra “D”, correspondente ao andar direito do prédio sito na Praça António Ribeiro Chiado, freguesia do Feijó, concelho de Almada; os RR. receberam o sinal de 1 500 000$00, ficando a parte restante do preço, no valor de 15 200 000$00, para ser paga no acto da respectiva escritura pública, marcada para o dia 27 de Dezembro de 2001, com prorrogação para 13 de Abril de 2002; os RR. não marcaram a escritura e ela perdeu o interesse, considerando o referido contrato promessa definitivamente incumprido, por culpa exclusiva daqueles; tem direito a receber o dobro do sinal e o valor das despesas que efectuou.
Citados os Réus, contestou apenas o R., alegando que assinara o contrato promessa por, tendo sido casado com a R., lhe ter sido dito que a sua assinatura era necessária, imputando ainda a culpa do incumprimento à Autora. Deduzindo reconvenção, pediu a condenação da A. no pagamento da quantia de € 3 591,34 e do que se liquidasse em execução de sentença, como contrapartida pela ocupação do andar, a partir do mês de Março de 2002, fixada em € 400,00.
Replicou a A., alegando a sua inadmissibilidade e ainda a sua improcedência.
Foi proferido o despacho saneador, no qual se decidiu pela admissibilidade da reconvenção, e elaborada a base instrutória.
Em 23 de Junho de 2005, Autora e Réu desistiram, reciprocamente, dos pedidos, mantendo a acção apenas contra a Ré, mas apenas foi homologada a desistência do pedido reconvencional (fls. 234 a 236).
Embora a decisão da não homologação da desistência do pedido da Autora tivesse sido impugnada, o recurso, por falta de alegações, foi julgado deserto, por decisão transitada em julgado.
Realizado o julgamento, foi proferida, em 26 de Fevereiro de 2007, a sentença, que condenou os Réus a pagarem à A. a quantia de € 16 993,70, acrescida dos juros de mora legais a partir da citação.

Inconformado, recorreu o Réu, que, tendo alegado, formulou as seguintes conclusões:
a) A sentença não fez a adequada e justa ponderação dos factos, nem fez a boa aplicação do direito, que implicaria decisão diferente.
b) A homologação da desistência do pedido não se configura nem se subsume a litisconsórcio necessário unitário.
c) Independentemente da intervenção do Recorrente, a decisão dos autos produziria o efeito útil normal.

Pretende, como provimento do recurso, a revogação da decisão recorrida.

A Autora não contra-alegou.

Cumpre apreciar e decidir.

Neste recurso, está em causa a declaração negocial do promitente vendedor num contrato promessa de compra e venda de imóvel pertencente ao ex-cônjuge, também promitente vendedor.

II. FUNDAMENTAÇÃO

2.1. Foram dados como provados, designadamente os seguintes factos:
1. Em 6 de Setembro de 2001, A. e RR. celebraram, por escrito, um contrato promessa de compra e venda, nos termos do qual os segundos declararam prometer vender e a primeira declarou prometer comprar, livre de quaisquer ónus ou encargos, a fracção autónoma designada pela letra “D”, correspondente ao andar direito do prédio urbano, sito na Praça António Ribeiro Chiado, pelo preço de 16 700 000$00.
2. A Ré recebeu, naquela data, a quantia de 1 500 000$00, a título de sinal e princípio de pagamento do preço.
3. O remanescente do preço, na importância de 15 200 000$00, seria pago no acto da outorga da escritura pública de compra e venda.
4. A escritura pública seria celebrada no prazo de 45 dias úteis, podendo ser prorrogado por mais 30 dias úteis.
5. A. e RR. acordaram que a escritura pública seria outorgada até ao dia 13 de Abril de 2002.
6. A escritura pública não foi outorgada porque a Ré não conseguiu obter dinheiro suficiente para pagar a sua dívida ao Banco Internacional de Crédito e levantar a respectiva hipoteca.
7. A A. insistiu, diversas vezes, com os RR., no sentido de marcarem a escritura pública de compra e venda.
8. Não tendo os RR. marcado a escritura pública, A. deixou de a querer outorgar.
9. Para a aquisição da fracção, a A. contraiu um empréstimo na Caixa Geral de Depósitos (CGD), no montante de 11 000 000$00.
10. Foi debitado à A. a quantia de € 213,01, por despesas bancárias no processo destinado à aquisição da fracção.
11. E pagou a quantia de € 626,51, pelo registo provisório da hipoteca voluntária a favor da CGD.
12. E pagou a quantia de € 851,70, a título de sisa.
13. E pagou a quantia de € 278,54, no Cartório Notarial do Barreiro, por acto sem efeito.
14. O R., não obstante a fracção ser bem próprio da R. e desta estar divorciado, assinou o contrato promessa, por, na altura, essa realidade não estar ainda formalizada na Conservatória do Registo Predial.
15. Os Réus casaram entre si no dia 24 de Maio de 19998.
16. Por decisão da 6.ª Conservatória do Registo Civil de Lisboa, de 25 de Fevereiro de 2000, transitada em julgado, foi decretado o divórcio entre os Réus.

2.2. Delimitada a matéria de facto provada, que não foi impugnada, importa agora conhecer do objecto do recurso, definido pelas suas conclusões, das quais emerge, como única questão jurídica, o conteúdo da declaração negocial do Apelante, nomeadamente num contrato promessa de compra e venda de imóvel pertencente ao seu ex-cônjuge, que também outorgou o mesmo contrato, como promitente vendedor.

Na verdade, é inquestionável que, formalmente, foi celebrado um contrato promessa de compra e venda de imóvel, figurando a Apelada, como promitente compradora, e a Ré e o Apelante, como promitentes vendedores.
Não existe também controvérsia sobre a parte que não cumpriu o contrato promessa de compra e venda, ou seja, os promitentes vendedores.
Dada esta certeza, relevante para a determinação dos respectivos efeitos jurídicos, não tem já qualquer importância saber em que se traduziu a perda do interesse do promitente comprador em outorgar a respectiva escritura pública de compra e venda, sendo certo que, para isso, não basta uma simples declaração de vontade negativa, antes se exigem factos que, objectivamente, revelem a perda do interesse (art. 808.º, n.º 2, do Código Civil), como é jurisprudência corrente (acórdão desta Relação, de 23 de Novembro de 1995, Colectânea de Jurisprudência, Ano XX, t. 5, pág. 118).
Mas a questão também não é de legitimidade adjectiva, como agora a coloca o Apelante (depois de deixar deserto o recurso e onde a mesma podia ser discutida), sendo certo também que não arguiu, antes, especificamente a sua ilegitimidade, através do articulado próprio para a apresentação de toda a defesa, isto é, da contestação.
Tratando-se, porém, de uma questão de conhecimento oficioso, poder-se-ia tomar conhecimento da mesma, desde que o caso julgado, que favorece a segurança jurídica, não o impedisse.
Todavia, como resulta do despacho de fls. 234 a 236, a não homologação da desistência do pedido, quanto ao Apelante, teve como fundamento a verificação de um caso de litisconsórcio necessário. Assim, por efeito da autoridade do caso julgado formado sobre tal decisão, não é possível voltar a discutir tal questão, como pretende o Apelante.

Também, por outro lado, não se trata de uma questão de legitimidade substantiva.
Na verdade, o Apelante podia ter-se obrigado à celebração futura de um contrato de compra e venda, mesmo que o bem, na altura, ainda não lhe pertencesse. A ordem jurídica portuguesa não proíbe o contrato promessa sobre bem futuro. O ponto é que o promitente vendedor adquira o bem, de modo a honrar a promessa feita perante a outra parte contratual.
No caso vertente, contudo, pode revelar-se que o Apelante, assumindo formalmente a declaração na qualidade de promitente vendedor, não quis, enquanto tal, vincular-se. Efectivamente, como resulta da prova produzida, o bem prometido vender era da Ré, sendo certo que, à data da outorga do contrato promessa, em 6 de Setembro de 2001, já o Apelante se encontrava, há mais de um ano, divorciado da Ré. Por outro lado, o Apelante assinou o contrato promessa, por, na mesma data, a dissolução do casamento, não estar ainda formalizada no registo predial, mediante a elaboração do respectivo averbamento, para além de que foi a Ré quem, na mesma data, recebeu o sinal oferecido.
Neste contexto, a vontade do Apelante podia não ser no sentido de se vincular a celebrar um futuro contrato de compra e venda, por não ter qualquer intenção de adquirir o bem, para que tal pudesse suceder.
Infere-se dos factos apurados que, dada a situação registral do respectivo prédio, da qual não constava o averbamento do divórcio, que supostamente potenciaria uma dificuldade na outorga da compra e venda (a exibição da certidão da decisão a decretar o divórcio bastava), com a escritura pública prevista para breve prazo, o Apelante mais não terá querido senão facilitar a formalização do contrato de compra e venda, provavelmente a solicitação do seu ex-cônjuge.
Assim, a declaração de vontade, manifestada pelo Apelante, não seria vinculativa, nomeadamente como promitente vendedor.
Só que, para essa conclusão, depara-se-nos um obstáculo intransponível, que resulta da circunstância do contrato promessa de compra e venda de imóvel corresponder a um negócio jurídico formal.
Tratando-se, pois, de um contrato de natureza formal, era necessário que a declaração, com o referido sentido, tivesse um mínimo de correspondência no respectivo texto, ainda que imperfeitamente expresso, como decorre da regra de interpretação dos negócios formais plasmada no n.º 1 do art. 238.º do Código Civil.
Essa regra interpretativa, contudo, não impede a utilização de elementos estranhos ao texto. Aquilo a que obsta é de poder considerar-se, na declaração negocial, um sentido que não tenha, no texto, “um mínimo de correspondência”.
A formalização das declarações negociais, para além de garantir a segurança ou confiança no tráfego jurídico, destina-se também a proporcionar a ponderação das partes antes da sua vinculação.
Ora, no documento que formaliza o contrato promessa de compra e venda do imóvel, não se surpreende uma manifestação da vontade do Apelante que não fosse a de se vincular a celebrar um contrato de compra e venda de certo imóvel. Pelo contrário, a declaração negocial é inequívoca neste último sentido. Acresce ainda não estar provado que a vontade real das partes fosse diferente.
A motivação do Apelante não consta do documento que consubstancia o contrato promessa, não podendo assim relevar, para o afastamento da efectivação da sua responsabilidade derivada do incumprimento.
De qualquer modo, tal motivação também não afastaria o sentido normal da declaração, no sentido da promessa de compra e venda, por ser incompatível com a natureza do vínculo resultante do contrato promessa.
O Apelante, naturalmente, não era obrigado a outorgar o contrato promessa. Se a sua disposição não era a de se vincular, enquanto promitente vendedor, então devia ter-se eximido a outorgar o contrato. Ao outorgá-lo, ainda que exclusivamente com a motivação descrita, ficou obrigado a cumprir pontualmente o contrato (art. 406.º, n.º 1, do Código Civil).
Nestes termos, tendo havido incumprimento do contrato promessa, a que o Apelante, livre e validamente, se vinculou, imputável aos promitentes vendedores, não podia aquele, nessa qualidade, deixar de sofrer os respectivos efeitos na sua esfera jurídica.
Nesta conformidade, a sentença recorrida aplicou correctamente o direito, não se lhe podendo imputar qualquer erro de julgamento.

2.3. Em conclusão, pode extrair-se de mais relevante.

I. Por efeito da autoridade do caso julgado formado por uma decisão não homologatória da desistência do pedido, com fundamento na existência de litisconsórcio necessário, não é possível voltar a discutir a questão da legitimidade da respectiva parte.
II. O art. 238.º, n.º 1, do Código Civil, obsta a considerar-se, na declaração negocial formal, um sentido que não tenha no texto um mínimo de correspondência.
III. O promitente vendedor, ainda que motivado, exclusivamente, na facilitação da outorga do contrato de compra e venda, cujo bem imóvel é pertença do outro promitente vendedor, seu ex-cônjuge, pode sofrer os efeitos jurídicos emergentes do incumprimento do contrato promessa, imputável aos promitentes vendedores.

Nestes termos, não pode o recurso obter qualquer provimento, sendo caso para se confirmar a sentença recorrida, proferida em harmonia com o direito aplicável.

2.4. O Apelante, ao ficar vencido por decaimento, é responsável pelo pagamento das custas, em conformidade com a regra da causalidade, consagrada no art. 446.º, n.º s 1 e 2, do Código de Processo Civil.

III. DECISÃO
Pelo exposto, decide-se:
1) Negar provimento ao recurso, confirmando a sentença recorrida.
2) Condenar o Apelante (R.) no pagamento das custas.
Lisboa, 28 de Fevereiro de 2008
(Olindo dos Santos Geraldes)
(Fátima Galante)
(Ferreira Lopes)