Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
744/09.1S5LSB-A.L1-9
Relator: JOÃO CARROLA
Descritores: COMUNICAÇÕES ELECTRÓNICAS
AUTORIZAÇÃO JUDICIAL
JUIZ DE INSTRUÇÃO CRIMINAL
SEGREDO DE TELECOMUNICAÇÕES
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/29/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: A junção aos autos da transcrição das mensagens SMS gravadas no telemóvel do queixoso, depois do consentimento deste, não está dependente da autorização do Juiz de Instrução Criminal;
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 9.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa:

I.
No âmbito do inquérito n.º 744/09.5S5LSB que, para efeitos de actos jurisdicionais, corre termos no 1º Juízo do TIC de Lisboa em que é queixoso A..., o Ministério Público vem recorrer do seguinte despacho judicial do Mmo JIC proferido a 7.11.2011que, apreciando promoção do M.º P.º, manteve o decidido a fls. 198 dos autos.
O despacho de fls. 198, proferido a 24.10.2011 dos autos apresentava o seguinte conteúdo:
Tendo em conta o teor de fls. 41 e 75 dos autos, nada a ordenar”.
Este despacho foi proferido na sequência de promoção do M.º P.º, titular do inquérito, no sentido de o Mmo. JIC, ao abrigo do disposto nos art.ºs 187º n.º 1 al. e) e 187º n.º 4 CPP, proceder à ratificação das mensagens SMS já recolhidas no inquérito, extraídas dos telemóveis do denunciante e da sua filha, e que indiciam a prática de crime de coacção cometido através de telefone e cuja abertura e reprodução carecia de autorização judicial.
Não se conformando com o teor da decisão judicial em questão dela veio recorrer o M.º P.º formulando as seguintes conclusões:
“1-O n° 1 do Artigo 189° do CPP revisto prevê que as normas referentes à realização de intercepções telefónicas são correspondentemente aplicáveis "às conversações ou comunicações transmitidas por qualquer meio técnico diferente do telefone, designadamente correio electrónico ou outras formas de transmissão de dados por via telemática, mesmo que se encontrem guardadas em suporte digital".
2-Apenas será possível proceder à intercepção de comunicações electrónicas não telefónicas nas mesmas condições em que é permitida a realização de intercepções telefónicas e nesta parte, esta nova versão do Código não é inovadora, uma vez que esta imposição resultava já da versão anterior a 15 de Setembro de 2007.
3-O Código revisto vem prever, em nosso entendimento, quanto ao correio electrónico é a manutenção do sigilo deste tipo de correspondência electrónica mesmo após a abertura da mensagem, a sua eventual leitura, até o seu tratamento e arrumação dentro do sistema do computador ou outro meio de comunicação que a recebeu.
4-Portanto, este regime não se aplicará, por exemplo a comunicações electrónicas que tenham sido impressas em papel — mensagens de correio electrónico, por exemplo, pois na verdade, na prática já se afigura difícil transplantar o regime das intercepções à apreensão de mensagens guardadas em suporte digital.
5-O Governo veio a apresentar à Assembleia da República uma Proposta de Lei (que no parlamento veio a ser catalogada como Proposta de Lei n° 161/X), destinada à transposição para a ordem jurídica interna da Directiva 2006/24/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, referente à conservação de dados gerados ou tratados no contexto da oferta de serviços de comunicações electrónicas que foi consagrada no art.189° n°1 do CPP.
6-Há uma diferença radical entre intromissão nas telecomunicações, a que se destinam os artigos 187° e 188° do CPP, e o acesso a documentos que estão gravados em computadores e outros meios digitais", como é o caso dos autos.
7-Ou seja, assim é nosso entendimento que o auto de consentimento dado pelo titular do telemóvel não pode suprir a autorização judicial para acesso a dados de terceiro, pois veja-se que mesmo no caso do art.187° n°4° alínea c) do CPP em que a vítima do crime dá o seu consentimento à intercepção do seu telefone, mesmo assim tal intercepção apenas decorrerá mediante autorização judicial.
8-O que ali está em causa, é um princípio de proibição do sigilo das comunicações, não só do ofendido mas de terceiros que contactam com o ofendido e sobre os quais o consentimento dado pelo ofendido, não é juridicamente relevante.
9-Norma esta (art.187° n°4° alínea c) do CPP) que tem directa aplicação pela remissão que o art.189° faz para os art.s187 e 188° do CPP, remissão esta que permite também que nos casos do art.i88° n°2 do CPP o OPC possa tomar conhecimento do conteúdo das mensagens para praticar actos cautelares e urgentes, ficando porém tal contacto sujeito a posterior validação judicial tal como sucede no regime do art.i88° do C.P.P., o que aliás se promoveu.
10-Desta forma e em conclusão o que o legislador procurou com o disposto no art.189° n°1 do C.P.P. foi para além das razões inerentes ao sigilo das telecomunicações, por remissão para os art.s 187° e 188° do CPP, preservar a conservação de dados gerados ou tratados no contexto da oferta de serviços de comunicações electrónicas, pelo que encontrando-se as comunicações relevantes para os presentes autos guardadas em suporte digital se mostra necessária a autorização judicial para abertura e junção aos autos.”
Termina pela revogação do despacho e sua substituição por outro que valide as mensagens juntas aos autos pelo OPC.

Nenhuma resposta ao recurso foi apresentada.
Neste tribunal, o Exmo. Procurador-geral Adjunto limitou-se a apor o seu visto.

II.
Colhidos os vistos legais, cumpre agora apreciar e decidir.
Está em apreciação, em síntese, a seguinte questão:
Na sequência de queixa apresentada pelo queixoso foi junta aos autos, pelo órgão de policia criminal, uma transcrição das mensagens SMS que se encontravam gravadas nos telemóveis do denunciante e da sua filha, depois de os mesmos terem prestado consentimento, para acesso aos dados contidos em tais aparelhos, acesso e transcrição feitos pelo OPC.

Nas suas alegações de recurso o Digno Magistrado do Ministério Público manifesta o entendimento de que o consentimento dado pelo titular do telemóvel não pode suprir a autorização judicial para acesso aos dados provindos de terceiro, chamando à colação o caso do art.º 187º n.º 4 CPP em que vitima dá consentimento para a intercepção do seu telefone, a qual só pode ser feita mediante autorização judicial, em função do principio da proibição de sigilo das comunicações.
Chama ainda o recorrente em abono da sua pretensão argumentos esgrimidos por Paulo Pinto de Albuquerque in Comentário ao Código de Processo Penal, fls. 528, que entende ser de aplicar a necessidade de autorização do JIC no tocante às mensagens arquivadas no cartão do telemóvel.
Não ignoramos a argumentação expendida pelo recorrente e as teses relativas à necessidade dessa autorização que se mostram espelhadas em alguns acórdãos dos nossos tribunais superiores, mormente o Ac. STJ de 220.09.2006, in CJ STJXIV, III, 189 e do TRL de 20.12.2011, proferido no P.º 36/11.6PJOER-A.L1-5 em que foi relator o Exmo. Desembargador Agostinho Torres, disponível em www.dgsi.pt/jtrl.
Porém, parece-nos que a perspectiva que se mostra enunciada nesses arestos parte de um pressuposto fáctico diferente daquele que preside ao caso ora em apreço.
Não só naqueles casos se tratava de telemóveis e correspondência gravada nos mesmos em que os destinatários eram os arguidos e os telemóveis haviam sido objecto de apreensão como também não havia por parte dos titulares desses telemóveis ou destinatários dessa concreta correspondência autorização para a leitura da mesma e consequente transcrição para o processo.
Não resistimos aqui a transcrever a argumentação vertida no indicado acórdão do STJ:
“O cartão do telemóvel é o repositário de mensagens, a respectiva caixa de correio, que as recebe até serem inutilizadas pelo seu destinatário, a mensagem uma forma de telecomunicação, por meio diferente de telefone, à qual se aplicam as regras sobre as escutas telefónicas por força do art. 190°, do CPP.
Revestindo a mensagem uma forma de telecomunicação (electrónica), conceito que se mostrava delineado no art. 22, da Lei nº 91/97, de 1/8, revogada pela Lei n° 5/2004, mas que se alcança do art. 2° n° 1 al. a), da Lei nº 41/2004, de 18 de Agosto (Lei das Comunicações Electrónicas, definindo o tratamento de dados pessoais e a privacidade no sector das comunicações electrónicas) enunciando a comunicação electrónica enquanto informação trocada ou enviada entre um número finito de pessoas mediante um serviço de comunicações electrónicas acessível ao público.
A sua intercepção em tempo real, como algo incorpóreo, ocorrendo "num lapso de tempo localizado, "que começa e cessa quando se" entra e sai de uma rede de comunicações", para utilizar as palavras do Exm° Procurador Adjunto, Dr. Pedro Verdelho no seu estudo, "Apreensão de Correio Electrónico em Processo Penal", in RMP, ANO 25, 2004, págs. 157 e segs. é uma interferência numa comunicação electrónica, interferência que, sem a devida autorização judicial, não pode deixar de constituir clara ofensa às normas sobre escutas nos termos dos art. 187º n° 1 e 188º do CPP, aplicáveis por força do art. 190°, do CPP, que para aqueles remete importando aquela crime de violação de telecomunicações — art. 194° nº 2, do CP.
Aquele Exm° Magistrado, em tal estudo, faz contudo questão de ponderar que após a cessação da transmissão, e citando,"As mensagens deixam de ter a essência de uma comunicação em transmissão para passarem a ser antes uma comunicação já recebida, que terá porventura a mesma essência da correspondência", "em nada se distinguindo de uma "carta remetida por correio físico", assimilando-se à correspondência em forma digital.
E tendo sido já recebidas, "se já foram abertas e porventura lidas e mantidas no computador a que se destinavam, não deverão ter mais protecção que as cartas em papel em que são recebidas, abertas ou porventura guardadas numa gaveta, numa pasta ou num arquivo", visto o disposto no art. 194º n° 1, do CP.
E a concluir afirma que "serão meros documentos escritos que podem sem qualquer reserva ser apreendidos numa busca " – Estudo citado, pág. 159.
Mas, escreve aquele autor, (op. cit. pág. 160), se as mensagens não foram lidas pelo seu destinatário, a devassa, a partir da apreensão, está sujeita à ordem prévia de apreensão pelo juiz competente; e, escreve, ainda, que se o órgão de policia criminal se aperceber de mensagens naquelas condições, deve "apresentar o computador (ou outro eventual suporte onde estiver registada a informação) ao Ministério Público que o deverá apresentar ao juiz de instrução, para que este seja o primeiro a tomar conhecimento do correio".
Em qualquer dos casos incumbe ao juiz ordenar ou não a junção de cópia do correio em causa ao processo.
Divergimos da conclusão daquele autor no caso de as mensagens já terem sido lidas, porque, quer as mensagens tenham sido lidas ou não pelo destinatário, o que nem sempre se torna de destrinça fácil, sobretudo se e quando algum do "software" de gestão de correio electrónico possibilita marcar como aberta ou não aberta uma mensagem, por vontade do seu destinatário, independentemente de ter sido ou não lida, aquele tem sempre o direito a não ver essa correspondência que lhe foi endereçada devassada por alguém, sem sua autorização, constituindo a leitura dessa correspondência intromissão absolutamente ilegítima nela, atentado ao direito à inviolabilidade da mesma, consagrado no art. 34º nº 4, da Constituição.”
Concordamos com a necessidade de autorização judicial nos termos constantes dos art.ºs 187º e 188º CPP para interceptar correio electrónico quando o mesmo se encontre “em transito”, em tempo real de transmissão, como algo incorpóreo, tal como se depreende do próprio art.º 187º CPP que se aplica em casos de “intercepção e a gravação de conversações ou comunicações telefónicas” e isto num regime especifico muito próximo à apreensão de correspondência escrita quando a mesma se encontra “em transito” no circuito dos serviços de correio, nos termos do art.º 179º CPP, ou seja, antes de a correspondência ter sido entregue aos destinatário e do mesmo ser conhecido o respectivo conteúdo.
Diferentemente se passará quando a correspondência chega ao seu destinatário e o mesmo toma conhecimento do seu conteúdo, em que o remetente deixou já de ter domínio sobre a mesma e cessando a respectiva protecção, cabe ao destinatário decidir da respectiva disponibilização e destino. Para uma similitude de situações com as comunicações telefónicas, depois de qualquer chamada ter sido atendida pelo destinatário, nenhuma intercepção e gravação da mesma é possível, restando, como única possibilidade a sua invocação em juízo, a menção do respectivo conteúdo por parte do destinatário enquanto prova testemunhal.
Na realidade simplista dos factos, tal como se afirma no excerto citado do acórdão, o cartão do telemóvel é o repositório das mensagens, a respectiva caixa de correio, ou a simples gaveta de uma secretária em que se depositam as cartas já abertas e lidas. No caso concreto, dúvidas não existem que as mensagens em questão haviam já sido lidas pelos destinatários uma vez que se mostram reproduzidas pelos próprios nos respectivos autos de inquirição e, portanto, estavam na respectiva disponibilidade permitir a sua leitura ao OPC e subsequente transcrição. De resto, a proibição de violação da correspondência, nesta fase em que a comunicação se encontrava já lida, só podia ser atendida como garantia atribuída ao destinatário e não ao remetente que já havia perdido o domínio sobre a mensagem enviada.
No caso em apreço nos autos, não só as mensagens se encontravam em telemóveis que não foram objecto de apreensão, antes foram cedidas pelos respectivos destinatários que não são suspeitos ou arguidos, como as mesmas já haviam sido lidas pelos mesmos e estes deram consentimento, a fls. 41 e 75 dos autos, à sua leitura e transcrição pelo OPC.
E com estas diferenças somos levados a seguir a tese seguida no acórdão desta Relação de Lisboa de 02.03. 2011, proferido no P.º 463/07.3TAALM-A.L1-3 em que foi relator o Exmo. Desembargador Jorge Raposo, disponível em www.dgsi.pt/jtrl, isto a propósito de nulidade da apreensão de correspondência: “Como afirma COSTA ANDRADE (Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, pág. 758, § 16) "é precisamente este facto - estar fechada - que define a fronteira da tutela penal do sigilo de correspondência e dos escritos, em geral." E uma carta está fechada quando exista "um procedimento que estabeleça um obstáculo físico à tomada de conhecimento e que só seja ultrapassável à custa de uma actividade física que pode ou não (...) implicar uma ruptura material (...) Não basta seguramente (...) a sua arrumação num dossier ou numa gaveta aberta." E para concluir: "uma carta que foi (ainda que indevidamente) aberta, deixa de ser uma carta fechada, mesmo que persista reservada."
Pela negativa: excluídas do conceito de correspondência estão as formas de comunicação que integrem as telecomunicações, ou seja, "os procedimentos técnicos de transmissão incorpórea à distância de qualquer espécie de informação (sinais, dados, sons, cores, imagens, etc.). E isto independentemente do sistema tecnológico de tratamento e transmissão da informação: com fios, por cabo, ondas hertzianas, via satélite (...). Assim, e a par das clássicas formas do telefone (...), cabem aqui telecomunicações como o telex, o telefax, a telefoto, etc... " (idem, pág. 758, § 18, sublinhado nosso).
Neste sentido se pronunciou também o supra referido acórdão de 18.5.06 deste Tribunal e o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 29.3.06 (No proc. 607/06, disponível em www.dgsi.pt), como se infere quando afirma “tal como acontece na correspondência efectuada pelo correio tradicional diferenciar-se-á a mensagem já recebida mas ainda não aberta da mensagem já recebida e aberta. Na apreensão daquela rege o art.º 179º do Código de Processo Penal, mas a apreensão da já recebida e aberta não terá mais protecção do que as cartas recebidas, abertas e guardadas pelo seu destinatário”. Como se vê, a relevância dessa distinção entre correspondência fechada e aberta pode ser relevante mesmo para as comunicações electrónicas (Para além do acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra referido, Pedro Verdelho, A obtenção de prova no ambiente digital, RMP 99, pg.s 117 stes e Apreensão de correio electrónico em processo penal, RMP 100 pg.s 153 e stes, e também o supra referido estudo de Costa Andrade, embora o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20.9.06, no proc. 06P2321, disponível em www.dgsi.pt, tenha posição diferente).
Ou seja, tem de se concluir que a correspondência já aberta pelo seu destinatário passa a ter a natureza de documento e goza apenas da protecção que todos os documentos merecem. A correspondência é por definição fechada – assim que é aberta deixa de o ser e passa a ter natureza documental. Enquanto fechada, a correspondência é sigilosa por natureza, e, consequentemente goza da protecção constitucional que o art. 34º nº 1 da Constituição da República Portuguesa concede ao “sigilo da correspondência”.”
Concluímos pois que, no presente caso, a transcrição das mensagens SMS constantes dos telemóveis do denunciante e da filha para os autos não está dependente da autorização do JIC.

III.
Pelo exposto, acordam os Juízes desta Secção Criminal em negar provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida.
Sem custas.
Elaborado e revisto pelo primeiro signatário.

Lisboa, 29 de Março de 2012.

Relator: João Carrola;
Adjunto: Carlos Benido;