Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
2443/22.0T8ALM-B.L1-6
Relator: TERESA PARDAL
Descritores: RESTITUIÇÃO PROVISÓRIA DE POSSE
CASA DE MORADA DE FAMÍLIA
SUSPENSÃO DA ENTREGA JUDICIAL
LEIS COVID 19
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/23/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: A entrega judicial de um imóvel no âmbito da realização de uma providência cautelar de restituição provisória de posse não se suspende ao abrigo do artigo 6º-E nº 7 alínea b) da Lei 1-A/2020 de 19/3, mesmo que tivesse como objecto a casa de morada de família do requerido.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 6ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa:

RELATÓRIO.
Município de … intentou contra I… e R… providência cautelar de restituição provisória a posse, pedindo para ser declarado proprietário do rés do chão esquerdo do prédio urbano que constitui o bloco 7 em regime de propriedade plena, sito na Quinta de …, …, inscrito na matriz sob o nº… e na CRP sob o nº…, para ser reconhecida a privação da sua posse por esbulho violento e ordenada a restituição da posse, decretando-se a inversão do contencioso com dispensa de o requerente intentar a ação principal.
Procedeu-se à produção de prova sem a audiência prévia dos requeridos e foi proferida sentença que julgou provados os factos alegados na petição inicial e os requisitos da providência cautelar, decretando-a, bem como a inversão do contencioso, dispensando a requerente de intentar a acção principal.
Iniciada a diligência de entrega judicial do imóvel, foi a mesma suspensa uma primeira vez para se averiguar se, na pendência de uma acção intentada no tribunal administrativo pelos requeridos contra o requerente, havia sido proferida decisão que obstasse à entrega e, recebida informação desse processo no sentido negativo, foi determinada a execução da diligência, a qual foi de novo suspensa, em virtude de estar pendente um recurso com efeito suspensivo da decisão que decidiu não admitir os embargos de terceiro interpostos pelo requerido à decisão que decretou a restituição provisória da posse.
Proferido acórdão que confirmou a não admissão dos embargos de terceiro e cessando assim o efeito suspensivo do respectivo recurso, veio o requerido apresentar requerimento alegando e requerendo que “tendo sido notificado para proceder à entrega das chaves/desocupação imediata da casa de morada de família, com base no douto despacho que se junta sob a forma de parecer, como Doc. 1, sustentando que a Lei 1 - A/2020, de 19/3 mantem-se em vigor e por força da mesma ficam suspensos os atos a realizar em sede de processo executivo…relacionados com a concretização de diligências de entrega judicial da casa de morada de família, vem requerer a Vexa se digne ordenar a imediata suspensão da execução para salvaguarda da casa de morada de família”.
Com o requerimento, juntou cópia de uma decisão do Juízo de Execução de Sintra como “parecer”.
Sobre este requerimento recaiu despacho que o indeferiu, nos seguintes termos:
Contrariamente ao pretendido pelo requerido, não pode ordenar-se a suspensão da entrega do imóvel, por força da eventual aplicação do art.º 6º-E nº7 Lei 1-A/2020, de 19/3, dado que não estamos no âmbito de um processo executivo ou de insolvência, pelo que se indefere o requerimento de 14/11/2022”.
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Inconformado, o requerido interpôs recurso e alegou, formulando as seguintes conclusões:
 1ª O presente processo teve origem numa providência cautelar interposta pela CMA contra o morador e ora Recorrente quando deveria ter sido instaurada no Tribunal Administrativo e Fiscal de Almada por ser o competente em razão da matéria.
 2ª Sucedeu que no âmbito da improcedência do recurso foi ordenado o prosseguimento da entrega judicial da habitação o que fez com que de imediato o ora Recorrente invocando a vigência da Lei 1-A/2020, de 19/3 solicitou que com base no aí disposto de que ficam suspensos os atos a realizar em sede de processo executivo…relacionados com a concretização de diligências de entrega judicial da casa de morada de família. 
3ª Sustenta-se no despacho recorrido que tal pedido não pode ser deferido dado que alegadamente não se está no âmbito de um processo executivo ou de insolvência. Ora, claramente não se trata de um processo de insolvência.
 4ª Todavia, inexistem dúvidas de que está alegado e demonstrado que se trata de casa de morada de família onde o Recorrente reside, sem ter outra habitação, com a companheira e dois filhos menores, respetivamente com 8 e 3 anos de idade.
 5ª Mais, a presente providência não foi junta a qualquer ação principal, ou seja, por falta dessa interposição deveria ter sido ordenada de forma oficiosa a respetiva caducidade.
6ª Dir-se-á que a CMA ao interpor a providência requereu a inversão do ónus, mas então perguntar-se-á se o regime aplicável passou do respeitante às providências para o respeitante à ação principal e mais precisamente para o processo executivo uma vez que o objetivo da CMA era o da entrega de coisa certa, ou seja, frontalmente o desiderato do processo executivo.
7ª Perguntar-se-á se a intenção de fugir aplicação do regime do processo executivo em manifesto abuso de direito deverá impedir o morador de ver protegida a casa de morada de família?
 8º Aliás, se noutro processo de execução do despejo, não exclusivo da competência do Tribunal Administrativo, se pretender despeja uma pessoa da classe média essa pessoa pode impedir o despejo com base no regime excecional do Covid 19.
 9ª Todavia se tratar uma casa de habitação social; de um agregado que vive do RSI e que apenas tem a rua para dormir parece que com base no “meio processual” que não se insere no normal essa pessoa não tem direito a requerer e ver deferida tal suspensão de entrega.
 10ª Ora, a CRP proíbe a discriminação em razão da condição económica; da origem étnica romani ou não e mais grave a colocação ao frio por parte de quem tem a obrigação legal de entregar ao munícipe uma habitação condigna a manifestamente a CMA não só não entrega como pretende colocar na rua um agregado para perante todos fique o exemplo do que sucede a quem se atreve a ser pobre e ainda assim constituir família!
 11ª A fundamentação da sentença, como a de qualquer outra decisão judicial, sendo exigência muito antiga, tem actualmente assento constitucional. De facto, art.º 205º nº 1 da CRP, as decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei. Não se trata de mera exigência formal, já que a fundamentação cumpre uma dupla função: de carácter objetivo - pacificação social, legitimidade e autocontrole das decisões; e de carácter subjetivo - garantia do direito ao recurso e controlo da correcção material e formal das decisões pelos seus destinatários. 
12ª A fundamentação da douta sentença recorrida afigura-se contrária com os fundamentos na medida em que:
13ª As decisões judiciais sobre qualquer pedido controvertido ou sobre alguma dúvida suscitada no processo são sempre fundamentadas. A justificação não pode consistir na simples adesão aos fundamentos alegados no requerimento ou na oposição. 14ª A falta de fundamentação gera a nulidade do despacho ou da sentença. Tratando-se da decisão sobre a matéria de facto, pode determinar-se em recurso a baixa do processo a fim de que o tribunal da 1ª instância a fundamente.
15ª Por outro lado, a douta sentença não faz uma análise crítica, nem completa nem mínima, da versão apresentada pelo A, limitando-se a reproduzir um conjunto de considerações que são válidas para “N” ações, mas que não consubstanciam minimamente o cumprimento do imposto.
16º Prescreve, então e no que ora nos interessa, o artigo 334.º do C.C., primeira fonte do instituto do Abuso de Direito, que é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito. 
17ª Quer-se, pois, tutelar ou permitir uma válvula de escape perante um determinado modo de exercício de direito ou direitos, que, apresentando-se formal e aparentemente admissível, redunda em manifesta contrariedade à ordem jurídica. 
18ª Há abuso de direito quando um determinado direito – em si mesmo válido –, é exercido de modo que ofenda o sentimento de justiça dominante na comunidade social (Ac. RL, de 16 de Maio 1996, processo nº 0012472, sumário em dgsi.pt). 
Termos em que deve o presente Recurso ser admitido, com efeito suspensivo e subindo nos próprios autos, julgado procedente por provado, revogando-se a sentença recorrida e proibindo-se a prática de diligências de colocação do Recorrente e respetivo agregado familiar da casa de morada de família, se fará Justiça!
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O apelado não contra-alegou.
As questões a decidir são:
I) Nulidade do despacho.
II) Se há fundamento para suspender a entrega do imóvel.
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FACTOS.
Os factos provados são os que constam no relatório do presente acórdão.
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ENQUADRAMENTO JURÍDICO.
I) Nulidade do despacho.
O apelante invoca a nulidade do despacho recorrido por falta de fundamentação.
Contudo, embora concisamente, foi o despacho fundamentado, ao referir que não estão reunidos os pressupostos da legislação invocada pelo apelante.
Não há, assim, violação do artigo 154º do CPC, nem se verifica a apontada nulidade do despacho, prevista nos artigos 615º nº1 b) e 613º do mesmo código. 
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II) Se há fundamento para suspender a entrega do imóvel.
Nos autos foi decretada a providência cautelar de restituição provisória de posse com inversão do contencioso, a qual não admite a audiência prévia dos requeridos (artigo 378º do CPC), que só após a realização de restituição são notificados, com a aplicação do preceituado quanto à citação (artigo 366º nº6 do CPC).
Tendo sido decretada a inversão do contencioso ao abrigo do artigo 369º do CPC, ficou o requerente dispensado de intentar a acção principal, pelo que a providência não caducou nos termos do artigo 373º nº1 do mesmo código. 
O artigo 6-E nº7, alínea b) da Lei 1-A/2020 de 19/3 estabelece que ficam suspensos no decurso do período de vigência do regime excepcional e transitório previsto neste artigo (…) b) os actos a realizar em sede de processo executivo ou de insolvência relacionados com a concretização de entrega judicial da casa de morada de família”.     
O despacho recorrido fundamentou a sua decisão no facto de não estarmos perante um processo de insolvência, nem perante uma execução (sendo certo que a decisão junta pelo requerido apelante, para fundamentar o seu requerimento é uma decisão de um juízo de execução, cujo processado, ao contrário do presente, integra com clareza a norma em análise).
Com efeito, a situação dos autos não é um processo executivo, como defende o apelante, nem como tal poderá considerar-se por interpretação extensiva, tendo em atenção que a realização da diligência que executa uma decisão numa providência cautelar tem natureza muito diversa daquela que é realizada num processo executivo.
No processo executivo a decisão que se executa é, em princípio, definitiva, baseando-se numa decisão declarativa já tomada (ou num outro título executivo) e em que a suspensão das diligências constitui apenas um adiamento da entrega.
Já a providência cautelar tem como finalidade, não executar uma decisão final ou um título com força executiva, mas sim proteger o específico interesse do requerente nos casos em que este poderá ficar comprometido enquanto espera pela decisão final, estando subjacente na lei a preocupação de acautelar essas especiais situações, cujo objectivo ficaria frustrado se fosse aplicada a suspensão ora requerida (daí a designação “cautelar” do presente processo).
E o facto de ter sido decretada a inversão do contencioso não altera a natureza da diligência, pois a respectiva decisão não é definitiva, só correndo o prazo para a sua impugnação após a citação dos requeridos.
Por outro lado, não se descortina que o requerente actue com abuso de direito previsto no artigo 334ºdo CC, como também defende o apelante, mesmo que se trate da casa de morada de família do apelante.
Em causa está apenas o exercício de um direito que assiste ao requerente, ao obter uma decisão judicial cuja realização não integra as excepções previstas na lei como fundamento de suspensão, sendo que a discussão convocada pelo apelante sobre o seu direito ao arrendamento não tem cabimento no presente momento processual.
Improcedem, portanto, as alegações de recurso.
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DECISÃO.
Pelo exposto, decide-se julgar improcedente a apelação e confirma-se o despacho recorrido.
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Custas pelo apelante.

2023-02-23
Maria Teresa Pardal
Anabela Calafate
António Santos