Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
2062/2005-8
Relator: ANTÓNIO VALENTE
Descritores: COOPERATIVA
CONTRATO
SOCIEDADE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 09/29/2005
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Sumário: 1 - Nada impede que várias cooperativas se tornem accionistas de uma sociedade por elas criada, funcionando tal sociedade como instrumento de uma mais eficaz concretização da actividade que constituía e continua a constituir o escopo dessas cooperativas.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa

Vem o Mº Pº intentar acção declarativa ordinária contra Grula – Grupo Lisboeta de Abastecimento de Produtos Alimentares CRL, Coopertorres – Cooperativa de Retalhistas de Mercearias do Oeste, Torrental – Cooperativa de Retalhistas de Produtos Alimentares de Torres Novas, Alcanena e Entroncamento CRL, (A), (B), (C) e GCT – Distribuição Alimentar S.A., pedindo que seja declarada a nulidade do contrato de sociedade celebrado entre os RR e determinada a entrada em liquidação da Ré GCT.

Alegou para tal, e em síntese:
As três cooperativas Rés decidiram associar-se e constituir uma sociedade, a GCT, para a qual seria transferida toda a função comercial das ditas cooperativas.
E assim foi constituída a Ré GCT.
As cooperativas associaram-se com pessoas singulares o que é proibido pelo artº 8º do Código Cooperativo.
Por outro lado, tais cooperativas transformaram-se, na prática, numa sociedade anónima, pelo que o acto de constituição desta é nulo, até porque as cooperativas passaram a ter fim lucrativo, o que é proibido pelo artº 2º do mesmo diploma.

As RR contestaram, alegando que mantiveram a sua personalidade e individualidade jurídicas e não passaram a ter fim lucrativo.
A criação da sociedade visou dar-lhes possibilidades de enfrentarem com êxito a concorrência dos grandes grupos económicos.

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Veio a ser proferida decisão que desatendeu o pedido do A, dele absolvendo os RR.

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Inconformado recorre o Mº Pº, concluindo que:
- As RR cooperativas, por escritura pública de 29/12/99, constituíram a sociedade GCT – Distribuição Alimentar S.A. da qual passaram a ser sócias maioritárias.
- Para tal haviam aprovado uma proposta visando o destaque e transferência das actividades de distribuição, comercialização e dos activos e passivos a elas adstritos, para a sociedade a constituir, resultante da reorganização, em troca de uma participação social nessa sociedade.
- A GCT tem por objecto a distribuição, comercialização, por grosso e a retalho, de produtos alimentares e outros de consumo corrente e generalizado, no país e no estrangeiro ou seja, exactamente o mesmo escopo principal das cooperativas RR, que transferiram tais actividades para a sociedade anónima.
- Nos termos do artº 80º do Código Cooperativo é nula a transformação de uma cooperativa em qualquer tipo de sociedade comercial, sendo também nulos os actos que procurem contrariar ou iludir essa proibição.
- As RR não reservaram para si um núcleo do seu objecto correspondente ao puro escopo cooperativo, transferindo-o antes para a nova sociedade e criando um vazio no objecto dessas cooperativas.
- É nula não só a transformação formal como quaisquer actos que signifiquem uma transformação disfarçada.

As RR defenderam a manutenção da decisão recorrida.

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Uma vez que a matéria de facto não foi alvo de impugnação, nem se vislumbra a necessidade de a modificar, remete-se para a respectiva decisão, nos termos do artº 713º nº 6 do CPC.


Cumpre apreciar.
Discute-se a legalidade da constituição da sociedade Ré, GCT – Distribuição Alimentar S.A. que terá resultado de uma transformação “disfarçada” das RR cooperativas, destacando as suas actividades de distribuição e com elas os respectivos activos e passivos e concentrando-os nessa sociedade.
Nos termos do artº 1º nº 1 do Código Cooperativo, “as cooperativas são pessoas colectivas autónomas, de livre constituição, de capital e composição variáveis que, através da cooperação e entreajuda dos seus membros, com obediência aos princípios cooperativos, visam, sem fins lucrativos, a satisfação das necessidades e aspirações económicas, sociais ou culturais daqueles.”
No entanto, nos termos do nº 2 do mesmo preceito, é admitido que as cooperativas, na prossecução dos seus objectivos, possam realizar operações com terceiros, dentro dos limites fixados por lei para cada ramo.

Desde logo, teremos de assentar no princípio de que as cooperativas, embora possam exercer qualquer tipo de actividade económica – artº 7º - não podem ter intuito lucrativo. Ao invés, é esse mesmo o intuito de qualquer sociedade comercial.
Daí que o artº 8º do mesmo diploma, enquanto admite que as cooperativas se associem com pessoas colectivas de natureza não cooperativa – desde que daí não resulte perda da sua autonomia – estipule que “não podem adoptar a forma cooperativa as pessoas colectivas resultantes da associação de cooperativas com pessoas colectivas de fins lucrativos”.
É manifesta a preocupação do legislador em impedir que uma cooperativa, directa ou indirectamente, possa vir a ter por objecto o lucro.
Não surpreende pois que o artº 80º disponha ser nula “a transformação de uma cooperativa em qualquer tipo de sociedade comercial, sendo também feridos de nulidade os actos que procurem contrariar ou iludir esta proibição legal”.

É aqui que se situa o debate jurídico do presente recurso.


O objecto da cooperativa Grula, é o de armazenar e fornecer aos seus membros os bens e serviços necessários à sua actividade podendo, para tal, e além do mais, fornecer bens e serviços adquiridos ou produzidos pela cooperativa, importar e exportar todos os bens e serviços que se integram no âmbito das suas actividades, instalar serviços de apoio.
Refira-se ainda que o objecto da cooperativa Torrental é em tudo idêntico ao da 1ª Ré.

Na Assembleia Geral da Ré Grula de 14/11/99, foi proposto (e aprovado) que se procedesse ao destaque e à transferência das actividades de distribuição, de comercialização e dos activos e passivos a elas adstritos, para a sociedade a constituir, sendo que a transferência dos elementos patrimoniais, activos e passivos, da cooperativa para a sociedade a constituir, seria efectuada com base num balanço actualizado.
Propostas de idêntico teor viriam a ser aprovadas nas Assembleias Gerais das cooperativas Coopertorres e Torrental, em 15 e 16/11/99 respectivamente

Perante isto, o Mº juiz a quo entendeu que a lei não proíbe que as cooperativas, associando-se, criem uma pessoa colectiva distinta que revista a natureza de sociedade comercial, desde que a prática ressalve devidamente o tratamento a dar aos lucros obtidos.

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É indiscutível que as ora RR não se transformaram numa sociedade comercial. Qualquer delas continua a existir, sendo, de resto, accionistas da nova sociedade.
Mas poder-se-á dizer, como o faz o Mº Pº, que as cooperativas se demitiram do exercício de qualquer actividade, passando a ser a GCT a desenvolvê-las em sua substituição? Ou seja, terá ocorrido, encapotadamente, uma transformação dessas cooperativas numa sociedade comercial?
Embora reconheçamos que a questão é melindrosa, inclinamo-nos para uma resposta negativa.


O que ocorre na presente situação, não é um processo encapotado de transformação das cooperativas numa sociedade comercial. É antes a criação, por parte de tais cooperativas, de uma sociedade comercial de que as cooperativas são accionistas largamente maioritários, funcionando a sociedade como instrumento com vista a possibilitar a plena realização de cada uma e de todas as cooperativas envolvidas.
A razão, como de resto as RR explicam longamente, deve-se ao estrangulamento do mercado pelas grandes superfícies, face às quais as cooperativas, com a sua constituição e limites, não conseguiam encontrar espaço para uma verdadeira concorrência. O objectivo das cooperativas continua a ser o mesmo, ou seja, fornecer bens e serviços adquiridos ou produzidos pelas cooperativas e importar e exportar esses bens e serviços. Só que, pelo menos em parte, foi criado um instrumento, sob o controlo das cooperativas, que possibilite a realização desse escopo.

Resultou provado, de resto, que as cooperativas “continuariam a desenvolver actividades de índole comercial e de distribuição, mantendo o exercício directo e individual de actividades de índole genuinamente cooperativa, como sejam os serviços de apoio, de realização de cursos de formação técnica e cooperativa (...) e ainda, de desenvolvimento de actividades de promoção e recolha de produções agro-industriais, alicerçadas em figurinos de economia contratual, com os seus membros.”
É aceitável, no cenário económico actual, em que a comercialização de produtos agrícolas está amplamente dominada pelas chamadas grandes superfícies, que entidades como as cooperativas ora RR tentem, dentro do quadro jurídico vigente, novas soluções que permitam viabilizar o seu próprio objecto de actividade e, consequentemente, dar satisfação às aspirações dos seus membros.
A lei não proíbe, de modo algum, que as cooperativas se tornem accionistas de uma sociedade por elas criada, antes parece abrir as portas a tal possibilidade face ao disposto no artº 8º nº 1 do Código Cooperativo, cujo teor voltamos a citar: “é permitido às cooperativas associarem-se com outras pessoas colectivas de natureza cooperativa ou não cooperativa, desde que daí não resulte perda da sua autonomia” (sublinhado nosso). E esta é, a nosso ver, a situação dos autos, com a criação de uma sociedade comercial de que são accionistas as próprias cooperativas.


As cooperativas RR não só não deixaram de existir como pessoas jurídicas como nada permite afirmar que tenham perdido a sua própria actividade. Aliás, isso seria difícil, na medida em que, embora indirectamente, são elas que continuam a controlar e dirigir a sociedade comercial que criaram.
Entendemos, embora se respeite a douta posição do Mº Pº, que a sua leitura excessivamente abrangente do artº 80º, acaba por retirar às cooperativas de fornecimento e distribuição de produtos alimentares qualquer razão de ser, na medida em que, situando-se no plano rígido das regras cooperativas, não terão quaisquer hipóteses de fazer face ao domínio esmagador das grandes superfícies, algumas delas multinacionais, dotadas de enormes meios financeiros e humanos. A inovação, as ideias que permitam às cooperativas do género subsistirem, sem com isso violarem as normas jurídicas aplicáveis, serão até de aplaudir.
Numa sociedade como a actual em permanente mutação, requerendo constantes adaptações a novas realidades, o direito não deverá ser interpretado dentro de uma perspectiva imobilista, cristalizada, mas antes, sem que se perca de vista o sentido essencial da norma, de modo a compreender todas as mutações sociais que, como é óbvio, não ultrapassem manifestamente o quadro jurídico em vigor.
E no caso dos autos, como vimos, nada permite afirmar que a actuação das RR – de resto autorizada pelo Ministério da Justiço e pelo Ministério da Economia - não permite afirmar que estejamos perante uma tentativa, mesmo que encapotada, de transformação de tais cooperativas numa sociedade comercial.
As cooperativas mantêm a sua existência e actividade, como acima exposto. O que se passa é apenas a tentativa de tornar viável o seu escopo mediante a criação de uma sociedade comercial controlada pelas próprias cooperativas.

Acorda-se assim em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a sentença recorrida.
Sem custas.

LISBOA, 29/9/2005

António Valente
Sacarrão Martins
Teresa Pais