Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
2514/2008-6
Relator: OLINDO GERALDES
Descritores: EXECUÇÃO
LIQUIDAÇÃO
DECISÃO ARBITRAL
CAUÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 04/17/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: ALTERADA A DECISÃO
Sumário: I. Se a decisão arbitral condenar em termos genéricos, nos termos do n.º 2 do art. 661.º do CPC, o credor, para lhe conferir exequibilidade, necessita previamente de deduzir o incidente de liquidação, no respectivo tribunal arbitral, nos termos do n.º 2 do art. 378.º do CPC, com a aplicação do regime específico previsto no art. 380.º-A do CPC.
II. A falta de exequibilidade do título executivo, por falta de liquidez da obrigação exequenda, não suprível no início do processo executivo, constitui um dos fundamentos, expressamente admitidos, de oposição à execução baseada em sentença – alíneas a) e e) do art. 814.º do CPC.
III. Com a prestação de caução pelo executado, procurou-se obter um justo equilíbrio entre, por um lado, os interesses do exequente, que pretende a satisfação coerciva, em prazo razoável, do direito de crédito, e, por outro, os interesses do devedor, a quem assiste o direito de se opor, designadamente à execução do património, garantindo-se a eficiência do processo executivo.
IV. Ao deixar de subsistir, no processo de execução, a motivação que sustentava a prestação da caução, por procedência da respectiva oposição e pagamento da quantia exequenda, é admissível o levantamento da caução.
V. A circunstância da decisão sobre a procedência da oposição à execução ainda não ser definitiva, em resultado da sua impugnação, não releva, em virtude de ter sido fixado, ao respectivo recurso, o efeito meramente devolutivo.
VI. Se a interposição do recurso tivesse um efeito negativo, quanto à caução, sempre se poderia reduzir o seu montante, levando em consideração o valor da obrigação já satisfeita.
O.G.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:
I. RELATÓRIO
T, S.A., deduziu oposição à execução que J lhe moveu, em 28 de Março de 2006, através do 3.º Juízo de Execuções da Comarca de Lisboa, para pagamento da quantia de € 322 301,82, alegando que procedera ao pagamento de parte daquela quantia e que o valor de € 222 609,00 está sujeito a liquidação, sem ser possível ao abrigo do art. 805.º do CPC.
Contestou o Exequente, alegando, para além do mais, não lhe ser possível deduzir o incidente de liquidação no âmbito do processo arbitral.
Seguiu-se, em 31 de Janeiro de 2007, o despacho saneador – sentença, julgando-se a oposição parcialmente procedente e, em consequência extinta a execução, que prosseguiria apenas para o pagamento da quantia de € 428,89, acrescido dos juros de mora vencidos e vincendos, e condenando-se ainda o Exequente no pagamento da multa de 10 UC (art. 819.º do CPC).

Inconformado, recorreu o Exequente, que, alegando, formulou essencialmente, as seguintes conclusões:
a) Não é possível dar cumprimento ao disposto no art. 47.º, n.º 5, do CPC, deduzindo o incidente de liquidação previsto no art. 378.º, n.º 2, do CPC, pois o tribunal arbitral está dissolvido.
b) O sistema jurídico tem de garantir a tutela jurisdicional efectiva do direito do Exequente.
c) Perante a lacuna da lei, é extensível a aplicação do regime previsto no art. 805.º, n.º s 1 e 4, do CPC.
d) Em alternativa, teria de se reconhecer ao Exequente o direito de deduzir o incidente de liquidação num tribunal judicial.
e) A reconhecer-se a falta de um pressuposto processual, deveria o Tribunal ter convidado a proceder ao suprimento (arts. 812.º, n.º 4, 814.º, alínea c), e 820.º do CPC).
f) Deveria ter declarado a absolvição da instância, nos termos do art. 288.º, n.º 1, alínea c), do CPC.

Pretende, com o provimento do recurso, a revogação da decisão recorrida, com o prosseguimento da execução ou, em alternativa, a absolvição da instância e reconhecido ao Exequente o direito de deduzir o incidente de liquidação em tribunal judicial.

Contra-alegou a Executada, no sentido de ser mantida a decisão recorrida.

A Executado, entretanto, alegando ter já pago a quantia exequenda, requereu, em 15 de Março de 2007, o levantamento da caução, no valor de € 339 513,64, prestada sob a forma de garantia bancária, para substituição da penhora efectuada.
O pagamento da quantia exequenda, assim como das demais despesas, foi confirmado pelo Solicitador de Execução, em 29 de Março de 2007, informando-se também que o Exequente foi notificado para informar por que meio pretende ser pago do montante de € 611,55 (fls. 232 da execução).
Sobre tal requerimento incidiu, em 17 de Abril de 2007, o despacho:

Uma vez que houve recurso da decisão proferida nos autos de oposição, não se poderá deferir o requerido”.
A Executada requereu ainda a reforma do despacho, dado o efeito meramente devolutivo atribuído ao recurso da decisão sobre a oposição à execução, não tendo logrado qualquer êxito.

Inconformada com o despacho, recorreu a Executada, que, tendo alegado, extraiu essencialmente as seguintes conclusões:
a) Está verificada a extinção da execução, depois de ter comprovado o pagamento da quantia de € 428,89, que conduziria ao levantamento da caução.
b) A suspensão da execução cessou a partir do momento em que a instância executiva se extinguiu.
c) O não levantamento da caução representa uma violação do efeito devolutivo do recurso.
d) A Executada continua, sine die, a suportar as despesas da caução periodicamente debitadas.

Pretende, com o provimento do recurso, a revogação do despacho recorrido e que se ordene o levantamento da caução.

A parte contrária não contra-alegou.
O despacho recorrido foi, tabelarmente, sustentado.

Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

No primeiro recurso (apelação), está essencialmente em causa a liquidação de parte da obrigação exequenda, constante de uma sentença arbitral, enquanto no segundo (agravo) se questiona o levantamento da caução, depois de paga a parte líquida da obrigação exequenda.

II. FUNDAMENTAÇÃO
2.1. Além da dinâmica processual descrita, estão provados os seguintes factos:
1. Por acórdão arbitral, de 3 de Outubro de 2005, a Executada foi condenada a pagar ao Exequente a quantia de € 98 318,86 e aquilo que viesse a ser liquidado em execução do acórdão até ao montante de € 247 597,00.
2. Em 19 de Abril de 2006, a Executada enviou ao Exequente um cheque, no montante de € 71 619,91.
3. Em 9 de Junho de 2006, a Executada enviou ao Exequente um cheque, no montante de € 10 138,92.
4. A Executada reteve a quantia de € 428,89, a título de seguro de saúde devido pelo Exequente.

2.2. Delimitada os factos provados e a dinâmica processual relevante, importa então conhecer do objecto dos recursos, definido pelas respectivas conclusões, e cujas questões jurídicas emergentes foram oportunamente destacadas.

Começando pelo recurso de apelação do Exequente, desde logo, se afigura como inequívoca a existência de uma situação de iliquidez da obrigação exequenda, que, nos termos da decisão recorrida, implicou a extinção da execução, tendo sido julgada procedente, nessa parte, a oposição à execução.
Perante a iliquidez da obrigação, seria admissível, então, outro destino para a execução, diferente da sua extinção?
A obrigação exequenda, constante de título executivo, tem, como requisitos, a sua certeza, a exigibilidade e a liquidez, como decorre, expressamente, do disposto no art. 802.º do Código de Processo Civil (CPC), quando se refere à “obrigação certa, exigível e líquida”.
Interessando, agora, apenas o último requisito, a obrigação diz-se ilíquida, quando tem por objecto uma prestação cujo quantitativo não está ainda apurado (J. LEBRE DE FREITAS e A. RIBEIRO MENDES, Código de Processo Civil Anotado, Volume 3.º, 2003, pág. 244).
O regime jurídico da liquidação da obrigação encontra-se, actualmente, concentrado no art. 805.º do CPC.
No caso vertente, foi apresentado, como título executivo, uma sentença condenatória de um tribunal arbitral, que, além do mais, condenou num pedido genérico, nos termos do art. 661.º, n.º 2, do CPC.
A exequibilidade das decisões proferidas por tribunais arbitrais que tenham funcionado em território português está, expressamente, admitida pelo art. 48.º do CPC, que as equipara às sentenças, correndo a execução nos tribunais judiciais, nos termos da lei de processo civil (art. 30.º da Lei n.º 31/86, de 29 de Agosto).
Contudo, não dependendo a liquidação da obrigação de simples cálculo aritmético e tendo havido condenação genérica, nos termos do n.º 2 do art. 661.º do CPC, a sentença só constitui título executivo após a liquidação no processo declarativo, atento o disposto no n.º 5 do art. 47.º do CPC.
Isto significa que, antes da instauração da acção executiva, o credor deve deduzir o incidente de liquidação para tornar líquida a condenação genérica, renovando a instância declarativa extinta (art. 378.º, n.º 2, do CPC). Este regime, introduzido, há poucos anos, pelo DL n.º 38/2003, de 8 de Março, modificou o anterior, que previa uma fase de liquidação prévia inserida no processo de execução (art. 806.º do CPC).
A circunstância do título executivo corresponder a uma decisão arbitral não altera a aplicação do regime referente à sentença.
Por isso, se a decisão arbitral condenou em termos genéricos, nos termos do n.º 2 do art. 661.º do CPC, o credor, para lhe conferir exequibilidade, necessita previamente de deduzir o incidente de liquidação, no respectivo tribunal arbitral, nos termos do n.º 2 do art. 378.º do CPC, com a aplicação do regime específico previsto no art. 380.º-A do CPC, também introduzido pelo DL n.º 38/2003.
Para além de não se justificar um regime diferenciador do da sentença, a extinção do poder dos árbitros, com a notificação do depósito da decisão que pôs termo ao litígio, prevista no art. 25.º da Lei n.º 31/86, de 29 de Agosto, não impede a renovação da instância arbitral, do mesmo modo que a extinção do poder jurisdicional prevista no art. 666.º, n.º 1, do CPC, também não obsta à renovação da instância, para liquidação, no caso da sentença de condenação genérica, nos termos do n.º 2 do art. 661.º do CPC.
No sentido afirmado, pronuncia-se abertamente C. Lopes do Rego (Comentários ao Código de Processo Civil, Volume I, 2.ª edição, 2004, pág. 341), parecendo ser, também, o pensamento de J. Lebre de Freitas e A. Ribeiro Mendes (ibidem, pág. 260).
Assim, compreende-se que é inaplicável o disposto no n.º 4 do art. 805.º do CPC, que se refere a um título executivo diverso da sentença, sendo certo ainda que, a liquidação por árbitros, prevista também no n.º 5, é também prévia à apresentação do requerimento executivo.
Não se verifica, pois, qualquer lacuna na lei, encontrando-se ainda devidamente assegurada a garantia da tutela jurisdicional efectiva, nomeadamente a possibilidade do apelante fazer executar a sua pretensão.

Por outro lado, a falta de exequibilidade do título executivo, por falta de liquidez da obrigação exequenda, não suprível no início do processo executivo, constitui um dos fundamentos, expressamente admitidos, de oposição à execução baseada em sentença – alíneas a) e e) do art. 814.º do CPC.
Sendo a obrigação exequenda ilíquida, como se reconhece, e não sendo suprível no início da execução, como se demonstrou, havia justo motivo para a procedência da oposição à execução e, consequentemente, à sua extinção.
Nestes termos, a apelação não pode proceder, sendo caso para se confirmar a decisão recorrida.

2.3. Passando, por sua vez, à apreciação do agravo da Executada, está em equação o levantamento da caução, no valor de € 339 513,64, prestada espontaneamente através de garantia bancária, para substituição da penhora efectuada, depois do pagamento da obrigação exequenda, na parte líquida.
A decisão recorrida, para indeferir o requerido levantamento da caução, baseou-se na circunstância da decisão da oposição à execução, na parte declarativa da extinta a execução, ter sido impugnada mediante recurso.
A Recorrente, inconformada, realçou o pagamento da quantia exequenda e os custos continuados a suportar com a caução.
A prestação da caução pela Recorrente, como se descreveu, destinou-se à substituição da penhora efectuada na execução, na qual não houve lugar à citação prévia.
Deste modo, a prestação da caução não teve por fim obter a suspensão do processo de execução (art. 818.º, n.º 1, do CPC), dado que esse efeito, no caso vertente, foi automático, com o recebimento da oposição à execução, como resulta do disposto no n.º 2 do art. 818.º do CPC.
Independentemente do seu fim específico, a prestação da caução destina-se a garantir a obrigação exequenda, cujo cumprimento coercivo poderia ficar em risco, por efeito da demora natural do processo de execução, decorrente do recebimento da oposição.
Com a prestação de caução pelo executado, procurou-se obter um justo equilíbrio entre, por um lado, os interesses do exequente, que pretende a satisfação coerciva, em prazo razoável, do direito de crédito, e, por outro, os interesses do devedor, a quem assiste o direito de se opor, designadamente à execução do património, garantindo-se a eficiência do processo executivo.

Determinado o fim da prestação de caução pelo executado, justificar-se-ia ainda a manutenção da caução, depois da declaração da extinção parcial da execução, pela correspondente procedência da respectiva oposição, emergente da iliquidez da obrigação, e após também o pagamento das custas e da dívida (líquida)?
A resposta a esta questão só pode ser negativa. Com efeito, estando paga a quantia exequenda, na parte em que a obrigação exequenda se apresentava como líquida, e tendo sido declarada extinta a execução na parte restante da execução, deixou de existir motivo, que justificava a prestação de caução, para se continuar a garantir o direito de crédito exequendo.
A circunstância da decisão sobre a procedência da oposição à execução ainda não ser definitiva, em resultado da sua impugnação, não releva, em virtude de ter sido fixado, ao respectivo recurso, o efeito meramente devolutivo.
Esse efeito torna a decisão sobre a oposição à execução imediatamente exequível, com as implicações daí resultantes.
Para além de esgotada, em concreto, a sua função de garantia, a manutenção da caução obrigava ainda a pessoa que a prestou a suportar os respectivos encargos, para mais tratando-se de uma garantia bancária e por elevado valor, onerando-a em termos que podem ser considerados como injustos.
Tal situação, sendo inexigível, não é consentida pelo direito.

Se, porventura, a interposição do referido recurso tivesse um efeito negativo, quanto à caução, sempre se poderia reduzir o seu montante, levando em consideração o valor da obrigação já satisfeita.
Na verdade, o essencial é que se garanta, adequadamente, a dívida exequenda, em consequência da substituição da penhora efectuada. Essa garantia passa pela observância do princípio da proporcionalidade ou da adequação, que os artigos 821.º, n.º 1, e 834.º, n.º 1, ambos do CPC, contemplam, implicitamente, de modo que à finalidade pretendida apenas fique afectado o indispensável ou suficiente.
Não se harmonizaria com esse princípio, por exemplo, ter sido paga parte substancial da quantia exequenda, e, por outro, manter inalterável a caução cujo valor pretende garantir a dívida exequenda, com os inerentes custos. Numa situação destas, está desfeito o equilíbrio, que deve existir, entre o interesse do exequente, de ver garantido o seu direito de crédito, e o interesse do executado, em preservar o seu património, evitando despesas injustificáveis, nomeadamente quanto à prestação já cumprida.
Esse desequilíbrio, em detrimento do executado, como já antes se afirmou, é de todo injustificável, não podendo ser consentido pelo direito.
Assim, necessariamente, teria de operar, pelo menos, a redução da caução.

Concluindo, ao deixar de subsistir, no processo de execução, a motivação que sustentava a prestação da caução, por procedência da respectiva oposição e pagamento da quantia exequenda, é admissível o levantamento da caução, requerido por quem a prestou.
Por isso, não pode subsistir a decisão que indeferiu o levantamento da caução.

2.4. Perante o descrito, pode extrair-se como mais relevante.

I. Se a decisão arbitral condenar em termos genéricos, nos termos do n.º 2 do art. 661.º do CPC, o credor, para lhe conferir exequibilidade, necessita previamente de deduzir o incidente de liquidação, no respectivo tribunal arbitral, nos termos do n.º 2 do art. 378.º do CPC, com a aplicação do regime específico previsto no art. 380.º-A do CPC.
II. A falta de exequibilidade do título executivo, por falta de liquidez da obrigação exequenda, não suprível no início do processo executivo, constitui um dos fundamentos, expressamente admitidos, de oposição à execução baseada em sentença – alíneas a) e e) do art. 814.º do CPC.
III. Com a prestação de caução pelo executado, procurou-se obter um justo equilíbrio entre, por um lado, os interesses do exequente, que pretende a satisfação coerciva, em prazo razoável, do direito de crédito, e, por outro, os interesses do devedor, a quem assiste o direito de se opor, designadamente à execução do património, garantindo-se a eficiência do processo executivo.
IV. Ao deixar de subsistir, no processo de execução, a motivação que sustentava a prestação da caução, por procedência da respectiva oposição e pagamento da quantia exequenda, é admissível o levantamento da caução.
V. A circunstância da decisão sobre a procedência da oposição à execução ainda não ser definitiva, em resultado da sua impugnação, não releva, em virtude de ter sido fixado, ao respectivo recurso, o efeito meramente devolutivo.
VI. Se a interposição do recurso tivesse um efeito negativo, quanto à caução, sempre se poderia reduzir o seu montante, levando em consideração o valor da obrigação já satisfeita.

Nestes termos, improcede o recurso de apelação, sendo de confirmar o despacho saneador-sentença recorrido, enquanto o recurso de agravo merece obter provimento, com a consequente revogação do despacho recorrido.

2.5. O Apelante, ao ficar vencido por decaimento, é responsável pelo pagamento das respectivas custas, em conformidade com a regra da causalidade consagrada no art. 446.º, n.º 1 e 2, do CPC.
Já quanto ao agravo, não há lugar ao pagamento de custas, por efeito da isenção subjectiva prevista na alínea g) do n.º 1 do art. 2.º do Código das Custas Judiciais.

III. DECISÃO
Pelo exposto, decide-se:
1) Negar provimento à apelação, confirmando a decisão recorrida.
2) Conceder provimento ao agravo, revogando a decisão recorrida.
3) Condenar o Apelante (Exequente) no pagamento das custas da apelação.
Lisboa, 17 de Abril de 2008
(Olindo dos Santos Geraldes)
(Fátima Galante)
(Ferreira Lopes)