Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
9849/2006-7
Relator: GRAÇA AMARAL
Descritores: EXCLUSÃO DE SÓCIO
SOCIEDADE COMERCIAL
ÓNUS DA PROVA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/13/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I- Para a procedência do pedido de exclusão judicial de sócio (artigo 242.º do Código das Sociedades Comerciais) não basta a prova de que a sócia cuja exclusão se pretende passou a exercer a mesma actividade da sociedade, sem o consentimento da outra sócia, constituindo, para o efeito, uma sociedade unipessoal de quotas.
II- Impõe-se ainda a prova de que houve prejuízos concretos decorrentes dessa actividade ou a previsibilidade, em termos objectivos, de verificação de prejuízos relevantes, prova que não se pode considerar a partir do momento em que não se provou o que foi alegado nesse sentido, o desvio de clientes com a consequente frustração de negócios avaliados em, pelo menos, 30.000 euros

(SC)
Decisão Texto Integral: Acordam na 7ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa,

I – Relatório

1. E S M I, LDA., e M I P F P S propuseram acção declarativa de condenação, sob a forma ordinária, contra A P L R G P, pedindo que se declare a Ré excluída de sócia da 1ª Autora, e a mesma condenada a pagar:

- à 1ª Autora, a quantia de € 30.000 como indemnização pelos prejuízos que lhe tem vindo a causar pela actividade concorrencial que tem vindo a exercer por conta própria;

- à 2ª Autora, a quantia de €10.603,96 relativa a empréstimo para realização da respectiva quota na sociedade (€2.743,39), montante pago ao promitente-comprador face ao incumprimento de contrato-promessa apenas por ela celebrado (€ 1.760,89), franquia paga para levantamento de viatura por aquela exclusivamente utilizada (€638,46), bem como €5,461,22 correspondente a ½ dos montantes pagos por rendas em atraso devidas ao senhorio pela sociedade e por impostos por esta igualmente devidos ao Estado (IVA).

- às duas Autoras, por danos futuros que vier a causar, a liquidar em execução de sentença.

Para o efeito e essencialmente alegaram:

- Ter a sociedade 1ª Autora como únicas sócias a 2ª Autora e a Ré, tendo a 2ª Autora emprestado à Ré, à data de constituição da sociedade e para pagamento da respectiva quota, a quantia de Esc. 550.000$00, que a mesma nunca lhe devolveu.

- Terem, em 1999, tomado conhecimento de que a Ré começou a exercer por conta própria actividade concorrente com a da 1ª Autora, servindo-se para o efeito das instalações e equipamentos desta, desviando clientes para a sua actividade individual, causando à sociedade prejuízos.

- Ter a Ré assinado um contrato-promessa de compra e venda de imóvel cuja venda deveria ter sido mediada pela sociedade Autora (alegando falsamente ser proprietária da fracção prometida vender) e recebido o sinal, no montante de € 300.000$00, fazendo sua tal quantia, tendo a 2ª Autora sido obrigada a devolver a mesma ao promitente-comprador numa acção judicial por este intentada, com base em incumprimento contratual da promitente-vendedora.

- Ter a Ré, desde Novembro de 2000, abandonado a sociedade Autora, levando consigo uma viatura automóvel que utilizou na sua actividade concorrente, comunicando alguns meses depois à 1ª Autora que havia sofrido um acidente e informado do local onde a viatura de encontrava, tendo a 2ª Autora pago a quantia de € 638,46 de franquia para levantar a viatura.

- Ter a 2ª Autora procedido ao pagamento das quantias de € 3.749,23 e de € 7.173,21, respectivamente por rendas e impostos da sociedade que se encontravam em atraso atenta à situação económica difícil que, na altura, a mesma atravessava, devendo a R. pagar-lhe metade das referidas quantias.

2. Após citação contestou a Ré invocando o pagamento da quantia que a 2ª Autora lhe emprestara para realização da sua quota. Negou ter exercido actividade concorrente com a da sociedade Autora antes de Março/Abril de 2001, ou seja, muito após ter deixado de ser gerente da mesma.

Referiu ainda que o contrato-promessa alegado pelas Autoras só por si foi assinado por tal ser prática corrente na sociedade, tendo o mesmo sido realizado no âmbito da actividade da sociedade Autora e o respectivo sinal entrado nas contas desta.

Impugnou a acusação quanto ao abandono da sociedade, referindo que apenas se limitou a renunciar à gerência, quer por se ter apercebido que a 2ª Autora fazia negócios, em proveito próprio, fora da actividade da sociedade, quer por a mesma e um seu irmão a terem forçado a renunciar ao cargo de gerente.

Concluiu ainda a Ré que o pagamento da franquia e o pagamento das rendas e impostos constituem dívidas a suportar pela sociedade.

Deduziu reconvenção pedindo a condenação das Autoras em quantia a liquidar em execução de sentença pelo prejuízo causado pela 2ª Autora relativo a contratos-promessa que a mesma assinou sozinha, de montante estimado, no mínimo, em € 8.900.

As Autoras impugnaram o pedido reconvencional negando que a 2ª Autora tenha tido actividade paralela à da sociedade ou que se tenha apropriado de qualquer quantia em proveito pessoal. Concluem, no sentido da sua improcedência.

4. Após julgamento foi proferida sentença que julgou a acção parcialmente procedente, condenando a Ré a pagar à 2ª Autora a quantia de € 2.743,39, absolvendo a mesma dos restantes pedidos. Julgou ainda improcedente a reconvenção, absolvendo em conformidade as Autoras.

5. As Autoras recorreram da sentença, concluindo nas suas alegações:
1. Da matéria de facto provada ficou demonstrado o comportamento desleal da sócia Ré.
2. Sempre com o devido respeito por opinião contrária, entendemos que da matéria de facto provada resultou demonstrado também que com o seu comportamento a sócia Ré causou elevados prejuízos à sociedade.
3. E como consequência entendem as Autoras que a acção deveria ter sido julgada procednete.
4. Por não se ter julgado assim, violou-se o disposto nos art.ºs 242º do Código das Sociedades Comerciais.

6. A Ré recorreu subordinadamente.

II – Enquadramento fáctico

O tribunal a quo deu como provado o seguinte factualismo:
1 - E S M I,  pessoa colectiva n.º , com o capital social de 1.100.000$00 – 5486,78 Euros, com sede , encontra-se matriculada na Conservatória do Registo Comercial de Cascais, sob o n.º .
2 - Foi constituída por escritura pública de 04/05/99, lavrada pelo cartório notarial do Centro de Formalidades das Empresas de Lisboa.
3 - Tem como sócias, M S e A P com uma quota de 2743,39 cada.
4 - À data da constituição da sociedade, ambas as sócias foram nomeadas gerentes.
5 - A sociedade obriga-se com a intervenção das duas gerentes.
6 - A sociedade tem por objecto social a actividade de mediação imobiliária.
7 - A Autora depositou na Caixa Geral de Depósitos a quantia de 1.100.000$00 correspondente ao capital social da 1ª A..
8 - Por escritura pública de 21/03/01, lavrada pelo Segundo Cartório Notarial de Lisboa, a Ré constitui uma sociedade unipessoal por quotas.
9 - Que se encontra matriculada na 1ª Conservatória do Registo Comercial da Amadora sob o n.º .
10 - Com a firma M.
11 - E com sede na Amadora.
12 - Tendo por objecto social a Mediação Imobiliária.
13 - A gerência pertence à sócia única, a ora Ré.
14 - Nos meados do ano de 2002, a Ré criou uma sucursal da sua sociedade, a cerca de 400 m de distância da sede da sociedade Autora.
15 - Com estabelecimento aberto ao público.
16 - Exercendo a actividade de mediação imobiliária.
17 - No dia 14 de Dezembro de 1999 a Ré na qualidade de promitente vendedora assinou o contrato denominado "contrato de promessa de compra e venda" relativo a fracção autónoma designada pela letra “J” correspondente ao terceiro andar esquerdo do prédio urbano sito .
18 - No referido documento constam como 1ª outorgante a 2ª Autora e a Ré e consta ser a 1ª outorgante dona e legítima possuidora da fracção autónoma prometida vender.
19 - O promitente-comprador propôs na Comarca de Sintra uma acção sumaríssima contra a 2ª A. e a R. pedindo a sua condenação no pagamento da quantia de 300.00$00, acção a que foi dado o nº  e que correu termos no 4º juízo daquele tribunal.
20 - Por sentença proferida em Maio de 2002 nos autos de acção sumaríssima n.º foram as ali Rés condenadas a pagar ao promitente-comprador a quantia de 300.000$00, juros de mora á taxa legal de 7% ao ano, bem como nas custas.
21 - No dia 10 de Novembro de 2000 a Ré dirigiu uma carta à Autora , onde declara que renuncia à gerência da 1ª A.
22 - A partir de 10/10/2000 a Ré não mais prestou qualquer serviço à sociedade.
23 - E não mais prestou qualquer auxílio à outra sócia fundadora.
24 - E não mais compareceu na sede social.
25 - Na mesma data a A. levou consigo o veículo automóvel ligeiro com a matrícula 19-25-NL que se encontrava ao serviço da sociedade.
26 - Sem o consentimento nem autorização da sociedade ou da outra sócia.
27 - Utilizando-o na actividade corrente por conta da própria Ré.
28 - A Ré comunicou à sociedade que havia tido um acidente e que o veículo referido em 25) se encontrava danificado na oficina Peugeot em reparação.
29 - A 2.ª Autora pagou a título de franquia a quantia de 638,46 Euros.
30 - A 2.ª Autora não entregou atempadamente ao senhorio, as rendas relativas ao prédio onde se encontra instalada a sede social da sociedade Autora, referente aos meses de Maio de 2000, Agosto a Dezembro de 2000 e Janeiro e Fevereiro de 2001 no total de 1.438.000$00 – 7.173,21 Euros.
31 - Nos meses de Fevereiro e Março de 2001 a Autora entregou ao senhorio do prédio onde se encontra instalada a sede da 1ª A. dois cheques de uma conta pessoal liquidando todas as rendas em atraso no valor de 1.438.000$00 – 7.173,21 Euros.
32 - No dia 27 de Março de 2000 a 2ª Autora, na qualidade de promitente vendedora, celebrou e assinou um contrato denominado “Contrato de promessa de compra e venda” relativo à fracção autónoma .
33 - No referido documento constam como 1.º outorgantes a 2ª Autora e a ré e ser o 1.º Outorgante dono e legítimo possuidor da fracção.
34 - No dia 2 de Outubro de 2000 a 2.ª autora, na qualidade de promitente vendedora, celebrou e assinou um contrato denominado “Contrato de promessa de compra e venda com condição resolutiva” relativo à fracção autónoma designada pela letra “N” correspondente ao 2.º andar Dto. do prédio urbano sito Queluz, junto a fls. 65 e cujo teor aqui se dá por reproduzido.
35 - No momento em que a sociedade A. foi constituída foi a 2ª A. quem avançou com o dinheiro correspondente à quota da R. na sociedade.
36 - Até à data a Ré não entregou à 2.ª Autora a referida quantia de 550.000$00- 2.743,39 Euros.
37- A A. cumpriu a sentença condenatória referida em 20) e pagou ao promitente comprador a quantia de € 1.760,89.
38 - Os factos referidos em 22) a 25) foram praticados pela A. de livre e espontânea vontade.
39- A 2.ª Autora recebeu do promitente-comprador do contrato referido em 32) a quantia de 100.000$00.
40- Quantia que fez sua.
41 - Entre Setembro de 2000 e Outubro de 2001 a Ré exerceu pouca actividade comercial.
42 - Em virtude dos tratamentos clínicos a que teve de ser submetida, no Instituto Português de Oncologia de Francisco Gentil de Coimbra.

III – Enquadramento jurídico

Do recurso das Autoras

De acordo com as conclusões das alegações, que delimitam o âmbito do conhecimento por parte deste tribunal, a questão que as Apelantes sujeitam a recurso reporta-se ao pedido de exclusão da Ré enquanto sócia da 1ª Autora.

A sentença recorrida julgou improcedente este pedido considerando não se encontrar verificado o 2º requisito exigido pelo art.º 242, do Código das Sociedades Comerciais. Com efeito, segundo a sentença, não obstante as Autores terem demonstrado o 1º requisito exigido pelo referenciado preceito – comportamento desleal da Ré consubstanciado no facto de ter passado a exercer, noutra sociedade, uma actividade concorrente com a da 1ª Autora -, não lograram provar que tal comportamento cause ou possa vir a causar à sociedade prejuízos relevantes.

A esse respeito encontra-se ponderado naquela decisão:

“Ora as AA. alegaram como prejuízo o facto de a R. ter desviado clientes da sociedade para a actividade que exerce em nome individual, facto que levou a 1ª A. a deixar de fazer vários  negócios, computando o prejuízo respectivo em pelo menos € 30.000. ----

No que a esta matéria respeita apenas ficou provado que a no dia 14 de Dezembro de 1999 a Ré na qualidade de promitente vendedora assinou o contrato denominado "contrato de promessa de compra e venda" relativo a fracção autónoma designada pela letra “J” correspondente ao terceiro andar esquerdo do prédio urbano sito em Queluz e que no referido documento constam como 1ª outorgante a 2ª Autora e a Ré e consta ser a 1ª outorgante dona e legítima possuidora da fracção autónoma prometida vender. ---

Daqui não resulta que a R. tenha desviado qualquer cliente da sociedade nem tão pouco que a venda prometida não fosse feita em nome da sociedade, sendo certo que conforme resulta da fundamentação da matéria de facto a prática na sociedade era a de que o contrato era assinado pelas duas gerentes ou só por uma, consoante a que estivesse na loja. ---

Caberia às AA. ter provado que a R. tinha efectivamente efectuado vendas em nome pessoal no período que referem o que não fizeram, e que essas vendas deveriam ter sido celebradas pela 1ª A., o que também não fizeram. Caberia também às AA. ter alegado factos relativos à sua contabilidade, designadamente volume de serviços prestados, apara se poder apurar do eventual decréscimo de rendimentos imputável à R. Só assim ficaria provado o prejuízo e só assim se poderia apurar se o mesmo é relevante.---

Em suma, não provaram as AA. nenhum facto concreto do qual se possa concluir que a R. com o seu comportamento desleal causou ou possa vir a causar à 1ª A. qualquer prejuízo”.

Insurgem-se as Autoras contra tal entendimento afirmando que, ao invés do decidido, a matéria provada evidencia que o comportamento da Ré, enquanto sócia, causou elevados prejuízos à sociedade.

Dos elementos disponíveis nos autos, não podemos deixar de concordar com a sentença, sendo certo que as Apelantes se limitaram, nesta sede, a produzir uma afirmação (um juízo de valor sobre matéria de facto) sem que, porém, a tenham minimamente fundamentado, omitindo, totalmente, a explicitação das razões da sua discordância.

Nesta medida, tendo em conta o que nesse sentido se encontra referido na sentença recorrida, atento o que se encontra provado no processo, a matéria apurada constante dos autos e acima consignada não revela, de todo, que o comportamento da Ré, consubstanciado no exercício de uma actividade concorrente à da sociedade, se tenha traduzido (se traduza ou venha a traduzir-se) num prejuízo efectivo para a sociedade Autora.

Conforme resulta do processo, em causa está a actuação da Ré, enquanto sócia da 1ª Autora, que passou exercer a mesma actividade desta – mediação imobiliária - sem o consentimento da outra sócia, a aqui 2ª Autora, constituindo para o efeito uma sociedade unipessoal por quotas.

Não se verificando uma situação de concorrência desleal por parte da Ré, a questão que se coloca é a de saber se a mesma, enquanto sócia da 1ª Autora e sem o consentimento da outra sócia (a 2ª Autora), violou um dever de conduta (ao exercer actividade igual) em termos de, efectivamente, causar prejuízos à sociedade Autora.

Decorre do art.º 990º, do C. Civil (aplicável por força do art. 2º do C.S.C), a proibição do sócio de uma sociedade, sem o consentimento dos demais, exercer actividade igual à da sociedade, sob pena de responder genericamente pelos danos causados à mesma.

Em comentário ao referido preceito, Pires de Lima e Antunes Varela (Código Civil Anotado, Vol. II, pág. 324) consideram que este preceito visa evitar que o sócio se aproveite dos seus conhecimentos e da sua acção dentro da sociedade para obter lucros para si próprio, em prejuízo dos outros sócios. Consideram igualmente os citados autores que, ainda que não haja concorrência desleal, deve razoavelmente exigir-se de todo o sócio que dirija sua actividade no sentido de obter os melhores resultados para a sociedade, o que é praticamente incompatível com o exercício da mesma actividade em benefício próprio”.

Porém, para além da responsabilidade pelos danos causados, a lei pune, também, a concorrência proibida com a exclusão de sócio. Com efeito, o sócio está obrigado a não violar deveres de conduta que possam causar prejuízos à sociedade, sendo que, entre esses deveres acessórios se enquadram os de colaboração e lealdade, deveres que fazem parte do conteúdo das obrigações, como exigências gerais do sistema jurídico (1) 

A violação desses deveres constitui, nas sociedades por quotas, o fundamento de exclusão acolhido pelo art. 242, do Código das Sociedades Comerciais.

A sanção de exclusão de sócio tem por finalidade a protecção do fim do contrato de sociedade, traduzido no interesse social, enquanto elemento comum aos interesses dos sócios contratantes e meio contratual de satisfação dos seus interesses distintos. (2)

Assim, a exclusão encontra justificação quando o interesse social é posto em causa por um sócio que, por via da violação das suas obrigações, conduz a resultados ou efeitos que prejudiquem o fim social. Nessa medida, a exclusão terá de ser avaliada e considerada não tanto em função do incumprimento, mas dos efeitos desse incumprimento no interesse social, isto é na sociedade – o prejuízo relevante.

Não basta, pois para ocorrer exclusão, a prática de acto(s) ilícito(s), exigindo-se ainda verificação de prejuízos concretos na actividade social ou a previsibilidade (objectiva) de verificação desses prejuízos relevantes (3).

Na situação sub judice, tal como se encontra devidamente apreciado na sentença, o comportamento desleal da Ré (enveredando por actividade igual, concorrente, à da Autora, sem consentimento por parte da 2ª Autora) não foi reconduzido, em termos de prova no processo, às situações de prejuízo que haviam sido alegadas – desvio de clientes, com a consequente frustração de negócios avaliados em pelo menos €30.000,00.

Compulsados os autos, logo se vê que não só a matéria alegada nesse sentido não resultou provada (cfr. resposta de não provado aos pontos 5, 6, 7, 12, 14, 15 da Base Instrutória), como se mostra deficiente a própria alegação levada a cabo, já que se impunha demonstrar (a fim de se poder concluir pela existência de prejuízo relevante da sociedade) factualismo relativo à contabilidade da 1ª Autora de modo a evidenciar um decréscimo dos negócios e, consequentemente, a sua implicação em termos de auferimento de lucros.

Não é possível pois descortinar qualquer factualismo que permita concluir no sentido de que o comportamento da Ré causou ou vem a causar prejuízo relevante à sociedade Autora.

Há que manter o que nesse sentido se encontra decidido, improcedendo, por isso, o recurso das Autoras.

Do recurso da Ré

Insurge-se a Ré contra a decisão que a condenou a pagar à 2ª Autora a quantia de € 2.743,39, a título de montante mutuado e não pago, defendendo que a prova produzida no processo evidencia, de modo seguro e convincente, o pagamento da referida quantia.

Considera, por isso, que ocorreu erro de julgamento da matéria de facto sustentando-se no depoimento da testemunha Alzira, discordando, por isso, da forma como o tribunal recorrido apreciou a prova (ao não valorizar tal testemunho) no que se reporta à matéria constante do ponto 3º - “Até à data a Ré não entregou à 2ª Autora a referida quantia de 550.000$00 – 2.743,39 Euros”-, que foi dada como provada.

Como é sobejamente sabido, o poder por parte da Relação em alterar a matéria de facto fixada em 1ª instância com base nos depoimentos das testemunhas encontra-se limitado às situações de erro manifesto de julgamento, pois que a mera reprodução da gravação sonora dos meios de prova produzidos oralmente, ou mesmo de outros meios como uma gravação vídeo, não assume qualquer comparação com os aspectos postos à disposição do tribunal a quo que formaram a sua convicção na decisão de facto tomada.

Na verdade, existem aspectos comportamentais e reaccionais das testemunhas que só podem ser percepcionados, apreendidos e, por isso, valorados, por quem os presenciou, que não podem ser objecto de gravação em termos de serem colocados à disposição do tribunal de recurso para poder reapreciar o modo como no primeiro se formou a convicção do julgador.

Tendo em conta que, de acordo com o princípio da livre apreciação das provas constante do art.º 655, do CPC, o tribunal aprecia livremente as provas, decidindo segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto, mostra-se evidente que a formação da referida convicção há-de ser feita de um modo racional, objectivo e crítico e consubstancia-se numa operação intelectual complexa de cariz objectivo, onde se conjugam as regras comuns da lógica, da razão, da experiência e dos conhecimentos científicos.

Por conseguinte, a reprovação da valoração da prova terá necessariamente de assentar na violação de qualquer dos items dessa operação.

Na sequência do já sublinhado, dado que na convicção do tribunal a quo entram elementos que, necessariamente, não são perceptíveis numa gravação áudio da prova, a sindicância do tribunal da Relação neste âmbito, não se traduz na procura de uma nova convicção, mas sim em saber se a convicção expressa pelo tribunal a quo tem suporte razoável naquilo que a gravação de prova – com os demais elementos constantes dos autos puder exibir perante si (4).

Assim sendo, a divergência quanto ao decidido pelo tribunal a quo na fixação da matéria de facto só assumirá relevância no tribunal da Relação se for demonstrada, pelos meios indicados pelo recorrente, a ocorrência de um erro na apreciação do seu valor probatório, sendo necessário para o efeito que os mesmos se revelem inequívocos no sentido por ele pretendido.

Vejamos.

No que se reporta a esta matéria pode ler-se no despacho de fundamentação das respostas dadas pelo tribunal à Base Instrutória as razões que determinaram o julgador na resposta positiva decidida:

-“A 2ª A alega que ainda não foi efectuado qualquer pagamento, facto que é contestado pela R. Ora o pagamento é uma excepção peremptória e, por conseguinte, a sua prova cabe à parte que a argui, ou seja, cabia à Ré demonstrar que o pagamento foi efectivamente feito.

A R´. não juntou nenhum documento comprovativo de ter efectuado esse pagamento e o depoimento da testemunha Alzira não pode ser valorado já que a mesma não tem conhecimento directo do facto. Assim, tem de dar-se por provada a falta de pagamento.

Face ao que consta dos registos da prova, no que se reporta à testemunha indicada pela Apelante e tendo em atenção o que se encontra justificado pelo tribunal recorrido quanto à decisão sobre a matéria de facto objecto de impugnação, impõe-se referir que a argumentação tecida pela Recorrente não permite alterar a decisão da 1ª instância, já que, conforme decorre da motivação exarada no despacho de fundamentação das respostas à Base Instrutória, o tribunal formou a sua convicção ponderando efectivamente o que havia sido referido pela testemunha em causa, não valorizando, porém, neste âmbito, o que por ela foi afirmado pelas razões que explicitou e que se coaduna com as regras normais da experiência e da lógica.

Não pode deixar de se concordar com a valoração levada a cabo pelo tribunal a quo quanto ao meio de prova em que se apoia a Apelante. Na verdade, tendo em conta o factualismo a demonstrar (5), a mera afirmação de que o pagamento da quantia mutuada havia sido efectuado através de cheque da sociedade, correspondendo aos lucros da mesma pertencentes à Ré e dos quais esta havia prescindido para esse efeito, não permitia, por si só e contrariamente ao pretendido pela Apelante, que se procedesse à valorização de tal depoimento para a demonstração desse factualismo.

Não será a simples afirmação de determinado facto que o torna credível, particularmente, estando em causa apurar o efectivo pagamento da quantia mutuada, atendendo à forma referida, isto é, por meio de cheque (ainda que da sociedade e reportada a lucros desta pertencentes à Ré e dos quais prescindiu em prole do cumprimento da respectiva obrigação de pagamento), pelo que sempre se imporia que, na ausência de qualquer outro documento relativo, se tivesse, pelo menos, procedido à junção de cópia do cheque a fim da testemunha com ele ser confrontada.

Por conseguinte, atento o teor do depoimento e a razão de ciência da citada testemunha (enquanto funcionária da firma tudo lhe passava pelas mãos …) e, bem assim, a forma como “não foi justificada” a afirmação tecida a tal respeito, na ausência de outros elementos, designadamente documentais que se mostrariam adequados (ainda que tão só pela junção do cheque), não permitiam efectivamente ultrapassar, pelo menos, o estado dubitativo (6) quanto à questão.

Encontramo-nos no domínio da convicção por parte do tribunal a quo (7), apoiada em fundamentos adequados, sendo certo que o testemunho indicado pela Recorrente não determina, de forma alguma, a possibilidade de constatar a existência de erro por parte do tribunal a quo na valoração dos meios de prova quanto a esta matéria.              
Nestes termos, não é possível a este tribunal sindicar a referida resposta, mantendo-se, quanto à mesma, o que se encontra decidido pela 1ª instância.

Consequentemente, há que decidir no sentido do insucesso da pretensão da Ré, uma vez que não logrou provar o pagamento da quantia que lhe foi mutuada pela 2ª Autora, cabendo, assim, manter o que nesse sentido se encontra decidido pela 1ª instância.

Improcedem, pois, na sua totalidade, as conclusões das alegações da Apelante.

IV – Decisão

Pelo exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação de Lisboa em julgar improcedentes as apelações (das Autoras e da Ré), mantendo a sentença recorrida.

            Lisboa, 13 de Fevereiro de 2007

Graça Amaral
Orlando Nascimento
Ana Maria Resende



______________________________________
1.-Cfr. .Menezes Cordeiro, Direito das Obrigações, I, 1994, pág. 149

2.-Menezes Leitão, Pressupostos da Exclusão de Sócio nas Sociedades Comerciais, A.A.F.D.L., 1988, p. 41 e ss

3.-Cfr. Menezes Leitão, obra citada, pág. 91.

4.-Acórdão de 03.10.2002, da Relação de Coimbra, CJ 2002, tomo 4, pág. 27.

5-Note-se que a Ré na contestação afirma que a quantia que lhe foi emprestada pela Autora para a realização da sua quota foi reembolsada dois meses após constituição da sociedade, omitindo a forma por que se processou tal pagamento; por sua vez a testemunha Alzira referiu que a quantia foi paga através de cheque da sociedade consubstanciando lucro desta pertencente à Ré, que a mesma prescindiu para proceder a tal pagamento.

6.-Nos termos do disposto no art.º 638, n.º1, do CPC, a testemunha deporá com precisão, indicando a razão de ciência e quaisquer circunstâncias que possam justificar o conhecimento dos factos, pelo que se a mesma não explicita com segurança e precisão de modo a que ao tribunal não fiquem dúvidas sobre a realidade de um facto, há que retirar as devidas consequências não só de acordo com os demais elementos de prova relativamente ao mesmo facto, mas tendo em conta as regras do ónus da prova (art.ºs 342, do C. Civil e 516, do CPC). Consequentemente, em caso de dúvida sobre a realidade de um facto resolver-se-á contra a parte a quem o mesmo aproveita.

7.-Mais uma vez se realça que, estando em causa uma questão da credibilidade do depoimento das testemunhas em termos de convicção do tribunal, a simples reprodução dos depoimentos pela audição da gravação mostra-se insuficiente para controlar todos os elementos susceptíveis de influenciar a convicção do julgador, pois que existem aspectos comportamentais ou reacções das testemunhas que somente podem ser percepcionados, apreendidos e valorados por quem os presencia.