Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
34/17.6TRLSB.L1-9
Relator: NUNO MATOS
Descritores: FALSIFICAÇÃO DE DOCUMENTO
NULIDADE DA ACUSAÇÃO
NULIDADE DA SENTENÇA
DECLARAÇÕES DO ARGUIDO
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/06/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO PARCIALMENTE
Sumário: Sumário:
(da responsabilidade do Relator)
I. A nulidade da pronúncia, por conter afirmações genéricas e conclusivas (art. 283º, nº 3, al. b), ex vi art 308º, nº 2, do CPP), deve ser arguida perante o juiz de instrução que proferiu a decisão instrutória e não na contestação, cabendo recurso do despacho que a indefira, que subirá com o que puser termo ao processo.
II. As nulidades da sentença encontram-se previstas no artigo 379º do CPP, em articulação com o art. 374º, nº 2, do CPP, aí se incluindo, além do mais, a falta de motivação fáctica e jurídica da decisão.
III. Não existe falta de fundamentação quando o tribunal a quo faz uma opção probatória e explicita devidamente as razões de tal opção.
IV. A impugnação da matéria de facto pode ser efectuada em recurso através de duas modalidades possíveis: a chamada revista alargada (ou impugnação restrita da matéria de facto) e a impugnação ampla da matéria de facto.
V. Quando o Recorrente, no âmbito da impugnação ampla da matéria de facto, invoca um erro de julgamento em relação a vários pontos da matéria de facto dada como provada (e cumpre, na motivação de recurso, os requisitos regulados no art. 412º, nºs 3 e 4, do CPP), o tribunal de recurso tem de reapreciar a prova (a prova indicada pelo Recorrente, por si só ou conjugadamente com as demais provas valoráveis) e emitir um novo juízo em matéria de facto (restrito aos pontos factuais questionados pelo Recorrente), averiguando se tal prova impõe uma decisão diversa da recorrida (concretamente, se tal prova impõe uma versão factual diversa da que foi dada como provada na decisão recorrida).
VI. As declarações de arguido, na sua vertente de meio de prova, têm a sua admissibilidade inscrita, desde logo, no art. 125º do CPP (e com regulação específica em várias normas do CPP, com especial enfase para os arts. 343º a 345º, que regulam as declarações de arguido em fase de julgamento, mas sem esquecer a possibilidade de valoração de declarações prestadas, pela forma legal, em fase anterior ao julgamento), podendo ser valoradas à luz do princípio da livre apreciação da prova previsto no art. 127º do CPP.
VII. O meio de prova “declarações de arguido” tem uma vinculação formal, uma tipicidade de forma, tem de ser veiculado através da forma legalmente prevista, não podendo ser veiculado, por exemplo, através de um documento escrito (subscrito e assinado por si e/ou pelo seu mandatário) avulsamente junto aos autos, sob pena de haver fraude à lei (de recordar que o art. 355º do CPP salvaguarda três princípios que subjazem ao julgamento: contraditório, oralidade e imediação).
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, após deliberação, os Juízes Desembargadores da 9ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:
I. RELATÓRIO
1. Por sentença proferida no processo supra identificado (processo comum singular), em .../.../2024, julgando-se a pronúncia parcialmente procedente, foi decidido o seguinte (transcrição parcial do Dispositivo):
“a) Condenar o(a) arguido(a) AA pela prática, como co-autor(a), de um crime de falsificação de documento, p. e p. no art.º 256º, n.ºs 1, alíneas a) e e), e 4, do Código Penal, na pena de 1 (um) ano e 7 (sete) meses de prisão, suspendendo a execução desta pena de prisão pelo período de 1 (um) ano e 7 (sete) meses;
b) Absolver o(a) arguido(a) BB pela prática, como co-autor(a), de um crime de falsificação de documento, p. e p. no art.º 256º, n.ºs 1, alíneas a) e e), e 4, do Código Penal; (…)”.
2. Inconformado, o arguido AA interpôs recurso do acórdão para o Tribunal da Relação de Lisboa, terminando a sua motivação com a extracção das seguintes Conclusões (transcrição):
Nulidade de artigos da acusação / pronúncia:
1. Violaram os arts. 283º, nº 3, b) e 308º, nº 2, do CPP, os seguintes artigos da acusação / pronúncia:
a) O artigo 4º;
b) O artigo 11º, na parte em que se diz que o arguido pretendia alijar eventuais responsabilidades que sobre si pudessem impender;
c) Os artigos 12º e 13º, na parte em que se diz que se pretendia dar uma visão errada e falsa, deturpando as conclusões do inquérito em curso e «ludibriar as autoridades.
2. As afirmações vertidas naqueles artigos são genéricas e conclusivas, porque, por si, não configuram factos concretos e não existem na acusação / pronúncia factos concretos que lhes deem substracto factual.
3. Não cabe ao Tribunal de julgamento corrigir a acusação / pronúncia, prestando esclarecimentos ou fazendo correções ao seu conteúdo, ou acrescentar factos que lá não constam.
4. É imperativo que a acusação e/ou a pronúncia contenham de forma clara e inequívoca todos os factos de que o arguido é acusado, sem imprecisões ou referências, vagas, genéricas, conclusivas ou opinativas. Pelo que, os direitos de defesa do arguido não poderão ser prejudicados pelos erros na elaboração do despacho de acusação. Um conjunto fáctico não concretizado, porque preenchido, na totalidade ou em parte, com considerações genéricas, vagas e imprecisas, inviabiliza o direito de defesa previsto no artigo 32º da CRP e o correspondente direito a um processo justo e equitativo.
5. Deveriam ter sido considerados não escritos os artigos 4º, 11º, 12º e 13º da acusação / pronúncia, nos termos indicados no ponto 1.
6. A douta sentença recorrida violou as normas atrás identificadas.
Nulidade da sentença recorrida:
1. A sentença recorrida não tomou posição sobre os factos alegados pelo arguido nas suas declarações escritas, dadas como reproduzidas na sua contestação nos termos referidos no artigo 30º, nem sobre os factos alegados naquela peça processual nos artigos 32º a 38º.
2. O facto referido no número precedente constitui violação do disposto no art. 374º, nºs. 1 e 2, do CPP, e determina a nulidade da douta sentença recorrida nos termos do art. 379º do mesmo diploma.
Impugnação da decisão sobre a matéria de facto (o arguido impugna a decisão sobre a matéria de facto, consignada na sentença recorrida, referente às alíneas e), f), g), h), i), j), K), l), m) e n) dos factos provados):
1. A afirmação consignada na alínea e) dos factos provados, não configura um facto nos termos previstos no art. 368º, nº. 2, do CPP, tratando-se, sim, de um mero juízo conclusivo vago e genérico.
2. Consequentemente, por existir violação daquela norma, deverá ser revogada a decisão de facto constante da sentença recorrida, eliminando-se a alínea e) dos factos provados.
3. Tendo em consideração prova testemunhal e documental, deverá ser alterada da decisão sobre a matéria de facto provada, alínea f), consignando-se como provado os seguintes factos:
f): no dia ... de ... de 2016 teve lugar uma reunião presidida pelo Sr. Tenente Coronel ZZ e conduzida pelo Sr. Capitão CC, na qual participaram todos os instrutores do 127º Curso, em que o Sr. Capitão CC, com o conhecimento e consentimento do Sr. Tenente Coronel ZZ, distribuiu aos instrutores uma fotocópia do Guião do Curso 126º.
4. Como referência ao facto provado constante da alínea g), deverá ser alterada a decisão sobre a matéria de facto, consignando-se como provado apenas o seguinte:
g): em ........2016, o arguido DD fez chegar ao processo 89/16.0... o documento de fls. 972 a 985, com a indicação de que o mesmo foi o Guião da Prova Zero de 127º Curso.
5. O Tribunal de recurso tem ao seu dispor todos os elementos probatórios que justificam e permitem a alteração da decisão de facto pedida nos termos dos números precedentes.
6. A alínea h) dos factos provados deverá ser alterada por forma a que nela conste o verdadeiro teor dos Guiões dos Cursos 126º e 127º, sobre o consumo de água, consignando-se como provado o seguinte:
a) No guião do Curso 126º consta o seguinte:
«Ponto 2, f): O consumo de água previsto é de 3 cantis de água por dia (as situações de consumo adicional serão propostas pelos Instrutores ou pela Equipa Sanitária e sancionadas pelo Director da Prova);

Ponto 6, (5): «O reabastecimento de água e hidratação são alvo de especial atenção por parte dos Instrutores (acompanhamento presencial), no sentido de garantirem que os Instruendos se alimentam às horas das refeições e se hidratam (essencialmente) ao longo dos períodos de instrução.
(a) O reabastecimento (enchimentos do cantil) é efectuado 3 vezes ao dia (antes/após as refeições);
(b) Os instruendos bebem à ordem e recebem indicação para racionar o consumo de acordo com o tempo que deve durar a água e o biorritmo adquirido pela prova (devem hidratar-se utilizando a tampa do cantil, tendo em atenção que cada cantil permite encher 32 tampas);
(6) Necessidade de observação permanente do estado psicofísico dos Instruendos, tendo em vista a possibilidade de continuarem ou não a prova e sobre a necessidade de assistência médica.»
b) No guião do Curso 127º consta o seguinte:
: «Ponto 2, f): «O consumo de água pelos instruendos constitui uma das preocupações fundamentais do Director da Prova sendo que o mínimo diário obrigatório é de 5 cantis. O Director da Prova, mediante a sua interpretação das condições de humidade e temperatura, níveis de esforço desenvolvidos, parecer de médico ou das equipas de instrução, poderá decidir aumentar a dotação diária, bem como implementar outras medidas adicionais de hidratação.»
Ponto 6, nº. 5: «O reabastecimento de água e hidratação são alvo de especial atenção por parte dos Instrutores (acompanhamento presencial), no sentido de se garantirem que os Instruendos se alimentam às horas das refeições e se hidratam (essencialmente) ao longo dos períodos de instrução;
(a) O reabastecimento (enchimento do cantil) é efectuado 5 vezes ao dia (antes/após as refeições), salvo se houver decisão do Director da Prova para reabastecimento adicionais, o que ocorrerá em momentos a definir pelo Director da Prova;
(b) Os Instruendos bebem à ordem e recebem indicações para racionar o consumo de acordo com o tempo que deve durar a água e o biorritmo adquirido pela prova;
(6) Necessidade de observação permanente do estado psicofísico dos Instruendos, tendo em vista a avaliação sobre a possibilidade de continuarem ou não a prova e sobre a necessidade de assistência médica.»
7. Os factos provados consignados nas alíneas i) e j) não constavam da acusação pronúncia, pelo que a douta sentença recorrida, nesta parte é nula por violar o disposto no art. 379º, nº 1, b), do CPP;
8. Sem prejuízo do referido no número precedente, o Tribunal recorrido, na douta sentença, não fundamentou a decisão que considerou provados os factos constantes das alíneas i) e j), violando o disposto no art. 374º, nº 2, do CPP. Pelo que, nesta parte, a sentença recorrida padece de nulidade;
9. Sem prejuízo do referido nos números precedentes, não existe prova produzida nos autos que justifique que sejam considerados provados os factos consignados nas alíneas i) e j). Pelo que deverá ser revogada a douta sentença, na parte em que considerou provados os referidos factos.
10. Deverá ser revogada a douta sentença recorrida, na parte respeitante ao facto provado k), eliminando-se o mesmo, por conter juízo conclusivo, sem substracto factual, na parte em que imputou responsabilidade ao arguido recorrente na morte dos instruendos, por não especificar, com factos concretos, em que se concretizou o «empurrar» da responsabilidade de tal morte para os instrutores, e por não haver prova de que o arguido, alguma vez, por qualquer meio, tenha afirmado, em concreto, que os instrutores pelas suas acções ou omissões na instrução causaram a morte dos instruendos.
11. Deve ser revogada a douta sentença recorrida, na parte da decisão sobre a matéria de facto, com referência ao facto provado consignado na alínea l) por não terem sido dados como provados factos concretos que sustentem a afirmação de que o arguido actuou «visando deturpar as conclusões do inquérito», não ter sido produzida qualquer prova na audiência de julgamento, e por a fundamentação apresentada - «regras da experiência comum» - não ter subjacente a indicação das premissas factuais que justifiquem a referida afirmação, de forma inequívoca e consistente.
12. Pelas razões referidas em 11, deve também ser revogada a sentença recorrida, considerando-se não provado o facto consignado na alínea m) dos factos provados.
13.Face à prova documental existente nos autos, não impugnada, deverá ser alterada a alínea n) dos factos provados, consignando-se como provado o seguinte:
«O arguido AA é natural de ..., tem … anos, é … e tem ….
Frequentou o Colégio Militar de (…).
Funções e Missões que desempenhou:
(…)
Educação:
(…)
Condecorações e citações:
(…)
Impugnação da decisão de direito:
1. O Sr. Tenente Coronel ZZ, na qualidade de Chefe da Secção de Formação, teve conhecimento do projecto iniciado em ... e com execução, numa primeira fase, a partir de ... - 127º Curso de Comandos - no âmbito do qual se iriam implementar diversas medidas para evitar situações que pusessem em causa a saúde dos instruendos, entre as quais as relativas a hidratação;
2. O Sr. Tenente Coronel ZZ, na qualidade de Chefe da Secção de Formação, teve conhecimento que, por ordem do arguido, iria ser medida a humidade e temperatura, com recurso a meios técnicos de outra unidade militar, como efectivamente aconteceu no dia ... de ... de 2016;
3. O Sr. Tenente Coronel ZZ, na qualidade de Chefe da Secção de Formação, sabia que no dia ..., com recursos fornecidos pela Universidade do Porto, iriam ser monitorizados dois instruendos, no decurso da instrução, para avaliação do seu estado durante a mesma, o que efectivamente aconteceu naquele dia;
4. O Sr. Tenente Coronel ZZ, na qualidade de Chefe da Secção de Formação e de Director da Prova Zero do 127º Curso, na sequência dos factos referidos em 1, 2 e 3, recebeu instruções do arguido sobre a forma como ia decorrer a prova zero, incluindo na parte da hidratação, as quais foram vertidas no guião apelidado de falso;
5. O Sr. Tenente Coronel ZZ, o Sr. Capitão CC, o Sr. Capitão Médico EE, o Sr. Tenente FF e o Sr. Sargento CC, em autos de inquirição e sob juramento, nos dias ... de ... de 2016, em processo de inquérito, no qual foi instrutor nomeado o Sr. Coronel GG, declararam que na prova zero do curso 127º previram a atribuição aos instruendos de 5 cantis de água por dia;
6. A testemunha Sr. HH declarou em audiência de julgamento que na reunião em que participaram o Sr. Tenente Coronel ZZ e os demais instrutores do curso 127º, ficou acordado que o número de cantis a atribuir seria de 5 cantis;
7. O Guião enviado pelo arguido ao processo 89/16.0..., no qual foram vertidas as suas instruções dadas ao Director da Prova Sr. Tenente Coronel ZZ antes do início da Prova Zero do 127º Curso, não é um documento falso e muito menos para afastar as suas responsabilidades pela morte dos instruendos;
8. O Guião, porque não relata factos, não tem qualquer possibilidade de desvirtuar conclusões de inquérito judicial, designadamente no que respeita ao apuramento dos factos concretos que levaram à morte dos instruendos.
9. O arguido prestou declarações escritas. Declarou expressamente na sua contestação que os factos vertidos naquelas declarações integravam a sua defesa, constante daquela peça processual. Perante o juiz de julgamento, no seu interrogatório, declarou na sessão de dia ........2023, acta ref. ..., que reiterava essas declarações escritas;
10. O arguido tem o direito constitucional de prestar declarações livremente. Pode exercer esse direito da forma que entender conveniente. Responder ou não ao Tribunal. Responder apenas em parte. Declarar por escrito aquilo que entender conveniente para a sua defesa. O seu direito deve ser entendido da forma mais ampla possível, desde que não infrinja a lei. Só assim é verdadeiramente livre. E o Tribunal é o local onde o cidadão goza de maior liberdade, estando inclusivamente o Ministério Público e os Advogados, sob a direcção do Juiz, obrigados a assegurar que nada põe em causa essa liberdade. É assim que se consumam os direitos do arguido previstos nos artigos 61º, nº 1, alíneas b) e d) e 343º do CPP e no artigo 32º, nº1, da CRP.
11. Viola o direito do arguido previsto no artigo 32º da CRP, a interpretação do art. 343º, nºs 1 e 2 do CPP, segundo a qual o arguido não pode, em audiência de julgamento, apresentar declarações escritas, por si subscritas, nas quais apresente a defesa e a sua versão dos acontecimentos, sendo obrigado a prestar tais declarações verbalmente na presença do Juiz para que tenham efeito útil.
12. O arguido não praticou o crime de falsificação pelo qual foi acusado e condenado, nos termos consignados na douta sentença recorrida.
Nestes termos e nos demais de direito, deverá ser proferido douto Acórdão que revogue a sentença recorrida e absolva o arguido do crime que lhe foi imputado.
E assim se fará Justiça”.
3. Admitido o recurso, foi apresentada resposta pelo Ministério Público, na qual extraiu as seguintes Conclusões (transcrição):
“1- Por sentença proferida nos autos foi o arguido condenado pela prática, como autor material:
- de um crime de falsificação de documento, p. e p. no art.º 256º, n.º 1, alíneas a) e e), e 4, do Código Penal, na pena de 1 (um) ano e 7 (sete) meses de prisão, suspendendo a execução desta pena de prisão pelo período de 1 (um) ano e 7 (sete) meses;
2- O arguido, não se conformando com tal decisão, vem dela interpor recurso, por discordar da sentença em relação aos seguintes pontos:
a) Nulidade de artigos da acusação / pronúncia;
b) Nulidade da sentença recorrida;
c) Impugnação da decisão de facto; e erro notório na apreciação da prova;
d) Impugnação da decisão de direito.
3- Ao analisarmos a respectiva fundamentação - que cumpriu cabalmente os requisitos exigidos no artº 374º, nº 2, do Código do Processo Penal, indicando e examinando criticamente as provas que serviram para formar a convicção do tribunal -, verificamos que nela se explicitou de forma clara o substrato racional que conduziu a que a convicção do tribunal se formasse no sentido que ali se deixou consignado.
E outra não pode ser a conclusão se não a de que o tribunal apreciou correctamente a prova produzida em audiência e fundamentou com clareza e objectividade a sua convicção, esclarecendo porque conferiu credibilidade a determinados meios de prova em detrimento de outros, em observância das regras que norteiam a apreciação da prova, sendo por isso insusceptível de qualquer crítica.
A decisão recorrida mostra-se lógica, conforme às regras de experiência comum e é fruto de uma adequada apreciação da prova, segundo o princípio consagrado no artº 127º do CPP, pelo que aderimos à exaustiva e criteriosa apreciação feita pelo tribunal, a qual deve ser mantida nos seus precisos termos.
5- Também quanto à escolha e medida da pena se concorda inteiramente com a decisão recorrida.
Assim, há que ter em atenção que a determinação da medida da pena é feita dentro dos limites definidos na lei, em função da culpa do agente e das exigências de prevenção e de todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuseram a favor do agente ou contra ele.
As finalidades das penas residem na tutela dos bens jurídicos e na reinserção do agente na comunidade. Reportando- se as exigências de prevenção constantes no texto legal, à prevenção positiva decorrente do principio politico-criminal da necessidade da pena inscrita no art°. 18°, n°. 2 da Constituição da Republica Portuguesa. A medida da pena "(...) há-de ser dada pela medida da necessidade de tutela dos bens jurídicos face ao caso concreto ... a protecção de bens jurídicos assume um significado prospectivo, que se traduz na tutela das expectativas da comunidade na manutenção da vigência da norma infringida" (cfr. Professor Figueiredo Dias "Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime" - Noticias Editorial, pág. 227).
Em sede de prevenção, para a vertente de prevenção geral, a pena deve contribuir para fortalecer o sentimento de confiança da comunidade nas normas que protegem os valores que pretende ver defendidos e servir de inibição dos seus membros da prática de actos ilícitos.
Do ponto de vista da prevenção especial, a pena tem por fim a integração do agente, devendo causar-lhe só o mal necessário.
Assim, tendo em conta, como se refere na sentença, o estabelecido no artigo 70º do Código Penal, e que, no caso vertente, face às circunstâncias apuradas, e as exigências de prevenção especial que no caso se fazem sentir.
Por todo o exposto, a douta sentença recorrida não merece qualquer censura porque fez correcta aplicação do direito à matéria de facto provada, nem violou qualquer disposição legal, designadamente as indicadas pelo recorrente.
Mostrando-se adequada, atentas as circunstâncias que se verificam no caso concreto, seguindo os critérios legais, pelo que deve ser mantida nos seus precisos termos.
Contudo, V. Exªs, decidindo, farão JUSTIÇA”.
4. Subidos os autos a este Tribunal da Relação, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer.
5. Foi realizado o exame preliminar, indeferindo-se a renovação da prova requerida pelo Recorrente e determinando-se que os autos fossem conclusos à Exma. Presidente da Secção para marcação da audiência (art. 421º, nº 1, do CPP), cuja realização foi requerida pelo arguido / recorrente.
6. A Exma. Presidente da Secção procedeu à marcação da audiência, tendo sido colhidos os vistos dos Exmos. Juízes Adjuntos.
7. Foi realizada a audiência, com o formalismo legal, e foi marcada data para a publicitação do acórdão.
8. Nada obsta ao conhecimento do recurso.
*
II. FUNDAMENTAÇÃO
1. Delimitação do objecto do recurso.
Sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, é pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação apresentada, onde sintetiza as razões do pedido, que se delimita o objecto do recurso e os poderes de cognição do tribunal superior (art. 412.º, n.º 1, do Código de Processo Penal).
O essencial e o limite de todas as questões a apreciar e a decidir no recurso estão contidos nas conclusões (sendo certo que os recursos servem para apreciar questões e não razões e não visam criar decisões sobre matéria nova), exceptuadas as questões de conhecimento oficioso.
As questões de conhecimento oficioso prendem-se com (i) a detecção de vícios decisórios ao nível da matéria de facto emergentes da simples leitura do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, referidos no art. 410.º, n.º 2, do CPP (cfr. Ac. do Plenário da Secção Criminal n.º 7/95, de 19-10- 95, Proc. n.º 46580, publicado no DR, I Série-A, n.º 298, de 28-12-95, que fixou jurisprudência então obrigatória: “É oficioso, pelo tribunal de recurso, o conhecimento dos vícios indicados no art. 410.º, n.º 2, do CPP, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito.”) e (ii) a verificação de nulidades que não devam considerar-se sanadas, nos termos dos arts. 379.º, n.º 2, e 410.º, n.º 3, do CPP.
Face às conclusões extraídas pelo Recorrente da motivação apresentada, as questões a conhecer são as seguintes:
- Nulidade de artigos da acusação / pronúncia;
- Nulidade da sentença recorrida;
- Impugnação da decisão de facto;
- Impugnação da decisão de direito.
2. Enumeração dos factos provados e respectiva motivação, tal como constam da Sentença recorrida (transcrição).
“II – Fundamentação
2.1. Factos provados:
2.1.1. Referentes à pronúncia:
Discutida a causa e produzida a prova, resultam assentes os seguintes factos:
a) No dia ........2016 iniciou-se no Regimento de Comandos, sito na ..., em ..., a designada Prova Zero do 127º Curso de Comandos;
b) No âmbito da frequência da prova do 127º Curso ocorreu a morte de dois instruendos, II e JJ;
c) O arguido AA exercia as funções de Comandante do Regimento de Comandos e o arguido BB exercia as funções de Adjunto da Secção de Formação;
d) No âmbito do Processo 89/16.0... o Ministério Público solicitou ao Regimento de Comandos o Guião da Prova Zero relativo à prova do 127º Curso de Comandos;
e) Nesses autos era necessário o apuramento das condições em que os instruendos do 127º Curso de Comandos estiveram sujeitos nos dias ........2019 e ........2016;
f) O guião da Prova Zero que vinculou os instrutores e os instruendos do 127º Curso foi o que já tinha sido utilizado para a Prova Zero do 126º Curso de Comandos, não tendo existido um guião especifico, prévia e concretamente elaborado apenas para a realização da Prova Zero do 127º Curso;
g) Em ........2016 o arguido AA fez chegar ao Processo 89/16.0... um documento como sendo o guião da Prova Zero do 127º Curso de Comandos como se este tivesse estado na base da realização das provas dos dias ........2019 e ........2016 e que orientou e vinculou os instrutores da mesma;
h) No ponto 2, subponto 2, alínea f), do guião que foi apresentado nesses autos como sendo o da Prova Zero do 127º Curso de Comandos prevê-se a disponibilização aos instruendos de 5 cantis de água por dia e no guião da Prova Zero do 126º Curso de Comandos que também foi utilizado no 127º Curso prevê-se a disponibilização aos instruendos de 3 cantis de água por dia;
i) Esse documento que o arguido AA juntou ao Processo 89/16.0... foi elaborado a seu mando por indivíduo não concretamente identificado;
j) O arguido AA aprovou-o e autenticou-o depois de ........2016 para assim cumprir a determinação do Ministério Público no âmbito do Processo 89/16.0...;
k) Com a sua actuação o arguido AA pretendia fazer crer à autoridade judiciária que da sua parte nenhuma responsabilidade do que sucedeu aos instruendos do 127º Curso lhe poderia ser assacada, pois que o consumo mínimo de água previsto era de 5 cantis de água por dia e não de 3 cantis de água por dia e, assim, empurrar a responsabilidade daquelas mortes para os instrutores da Prova Zero do 127º Curso de Comandos;
l) O arguido AA, em comunhão de esforços com esse indivíduo não concretamente identificado, agiu de forma livre, voluntária e consciente, com o propósito concretizado de elaborar e apresentar às Autoridades Judiciárias aquele documento como se fosse o documento que serviu de guião à realização da Prova Zero do 127º Curso de Comandos, bem sabendo que tal não era verdade, visando deturpar nesses termos as conclusões do inquérito em curso no Processo 89/16.0...;
m) O arguido AA sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei;
n) O arguido AA desempenhou diversas funções militares a nível nacional e internacional ao longo de mais de 40 anos sem avaliações desfavoráveis, tendo abandonado o serviço activo em ........2021;
o) Os arguidos não têm antecedentes criminais conhecidos.
2.1.2. Referentes à contestação do arguido AA:
Além dos que ficaram assentes referentes à pronúncia, nenhum.
2.2. Factos não provados:
2.2.1. Referentes à pronúncia:
Com relevância para a decisão da causa, não se provou que:
a) O arguido BB é o indivíduo não concretamente identificado;
b) O documento junto naqueles autos foi elaborado exactamente em ........2016;
c) O arguido BB sabia qual o destino de tal documento que elaborou, bem como que iria dar uma visão dos factos errada e falsa, deturpando as conclusões do inquérito em curso, mas ainda assim não se coibiu de agir em estrita observância do que lhe foi a si superiormente determinado;
d) O arguido BB sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei.
2.2.2. Referentes à contestação do arguido AA:
Com relevância para a decisão da causa, nenhum.
2.3. Motivação da decisão de facto:
A convicção do tribunal quanto à factualidade provada assentou, desde logo, na análise crítica da extensa documentação junta aos autos, incluindo do Proc. n.º 89/16.0... cuja cópia consta (até ao acórdão proferido nesses autos e cuja cópia consta também do CD de fls. 1637) da PEN inserta a fls. 1739, de onde resulta à exaustão o objecto investigado nos aludidos autos, incluindo a necessidade de determinar as condições em que a prova se realizou e a relevância, nisso, do guião da prova zero do 127º Curso de Comandos, mas resultando também de determinadas peças processuais factos como o óbito dos instruendos JJ e II, nomeadamente dos boletins clínicos nos ficheiros de fls. 167 a 180 e 191 a 217 e da lista de militares que frequentou o aludido curso 127º nos ficheiros de fls. 52 a 62.
Na verdade, tal factualidade é unanimemente tida por incontroversa por qualquer das testemunhas inquiridas na audiência de julgamento, que a confirmaram, o que também sucede com a existência de guiões e respectivas directivas usados nas designadas provas zero.
Aliás, tais guiões relativos a diversos cursos constam insertos de fls. 164 a 173 (guião do 123º Curso), de fls. 174 a 182 (guião do 124º Curso), de fls. 949 a 957 (guião do 125º Curso) e de fls. 958 a 971 (guião do 126º Curso).
No que tange às funções/patentes de cada um dos arguidos à data daquele 127º Curso foram também as testemunhas inquiridas unânimes em as confirmar, sendo incontroverso (resultando até, quanto ao arguido AA, da análise crítica da respectiva ficha biográfica de fls. 2178 a 2179), resultando a solicitação no Proc. n.º 89/16.0..., em fase de investigação (em ........2016), do guião da prova do 127º Curso ao Comandante do Regimento de Comandos, portanto ao arguido AA, do ficheiro de fls. 18 a 51 gravado na aludida PEN no ficheiro de fls. 1739, guião que veio aí a ser junto como sendo o do 127º Curso conforme fls. 972 a 985.
Ora, como resulta das regras da experiência comum, tendo a solicitação sido efectuada ao Comandante do Regimento de Comandos, o arguido AA, tivesse algo sido junto aos autos que não correspondesse às suas ordens (e, como resulta do conhecimento comum, mas também do depoimento das testemunhas inquiridas - algumas nem sabendo precisar se tomaram conhecimento dessa questão quando confrontados com o guião em causa nesses processo ou quando ouviram a questão na comunicação social -, tendo sido amplamente divulgada nos meios de comunicação social a questão de junção de um guião falso àqueles autos, não tivesse sido o guião que mandou juntar - portanto, que “juntou”, respeitando o solicitado no processo - teria o arguido AA tomado conhecimento que algum dos “seus homens” lhe desobedecera) teria de imediato assegurado que era cumprido o determinado por si, ou seja, diligenciaria por ser junto o que realmente foi o guião do 127º Curso… porém, tal não sucedeu conforme resulta da análise daqueles autos juntos na PEN de fls. 1739, pelo que não podem subsistir dúvidas que o arguido AA o juntou aos autos n.º 89/16.0...
Aliás, se atentarmos à contestação, bem como à linha de defesa deste arguido, incluindo as alegações, verificamos que não é a junção contra ordens suas do guião de fls. 972 a 985 como sendo o do 127º Curso naquele processo que o arguido AA defende, mas “apenas” que o mesmo é, afinal, o guião verdadeiro, o guião usado efectivamente como base para o 127º Curso.
Vejamos então se assim é, pois que sendo-o, de facto, nenhuma prática ilícita estaria em causa.
Da análise directa dos diversos guiões juntos aos autos, já mencionados, todos assinados pelo arguido AA, não é despiciendo notar que todos esses têm escrito o número do curso a que respeitam à excepção do guião de fls. 972 a 985 que é o que foi junto como sendo do 127º Curso e que este prevê expressamente uma utilização pelos instruendos de 5 cantis de água por dia ao invés de 3 cantis de água por dia como todos os outros (entre outra divergência que até seria relevante, mas que não foi considerada em sede de investigação e que não foi vertido nos factos imputados).
Ora, resultando à exaustão das regras da experiência comum que as condições para a realização de qualquer Curso de Comandos têm de ser extremas, é evidente que a água disponibilizada é um elemento determinante e que, se houve uma morte (neste caso houve duas), tal é um elemento essencial a ser investigado, evidência que resulta também dos depoimentos das testemunhas inquiridas que acrescentaram, ainda, as altas temperaturas que se faziam sentir à data da realização da prova em referência (veja-se, a propósito e por exemplo, o depoimento da testemunha EE que explicou de forma clara e lúcida a relevância em causa).
Aqui chegados, temos que de facto as testemunhas EE (que, embora admitindo não ter estado na reunião imediatamente anterior ao início do 127º Curso, disse ter tido conhecimento do guião através da sua “equipa sanitária” e no distribuído/usado constava estar prevista a utilização de três cantis por dia e não cinco); KK (que confirmou ter estado na tal reunião e ter sido distribuído para ser utilizado, como foi, o guião do 126º Curso), LL (que confirmou ter estado na aludida reunião e ter sido distribuído para ser utilizado, como foi, o guião do 126º Curso), MM (que confirmou ter estado na tal reunião e ter sido distribuído para ser utilizado, como foi, o guião do 126º Curso), NN (que confirmou ter estado na aludida reunião e ter sido distribuído para ser utilizado, como foi, o guião do 126º Curso), OO (que confirmou ter estado na reunião em referência e ter sido distribuído para ser utilizado, como foi, o guião do 126º Curso), PP (que também confirmou ter estado na tal reunião e ter sido distribuído para ser utilizado, como foi, o guião do 126º Curso) e EE (que confirmou ter estado na reunião referida e ter sido distribuído para ser utilizado, como foi, o guião do 126º Curso), foram unânimes em confirmar que o guião distribuído e que esteve na base da prova zero do 127º Curso foi o guião que havia sido utilizado para o 126º Curso, sendo que no mesmo constava a previsão para 3 cantis de água por dia e não para 5 cantis de água por dia.
É certo que, uns com maior precisão outros com menos, acrescentaram que no âmbito da reunião em que houve essa distribuição se discutiram as altas temperaturas sentidas à data e que ficou acordado terem para distribuição 4 cantis por dia com possibilidade de 5 cantis por dia (a testemunha EE até afirmando que foi logo prevista a utilização de cinco cantis por dia, mas acabando por admitir poder ser só a ideia com que ficou do que falado), porém, não é o que ficou acordado entre os participantes da reunião - acrescento esse que até tinha sustento nos guiões juntos aos autos que referiam os tais 3 cantis, pois que logo a seguir a essa previsão continham o respectivo aumento como possível - que aqui se aprecia (nem mesmo se havia estudos e/ou diligências em curso para fazer alterações ao guião que já era a base de tantos cursos da prova zero, não sendo esses trabalhos, que o e-mail de fls. 2200 verso a 2201 pretende comprovar terem existido, que têm a virtualidade de alterar um documento que foi utilizado para um outro documento diverso ainda em elaboração à data e que, portanto, não foi o utilizado), mas o que constava do guião que foi a base do 127º Curso e que, obviamente num processo judicial em fase de investigação, é algo diverso, sendo que, inclusive, como bem explicou a testemunha LL, é substancialmente diferente partir de uma base de 3 cantis do que de uma base de 5 cantis por dia, tanto que em qualquer prova zero, conforme referiu, sempre poderiam ser admitidos mais cantis por dia além dos previstos (conforme consta previsto e explicado nos guiões das várias provas nos termos também já mencionados).
Portanto, tendo estas testemunhas prestado depoimento de forma clara e coerente (independentemente de alguma divergência de pormenor num ou outro depoimento, perfeitamente compreensível e até contribuidor para maior credibilidade, atento o lapso de tempo decorrido desde a data da prática dos factos e a necessidade que tiveram de ouvir declarações e depoimentos de outros no Proc. n.º 89/16.0... atenta a qualidade de arguidos que tiveram nesses autos), merecendo credibilidade, mas conjugando os seus depoimentos também com a análise crítica dos guiões mencionados (não sendo despiciendo notar a cirúrgica alteração no número de cantis neste guião em análise nos autos relativamente aos diversos anteriores, mas também à diferente identificação do mesmo guião, isto é, sem o número do curso como acontecia nos demais), não podem ficar dúvidas que o guião de fls. 972 a 985 não foi o que serviu de base ao 127º Curso e que foi o guião do 126º Curso que foi utilizado no 127º Curso.
É certo que a defesa do arguido AA pretende descredibilizar os depoimentos destas testemunhas com base, essencialmente, em “autos de inquirição de testemunha” referentes a depoimentos prestados no Comando das Forças Terrestres em processo de averiguações nos quais ficou escrito, no essencial, que o guião da prova zero distribuído continha a previsão de cinco cantis por dia, pretendendo até que se tenham tais autos de inquirição como tendo “força probatória plena (art.ºs 369º e 371º do Código Civil)”, como se lê na sua contestação.
Na verdade, se assim fosse teríamos uma justiça caseira que implicava a desnecessidade absoluta dos Tribunais… o princípio da imediação seria absolutamente postergado.
Ora, apesar de ser um princípio que dispensa grandes explicações, importa recordar o que o mesmo significa para não ser olvidado, recorrendo-se aqui ao Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 236/00, em texto integral em www.tribunalconstitucional,pt, por conter um resumo de diferentes definições: “O princípio da imediação traduz-se essencialmente no contacto pessoal entre o julgador e os diversos meios de prova. Recorde-se a formulação do princípio da imediação de Figueiredo Dias: «a relação de proximidade comunicante entre o tribunal e os participantes no processo, de modo tal que aquele possa obter uma percepção própria do material que haverá de ter como base da sua decisão». A prova válida para formar a convicção do juiz há-de ser produzida ou examinada em audiência (art.º 355º). A oralidade permite a instrução, discussão e julgamento se façam seguidamente, com o menor intervalo possível (princípio da concentração), realizando-se assim o maior contacto entre o julgador e as provas (G. Marques da Silva, «Curso de Processo Penal», 1994, p. 232). Como ensina o Sr. Prof. Domingues de Andrade, as provas serão apreciadas por quem assistiu à sua produção, sob a impressão viva colhida nesse momento e formada através de certos elementos ou coeficientes imponderáveis, mas altamente valiosos, que não podem conservar-se num relato escrito das mesmas provas («Noções Elementares de Processo Civil», I, 1956, pág. 264). O Sr. Dr. José António Barreiros salienta, para além dos princípios da verdade material e da oralidade, «outro princípio que tem particularmente a ver com o desenrolar da audiência e com o modo de formação da convicção do julgador: o da imediação também conhecida como da prova imediata». («O julgamento do novo Código de Processo Penal», Jornadas de Direito Processual Penal - O novo CPP, CEJ, 1991, pág. 277).”.
Na verdade, pretende a defesa do arguido AA que depoimentos escritos (em muitas partes usando até o mesmo texto, veja-se, a título de exemplo, os pontos 6 do auto de inquirição da testemunha CC a fls. 229 verso e do auto de inquirição da testemunha FF de fls. 1323) sejam eles próprios insusceptíveis de ser questionados ou, no limite, sejam suficientes para criar a dúvida no julgador.
Ora, as testemunhas mencionadas que foram confrontadas com os aludidos depoimentos negaram que tal tenham afirmado, ou seja, que tenham dito que no guião distribuído e que utilizaram estivessem previstos à partida os 5 cantis por dia para cada instruendo (apesar de lá estar escrito que o afirmaram e terem assinado o respectivo auto).
Da leitura de tais depoimentos extensos é espectável, e resulta até das regras da experiência comum, que o cidadão que prestou depoimento quando é convidado a assinar o respectivo auto ou não o leia ou leia rapidamente sem atenção minuciosa (precisamente porque confia… e neste caso era até um superior hierárquico militar que presidia, a testemunha QQ), além de que o pormenor em causa é tão mínimo que (não se tendo ainda ouvido falar da questão como depois sucedeu) numa leitura minimamente atenta seria pouco normal que fosse dado conta de que onde está escrito “5” devia estar escrito “3”, entre outros pormenores com texto corrido e adequado.
Com efeito, não ficou qualquer dúvida que as testemunhas em referência confrontadas com tais autos de inquirição não mentiram quando disseram que o que lá consta não foi o que disseram.
Ao contrário, porém, da testemunha RR, precisamente quem presidiu à inquirição das testemunhas LL, CC e FF e elaborou os respectivos autos com os quais foi confrontado, conforme afirmou, asseverando que tais depoimentos foram prestados de forma livre e que os autos de inquirição são fieis ao que os respectivos depoentes relataram, acrescentando até que foram lidos pelos mesmos. Mas claramente faltando à verdade.
Na verdade, além do que já se referiu extensamente supra, a menos que estas testemunhas (e repare-se que não é só uma) tivessem alguma dificuldade intelectual é que, sabendo o que tinham afirmado já em sede de um processo de averiguações no âmbito militar, iriam depois - seja no Proc. 89/16.0... ou seja nestes autos -, prestar declarações/depoimentos diversos num ponto tão especifico… todas estas testemunhas…
Por outro lado, temos que o arguido AA usou do seu legítimo direito ao silêncio (do que obviamente não se retira qualquer conclusão quanto aos factos), porém, também em sede de contestação e de alegações, vem a defesa pretender que se tenham em consideração declarações pelo mesmo “prestadas nos autos”, só que não existem nos autos declarações suas prestadas perante autoridade judiciária.
Na verdade, o que o arguido AA pretende é que, não tendo prestado quaisquer declarações nestes autos passíveis de serem consideradas nos termos do disposto no art.º 357º do Código de Processo Penal, se considere como tal um texto escrito que apresentou subscrito por si e pelo seu ilustre mandatário inserto de fls. 1569 a 1579.
Ora, tal texto não sabemos se foi escrito por si ou pelo outro subscritor, por acaso um il. causídico, mas se tivesse sido escrito pelo arguido não saberíamos também em que condições o foi, tendo inclusive tido todo o tempo que entendeu para o pensar e corrigir, impedindo o Tribunal de percepcionar as suas hesitações e/ou estupefacções e/ou quaisquer outras reacções, não merecendo obviamente o mesmo qualquer credibilidade e sendo insusceptível de qualquer consideração útil nos autos.
Por outro lado, resta-nos a questão de saber qual a intervenção do arguido BB no episódio em causa, desde logo porque, do relatório pericial efectuado na sequência de buscas efectuadas (conforme autos de busca e apreensão de fls. 1039 a 1040 e 1046 a 1047) inserto de fls. 2 a 13 do Apenso A e respectivo auto de aclaração de perícia informática forense de fls. 14 a 22 do Apenso A (de onde resulta apenas a criação e modificação do guião objecto dos autos em ........2016), nenhuma certeza resulta quanto a quem elaborou no computador concretamente o documento junto de fls. 972 a 985.
Na verdade, as testemunhas inquiridas que estiveram na reunião prévia ao início do 127º Curso foram assegurando que, embora coubesse ao arguido AA assinar os guiões pelo mesmo aprovados, estes eram feitos pela secção de formação de que o arguido BB fazia parte, explicando essencialmente a testemunha CC que faziam parte dessa secção sete pessoas e que as pastas de computador eram partilhadas estando acessíveis aos membros dessa secção, porém, acrescentando a testemunha LL que o arguido BB lhe enviou o e-mail inserto de fls. 1080, em ........2016, com dois anexos, nomeadamente uma directiva para prova próxima e, sem estar assinado, o guião junto aos autos como erradamente referente ao 127º Curso, inserto de fls. 1081 a 1091, assegurando que interpretou esse envio como sendo para lhe dar conhecimento do mesmo.
Ora, o arguido BB (que também usou do seu legítimo direito ao silêncio) resolveu, após produzida a prova testemunhal, prestar declarações, embora apenas para explicar a sua versão quanto ao envio do e-mail de fls. 1080 e respectivos anexos, confirmando que foi quem enviou tal e-mail, mas dizendo que o fez a pedido da testemunha LL e tinha a ver com a prova que identificou e que ainda se ia realizar, tendo anexado o aludido guião porque era o que estava na pasta partilhada da secção de formação e pensou ser o que era pretendido.
Com efeito, se é certo que o que disse o arguido BB e a testemunha LL não são totalmente coincidentes, embora admitindo-se que o tempo tenha gerado alguma confusão nos pormenores em algum (a propósito nada acrescentando de esclarecedor os quadros de fls. 2193 a 2194), a verdade é que apesar do que disse a testemunha LL e da sua conclusão crítica quanto a este arguido, face ao que o arguido BB afirmou (de que o ficheiro estava na pasta partilhada e apenas o anexou), não podemos, nomeadamente com base nas regras da experiência e face à demais prova produzida nos termos supra analisados, concluir que o arguido BB (que à data do 127º Curso até estava de férias e era outro colega quem desempenhava na secção de formação as funções que depois assumiu, conforme explicou também a testemunha LL) foi quem o elaborou às ordens do arguido AA.
Na realidade, se é certo que até temos nos autos um auto de inquirição de testemunha referente a depoimento prestado no Comando das Forças Terrestres em processo de averiguações pelo ora arguido BB inserto a fls. 292 no qual temos escrito que o mesmo assume a autoria de tal documento e lhe dá até um enredo particular, tal escrito não respeita precisamente o princípio da imediação, desconhecendo este Tribunal em que condições o mesmo foi obtido, aplicando-se, no fundo, o que supra se consignou a propósito de outros depoimentos prestados noutra sede que não este Tribunal, sendo que este arguido teve até o cuidado de, ele próprio, prestar as declarações plausíveis que prestou, criando, assim, condições para não ser possível afastar a dúvida quanto à sua exacta intervenção.
Assim, e face ao que deixamos exposto, importa consignar que, na dúvida, temos de ter sempre presente o princípio do in dubio pro reo.
Trata-se de um princípio que pretende garantir a não aplicação de qualquer pena sem prova suficiente dos elementos do facto típico e ilícito que a suporta, assim como o dolo e negligência do seu autor. Isto é, à insuficiência da prova - que equivale à subsistência no espírito do tribunal de uma dúvida positiva e invencível sobre a existência ou inexistência de determinado facto - deve dar-se como não provado o facto desfavorável ao(à) arguido(a). Ou seja, é indicado ao juiz que valore a favor do acusado a prova dúbia. Neste sentido, Cristina Líbano Monteiro, em Perigosidade de Inimputáveis e In Dubio Pro Reo, Boletim da Faculdade de Direito, Coimbra Editora, Stvdia Iuridica 24, pág. 11.
Este princípio traduz, assim, a convicção de que o Estado, através dos Tribunais, não deve exercer o seu ius puniendi quando não obtiver a certeza de o fazer legitimamente, conforme esclarecedoramente defende Cristina Líbano Monteiro, ob. cit., pág. 166, e isto porque são mais gravosas as consequências que podem decorrer de uma incorrecta fixação de factos em processo penal.
Deste modo, não podemos, com um mínimo grau de certeza, assegurar que o(a) arguido(a) BB actuou do modo descrito na pronúncia, pelo que se tem de ter a respectiva factualidade por não assente.
Consequentemente, porém, resulta manifesto que quem actuou nos termos vertidos na pronúncia relativamente ao arguido BB foi alguém não concretamente identificado, nomeadamente daquela secção de formação.
De referir que, muita foi a prova junta aos autos e que analisámos, inclusive certidões não só dos autos identificados, mas também de outros relacionados, mas mais nenhum documento junto é susceptível de pôr em causa o que se analisou ou de algo de útil acrescentar.
Os factos referentes ao elemento subjectivo, no que tange ao arguido AA, resultaram provados também com base nas regras da experiência comum, pois que pertencendo ao foro íntimo do sujeito, o seu apuramento ter-se-á de apreender do contexto da acção desenvolvida.
Os factos vertidos na alínea n) dos factos assentes referentes ao arguido AA provaram-se com base na análise crítica do resumo de Avaliação Individual de fls. 2180 e do respectivo Curriculum Vitae de fls. 2181.
Finalmente, os antecedentes criminais do(a) arguido(a) encontram-se certificados nos autos.
*
Quanto à demais factualidade não assente, ou a mesma se encontra em contradição com aquela que ficou assente ou não foi produzida qualquer prova ou esta foi julgada insuficiente.
*
Consigna-se que não se fez constar dos factos assentes e não assentes factos conclusivos, bem como matéria irrelevante para a boa decisão da causa ou meramente instrumental para a mesma.”.
3. Apreciação do mérito do recurso.
Cumpre agora conhecer as questões / pretensões recursivas suscitadas pelo Recorrente, respeitantes à sentença proferida nos autos, acima assinaladas, observando-se uma ordem lógica de conhecimento e procedendo-se, quando tal se justifique, a uma análise conjunta de algumas dessas questões.
3.1. Nulidade de artigos da acusação / pronúncia.
Como primeira pretensão recursiva, o Recorrente questiona o segmento decisório da sentença recorrida (aí constante a título incidental) que indeferiu a invocação, levada a cabo na contestação, da nulidade de artigos da pronúncia (conclusões 1 a 6 do ponto em análise).
Sucintamente, o Recorrente alega que os artigos 4º, 11º, 12º e 13º da pronúncia / acusação violam os arts. 283º, nº 3, al. b) e 308º, nº 2, do CPP, por conterem afirmações genéricas e conclusivas, que não configuram factos concretos e que inviabilizam o direito de defesa do Recorrente e o direito a um processo justo e equitativo, defendendo o Recorrente que o tribunal a quo deveria ter considerado tais artigos como não escritos.
O Recorrido (Ministério Público) defende não existir a apontada nulidade.
Vejamos.
A questão agora em apreciação já havia sido invocada no requerimento de abertura de instrução (nulidade de artigos da acusação) e foi proferida decisão instrutória que (sem abordar a questão expressamente) determinou a pronúncia do Recorrente (pelos factos constantes da acusação).
O Recorrente voltou a invocar a questão na contestação apresentada nos autos, tendo por referência a pronúncia deduzida nos autos (a qual, no que respeita à factualidade imputada ao Recorrente, remete para a factualidade da acusação, como já referido).
O tribunal a quo, após ter determinado, aquando da admissão da contestação do Recorrente, que a questão suscitada seria apreciada em sede de sentença, apreciou e decidiu aí tal questão, a título incidental («Da nulidade da pronúncia»), i.e., antes da fixação da factualidade provada e não provada e respectiva motivação.
Na sentença em escrutínio, com interesse para a questão em apreciação, escreveu-se e ponderou-se o seguinte (transcrição):
Da nulidade da pronúncia:
Vem o arguido AA arguir a nulidade da pronúncia, nos termos do disposto no art.º 283º, n.º 3, alínea b), aplicável ex vi art.º 308º, n.º 2, do Código de Processo Penal, por a mesma não conter factos, nomeadamente nos seus artigos 4º, 11º, 12º e 13º.
Compulsada a peça processual em referência (nomeadamente a acusação uma vez que a pronúncia apenas para a mesma remete, integrando-a, consequentemente), se é evidente que a mesma poderia ter outra arrumação e ser mais precisa, directa e objectiva, não sendo necessariamente um exemplo para apresentar no Centro de Estudos Judiciários para quem se inicia nas funções respectivas, contém uma descrição factual suficiente e objectiva, respeitando integralmente o disposto no aludido art.º 283º, n.º 3, alínea b), que preceitua que “a acusação contém, sob pena de nulidade: (…) a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada”.
Com efeito, os factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena podem ser descritos de forma “sintética” e o demais elencado apenas é exigível “se possível”, pelo que não vislumbramos onde tal norma esteja desrespeitada.
Vejamos então.
a) Quanto ao artigo 4º temos “Fundamental era o apuramento das condições em que os instruendos do 127º Curso de Comandos estiveram sujeitos nos dias ... de ... de 2016, sendo que além das elevadas taxas de desistências e ferimentos dos instruendos, que normalmente se verificam em todas as «Provas Zero» dos cursos anteriores, a frequência da prova do 127º Curso provocou, entre o mais, a morte de dois instruendos, II e JJ”.
Ora, na falta de um facto temos é muitos factos… misturados e escritos uns por cima dos outros, é certo, mas não deixam por isso de ser factos. O que lá está escrito, por outras palavras é (sem neste momento se articular, além do essencial, com outros artigos da peça processual em apreço):
- No Proc. n.º 89/16.0... (é preciso ler o artigo 3º onde esta ligação é feita) era fundamental apurar as condições em que os instruendos do 127º Curso de Comandos estiveram sujeitos nos dias ... de ... de 2016;
- Verificaram-se em todas as Provas Zero dos cursos anteriores elevadas taxas de desistências e ferimentos dos instruendos;
- No âmbito da frequência da prova do 127º Curso ocorreu a morte de dois instruendos, II e JJ.
Portanto, factos. O que mais o arguido entende que deveria constar seriam sim factos instrumentais, os quais podiam ou não estar na acusação/pronúncia.
Aliás, dizer que a afirmação de que foi a frequência de um curso que provocou a morte é um facto impossível como o faz o arguido é manifestamente falacioso, bem tendo o arguido percebido, como qualquer leitor menos atento, que o que lá se diz não é que o curso matou A ou B, mas que foi no seu âmbito que morreram, sendo que o art.º 283º, n.º 3, alínea b), não se exige que a escrita em causa pudesse ter uma notação de bom num qualquer teste da disciplina de português.
b) Quanto ao artigo 11º temos “Pretendia assim o arguido AA, ao solicitar ao arguido BB que elaborasse e posteriormente apresentar como verdadeiro o documento supra referido, por um lado, alijar eventuais responsabilidades que sobre si pudessem impender, fazendo crer à autoridade judiciária que da sua parte - do AA -, nenhuma responsabilidade do que sucedeu aos instruendos do 127º Curso, lhe poderia ser assacada, pois que o consumo mínimo de água seriam os 5 (cinco) cantis de água e não 3 (três) e por outro lado, imputar toda a responsabilidade do sucedido aos instrutores da referida Prova.”.
Ora, também aqui temos é texto a mais, repetido e desnecessário.
O que lá está escrito, por outras palavras é (sem neste momento se articular, além do essencial, com outros artigos da peça processual em apreço):
- O arguido AA, ao solicitar ao arguido BB que elaborasse e posteriormente apresentasse como verdadeiro o guião fabricado, pretendia fazer crer à autoridade judiciária que não tinha responsabilidade na morte dos dois instruendos do 127º Curso de Comandos, pois que sendo o consumo mínimo de água os 5 cantis e não os 3 cantis a responsabilidade dessas mortes era dos instrutores da mesma Prova”.
Ora, considerando a contestação, se o arguido AA era ou não arguido nos outros autos é algo cuja relevância resultará da prova e não do alegado pelo arguido em sede de contestação. Os factos estão imputados, se se provam ou não é para ser apreciado noutra sede, nomeadamente da análise da prova em sede de sentença.
c) Quanto aos artigos 12º e 13º temos “Já o arguido BB, sabia perfeitamente qual o destino de tal documento que elaborou, sabendo que iria dar uma visão dos factos errada e falsa, deturpando as conclusões do inquérito em curso, mas ainda assim não se coibiu de agir em estrita observância do que lhe foi superiormente determinado, cumprindo o plano orquestrado pelo seu superior militar, o arguido AA o qual por sua vez tinha pleno conhecimento das acções perpetradas pelo inferior hierárquico.” (artigo 12º) e “Os arguidos agiram em comunhão de esforços e de intentos, de forma livre voluntária e consciente, com o propósito concretizado de elaborar e apresentar às Autoridades Judiciárias o documento denominado «Guião da Prova Zero do 127º Curso» como se fosse o documento que serviu efectivamente de guião à realização da «Prova Zero» do 127º Curso de Comandos, bem sabendo que tal não era verdade, visando ludibriar as autoridades que investigavam os factos ocorridos no âmbito do Processo 89/16.0...” (artigo 13º).
Ora, nestes dois artigos que o arguido AA analisa em conjunto apenas se insurge quanto ao verbo “ludibriar” que afirma ser conclusivo e alegando quais os factos que deviam estar escritos no seu lugar, concluindo que não estão.
Na verdade, se os factos que o arguido entende (e indica) que deviam estar na acusação/pronúncia (alguns, se não todos, até estão, basta ler a peça processual com atenção) podiam estar ou não, é algo que só quem investigou saberia se estavam ou não indiciados, sendo que obviamente fez constar os factos que entendeu indiciados e suficientes para aplicação ao(s) arguido(s) de uma pena, sucedendo que é com os factos objectivos que constam da acusação/pronúncia que aquele verbo (“ludibriar”) tem de ser lido.
Consequentemente, nenhuma nulidade da pronúncia existe.”.
Está em causa a decisão do tribunal a quo (inserida na sentença recorrida) que indeferiu a nulidade da pronúncia invocada pelo Recorrente na contestação.
Previamente à análise dos fundamentos recursivos apresentados pelo Recorrente (e desde já se afirma que não chegaremos a tal patamar de apreciação), importa analisar uma questão de natureza processual / formal, relacionada com o procedimento legal respeitante à impugnação da decisão instrutória (decisão de pronúncia).
O Recorrente (arguido AA) arguiu a nulidade da pronúncia, nos termos do disposto no art. 283º, n.º 3, alínea b), aplicável ex vi art. 308º, n.º 2, do Código de Processo Penal, por a mesma não conter factos, nomeadamente nos seus artigos 4º, 11º, 12º e 13º.
Tal nulidade foi arguida na contestação.
Entende-se, no entanto, que tal nulidade (da decisão de pronúncia) deveria ter sido arguida perante o Juiz de Instrução que proferiu a decisão de pronúncia, cabendo recurso do despacho que a indeferisse, que subiria com o que pusesse termo ao processo, mediante aplicação, respectivamente, do art. 308º, nº 3, por identidade de razões, e do art. 407º, nº 3, ambos do CPP (cfr. Pedro Soares de Albergaria, anotação ao art. 307º do CPP, in “Comentário Judiciário do Código de Processo Penal”, Tomo III, 2021, pag. 1289, posição que sufragamos).
A circunstância de tal nulidade ter sido invocada na contestação e de ter havido apreciação e decisão na sentença recorrida não altera a solução atrás alcançada, pelo que, obviamente, não se mostra possível a este Tribunal, em sede de recurso da sentença, conhecer daquela questão.
De resto, como é referido no Ac. RC, de 07/12/2016 (proc. nº 402/12.0TAPBL.C1; relatora: Maria José Nogueira; in www.dgsi.pt), aresto que versa sobre a acusação, mas que tem aplicação, com maior propriedade (em face do disposto no art. 311º, nº 2, a contrario, do CPP), à pronúncia, “ultrapassada da fase de controlo da acusação ou do requerimento de abertura da instrução, por efeito da preclusão, a consequência da deteção de um vício congénito nos mesmos, há-de conduzir, em sede de sentença, à absolvição, como sucede, designadamente, com a acusação que versa factos vagos / genéricos, cuja consequência, conforme tem sido defendido pacificamente pela jurisprudência dos tribunais superiores, é a de tê-los por não escritos, daí decorrendo a respectiva improcedência e não já a declaração de nulidade (da acusação)”.
Em suma, o recurso, nesta parte, é julgado improcedente.
3.2. Nulidade da sentença recorrida.
Como segunda pretensão recursiva, o Recorrente invoca a nulidade da sentença recorrida, fazendo-o em dois segmentos diferentes da motivação de recurso.
Desde logo, no ponto da motivação e conclusões denominado «Nulidade da sentença recorrida» (conclusões 1 e 2 deste ponto).
Aí, sucintamente, o Recorrente alega que a sentença recorrida não tomou posição sobre os factos alegados nas suas declarações escritas, dadas como reproduzidas na sua contestação nos termos referidos no artigo 30º, nem sobre os factos alegados naquela peça processual nos artigos 32º a 38º, o que constitui violação do disposto no art. 374º, nºs 1 e 2, do CPP, e determina a nulidade da sentença recorrida, nos termos do art. 379º do mesmo diploma.
Depois, no ponto da motivação e conclusões denominado «Impugnação da decisão sobre a matéria de facto» (conclusões 7 e 8 deste ponto).
De facto, apesar de incluída na temática da impugnação da matéria de facto, é evidente que, em tais conclusões (e respectivo corpo da motivação), o Recorrente, tendo por referência os factos provados consignados nas alíneas i) e j), invocou a questão da nulidade da sentença, por violação do art. 379º, nº 1, al. b), do CPP (alegando, em síntese, que os factos provados consignados nas alíneas i) e j) não constavam da acusação / pronúncia), e por violação do art. 374º, nº 2, do CPP (alegando, em síntese, que o tribunal recorrido não fundamentou a decisão que considerou provados os factos constantes das alíneas i) e j)).
O Recorrido (Ministério Público) defende não existir qualquer nulidade da sentença.
Vejamos.
A) Em primeiro lugar, o Recorrente alega que a sentença recorrida não tomou posição sobre os factos alegados nas suas declarações escritas, dadas como reproduzidas na sua contestação nos termos referidos no artigo 30º.
Atentemos no modo como o Recorrente estruturou a sua contestação e como aí incluiu o referido artigo 30º:
1. Nulidade dos artigos da Pronúncia:
1º. (…)
2. Impugnação da Pronúncia:
26º. (…)
2.1 - Factos aceites da Pronúncia
27º. (…)
2.2 - Impugnação:
28º. (…)
29º. (…)
2.3 - Declarações escritas do arguido:
30º.
O arguido mantém integralmente e para todos os efeitos as declarações escritas que apresentou no processo de inquérito em ........2021 e que dá aqui por integralmente reproduzidas.
31º. (…)
2.4 - Factos:
32º. (…)”.
É patente que o Recorrente não incluiu qualquer facto no mencionado artigo 30º da contestação. O que fez foi afirmar que mantinha as declarações escritas que apresentou no processo de inquérito (constantes de documento, assinado pelo Recorrente e seu ilustre Mandatário, que foi junto aos autos de inquérito) e que dava por integralmente reproduzidas tais declarações na contestação que apresentou em fase de julgamento.
É evidente que as declarações escritas do arguido (dadas por reproduzidas na contestação) contêm factos.
Contudo, em nosso entender, antes de se questionar se a sentença recorrida deveria ou não tomar posição sobre os factos constantes das mencionadas declarações escritas (factos que o Recorrente não plasmou na contestação, pois aí [art. 30º] apenas remeteu para o teor das declarações prestadas através de documento avulso enviado aos autos), importa questionar se o Recorrente podia ou não introduzir factos no objecto do processo através da junção aos autos, de modo avulso, de documento por si subscrito (e pelo seu ilustre Mandatário), que contém as declarações (escritas) que pretende prestar nos autos (com vista a que tais declarações [e os factos aí contidos], sejam levadas em consideração pelo tribunal de julgamento).
A resposta, também em nosso entender, não pode deixar de ser negativa, i.e., o arguido Recorrente não podia servir-se das declarações escritas que juntou aos autos para introduzir factos no objecto do processo, com vista a serem considerados pelo tribunal de julgamento, pela simples razão de tais declarações escritas não poderem ter qualquer consideração útil nos autos.
Saliente-se que a questão não deixou de ser apreciada pelo tribunal recorrido, na motivação da decisão de facto (concordando-se com a negação de valoração das mencionadas declarações escritas aí plasmada):
“(…) Por outro lado, temos que o arguido AA usou do seu legítimo direito ao silêncio (do que obviamente não se retira qualquer conclusão quanto aos factos), porém, também em sede de contestação e de alegações, vem a defesa pretender que se tenham em consideração declarações pelo mesmo “prestadas nos autos”, só que não existem nos autos declarações suas prestadas perante autoridade judiciária.
Na verdade, o que o arguido AA pretende é que, não tendo prestado quaisquer declarações nestes autos passíveis de serem consideradas nos termos do disposto no art.º 357º do Código de Processo Penal, se considere como tal um texto escrito que apresentou subscrito por si e pelo seu ilustre mandatário inserto de fls. 1569 a 1579.
Ora, tal texto não sabemos se foi escrito por si ou pelo outro subscritor, por acaso um il. causídico, mas se tivesse sido escrito pelo arguido não saberíamos também em que condições o foi, tendo inclusive tido todo o tempo que entendeu para o pensar e corrigir, impedindo o Tribunal de percepcionar as suas hesitações e/ou estupefacções e/ou quaisquer outras reacções, não merecendo obviamente o mesmo qualquer credibilidade e sendo insusceptível de qualquer consideração útil nos autos.”.
Não está em causa o reconhecimento ao arguido, enquanto sujeito processual, do direito (talvez o mais importante dos direitos) de decidir com autonomia sobre o seu próprio comportamento declarativo, escolhendo livremente se pretende declarar e intervir em abono da sua defesa (liberdade positiva de declaração) ou remeter-se ao silêncio (liberdade negativa de declaração), consoante o que entenda mais conveniente à sua estratégia de defesa.
As declarações de arguido, na sua vertente de meio de prova, têm a sua admissibilidade inscrita, desde logo, no art. 125º do CPP (e com regulação específica em várias normas do CPP, com especial enfase para os arts. 343º a 345º, que regulam as declarações de arguido em fase de julgamento, mas sem esquecer a possibilidade de valoração de declarações prestadas, pela forma legal, em fase anterior ao julgamento), podendo ser valoradas à luz do princípio da livre apreciação da prova previsto no art. 127º do CPP.
O que está em causa é a existência de uma vinculação formal, uma tipicidade de forma, nas declarações do arguido. O meio de prova “declarações de arguido” tem de ser veiculado através da forma legalmente prevista, não podendo ser veiculado, por exemplo, através de um documento escrito (subscrito e assinado por si e/ou pelo seu mandatário) avulsamente junto aos autos, sob pena de haver fraude à lei (de recordar que o art. 355º do CPP salvaguarda três princípios que subjazem ao julgamento: contraditório, oralidade e imediação).
No caso em apreciação, já se concluiu que as declarações escritas juntas pelo arguido Recorrente não podem ter qualquer consideração útil nos autos.
Em consequência, os factos incluídos em tais declarações escritas também não podem ter qualquer consideração útil nos autos (independentemente de tais factos, em abstracto, poderem ter relevância para a descoberta da verdade e boa decisão da causa, o que é questão diversa).
Se o Recorrente pretendia fazer ingressar no objecto do processo um conjunto de factos que assumia como relevantes para a descoberta da verdade e boa decisão da causa, no âmbito do exercício do seu direito de defesa, deveria ter alegado tais factos na contestação, sem os relacionar, de modo umbilical, como fez, às declarações escritas que incorrectamente pretende ver valoradas como meio de prova pelo tribunal.
De igual modo, o Recorrente não pode, com sucesso, socorrer-se do uso de um meio processual ilegítimo (pretensão de consideração e valoração das mencionadas declarações escritas, concretamente, dos factos aí contidos) para, em recurso, pretender anular a sentença recorrida.
Em suma, o recurso, nesta parte, é julgado improcedente.
B) Em segundo lugar, o Recorrente alega que a sentença recorrida não tomou posição sobre os factos alegados nos artigos 32º a 38º da contestação (o que constitui violação do disposto no art. 374º, nºs 1 e 2, do CPP, e determina a nulidade da sentença recorrida, nos termos do art. 379º do mesmo diploma).
O art. 379º do CPP estabelece um regime especial de nulidades, com aplicação exclusiva a sentenças (e acórdãos), não se confundindo com o regime de nulidades (processuais) previsto nos arts. 118º a 122º do CPP (no primeiro regime estão em causa nulidades da própria decisão, i.e., relativas ao conteúdo da decisão ou tomando em consideração a decisão como acto [errores in iudicando]; no segundo regime, estão em causa vícios relativos aos trâmites processuais [errores in procedendo]), embora exista semelhança quanto às consequências nos dois regimes (mas divergindo, por exemplo, quanto ao modo de conhecimento, visto que as nulidades da sentença devem ser arguidas ou conhecidas em recurso – art. 379º, nº 2, do CPP).
O regime especial de nulidades da sentença (e acórdão) também não se confunde com o regime de recursos, quando está em causa a invocação de erros de julgamento (nomeadamente, quando se invoca os vícios a que alude o art. 410º, nº 2, do CPP ou quando se impugna a matéria de facto fixada na decisão recorrida nos termos do art. 412º do CPP), sendo certo que a verificação dos apontados erros não determina a nulidade da sentença (ou acórdão).
A previsão de um regime especial de nulidades da sentença (e acórdão) relaciona-se directamente com a gravidade da violação do dever de fundamentação imposto pela Constituição e pela Lei, impondo tal dever que os actos decisórios sejam sempre fundamentados, devendo ser especificados os motivos de facto e de direito da decisão (art. 205º, nº 1, da CRP e art. 97º, nº 5, do CPP).
De acordo com o art. 379º, nº 1, al. a), em articulação com o art. 374º, nºs 2 e 3, al. b), ambos do CPP, são causas de nulidade da sentença: a omissão da enumeração dos factos provados e não provados; a falta de uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos de facto e de direito, que fundamentam a decisão; a falta de indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal; e a falta de decisão condenatória ou absolutória.
De acordo com o art. 379º, nº 1, al. b), do CPP, são causas de nulidade da sentença: a condenação por factos diversos dos descritos na acusação ou na pronúncia, sem prévio cumprimento do disposto nos arts. 358º e 359º do CPP.
De acordo com o art. 379º, nº 1, al. c), do CPP, são causas de nulidade da sentença: a omissão de pronúncia e o excesso de pronúncia.
A nulidade acarreta a invalidade do acto em que se verifica, bem como a de todos aqueles que pela mesma possam ser afectados, tendo, por isso mesmo, que ser repetidos.
Quando o tribunal não dá como provados ou não provados factos relevantes alegados na acusação, no pedido cível ou na contestação, ocorre o vício da nulidade por omissão de pronúncia (art. 379º, nº 1, al. c), do CPP), o qual é de conhecimento oficioso (cfr., entre outros, o Ac. RL, de 10/01/2013; relator: João Abrunhosa; in www.dgsi.pt).
Como é sabido, a omissão de pronúncia só ocorre quando o tribunal deixa de se pronunciar sobre questões que lhe foram submetidas pelos sujeitos processuais ou de que deve conhecer oficiosamente, entendendo-se por questões os problemas concretos a decidir e não os simples argumentos, opiniões ou doutrinas expendidos pelas partes na defesa das teses em presença.
A doutrina e a jurisprudência distinguem, há muito tempo, entre questões e razões ou argumentos invocados pelo sujeito processual em defesa do seu ponto de vista. A falta de apreciação das primeiras (questões) consubstancia a verificação de nulidade da sentença por omissão de pronúncia. O não conhecimento dos segundos (razões ou argumentos) será irrelevante.
Esta distinção tem igualmente lugar no caso dos factos alegados nas peças processuais, onde avulta o conceito de «relevância (ou essencialidade) dos factos para a boa decisão da causa (para a decisão de mérito)», com referência ao thema probandum delineado pelo objecto do processo.
Assim, importa averiguar se os factos da contestação (arts. 32º a 38º) relativamente aos quais, no entender do Recorrente, o tribunal a quo estava obrigado a pronunciar-se são ou não factos relevantes (e/ou se o tribunal a quo teve tais factos em consideração, dando-os como provados ou não provados).
Cumpre referir que o tribunal a quo, no elenco dos factos provados e não provados, observou a seguinte estruturação:
2.1. Factos provados:
2.1.1. Referentes à pronúncia:
(…)
2.1.2. Referentes à contestação do arguido AA:
Além dos que ficaram assentes referentes à pronúncia, nenhum.
2.2. Factos Não provados:
2.2.1. Referentes à pronúncia:
(…)
2.2.2. Referentes à contestação do arguido AA:
Com relevância para a decisão da causa, nenhum.”.
Quer dizer, o tribunal a quo considerou irrelevantes ou não essenciais, para a decisão de mérito, os factos que o Recorrente agora entende que deviam ser dados como provados (é este o sentido útil da pretensão recursiva em análise, embora o Recorrente centre a sua pretensão na necessidade de tais factos constarem do elenco dos factos provados ou não provados).
Vejamos os factos em causa:
«32º.
Para além do que atrás se referiu, diz ainda o arguido:
33º.
As ordens verbais, registadas por escrito no Guião, dadas pelo arguido ao Sr. Tenente Coronel ZZ, Comandante do Batalhão de Instrução, foram integralmente cumpridas, conforme o arguido declarou no dia ........2016, no processo de inquérito nº. 89/16.0... (fotocópia do auto junta no debate instrutório).
34º.
No dia ... de ... de 2016 Tenente Coronel LL, Comandante do Batalhão de Instrução (127º Curso), depois de prestar juramento, declarou em auto de inquirição perante autoridade militar no exercício de funções o seguinte:
«… 6. Que tem conhecimento do conteúdo do Guião Zero, assinado pelo Comandante do Regimento dos Comandos, tendo sido contemplado na distribuição e que em relação ao seu conteúdo, como Diretor da Prova, atendeu ao seguinte:
a) O consumo de água pelos instruendos deve constituir uma das preocupações fundamentais do Diretor da Prova, sendo o mínimo diário obrigatório o consumo de 5 (cinco) cantis de água, tendo neste última Prova Zero garantindo este consumo sem reservas, tendo dado instruções para o atesto dos cantis nas seguintes ocasiões:
(1) Em ........2016, cerca das 23h50, após a revista aos matérias e equipamento dos instruendos;
(2) Em ........2016, cerca das 07h00, antes da formatura da manhã;
(3) Em ........2016, cerca das 12h30, antes do almoço;
(4) Em ........2016, cerca das 13h50, antes da formatura da tarde;
(5) Em ........2016, cerca das 19h00, antes do jantar;
(6) Em ........2016, cerca das 19h00, além do previsto no Guião da Prova Zero, seguindo a proposta do médico, foi ainda distribuída, a todos os instruendos, uma bebida isotónica de hidratação preparada pelo médico, que entretanto, tinha sido também distribuída a todos os instruendos que se encontravam no ....»
35º.
No dia ... do ano ..., o Sr. Capitão KK, Comandante de Companhia (127º Curso), depois de prestar juramento, declarou em auto de inquirição perante autoridade militar no exercício de funções o seguinte:
«… 13 Que em relação à Prova Zero, entre outros aspectos, atendeu ao seguinte:
a. O consumo de água pelos instruendos deve constituir uma das preocupações fundamentais, sendo no mínimo diário obrigatório o consumo de 5 (cinco) cantis de água, tendo nesta última Prova Zero garantindo este consumo sem reservas.
b. Que na qualidade de Comandante de Companhia deu instruções, ainda na ..., para que fosse considerado por todos os instrutores o atesto dos cantis dos instruendos, no mínimo pelas seguintes alturas:
a.Antes e depois do pequeno-almoço;
b.Antes e depois do almoço;
c. Antes do jantar.
14. Que no dia ........2016 não entendeu necessário aumentar o consumo de água por parte dos instruendos, até uma altura em que o número de instruendos a desZZr e a delirar (ex.: pediam moedas aos instrutores) estava a ser excessivo, em que foram introduzidos dois atestos de cantil após o jantar.»
36º
No dia ... do ano de ..., o Sr. Tenente OO, Comandante do Grupo de Graduados, depois de prestar juramento, declarou em auto de inquirição perante autoridade militar no exercício de funções o seguinte:
«… 8 - Que tem conhecimento do conteúdo do Guião da Prova Zero, assinado pelo Comandante do Regimento de Comandos, tendo sido contemplado na sua distribuição e que em relação ao seu conteúdo, como Comandante de Grupo, atendeu ao seguinte:
a. O consumo de água pelos instruendos deve constituir uma das preocupações fundamentais, sendo o mínimo diário obrigatório o consumo de 5 (cinco) cantis de água, tendo nesta última Prova Zero garantindo este consumo sem reservas e tendo o Grupo recebido instruções para o atesto dos cantis nas seguintes ocasiões:
(1) Em ........2016, cerca das 23H50, antes do embarque nas viaturas com destino ao campo de Tiro deAlcochete;
(2) Em ........2016, cerca das O6H30, antes da formatura da manhã;
(3) Em ...,...,2016, cerca das 12H30, antes do almoço;
(4) Em ........2016, cerca das 13H15, após o almoço;
(5) Em ........2016, cerca das 19H00, antes do jantar;
(6) Em ........2016, houve ainda outro atesto, não recordando com precisão se o atesto se verificou após o jantar ou antes de serem dispensados.
b. Que o Encarregado de Instrução, chegou-lhe a propor, pelo menos uma vez o aumento do consumo de água por parte dos instruendos, proposta esta que foi aceite e consumada no período entre as 10h30 e as 11h30 durante a Ginástica deAplicação Militar e por volta das 12h00, atendendo ao calor que se fazia sentir.»
37º.
No dia ... de ... de 2016 Capitão de Medicina EE, depois de prestar juramento, declarou em auto de inquirição perante autoridade militar no exercício de funções o seguinte:
«… Que tem conhecimento do conteúdo do Guião Prova Zero, assinado pelo Comandante do Regimento de Comandos, tendo dado contributo para a elaboração do mesmo e que em relação ao seu conteúdo, como médico, concorda com o seguinte:
a. O consumo de água pelos instruendos deve constituir uma das preocupações fundamentais do Diretor de Prova, sendo o mínimo diário obrigatória o consumo de 5 (cinco) cantis de água, com a ressalva desse ser mais adequado para os cursos que são ministrados no Semestre atendendo à temperatura e humidade do ar que normalmente se faz sentir durante o mês de ..., mês em que se realiza o Curso dos Comandos. Para o Curso ministrado em ..., este consumo de água merece ser adaptado às condições atmosféricas, em particular atendendo à temperatura e humidade do ar, que sucessivamente, em cada ano vem aumentando neste período;
b. No caso do 127º Curso de Comandos, a quantidade de água disponibilizada aos instruendos foi suficiente, atendendo a que em qualquer momento, quando um instruendo mostrava sinais de desidratação sendo retirado da instrução por qualquer graduado ou que por sua iniciativa solicitava apoio médico, as indicações para a Equipa Sanitária são para de imediato disponibilizar água, repouso à sombra, na procura da sua rápida recuperação ou evacuação para o Posto de Socorros quando tal se justificar.
c. Que entre outras entidades para o efeito, o seu parecer como médico, poderá levar o Diretor de Prova a decidir aumentar o consumo de água por parte dos instruendos, bem como implementar outras medidas adicionais de hidratação.»
38º.
As declarações das pessoas identificadas nos artigos precedentes foram prestadas de forma livre e espontânea perante a entidade militar em exercício de funções. E, tanto quanto foi transmitido ao arguido, correspondem ao que se passou na instrução do Curso 127º.».
Apreciando.
No que respeita ao artigo 32º da contestação, não consta aí qualquer facto cuja ponderação tivesse de ser feita pelo tribunal a quo, em termos de dever ingressar na matéria facto provada ou não provada.
No que respeita ao artigo 33º da contestação, o factualismo aí constante volta a estar ligado a declarações prestadas pelo arguido Recorrente, agora em processo de inquérito, remetendo-se, nesta sede, para o que atrás se decidiu a propósito, concluindo-se, assim, que tais declarações não podem ter qualquer consideração útil nos autos e, em consequência, os factos incluídos em tais declarações também não podem ter qualquer consideração útil nos autos. Acresce que o artigo da contestação em análise menciona que houve ordens verbais dadas pelo arguido, mas não especifica sequer que ordens foram essas, remetendo para as declarações prestadas em processo de inquérito.
No que respeita aos artigos 34º a 38º da contestação, o factualismo aí constante corresponde ao teor das declarações que as pessoas aí identificadas (Tenente Coronel LL, Capitão KK, Tenente OO, Capitão de Medicina SS) prestaram perante a autoridade militar, sendo que tais declarações foram prestadas após tais pessoas terem prestado juramento e ficaram exaradas em autos de inquirição.
Ora, como é evidente, os “factos” consubstanciados nas declarações que as mencionadas pessoas prestaram perante a autoridade militar não assumem relevância (ou essencialidade) para a boa decisão da causa (para a decisão de mérito), tendo como referência o thema probandum delineado pelo objecto do processo.
Tais factos inserem-se claramente na categoria dos factos que o tribunal a quo qualificou, e bem, como irrelevantes para a decisão da causa (estamos a falar do teor de declarações prestadas pelas mencionadas pessoas [que obviamente incluem factos] em sede averiguação militar, sendo certo que tais pessoas prestaram depoimento como testemunhas no julgamento dos presentes autos).
É lapidar a análise levada a cabo pelo tribunal a quo, na motivação da decisão de facto, sobre a relevância dos “factos” agora em análise (concordando-se com a posição do tribunal a quo):
“(…) É certo que a defesa do arguido AA pretende descredibilizar os depoimentos destas testemunhas com base, essencialmente, em “autos de inquirição de testemunha” referentes a depoimentos prestados no Comando das Forças Terrestres em processo de averiguações nos quais ficou escrito, no essencial, que o guião da prova zero distribuído continha a previsão de cinco cantis por dia, pretendendo até que se tenham tais autos de inquirição como tendo “força probatória plena (art.ºs 369º e 371º do Código Civil)”, como se lê na sua contestação.
Na verdade, se assim fosse teríamos uma justiça caseira que implicava a desnecessidade absoluta dos Tribunais… o princípio da imediação seria absolutamente postergado.
Ora, apesar de ser um princípio que dispensa grandes explicações, importa recordar o que o mesmo significa para não ser olvidado, recorrendo-se aqui ao Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 236/00, em texto integral em www.tribunalconstitucional,pt, por conter um resumo de diferentes definições: “O princípio da imediação traduz-se essencialmente no contacto pessoal entre o julgador e os diversos meios de prova. Recorde-se a formulação do princípio da imediação de Figueiredo Dias: «a relação de proximidade comunicante entre o tribunal e os participantes no processo, de modo tal que aquele possa obter uma percepção própria do material que haverá de ter como base da sua decisão». A prova válida para formar a convicção do juiz há-de ser produzida ou examinada em audiência (art.º 355º). A oralidade permite a instrução, discussão e julgamento se façam seguidamente, com o menor intervalo possível (princípio da concentração), realizando-se assim o maior contacto entre o julgador e as provas (G. Marques da Silva, «Curso de Processo Penal», 1994, p. 232). Como ensina o Sr. Prof. Domingues de Andrade, as provas serão apreciadas por quem assistiu à sua produção, sob a impressão viva colhida nesse momento e formada através de certos elementos ou coeficientes imponderáveis, mas altamente valiosos, que não podem conservar-se num relato escrito das mesmas provas («Noções Elementares de Processo Civil», I, 1956, pág. 264). O Sr. Dr. José António Barreiros salienta, para além dos princípios da verdade material e da oralidade, «outro princípio que tem particularmente a ver com o desenrolar da audiência e com o modo de formação da convicção do julgador: o da imediação também conhecida como da prova imediata». («O julgamento do novo Código de Processo Penal», Jornadas de Direito Processual Penal - O novo CPP, CEJ, 1991, pág. 277).”.
Na verdade, pretende a defesa do arguido AA que depoimentos escritos (em muitas partes usando até o mesmo texto, veja-se, a título de exemplo, os pontos 6 do auto de inquirição da testemunha CC a fls. 229 verso e do auto de inquirição da testemunha FF de fls. 1323) sejam eles próprios insusceptíveis de ser questionados ou, no limite, sejam suficientes para criar a dúvida no julgador.
Ora, as testemunhas mencionadas que foram confrontadas com os aludidos depoimentos negaram que tal tenham afirmado, ou seja, que tenham dito que no guião distribuído e que utilizaram estivessem previstos à partida os 5 cantis por dia para cada instruendo (apesar de lá estar escrito que o afirmaram e terem assinado o respectivo auto).
Da leitura de tais depoimentos extensos é espectável, e resulta até das regras da experiência comum, que o cidadão que prestou depoimento quando é convidado a assinar o respectivo auto ou não o leia ou leia rapidamente sem atenção minuciosa (precisamente porque confia… e neste caso era até um superior hierárquico militar que presidia, a testemunha QQ), além de que o pormenor em causa é tão mínimo que (não se tendo ainda ouvido falar da questão como depois sucedeu) numa leitura minimamente atenta seria pouco normal que fosse dado conta de que onde está escrito “5” devia estar escrito “3”, entre outros pormenores com texto corrido e adequado.
Com efeito, não ficou qualquer dúvida que as testemunhas em referência confrontadas com tais autos de inquirição não mentiram quando disseram que o que lá consta não foi o que disseram.
Ao contrário, porém, da testemunha RR, precisamente quem presidiu à inquirição das testemunhas LL, CC e FF e elaborou os respectivos autos com os quais foi confrontado, conforme afirmou, asseverando que tais depoimentos foram prestados de forma livre e que os autos de inquirição são fieis ao que os respectivos depoentes relataram, acrescentando até que foram lidos pelos mesmos. Mas claramente faltando à verdade.
Na verdade, além do que já se referiu extensamente supra, a menos que estas testemunhas (e repare-se que não é só uma) tivessem alguma dificuldade intelectual é que, sabendo o que tinham afirmado já em sede de um processo de averiguações no âmbito militar, iriam depois - seja no Proc. 89/16.0... ou seja nestes autos -, prestar declarações/depoimentos diversos num ponto tão especifico… todas estas testemunhas… (…)”.
Regressando ao que acima foi referido a propósito da valoração dos factos constantes das declarações escritas avulsamente juntas aos autos pelo arguido Recorrente, importa concluir que não podendo ter qualquer consideração útil nos autos os depoimentos prestados pelas mencionadas pessoas no Comando das Forças Terrestres, em processo de averiguações, igual ausência de consideração útil nos autos terão os factos incluídos em tais declarações.
Em suma, o recurso, nesta parte, é julgado improcedente.
C) Em terceiro lugar, o Recorrente alega que a sentença é nula, por violação do art. 379º, nº 1, al. b), do CPP, porquanto os factos provados consignados nas alíneas i) e j) não constavam da acusação / pronúncia.
De acordo com o disposto no art. 379º, nº 1, al. b), do CPP, são causas de nulidade da sentença: a condenação por factos diversos dos descritos na acusação ou na pronúncia, sem prévio cumprimento do disposto nos arts. 358º e 359º do CPP.
Contudo, no caso em apreço, é manifesto que não se verifica a nulidade apontada pelo Recorrente.
Os factos provados consignados nas alíneas i) e j) têm por base os factos alegados nos artigos 5, 6, 7 e 8 da acusação, i.e., tais factos constavam da acusação / pronúncia, com excepção do que veio a resultar provado, no entender do tribunal a quo, em sede de julgamento (com reflexo nos factos provados e não provados), relativamente à matéria da autoria da elaboração material do documento, ficando a constar dos factos provados que tal acto foi levado a cabo “por indivíduo não concretamente apurado” (e ficando a constar dos factos não provados que o documento foi elaborado pelo arguido BB), em função da prova produzida em julgamento e valorada pelo tribunal recorrido, sem que tal alteração factual implique, como é evidente (por não poder ser considerado ter havido condenação por facto diverso), qualquer violação do art. 379º, nº 1, al. b), do CPP.
Em suma, o recurso, nesta parte, é julgado improcedente.
D) Em quarto lugar, o Recorrente alega que a sentença é nula, por violação do art. 374º, nº 2, do CPP, porquanto o tribunal recorrido não fundamentou a decisão que considerou provados os factos constantes das alíneas i) e j)).
A falta de fundamentação invocada pelo Recorrente é concretizada no corpo da motivação, fazendo-se aí alusão à falta de indicação, na sentença recorrida, dos meios concretos de prova utilizados pelo tribunal a quo para ter considerado tais factos como provados.
Está em causa a elaboração do documento (Guião da Prova Zero do 127º Curso de Comandos) que foi junto ao Processo nº 89/16.0...
Sublinhe-se que a intenção com que actuou o Recorrente não consta das alíneas i) e j) dos factos provados (mas antes da alínea K), tendo por referência os artigos 11º e 12º da acusação/pronúncia), sendo deslocada, portanto, a referência do Recorrente, nesta sede, aos referidos artigos da acusação / pronúncia.
A imposição legal (art. 374º, nº 2, do CPP) da indicação e exame crítico das provas, directamente ligada ao dever de fundamentação dos actos decisórios imposto pela Constituição da República Portuguesa e pela lei ordinária, decorre da necessidade de potenciar a adesão dos destinatários e comunidade em geral ao teor da decisão criminal e de garantir a observância e respeito pelos princípios da legalidade, imparcialidade e independência, postergando a mera arbitrariedade em benefício do legítimo e fundado exercício da livre convicção, servindo de garante a um processo equitativo.
A citada previsão legal impõe ao dominus do processo que individualize as razões objectivas e a base racional que levou à convicção exprimida na factualidade provada e/ou não provada e bem assim os motivos que subjazem à valoração e credibilidade atribuída aos meios de prova disponíveis.
Como é bom de ver, o exame crítico só será suficiente quando exteriorize cabalmente o percurso lógico-dedutivo que presidiu à convicção firmada, não se confundindo com a simples enumeração dos meios probatórios ou sequer com a descrição – mais ou menos alargada – do seu conteúdo.
Mas, para tanto, o julgador não necessita de realizar exposições doutrinárias, citações jurisprudenciais ou sequer descrever (por súmula ou desenvolvidamente) o teor de cada uma das provas produzidas (i.e., a fundamentação decisória não tem de preencher uma extensão épica).
Basta que exprima com clareza e rigor as circunstâncias que determinaram a opção efectuada, tornando perceptível aos intervenientes processuais (destinatários directos) e aos cidadãos em geral (que sobre o julgado exercem um controlo indirecto) as razões da sua íntima convicção e as provas que a sustentam, seja por si só ou em conjugação com as regras de experiência e normalidade de acontecer, devendo neste caso explicitar-se o respectivo âmbito de actuação.
Como bem se compreende, essa tarefa comporta diferentes graus de complexidade, conforme as circunstâncias do caso, a amplitude e a unanimidade ou divergência da prova produzida.
Deste modo, haverá nulidade quando perante as circunstâncias do caso, a fundamentação da convicção do tribunal for insuficiente para efectuar uma reconstituição do iter que conduziu a considerar cada facto provado ou não provado, ou seja, para se perceber as razões que sustentam tal decisão. E não haverá nulidade quando a motivação explique o porquê da decisão e o processo lógico-formal que serviu de suporte ao respectivo conteúdo (cfr. Ac. RP, de 14/06/2023; relatora: Maria Deolinda Dionísio; e Ac. STJ, de 27/05/2009; relator: Pires da Graça; ambos em www.dgsi.pt).
Salienta-se, no entanto, a distinção, há muito sedimentada na doutrina e na jurisprudência, entre a falta de fundamentação e a insuficiência de fundamentação.
A falta de fundamentação da decisão de facto determina, sem mais, a nulidade da sentença (ou acórdão).
A insuficiência da motivação da decisão de facto representará uma deficiência que, não recaindo num qualquer erro notório na apreciação da prova, ou não assumindo uma gravidade tal que possa ser equiparável a uma autêntica falta de fundamentação (como seria o caso de a motivação da decisão de facto ser puramente genérica e abstracta, sem qualquer referência concreta aos meios de prova, nem produzindo sobre eles qualquer exame crítico concreto), só poderá, em princípio, ser atacada por via da impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto, nos termos do art. 412º, nºs 3, 4 e 6, do CPP.
De facto, a nulidade decorrente da não observância do preceituado no art. 374º do CPP só ocorre quando não existir o exame crítico das provas e não também quando forem incorrectas ou passíveis de censura as conclusões a que, através dele, o tribunal a quo chegou (cfr. Ac. RG, de 23/03/2015; relator: Fernando Monterroso; in www.dgsi.pt).
Revertendo ao caso dos autos, não podemos deixar de notar a dificuldade em divisar em que medida o Recorrente terá vislumbrado decorrer da decisão recorrida uma falta de fundamentação, desde logo ao nível – objecto da concreta invectiva do Recorrente – da indicação dos meios concretos de prova utilizados pelo tribunal a quo para ter considerado como provados os factos constantes das alíneas i) e j).
O Recorrente pode discordar da motivação do tribunal, dos meios de prova que foram valorizados, mas falta de fundamentação é que manifestamente não se verifica.
Tendo como ponto de partida, a necessidade, subjacente à investigação levada a cabo no Proc. nº 89/16.0..., de determinação das condições em que a Prova Zero do 127º Curso de Comandos se realizou e a relevância, nisso, do respectivo Guião (facto sublinhado pelo tribunal a quo na motivação, com expressa menção à existência de guiões de diversos cursos anteriores), razão pela qual aquele processo solicitou ao Recorrente (arguido AA, comandante do Regimento de Comandos) o envio do guião da prova do 127º Curso, tudo factos que não sofrem contestação (conforme é igualmente sublinhado pelo tribunal a quo), atinge-se o facto nuclear, no âmbito dos presentes autos, também ele isento de contestação (basta ler a motivação de recurso do Recorrente), de ter sido junto àquele processo um Guião como sendo o do 127º Curso (documento de fls. 972 a 985), sendo que tal documento foi enviado pelo Recorrente àqueles autos (alínea g) dos factos provados).
Segue-se, naturalmente, a questão factual da autoria da elaboração do documento (e do momento do envio do mesmo àqueles autos).
Ora, neste aspecto, o tribunal a quo procedeu a uma explicitação crítica, coerente, fundamentada e apreensível para qualquer destinatário da decisão, dos motivos pelos quais decidiu nos termos e no sentido em que decidiu (incluindo a menção aos concretos meios de prova valorizados), fazendo-o em dois segmentos da motivação:
- Como primeiro questão, o tribunal a quo analisou a questão da junção do Guião pelo Recorrente, concluindo, com recurso às regras da experiência e também aos depoimentos das testemunhas inquiridas, que não foi junto qualquer documento que não correspondesse às ordens do Recorrente. Portanto, este documento é produto das ordens do Recorrente e foi junto em decorrência da sua determinação. Salienta-se, neste âmbito, a clareza e coerência da explicitação da motivação do tribunal a quo, sendo patente a falta de razão do Recorrente.
- Como segunda questão, o tribunal a quo analisou a questão da elaboração material do Guião, concretamente, “qual a intervenção do arguido BB no episódio em causa”, concluindo, após uma explicitação clara e coerente da sua motivação, não ser possível afastar a dúvida quanto à exacta intervenção do arguido BB (tendo presente o princípio do in dubio pro reo). Salienta-se que o tribunal a quo não deixou de consignar que “quem actuou nos termos vertidos na pronúncia relativamente ao arguido BB foi alguém não concretamente identificado, nomeadamente daquela secção de formação” (e actuando às ordens do Recorrente, arguido AA, como já referido), sendo que a explicitação do universo de pessoas que podem ter procedido à elaboração do documento (constante da motivação), num esforço concretizador que decorrente da (falta de) prova valorada pelo tribunal recorrido, afasta, em nosso entender, a imputação de “mera conjetura conclusiva” feita pelo Recorrente.
Em suma, o recurso, nesta parte, é julgado improcedente.
3.3. Impugnação da matéria de facto.
Como terceira pretensão recursiva, o Recorrente apresenta impugnação da decisão sobre a matéria de facto (conclusões 1 a 13 do ponto em análise).
Os poderes de cognição deste Tribunal abrangem a matéria de facto e de direito, nos termos do artigo 428º do Código Processo Penal (CPP).
Como se sabe, a forma e a extensão com que a impugnação da matéria de facto pode ser efectuada em recurso assume duas modalidades possíveis: a chamada revista alargada (ou impugnação restrita da matéria de facto) e a impugnação ampla da matéria de facto.
Na primeira modalidade (revista alargada ou impugnação restrita), está em causa a arguição dos vícios decisórios previstos no art. 410º, nº 2, do CPP, fazendo-se o escrutínio da decisão recorrida sem extravasar o texto decisório em si mesmo, ou seja, os vícios decisórios (traduzidos em falha, erro, omissão ou contradição) somente podem ser verificados em face do teor da decisão, «por si só ou conjugada com as regras de experiência comum», posto que não é admissível a valoração de elementos externos à decisão (nomeadamente, a avaliação das provas produzidas em audiência de julgamento).
Neste caso, o recorrente não tem mais que invocar a existência dos mencionados vícios (se o recurso apenas tiver como objecto tais vícios, os mesmos têm de ser invocados, sob pena de ausência de objecto; se o recurso tiver como objecto outro fundamento, tal invocação nem sequer é essencial), impondo-se ao tribunal, por dever de ofício, deles conhecer (pois que são os vícios extremos, em absoluto não tolerados pela ordem jurídica), desde que os mesmos sejam patentes e resultem da simples leitura da decisão recorrida.
Na segunda modalidade (impugnação ampla), prevista no art. 412º, nºs 3, 4 e 6, do CPP, está em causa uma reapreciação da decisão recorrida não restringida ao texto da decisão, mas através das provas que esta também apreciou e, consequentemente, a formulação de um juízo crítico autónomo pelo tribunal de recurso sobre a factualidade que deve ser dada como provada e não provada.
Cabem aqui todos os casos de erro (não notório) na apreciação da prova de que o tribunal de recurso se aperceba na reanálise dos pontos de facto apreciados e permitidos pelo recurso em matéria de facto. Entram neste campo o error in judicando (erro de julgamento), no qual se inclui o erro na apreciação das declarações orais prestadas em audiência e devidamente documentadas e a não ponderação ou errada ponderação de prova documental, erros que, não sendo notórios, impõem uma diversa ponderação. Assim como o uso inadequado de presunções naturais, conhecimentos científicos, regras de experiência comum ou simples lógica.
Neste caso, o recorrente tem de obedecer, na motivação de recurso, a um conjunto de requisitos pormenorizadamente regulados no art. 412º, nºs 3 e 4, do CPP. Com efeito, o recorrente que pretenda impugnar a decisão proferida sobre matéria de facto deve obrigatoriamente especificar (desconsiderando aqui a questão da renovação da prova, que não se coloca no caso em apreciação): (i) os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados e (ii) as concretas provas que impõe decisão diversa da recorrida, devendo esta segunda especificação ser feita, no caso de prova gravada, por referência ao consignado na acta, com indicação concreta das passagens em que se funda a impugnação.
Em consonância, o art. 431º, al. b), do CPP estabelece que a decisão do tribunal de 1ª instância sobre matéria de facto pode ser modificada se a prova tiver sido impugnada nos termos do nº 3 do art. 412º.
O recorrente tem, assim, o dever de especificar os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados e as concretas provas que impõem decisão diversa. Tal ónus (de impugnação especificada) tem de ser observado para cada um dos factos impugnados, devendo o recorrente indicar, em relação a cada facto, as provas concretas que impõem decisão diversa e, bem assim, referir qual o sentido em que devia ter sido produzida a decisão.
Este modo de impugnação não permite nem visa a realização de um segundo julgamento sobre a matéria de facto, ou seja, não pressupõe uma reapreciação total do acervo dos elementos de prova produzidos que serviram de fundamento à decisão recorrida, mas antes constitui um mero remédio (jurídico) para obviar a eventuais erros ou incorreções da decisão recorrida na forma como apreciou a prova, isto é, trata-se de uma reapreciação autónoma sobre a razoabilidade da decisão do tribunal a quo quanto aos concretos pontos de facto que o recorrente especifique como incorretamente julgados.
Quer dizer, não obstante as mudanças que o sistema de recursos foi sofrendo nas sucessivas alterações legislativas (em cumprimento da garantia do duplo grau de jurisdição em sede de matéria de facto), o princípio estruturante do Código de Processo Penal permanece intocado: o verdadeiro julgamento é o da primeira instância e a apreciação da decisão sobre a matéria de facto pelo Tribunal da Relação é limitada (servindo a imposição de impugnação especificada como contrapartida da ampliação das possibilidades de impugnação das decisões proferidas em 1ª instância).
No cumprimento da imposição de impugnação especificada, a censura quanto ao modo de formação da convicção do tribunal não pode assentar, de forma simplista, no ataque da fase final da formação de tal convicção, isto é, na valoração da prova; tal censura terá de assentar na violação de qualquer dos passos para a formação de tal convicção, designadamente por não existirem os dados objetivos que se apontam na motivação ou por se terem violado os princípios para a aquisição desses dados objetivos ou ainda por não ter existido liberdade de formação da convicção. Doutra forma ocorreria uma inversão de posição das personagens do processo, mediante a substituição da convicção de quem tem de julgar pela convicção de quem espera a decisão (cfr. Acs. STJ, de 05/06/2008, proc. 06P3649, de 14-05-2009, proc. 1182/06.3PAALM.S1, de 29-10-2008, proc. 07P1016, e de 20-11-2008, proc. 08P3269; Ac. RC, de 24/02/2010, proc. 138/06.0GBSTR.C1, todos disponíveis em www.dgsi.pt; Cfr. Ac. TC nº 198/2004, de 24/03/2004, in DR, II S, de 01/06/2004; Cfr. Paulo Pinto Albuquerque, «Comentário do Código de Processo Penal», Vol. II, 2023, anotações ao art. 412º, pags. 676 e ss., e ao art. 428º, pags. 713 e ss.; cfr. João Pedro Baptista / Sérgio Maia Tavares Marques, “O recurso do arguido sobre a matéria de facto no processo penal português e o critério da imposição de decisão diversa da recorrida. Estudo à luz dos princípios in dúbio pro reo e da culpa provada, na Constituição e no Direito da União Europeia.”, in «Estudos em Homenagem ao Conselheiro Presidente Manuel da Costa Andrade», Volume I, 2023, pags. 1001 e ss.).
No recurso dos presentes autos, a impugnação da matéria de facto apenas inclui a segunda das formas acima referidas (impugnação ampla), impondo-se, assim, a respectiva apreciação, o que se fará de seguida.
Da impugnação ampla da matéria de facto.
Como terceira pretensão recursiva, o Recorrente impugna a decisão sobre a matéria de facto, invocando o erro de julgamento do tribunal a quo quanto às alíneas e), f), g), h), i), j), k), l), m) e n) dos factos provados (conclusões 1 a 13 do ponto em análise).
Como já referido, a sindicância da decisão de facto, no âmbito da impugnação ampla da matéria de facto, implica a reapreciação da decisão de facto pelas provas, não havendo uma mera sindicância da fundamentação da decisão recorrida (típica da impugnação restrita).
A sindicância de um juízo sobre a prova – ou seja, a sindicância de uma convicção alheia, do juiz de julgamento – só se concretiza reapreciando a mesma prova, pois só esta desempenha as funções de mediação entre o facto e o juiz (cfr. Ana Barata Brito, “Os poderes de cognição das Relações em matéria de facto em processo penal”, in www.tre.tribunais.org.pt).
Assim, a reapreciação da decisão de facto pelas provas envolve necessariamente uma nova apreciação das provas produzidas e a emissão de um novo juízo em matéria de facto (pedindo-se ao tribunal de recurso que sindique a convicção alheia, para perceber se, perante as provas produzidas, essa era a convicção probatória correcta e que se impunha existir, não constituindo óbice relevante para alcançar tal desiderato a circunstância de o tribunal de recurso não ter podido intervir no processo de produção de algumas das provas), embora rigorosamente restrito aos pontos questionados pelo recorrente.
Neste caso, como já referido, o recorrente tem de obedecer, na motivação de recurso, a um conjunto de requisitos pormenorizadamente regulados no art. 412º, nºs 3 e 4, do CPP.
Com efeito, o recorrente que pretenda impugnar a decisão proferida sobre matéria de facto deve obrigatoriamente especificar (desconsiderando aqui a questão da renovação da prova, que não se coloca no caso em apreciação): (i) os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados e (ii) as concretas provas que impõe decisão diversa da recorrida, devendo esta segunda especificação ser feita, no caso de prova gravada, por referência ao consignado na acta, com indicação concreta das passagens em que se funda a impugnação.
Tal ónus (de impugnação especificada) tem de ser observado para cada um dos factos impugnados, devendo o recorrente indicar, em relação a cada facto, as provas concretas que impõem decisão diversa e, bem assim, referir qual o sentido em que devia ter sido produzida a decisão.
Este ónus cumpre, assim, a dupla função de definição da extensão da dissidência do recorrente relativamente à decisão recorrida e de delimitação dos poderes cognitivos do tribunal de recurso.
Uma vez observados pelo recorrente os requisitos previstos no art. 412º, nºs 3 e 4, do CPP, o tribunal de recurso tem de averiguar se as provas indicadas pelo recorrente, por si só ou conjugadamente com as demais provas valoráveis, impõem uma decisão diversa da recorrida (concretamente, se tais provas impõem uma versão factual diversa daquela dada como provada na decisão recorrida).
A) Alínea e) dos factos provados.
O Recorrente impugna o facto provado constante da alínea e), alegando que a afirmação constante de tal alínea não configura um facto, nos termos previstos no art. 368º, nº 2, do CPP, tratando-se sim de um mero juízo conclusivo vago e genérico, devendo ser eliminada a alínea e) dos factos provados.
O Recorrente já havia imputado à acusação / pronúncia a inclusão de afirmações genéricas e conclusivas, que não configuram factos concretos e que inviabilizam o direito de defesa, fazendo-o na contestação e na própria alegação de recurso, tendo tal questão sido analisada e decidida, quer na sentença recorrida, quer no presente acórdão (no ponto dedicado à análise da nulidade de artigos da acusação / pronúncia, aí se concluindo não ser possível a este Tribunal, em sede de recurso da sentença, conhecer daquela questão).
Contudo, como acima também se assinalou, não está excluída a possibilidade de invocação de tal vício tendo por referência os factos dados como provados na sentença, cuja procedência poderá conduzir à improcedência da acusação / pronúncia (em virtude de serem tidos por não escritos tais factos).
Nessa medida, apesar de se tratar de uma questão de cariz essencialmente jurídico, nada obsta a que a mesma seja tratada sob o prisma da impugnação da matéria de facto, como o fez o Recorrente (aludindo à violação do disposto no art. 368º, nº 2, do CPP, norma inserida nas regras da elaboração a sentença e que determina a obrigatoriedade de enumeração e especificação dos factos alegados pela acusação e pela defesa e, bem assim, os que resultarem da discussão da causa, relevantes para as questões a decidir).
Não se discute serem inadmissíveis no processo criminal as meras imputações vagas, obscuras, imprecisas ou conclusivas, para efeitos de condenação, por violarem os direitos de defesa e contraditório do arguido, devendo considerar-se não escritas (cfr. Ac. RP, de 14/06/2023 (proc. nº 246/21.8GBAMT.P1; relatora: Maria Deolinda Dionísio; in www.dgsi.pt).
O quadro factual que recorta o crime pelo qual o agente há-de ser julgado e, eventualmente, condenado, terá que conter narração suficiente e adequada à fácil compreensão das concretas circunstâncias, actos, comportamentos e intenções que enquadram a imputação criminal, de molde que, por um lado, o arguido possa exercitar plenamente o seu direito de defesa e contraditório e, por outro, seja possível ao julgador dirimir integralmente e com segurança todas as questões que constituem o thema decidendum.
Todavia, tal não significa a obrigatoriedade de especificação do dia, hora, minuto e lugar dos acontecimentos. Veja-se que mesmo relativamente à acusação – peça processual que delimita o objecto do processo – o legislador impõe “a narração, ainda que sintética dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena” mas os elementos relativos à indicação do lugar, tempo e motivação da sua prática, o grau de participação do agente e outras circunstâncias relevantes para a determinação da sanção, ficam sujeitos à possibilidade de indicação, como decorre da previsão do art. 283º, n.º 3, do Cód. Proc. Penal.
No Ac. RE, de 06/10/2020 (proc. nº 90/16.4JASTB.E1; relator: Gomes de Sousa; in www.dgsi.pt) afirma-se não existir a absoluta necessidade de todos os factos imputados serem definidos ao pormenor, em todos e cada um dos seus aspectos naturalísticos, mas haverá que aceitar um mínimo de concretização normativamente relevante relativa ao tempo, local, modo e circunstâncias do facto, sendo certo que a exigência de concretização não pode ser tal que inviabilize a prova de factos e a perseguição penal de ilícitos que, pela sua natureza e práticas cada vez mais defensivas, inviabilizariam a punição.
Os factos naturalísticos expostos devem revelar um mínimo de significado normativo que permita o exercício do direito de defesa.
Ora, analisada a alínea e) dos factos provados, não vemos como se possa afirmar que estão aí consolidadas afirmações (factuais) conclusivas, vagas e genéricas.
Desde logo, a alínea e) dos factos provados tem de ser articulada com os demais factos dados como provados, nomeadamente, com os factos que constam das alíneas antecedentes, donde resulta que o objecto da investigação no âmbito do Proc. nº 89/16.0... estava relacionada com a designada Prova Zero do 127º Curso de Comandos, iniciada no dia .../.../2016, sendo que no âmbito da frequência de tal prova ocorreu a morte de dois instruendos.
Importava, assim, esclarecer, naqueles autos, as condições em que a Prova Zero do 127º Curso de Comandos se realizou, nomeadamente, “as condições em que os instruendos do 127º Curso de Comandos estiveram sujeitos nos dias .../.../2016 e .../.../2016”.
Trata-se de matéria factual que ficou a constar da alínea e) dos factos provados, sendo que a referência a “nesses autos” e a “necessário” está perfeitamente alinhada com a versão factual que constava da acusação / pronúncia, com a precisão de a necessidade de apuramento das condições estar relacionada com a investigação em curso naqueles autos e, por se tratar de investigação em curso, seria mais adequado não adjectivar a informação pretendida como fundamental, mas apenas como necessária.
Por outro lado, como é referido na motivação da sentença recorrida, não sofre contestação (e o Recorrente não põe isso em causa) a existência de guiões em diversos cursos anteriores, pelo que revelava pertinente e necessário obter o Guião da prova objecto de investigação naqueles autos.
Concluindo, nada de conclusivo, vago ou genérico existe na descrição factual da alínea e) dos factos provados.
Em suma, o recurso, nesta parte, é julgado improcedente.
B) Alíneas f) e g) dos factos provados.
O Recorrente impugna os factos provados constantes das alíneas f) e g), alegando, por um lado, que estas alíneas contêm afirmações conclusivas, sem suporte em factos concretos, e defendendo, por outro lado, que a prova existente nos autos impõe uma versão factual diversa da que foi considerada provada.
Vejamos.
B.1) No que respeita à imputação da existência de afirmações conclusivas nas mencionadas alíneas f) e g) dos factos provados, não vemos como se possa sustentar tal imputação do Recorrente.
Sejamos claros, para se afirmar que o Guião do Curso 126º foi o que vinculou os instrutores e os instruendos do 127º Curso (não tendo existido um guião específico, prévia e concretamente elaborado apenas para a realização da Prova Zero do 127º Curso) não se mostra de todo necessário dar como provado os “factos concretos” referidos pelo Recorrente, pela razão simples de que aquela afirmação factual vale por si mesma e constitui um facto com suficiente concretização. De resto, o Recorrente parece admitir, na motivação recursiva, que aquela afirmação constitui um facto, como efectivamente é.
Por outro lado, a afirmação (e a conclusão nesse sentido alcançada pelo tribunal a quo) de que o Guião do Curso 126º foi o que vinculou os instrutores e os instruendos do 127º Curso impõe (faz todo o sentido) a afirmação (e a conclusão nesse sentido alcançada pelo tribunal a quo) da inexistência de um guião específico, prévia e concretamente elaborado apenas para a realização da Prova Zero do 127º Curso.
Concluindo, nada de conclusivo ou sem sentido existe na descrição factual das alíneas f) e g) dos factos provados.
B.2) No que respeita à afirmação do Recorrente de que a prova existente nos autos impõe uma versão factual diversa da que foi considerada provada, está em causa a defesa pelo Recorrente da existência de um Guião para o Curso 127º e que esse guião é o que o Recorrente fez chegar ao Proc. nº 89/16.0..., em .../.../2016 (o que consta do documento de fls. 972 a 985 dos autos), não tendo existido qualquer falsificação.
Vejamos, então, se as provas indicadas pelo Recorrente (depoimentos das testemunhas Capitão CC, Tenente Coronel LL e MM, que, no fundo, constituem provas que o tribunal a quo igualmente usou na formação da sua convicção), por si só ou conjugadamente com as demais provas valoráveis, impõem uma decisão diversa da recorrida (concretamente, se tais provas impõem uma versão factual diversa daquela dada como provada na decisão recorrida).
A resposta, em nosso entender, não pode deixar de ser negativa.
Como já referido, por força do disposto no art. 412º, nº 3, do CPP, não é uma qualquer divergência que pode levar o tribunal ad quem a decidir pela alteração do julgado em sede de matéria de facto.
As provas que o recorrente invoque e a apreciação que sobre as mesmas faça recair, em confronto com a valoração que o tribunal a quo efectuou, devem revelar que os factos foram incorrectamente julgados e que se impunha decisão diversa da recorrida em sede do elenco dos factos provados (e não provados).
Ou seja, não basta estar demonstrada a possibilidade de existir uma solução em termos de matéria de facto alternativa à fixada pelo tribunal a quo. Na verdade, são frequentes os julgamentos onde estão em confronto duas, ou mais, versões dos factos (arguido/assistente ou arguido/Ministério Público ou mesmo arguido/arguido), qualquer delas sustentada, em abstracto, em prova produzida, seja com base em declarações de arguido, seja com base em declarações de assistente, seja com fundamento em prova testemunhal, seja alicerçada em outros elementos probatórios.
Por isso, haver prova produzida em sentido contrário, ou diverso, ao acolhido e considerado relevante pelo tribunal a quo não só é vulgar como é insuficiente para, só por si, alterar a decisão em sede de matéria de facto.
É necessário que o recorrente demonstre que a prova produzida no julgamento (ou melhor, a prova existente nos autos susceptível de ser valorada) só poderia ter conduzido à solução por si pugnada em sede de elenco de matéria de facto provada (e não provada) e não à consignada pelo tribunal a quo.
E na análise da prova que apresenta na sua impugnação da matéria de facto (alargada) tem o recorrente de argumentar fazendo uso do mesmo raciocínio lógico e exame crítico que se impõe ao tribunal na fundamentação das suas decisões, com respeito pelos princípios da imediação e da livre apreciação da prova, conforme já foi atrás analisado.
Este formalismo recursivo, como já referido, vai ao encontro da ideia de que o reexame da matéria de facto não se destina a realizar um segundo julgamento pelo Tribunal da Relação, mas tão-somente a corrigir erros de julgamento em que possa ter incorrido a 1ª Instância.
Ora, analisada a prova existente nos autos, indicada pelo Recorrente (depoimentos testemunhais, com transcrição parcial de tais depoimentos), no âmbito da questão probatória por este colocada perante este tribunal de recurso (qual foi o Guião utilizado na Prova Zero do 127º Curso de Comandos), concatenada com a apreciação da prova levada a cabo pelo tribunal a quo, nos termos vertidos na fundamentação, sendo que a prova é apreciada pelo tribunal segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador (art. 127º do CPP), conclui-se pela inexistência de qualquer erro de julgamento do tribunal a quo (incorrecta valoração da prova e/ou fixação factual sem sustentáculo probatório).
Vejamos.
Em matéria de recurso da decisão final, a «peça chave» para aquilatar, em primeira linha, da viabilidade de qualquer sindicância é a fundamentação da decisão sobre a matéria de facto.
Isto também é assim mesmo que o recurso tenha por objecto a reapreciação da prova gravada, pois a fundamentação é, em regra, o «sismógrafo» do bom ou mau julgamento da matéria de facto.
Contudo, uma sentença bem motivada, na parte que aqui interessa (da motivação da matéria de facto), apenas explica adequada e suficientemente a razão do convencimento do juiz, não garantindo, por si só, que o juiz se convenceu bem (mas, uma sentença bem motivada indicia, em geral, a inexistência de incorrecção no juízo probatório realizado pelo tribunal).
É este controlo – o de averiguar se o juiz se convenceu bem – que o recurso da matéria de facto viabiliza, competindo ao tribunal de recurso – de acordo com o pedido do recorrente – detectar e reparar (se existir) o erro de facto, não apenas o notório, o evidente ou grosseiro.
Ora, perante versões contraditórias dos factos (de um lado, a afirmação de que foi o Guião do Curso 126º que vinculou os instrutores e os instruendos do 127º Curso, não tendo existido um guião específico, prévia e concretamente elaborado para a realização da Prova Zero do 127º Curso, e, de outro lado, a afirmação da existência de um Guião para o Curso 127º e que esse guião é o que o Recorrente fez chegar ao Proc. nº 89/16.0..., em .../.../2016, que é o que consta do documento de fls. 972 a 985 dos autos), o tribunal a quo fez uma opção probatória que consistiu, essencialmente, em valorizar positivamente determinada prova (os depoimentos das testemunhas EE, KK, LL, MM, NN, OO, PP e EE que, no entender do tribunal a quo, mereceram credibilidade) em detrimento de outras provas existentes nos autos (maxime, partes dos depoimentos de algumas destas testemunhas, sendo certo que, em nosso entender, o teor das transcrições dos depoimentos vertidas pelo Recorrente na motivação de recurso até vão, em grande medida, no sentido da confirmação da tese que fez vencimento factual na sentença recorrida e consequente infirmação da versão factual defendida pelo Recorrente).
Sublinhe-se, o tribunal a quo explicitou devidamente as razões de tal opção (afirmando que as testemunhas foram unânimes em confirmar que o guião distribuído e que esteve na base da prova zero do 127º Curso foi o guião que havia sido utilizado para o 126º Curso e afirmando que os referidos depoimentos foram conjugados com a análise crítica dos guiões mencionados), sendo certo que tal explicitação tem respaldo na prova existente nos autos.
Quer dizer, a alegação recursiva do Recorrente, quando confrontada com a prova existente nos autos (que este tribunal analisou), não impõe uma versão factual diversa da que foi dada como provada na sentença recorrida.
Pelo contrário, a exuberância probatória presente nos autos impõe que se mantenha a versão factual dada como provada na sentença recorrida.
Cumpre igualmente salientar a forma proficiente como o tribunal a quo rebateu a pretensão da defesa do arguido recorrente AA de descredibilizar os depoimentos das mencionadas testemunhas (afinal, as testemunhas cujos depoimentos o Recorrente invoca em benefício da sua tese recursiva) com recurso aos “autos de inquirição de testemunha” referentes a depoimentos prestados no Comando das Forças Terrestres, em processo de averiguações, sendo particularmente acertada a crítica à pretensão de ver tais autos de inquirição como tendo “força probatória plena (arts. 369º e 371º do Código Civil) e, como tal, insusceptíveis de questionamento probatório (quanto ao respectivo conteúdo).
Salienta-se ainda a análise crítica levada a cabo pelo tribunal a quo quanto ao depoimento da testemunha RR e quanto à pretensão do Recorrente de serem levadas em consideração as declarações por si “prestadas nos autos” (matéria acima já analisada, aquando da apreciação da questão da «nulidade da sentença recorrida», remetendo-se para o que, a propósito, aí foi referido).
Por fim, o facto constante da alínea g) dos factos provados está, em grande medida, admitido pelo Recorrente (cfr. as conclusões de recurso e a redacção aí proposta pelo Recorrente para o referido facto), apenas havendo divergência quanto á questão acima analisada (qual foi o Guião utilizado na Prova Zero do 127º Curso).
Em suma, improcede, nesta parte, a pretensão recursiva.
C) Alínea h) dos factos provados.
O Recorrente impugna o facto provado constante da alínea h), alegando que tal facto deveria conter a reprodução do que consta dos dois Guiões (do 126º Curso e do 127º Curso) sobre o consumo de água e demais circunstâncias directamente relacionadas com esses consumos, estando nos autos os documentos em causa.
O Recorrente observou os requisitos previstos no art. 412º, nº s 3 e 4, do CPP, indicando como prova que impõe decisão diversa da recorrida a prova documental junta aos autos, i.e., o teor dos Guiões (do 126º Curso e do 127º Curso).
Está em causa o teor do ponto 2, subponto 2, alínea f) de cada um dos guiões (e não outros factos).
Ora, apesar de não ser reproduzido integralmente tal teor, o facto provado em análise não desvirtua o sentido do mesmo, no que respeita ao consumo de água pelos instruendos, sendo clara a diferença entre 3 cantis de água por dia (Guião do Curso 126º) e 5 cantis de água por dia [mínimo diário obrigatório] (Guião que foi apresentado no Proc. nº 89/16.0... como sendo o da Prova Zero do 127º Curso de Comandos).
É manifesta a improcedência da imputação, levada a cabo pelo Recorrente, de adulteração da realidade do facto provado em análise.
Em suma, improcede, nesta parte, a pretensão recursiva.
D) Alíneas i) e j) dos factos provados.
O Recorrente impugna os factos provados constantes das alíneas i) e j), alegando, no que releva em sede de impugnação da matéria de facto (i.e., abstraindo da questão da nulidade também invocada pelo Recorrente e que acima já foi analisada e decidida), que não existe prova produzida nos autos que justifique que sejam considerados provados os factos em análise.
É manifesta a improcedência da pretensão recursiva em análise.
Como já foi referido aquando da análise da questão da «nulidade da sentença recorrida», está em causa a elaboração do documento (Guião da Prova Zero do 127º Curso de Comandos) que foi junto ao Processo nº 89/16.0...
Ora, tendo como ponto de partida, a necessidade, subjacente à investigação levada a cabo no Proc. nº 89/16.0..., de determinação das condições em que a Prova Zero do 127º Curso de Comandos se realizou e a relevância, nisso, do respectivo Guião (facto sublinhado pelo tribunal a quo na motivação, com expressa menção à existência de guiões de diversos cursos anteriores), razão pela qual aquele processo solicitou ao Recorrente (arguido AA, comandante do Regimento de Comandos) o envio do guião da prova do 127º Curso, tudo factos que não sofrem contestação (conforme é igualmente sublinhado pelo tribunal a quo), atinge-se o facto nuclear, no âmbito dos presentes autos, também ele isento de contestação (basta ler a motivação de recurso do Recorrente), de ter sido junto àquele processo um Guião como sendo o do 127º Curso (documento de fls. 972 a 985), sendo que tal documento foi enviado pelo Recorrente àqueles autos (alínea g) dos factos provados).
Segue-se, naturalmente, a questão factual da autoria da elaboração do documento (e do momento do envio do mesmo àqueles autos).
Ora, neste aspecto, o tribunal a quo procedeu a uma explicitação crítica, coerente, fundamentada e apreensível para qualquer destinatário da decisão, dos motivos pelos quais decidiu nos termos e no sentido em que decidiu (incluindo a menção aos concretos meios de prova valorizados), fazendo-o em dois segmentos da motivação:
- Como primeiro questão, o tribunal a quo analisou a questão da junção do Guião pelo Recorrente, concluindo, com recurso às regras da experiência e também aos depoimentos das testemunhas inquiridas, que não foi junto qualquer documento que não correspondesse às ordens do Recorrente. Portanto, este documento é produto das ordens do Recorrente e foi junto em decorrência da sua determinação. Salienta-se, neste âmbito, a clareza e coerência da explicitação da motivação do tribunal a quo, sendo patente a falta de razão do Recorrente.
- Como segunda questão, o tribunal a quo analisou a questão da elaboração material do Guião, concretamente, “qual a intervenção do arguido BB no episódio em causa”, concluindo, após uma explicitação clara e coerente da sua motivação, não ser possível afastar a dúvida quanto à exacta intervenção do arguido BB (tendo presente o princípio do in dubio pro reo). Salienta-se que o tribunal a quo não deixou de consignar que “quem actuou nos termos vertidos na pronúncia relativamente ao arguido BB foi alguém não concretamente identificado, nomeadamente daquela secção de formação” (e actuando às ordens do Recorrente, arguido AA, como já referido), sendo que a explicitação do universo de pessoas que podem ter procedido à elaboração do documento (constante da motivação), num esforço concretizador que decorrente da (falta de) prova valorada pelo tribunal recorrido, afasta, em nosso entender, a imputação de “mera conjetura conclusiva” feita pelo Recorrente.
Em suma, improcede, nesta parte, a pretensão recursiva.
E) Alínea k) dos factos provados.
O Recorrente impugna o facto provado constante da alínea k), alegando que tal facto contém um juízo conclusivo, sem substracto factual, na parte em que imputou responsabilidade ao arguido recorrente na morte dos instruendos, por não especificar, com factos concretos, em que se concretizou o «empurrar» da responsabilidade de tal morte para os instrutores, e por não haver prova de que o arguido, alguma vez, por qualquer meio, tenha afirmado, em concreto, que os instrutores pelas suas acções ou omissões na instrução causaram a morte dos instruendos.
Está em causa, no facto em análise, a demonstração da intenção com que actuou o arguido recorrente AA.
Não se questiona que a discussão sobre a existência de uma concreta intenção para a actuação do agente do crime coloca uma questão-de-facto a decidir por meio da prova.
Sucede, porém, que os factos psicológicos como o conhecimento, a vontade, a intenção, a consciência (ou, em cada caso, a sua falta) não são apreensíveis pelos sentidos (i.e., o plano interno do agente permanece inacessível ao tribunal, a menos que exista confissão) e, nessa medida, tais factos pertencem ao domínio privilegiado de actuação da prova indirecta ou indiciária.
Quer dizer, a concreta intenção do agente poderá ser dada como provada pelo tribunal se os indícios disponíveis, apreciados de acordo com as máximas da experiência, sustentarem probatoriamente essa hipótese (provam-se os indícios e, a partir deles, infere-se o facto a provar).
No caso em apreciação, as circunstâncias factuais, os indícios, que permitem sustentar a intenção plasmada no facto provado em análise reconduzem-se, por um lado, à necessidade subjacente à investigação levada a cabo no Proc. nº 89/16.0..., de determinação das condições em que a Prova Zero do 127º Curso de Comandos se realizou e a relevância, nessa matéria, do respectivo Guião, razão pela qual aquele processo solicitou ao Recorrente (arguido AA, comandante do Regimento de Comandos) o envio do guião da prova do 127º Curso e, por outro lado, ao facto de ter sido junto àquele processo um Guião como sendo o do 127º Curso (documento de fls. 972 a 985), sendo que tal documento foi enviado pelo Recorrente àqueles autos, constatando-se que, na realidade, foi o Guião do Curso 126º que vinculou os instrutores e os instruendos do 127º Curso, não tendo existido um guião específico, prévia e concretamente elaborado para a realização da Prova Zero do 127º Curso (concretamente, aquele que o Recorrente enviou ao Proc. nº 89/16.0...).
Neste enquadramento, que foi o seguido pelo tribunal a quo, com sustentação na prova existente nos autos, conforme já foi atrás analisado e decidido, a questão da demonstração da intenção com que actuou o arguido recorrente AA não assume dificuldade: porque razão o Recorrente junto ao Processo nº 89/16.0..., no âmbito da investigação aí levada a cabo, um Guião com “a cirúrgica alteração do número de cantis neste guião em análise nos autos relativamente aos diversos anteriores”, sendo que, no âmbito de tal investigação, era necessário averiguar o que constava do guião que foi a base do 127º Curso, tanto mais que “como bem explicou a testemunha LL, é substancialmente diferente partir de uma base de 3 cantis do que de uma base de 5 cantis por dia ?
A resposta a esta questão é óbvia: o arguido recorrente AA pretendia fazer crer à autoridade judiciária que da sua parte nenhuma responsabilidade do que sucedeu aos instruendos do 127º Curso lhe poderia ser assacada, pois que o consumo mínimo de água previsto era de 5 cantis de água por dia e não de 3 cantis de água por dia e, assim, empurrar a responsabilidade daquelas mortes para os instrutores da Prova Zero do 127º Curso de Comandos.
Só assim se compreende a junção de um documento (Guião) à investigação em curso no Proc. nº 89/16.0... sem correspondência com a realidade
Está, assim, perfeitamente justificada a motivação do tribunal a quo, quanto ao facto em análise:
“Os factos referentes ao elemento subjectivo, no que tange ao arguido AA, resultaram provados também com base nas regras da experiência comum, pois que pertencendo ao foro íntimo do sujeito, o seu apuramento ter-se-á de apreender do contexto da acção desenvolvida”.
Em suma, improcede, nesta parte, a pretensão recursiva.
F) Alíneas l) e m) dos factos provados.
O Recorrente impugna os factos provados constantes das alíneas l) e m), alegando que não foram dados como provados factos concretos que sustentem a afirmação de que o arguido actuou «visando deturpar as conclusões do inquérito» (e, em consequência, que o arguido soubesse que a sua conduta era proibida e punida por lei), não ter sido produzida qualquer prova na audiência de julgamento, e por a fundamentação apresentada - «regras da experiência comum» - não ter subjacente a indicação das premissas factuais que justifiquem a referida afirmação, de forma inequívoca e consistente.
Está em causa, no facto em análise, a demonstração do elemento subjectivo da infracção penal cuja prática é imputada ao Recorrente AA.
Ora, as considerações atrás expostas aquando da análise da impugnação da alínea k) dos factos provados têm aqui plena aplicação.
Não se questiona que a discussão sobre a existência de uma concreta intenção para a actuação do agente do crime coloca uma questão-de-facto a decidir por meio da prova.
Sucede, porém, que os factos psicológicos como o conhecimento, a vontade, a intenção, a consciência (ou, em cada caso, a sua falta) não são apreensíveis pelos sentidos (i.e., o plano interno do agente permanece inacessível ao tribunal, a menos que exista confissão) e, nessa medida, tais factos pertencem ao domínio privilegiado de actuação da prova indirecta ou indiciária.
Quer dizer, a concreta intenção do agente poderá ser dada como provada pelo tribunal se os indícios disponíveis, apreciados de acordo com as máximas da experiência, sustentarem probatoriamente essa hipótese (provam-se os indícios e, a partir deles, infere-se o facto a provar).
No caso em apreciação, as circunstâncias factuais, os indícios, que permitem sustentar a intenção plasmada no facto provado em análise reconduzem-se, por um lado, à necessidade subjacente à investigação levada a cabo no Proc. nº 89/16.0..., de determinação das condições em que a Prova Zero do 127º Curso de Comandos se realizou e a relevância, nessa matéria, do respectivo Guião, razão pela qual aquele processo solicitou ao Recorrente (arguido AA, comandante do Regimento de Comandos) o envio do guião da prova do 127º Curso e, por outro lado, ao facto de ter sido junto àquele processo um Guião como sendo o do 127º Curso (documento de fls. 972 a 985), sendo que tal documento foi enviado pelo Recorrente àqueles autos, constatando-se que, na realidade, foi o Guião do Curso 126º que vinculou os instrutores e os instruendos do 127º Curso, não tendo existido um guião específico, prévia e concretamente elaborado para a realização da Prova Zero do 127º Curso (concretamente, aquele que o Recorrente enviou ao Proc. nº 89/16.0...).
Neste enquadramento, que foi o seguido pelo tribunal a quo, com sustentação na prova existente nos autos, conforme já foi atrás analisado e decidido, a questão da demonstração da intenção com que actuou o arguido recorrente AA não assume dificuldade: porque razão o Recorrente junto ao Processo nº 89/16.0..., no âmbito da investigação aí levada a cabo, um Guião com “a cirúrgica alteração do número de cantis neste guião em análise nos autos relativamente aos diversos anteriores”, sendo que, no âmbito de tal investigação, era necessário averiguar o que constava do guião que foi a base do 127º Curso, tanto mais que “como bem explicou a testemunha LL, é substancialmente diferente partir de uma base de 3 cantis do que de uma base de 5 cantis por dia ?
A resposta a esta questão é óbvia: o arguido recorrente AA “visava deturpar nesses termos as conclusões do inquérito em curso no Processo nº 89/16.o...”.
Só assim se compreende a junção de um documento (Guião) à investigação em curso no Proc. nº 89/16.0... sem correspondência com a realidade.
Está, assim, perfeitamente justificada a motivação do tribunal a quo, quanto ao facto em análise:
“Os factos referentes ao elemento subjectivo, no que tange ao arguido AA, resultaram provados também com base nas regras da experiência comum, pois que pertencendo ao foro íntimo do sujeito, o seu apuramento ter-se-á de apreender do contexto da acção desenvolvida”.
O Recorrente revisita, na impugnação aos factos constantes das alíneas l) e m) dos factos provados, a questão da elaboração do documento (Guião da Prova Zero do 127º Curso de Comandos) que foi junto ao Processo nº 89/16.0..., remetendo para o que havia alegado na impugnação dos factos provados i) e j).
Ora, as considerações atrás expostas aquando da análise da impugnação das alíneas i) e j) dos factos provados têm aqui plena aplicação.
Tendo como ponto de partida, a necessidade, subjacente à investigação levada a cabo no Proc. nº 89/16.0..., de determinação das condições em que a Prova Zero do 127º Curso de Comandos se realizou e a relevância, nisso, do respectivo Guião (facto sublinhado pelo tribunal a quo na motivação, com expressa menção à existência de guiões de diversos cursos anteriores), razão pela qual aquele processo solicitou ao Recorrente (arguido AA, comandante do Regimento de Comandos) o envio do guião da prova do 127º Curso, tudo factos que não sofrem contestação (conforme é igualmente sublinhado pelo tribunal a quo), atinge-se o facto nuclear, no âmbito dos presentes autos, também ele isento de contestação (basta ler a motivação de recurso do Recorrente), de ter sido junto àquele processo um Guião como sendo o do 127º Curso (documento de fls. 972 a 985), sendo que tal documento foi enviado pelo Recorrente àqueles autos (alínea g) dos factos provados).
Segue-se, naturalmente, a questão factual da autoria da elaboração do documento (e do momento do envio do mesmo àqueles autos).
Ora, neste aspecto, o tribunal a quo procedeu a uma explicitação crítica, coerente, fundamentada e apreensível para qualquer destinatário da decisão, dos motivos pelos quais decidiu nos termos e no sentido em que decidiu (incluindo a menção aos concretos meios de prova valorizados), fazendo-o em dois segmentos da motivação:
- Como primeiro questão, o tribunal a quo analisou a questão da junção do Guião pelo Recorrente, concluindo, com recurso às regras da experiência e também aos depoimentos das testemunhas inquiridas, que não foi junto qualquer documento que não correspondesse às ordens do Recorrente. Portanto, este documento é produto das ordens do Recorrente e foi junto em decorrência da sua determinação. Salienta-se, neste âmbito, a clareza e coerência da explicitação da motivação do tribunal a quo, sendo patente a falta de razão do Recorrente.
- Como segunda questão, o tribunal a quo analisou a questão da elaboração material do Guião, concretamente, “qual a intervenção do arguido BB no episódio em causa”, concluindo, após uma explicitação clara e coerente da sua motivação, não ser possível afastar a dúvida quanto à exacta intervenção do arguido BB (tendo presente o princípio do in dubio pro reo). Salienta-se que o tribunal a quo não deixou de consignar que “quem actuou nos termos vertidos na pronúncia relativamente ao arguido BB foi alguém não concretamente identificado, nomeadamente daquela secção de formação” (e actuando às ordens do Recorrente, arguido AA, como já referido), sendo que a explicitação do universo de pessoas que podem ter procedido à elaboração do documento (constante da motivação), num esforço concretizador que decorrente da (falta de) prova valorada pelo tribunal recorrido, afasta, em nosso entender, a imputação de “mera conjetura conclusiva” feita pelo Recorrente.
Em suma, improcede, nesta parte, a pretensão recursiva.
G) Alínea n) dos factos provados.
O Recorrente impugna o facto provado constante da alínea n), alegando que tal facto deveria conter o que consta da prova documental junta aos autos, não impugnada, concretamente, o que consta dos documentos juntos com o requerimento apresentado nos autos em .../.../2023 (a sua ficha biográfica emitida pelo ..., que inclui resumo da sua avaliação individual, e o seu curriculum vitae), sendo matéria relevante para apurar a sua situação pessoal e profissional.
O Recorrente observou os requisitos previstos no art. 412º, nº s 3 e 4, do CPP, indicando como prova que impõe decisão diversa da recorrida a prova documental junta aos autos, atrás referida.
É patente a necessidade, invocada pelo Recorrente, de serem apuradas as suas condições pessoais e profissionais, as quais constam da prova documental que invocou.
De resto, na motivação da decisão de facto, o tribunal a quo fez consignar o seguinte:
“Os factos vertidos na alínea n) dos factos assentes referentes ao arguido AA provaram-se com base na análise crítica do resumo de Avaliação Individual de fls. 2180 e do respectivo Curriculum Vitae de fls. 2181.”.
Assim, mostra-se evidente o erro de julgamento do tribunal a quo, porquanto deveria plasmar no facto provado em análise uma versão factual mais completa, em consonância com a motivação levada a cabo.
Em conformidade, impõe-se a modificação da decisão do tribunal a quo sobre matéria de facto, imposta pela procedência da pretensão recursiva, nos termos analisados, determinando-se que a alínea n) dos factos provados passe a ter a seguinte redacção:
“n) O arguido AA é natural de ..., tem … anos, é … e tem ….
Frequentou o Colégio Militar de (…).
Funções e Missões que desempenhou:
(…)
Educação:
(…)
Condecorações e citações:
(…)
3.4. Impugnação da matéria de direito.
Na sua motivação recursiva, o Recorrente impugna a decisão de direito, defendendo que não praticou o crime de falsificação pelo qual foi acusado e condenado (conclusões 1 a 12 do ponto em análise).
A impugnação jurídica levada a cabo pelo Recorrente pode ser dividida em duas partes.
De um lado, o Recorrente defende que o Guião que enviou ao Processo nº 89/16.0NJLSB (no qual foram vertidas as suas instruções dadas ao Director da Prova antes do início da Prova Zero do 127º Curso) não é um documento falso (e muito menos serve para afastar as suas responsabilidades pela morte dos instruendos).
No que se refere a esta questão (abstraindo a referência aos depoimentos de várias testemunhas, prestados em audiência de julgamento e em processo de averiguação interno, pois aqui estamos no âmbito da impugnação da matéria de facto), resulta evidente que a sua procedência estaria dependente da pretendida procedência do recurso quanto à impugnação ampla da matéria de facto (com inerente alteração da matéria de facto provada e não provada).
Ora, a pretendida modificação da decisão do tribunal de 1ª instância sobre matéria de facto (que levaria este tribunal a enquadrar juridicamente os (novos) factos resultantes daquela alteração factual) foi julgada improcedente (conforme acima analisado), com excepção dos factos respeitantes às condições pessoais e profissionais do Recorrente (matéria que não releva para a questão da sua condenação ou absolvição).
Tanto basta, como é evidente, para que seja igualmente improcedente a pretensão de absolvição do Recorrente.
Acresce que, em nosso entender, a matéria factual que foi dada como provada (e não provada) na sentença recorrida conduz necessariamente à condenação do Recorrente pela prática de um crime de falsificação de documento.
A decisão condenatória firmada na sentença recorrida tem plena justificação nos factos dados como provados (e não provados), integrados pela fundamentação de facto exarada pelo tribunal a quo, e é uma conclusão lógica da fundamentação jurídica igualmente exarada pelo tribunal a quo, com a qual se concorda integralmente.
Em suma, improcede, nesta parte, a pretensão recursiva.
Por outro lado, o Recorrente defende que viola o direito do arguido, previsto no artigo 32º da CRP, a interpretação do art. 343º, nºs 1 e 2 do CPP, segundo a qual o arguido não pode, em audiência de julgamento, apresentar declarações escritas, por si subscritas, nas quais apresente a defesa e a sua versão dos acontecimentos, sendo obrigado a prestar tais declarações verbalmente na presença do Juiz para que tenham efeito útil.
A questão da possibilidade de valoração das declarações escritas prestadas pelo Recorrente (plasmadas em documento, subscrito e assinado pelo Recorrente e /ou pelo seu mandatário, avulsamente junto aos autos na fase de inquérito) já foi objecto de análise aquando da apreciação da «nulidade da sentença recorrida».
Recordando o que aí foi afirmado:
Não está em causa o reconhecimento ao arguido, enquanto sujeito processual, do direito (talvez o mais importante dos direitos) de decidir com autonomia sobre o seu próprio comportamento declarativo, escolhendo livremente se pretende declarar e intervir em abono da sua defesa (liberdade positiva de declaração) ou remeter-se ao silêncio (liberdade negativa de declaração), consoante o que entenda mais conveniente à sua estratégia de defesa.
As declarações de arguido, na sua vertente de meio de prova, têm a sua admissibilidade inscrita, desde logo, no art. 125º do CPP (e com regulação específica em várias normas do CPP, com especial enfase para os arts. 343º a 345º, que regulam as declarações de arguido em fase de julgamento, mas sem esquecer a possibilidade de valoração de declarações prestadas, pela forma legal, em fase anterior ao julgamento), podendo ser valoradas à luz do princípio da livre apreciação da prova previsto no art. 127º do CPP.
O que está em causa é a existência de uma vinculação formal, uma tipicidade de forma, nas declarações do arguido. O meio de prova “declarações de arguido” tem de ser veiculado através da forma legalmente prevista, não podendo ser veiculado, por exemplo, através de um documento escrito (subscrito e assinado por si e/ou pelo seu mandatário) avulsamente junto aos autos, sob pena de haver fraude à lei (de recordar que o art. 355º do CPP salvaguarda três princípios que subjazem ao julgamento: contraditório, oralidade e imediação).
Em suma, as declarações escritas juntas pelo arguido Recorrente não podem ter qualquer consideração útil nos autos.
Perante o que fica exposto, não se vislumbra que tenha existido qualquer violação, na sentença recorrida, de direitos do arguido previstos no art. 32º da CRP.
Em suma, improcede, nesta parte, a pretensão recursiva.
III. DECISÃO
Pelos fundamentos expostos, acordam os juízes da 9ª Secção (Criminal) do Tribunal da Relação de Lisboa, na apreciação do recurso interposto pelo arguido AA, no seguinte:
A) Julgam parcialmente procedente o recurso quanto à impugnação da matéria de facto, nos termos decididos no ponto 3.3. do presente acórdão (com modificação da decisão do tribunal recorrido sobre matéria de facto, i.e., alteração da alínea n) dos factos provados);
B) No mais, julgam improcedente o recurso, confirmando-se a sentença recorrida.
Sem custas (em face da inexistência de decaimento total – art. 513º, nº 1, a contrario, do CPP).
Notifique.
Certifica-se que foi dado cumprimento ao disposto no art. 94º, nº 2, do CPP.

Lisboa, 6 de Novembro de 2025
Nuno Matos
Maria de Fátima R. Marques Bessa
Maria do Carmo Lourenço
Simone Abrantes de Almeida Pereira (Presidente da Secção)
(acórdão assinado electronicamente)