Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
11237/2005-6
Relator: PEREIRA RODRIGUES
Descritores: ARRENDAMENTO
RESIDÊNCIAS ALTERNADAS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 12/15/2005
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Sumário: I. O arrendatário não deixa de beneficiar da legislação proteccionista da habitação, no caso de ter duas residências permanentes alternadas em diferentes localidades desde que, em função do caso concreto, se revele que ambas servem paritariamente - isto é, sem que entre elas se verifique qualquer hierarquização no sentido de uma poder ser havida por principal e a outra por secundária - para a instalação da vida doméstica, com carácter habitual e duradouro.
II. Todavia, para poderem ser havidas como residências permanentes alternadas torna-se necessário que em relação a cada uma delas se verifique o condicionalismo previsto para o conceito de residência permanente: estabilidade, habitualidade, continuidade e efectividade de estada em determinados locais do centro da vida familiar.
Decisão Texto Integral: ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA:

I. OBJECTO DO RECURSO E QUESTÕES A SOLUCIONAR.

No Tribunal Cível da Comarca de Lisboa, A e mulher intentaram a presente acção de despejo, sob a forma de processo sumário, contra B, C e D, pedindo que seja declarada a resolução do contrato de arrendamento, o despejo imediato do locado e entrega aos autores devoluto de pessoas e bens, no estado em que o receberam quando lhes foi arrendado e, por último, a condenação dos réus no pagamento de uma indemnização por estragos e deteriorações anormais no locado nunca inferior a Euros 5.000.

Alegam, para o efeito e em síntese, que os réus já não habitam no locado, a sua casa de família situa-se em Oliveira de Azeméis, onde fazem habitualmente e com permanência a sua vida, o andar em apreço tem vindo a ser sublocado a terceiros.

Os réus contestaram, pugnando pela improcedência da acção.

Prosseguiram os autos os seus trâmites, sendo proferido despacho saneador e elaborada a especificação e a base instrutória e, por fim, procedeu-se a audiência de discussão e julgamento, sendo depois proferida sentença, julgando a acção procedente e condenando os RR no pedido.

Inconformados com a decisão, vieram os RR interpor recurso para este Tribunal da Relação, apresentando doutas alegações, com as seguintes CONCLUSÕES:

1. Os RR fazem normalmente e com permanência, a sua vida no local arrendado, em Lisboa;

2. Os RR são proprietários de um prédio sito em Oliveira de Azeméis;

3. Deslocam-se a tal local com alguma frequência, nunca por mais de 10 dias;

4. Nada impede que os RR. tenham duas moradas e vivam alternadamente nessas moradas.

5. As mesmas distanciam uma da outra mais de 250 Km;

6. É em Lisboa que vivem os filhos dos RR, que lhe dão o apoio quer moral, quer económico, que os RR., septuagenários, precisam;

7. O facto dos RR distribuírem o centro ou sede da sua vida familiar por duas residências, em localidades distintas, não deixam de ter a sua residência permanente no arrendado - Ac. Relação de Évora, de 8-3-74, in BMJ n.º 235, pág. 366;

8. Os RR estão inscritos no Centro de Saúde de Oliveira de Azeméis, como utentes esporádicos;

9. Se utilizam o Centro de Saúde Oliveira de Azeméis esporadicamente, é porque utilizam habitualmente o Centro de Saúde de Lisboa;

10. A inscrição em Oliveira de Azeméis, tem, carácter preventivo;

11. O médico de família dos RR, é o Sr. Dr. Carlos Sousa, do Centro de Saúde dos Olivais, em Lisboa;

12. A resolução do contrato de aluguer do telefone fixo no locado, deveu-se ao facto dos RR, terem telemóveis;

13. O telefone fixo de Oliveira de Azeméis, tem por base um contrato celebrado em 1973;

14. A rede móvel dessa zona tem má cobertura;

15. O domicílio fiscal de Oliveira de Azeméis, foi atribuído oficiosamente, uma vez que os RR têm aí o referido imóvel;

16. O domicílio para efeitos de recepção da pensão de reforma é a morada de um dos seus filhos;

17. Encontram-se recenseados na Freguesia do Alto Pina em Lisboa;

18. Os RR têm mais de 65 anos;

19. Encontram-se na situação de reformados;

20. Celebraram o contrato de arrendamento com os AA em 24 de Junho de 1965, ou seja, há quarenta anos.

21. Nenhuma das situações previstas no n.º 1, do art. 64°, do Regime do Arrendamento Urbano, se subsume ao caso em apreço, pelo que não é lícito ao senhorio, resolver o contrato de arrendamento.

22. De acordo com o disposto nas alíneas a) e b), do n.º 1, do art. 107º, do mesmo diploma legal, uma vez que os RR têm ambos mais de 65 anos de idade e mantêm-se no local arrendado há mais de 30 anos, não é possível verem os RR resolvido o referido contrato de arrendamento com base em falta de fundamento legal.

Termos em que devem as presentes alegações serem admitidas e revogada a douta sentença do tribunal a quo, fazendo-se assim acostumada Justiça.

A A. contra-alegou, pugnando pela manutenção da decisão recorrida.

Não houve contra-alegação.

Admitido o recurso na forma, com o efeito e no regime de subida devidos, subiram os autos a este Tribunal da Relação, sendo que nada obstando ao conhecimento da apelação, cumpre decidir.

A questão a dirimir é a de saber se da prova produzida é de concluir pela falta de residência permanente dos Apelantes no local arrendado e, consequentemente, se existe fundamento para o despejo.

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II. FUNDAMENTOS DE FACTO.

Consideram-se provados os seguintes factos:

(…)

5. Os Réus, pelo menos desde o início de 2002, fazem normalmente e com permanência a sua vida num imóvel sito em Oliveira de Azeméis;

6. Aí tomam as suas refeições, pernoitam e recebem os seus amigos;

7. Os Réus estão inscritos no Centro de Saúde de Oliveira de Azeméis, como utentes esporádicos;

8. Os Réus cancelaram o telefone fixo (com o n.° 218492181) que estava instalado no andar aludido em 1), tendo outro telefone instalado (com o n.° 256692175), no imóvel referido em 5);

9. O Réu tem o domicílio fiscal em Oliveira de Azeméis, com o código de repartição 0132;

10. O Réu indicou à "Caixa Nacional de Pensões", para efeitos de contactos relacionados com a sua pensão de reforma, que aufere através daquela "Caixa", a Rua (…), n.° 7, Lisboa.

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III. FUNDAMENTOS DE DIREITO.

Como se deixou enunciado, a questão a dirimir é a de saber se da prova produzida é de concluir pela falta de residência permanente dos Apelantes no local arrendado e, consequentemente, se existe fundamento para o despejo.

Um dos fundamentos para o senhorio poder resolver o contrato de arrendamento para a habitação é, segundo o art. 64º/1/i) do RAU, o facto de o arrendatário não ter a sua residência permanente no local arrendado.

Por residência permanente do arrendatário tem de entender-se o local de habitação onde ele, de forma habitual, permanente e duradoura tem organizada a sua vida familiar e economia doméstica; onde se alimenta, descansa, dorme e convive; onde tem os seus móveis, vestuário e instrumentos de trabalho e de lazer; onde recebe a correspondência, os amigos, as visitas e quem o solicita; de onde parte para as suas ocupações e onde regressa findas aquelas; onde consta morar junto das diversas Instituições e Organismos - do fisco, do recenseamento, da saúde, da política e da polícia - e onde podem ser encontrados como moradores os que integram a sua família Vd. Aragão Seia, in “Arrendamento Urbano”, 3ª ed. pg. 344 e Pais de Sousa, in “Anotações ao Regime do Arrendamento Urbano”, 6ª ed. pg. 217..

Mas para que determinada habitação possa ser havida por residência do arrendatário não se impõe que este ali permaneça de modo constante e ininterrupto, sendo apenas necessário que o arrendatário tenha no local arrendado centrada a sua vida familiar e social - e não noutro sítio - e esse local seja o ponto de encontro com a família e com o meio onde habitualmente se move e alberga.

O arrendatário, por motivo de força maior ou por virtude de necessidades profissionais, cívicas, públicas ou militares, pode ser compelido a estar períodos, mais ou menos dilatados, ausente da sua habitual residência, sem que tal comporte o significado de não continuar a residir no local arrendado (art. 64º/ 2/ a) e b)), não tendo, em tal condicionalismo o senhorio direito à resolução do contrato.

Em qualquer circunstância, “se permanecerem no prédio o cônjuge ou parentes em linha recta do arrendatário ou outros familiares dele, desde que, neste último caso, com ele convivessem há mais de um ano” (art. 64º/ 2/ c)), não pode o senhorio invocar direito à resolução do contrato.

Acresce que, tal como se prevê no art. 82º, n.º 1 do CC, a pessoa pode residir alternadamente em diversos lugares, tendo-se por domiciliada em qualquer deles.

Daí que tem sido entendido pela doutrina e jurisprudência que o arrendatário não deixa de beneficiar da legislação proteccionista da habitação, no caso de ter duas residências permanentes alternadas em diferentes localidades desde que, em função do caso concreto, se revele que ambas servem paritariamente - isto é, sem que entre elas se verifique qualquer hierarquização no sentido de uma poder ser havida por principal e a outra por secundária - para a instalação da vida doméstica, com carácter habitual e duradouro. Todavia, para poderem ser havidas como residências permanentes alternadas torna-se necessário que em relação a cada uma delas se verifique o condicionalismo previsto para o conceito de residência permanente: estabilidade, habitualidade, continuidade e efectividade de estada em determinados locais do centro da vida familiar.

Como diz Antunes Varela, "essencial para que possa falar-se em residências alternadas, de acordo com o espírito da lei, é que a pessoa tenha nos vários lugares verdadeira habitação, casa montada ou instalada (e não simples quarto de pernoita ou gabinete de trabalho) e que a situação seja estável, goze de relativa permanência, e não haja simples morada ocasional, variável de ano para ano, ou de mês para mês ...". Excluindo de residência alternada, como residência permanente, o caso "da residência conjectural, com a simples expectativa de retorno à antiga residência"; "o da residência para fins manifestamente secundários ou esporádicos que, apesar da sua relativa estabilidade ou regularidade, não afectem a continuação da residência permanente noutro local" A. Varela, RLJ 123-159..

Também Galvão Telles defende, em idêntico sentido, que as residências alternadas supõem que cada uma delas permanece como habitual centro doméstico, onde a pessoa habita estavelmente, embora não exclusivamente. Assim, “o indivíduo possui mais de uma morada duradoura, por exemplo uma em certa cidade do norte e outra em certa cidade do sul, porque reparte por essas cidades a sua actividade ...". E acrescenta que “sendo as residências alternadas lugares onde se vive interpoladamente, mas em cada uma delas com permanência ou habitualidade, em razão das exigências da vida, — compreende-se que, se na base de alguma dessas residências ou mesmo de ambas (supondo tratar-se de duas) estiverem vínculo ou vínculos de arrendamento, não possa o senhorio ou cada um dos senhorios despejar o interessado pelo facto de este ter outra residência. Semelhante facto não implica falta de residência permanente, justificativa de despejo, porque por definição as residências possuem ambas esse cunho, ambas se revestindo do atributo da estabilidade. A adoptar-se entendimento diverso, e suposto se tratasse de duas casas arrendadas, de ambas poderia o inquilino ser despejado, não gozando sequer de protecção para um dos seus lares” G. Telles, parecer na CJ, 1989, Vol. II, pg. 33..

No sentido apadrinhado pela doutrina se tem igualmente pronunciado a jurisprudência, designadamente do Supremo Tribunal de Justiça Vd. designadamente Ac. De 10.10.2002, in WWW.dgsi.pt.

Saliente-se ainda que em acção de despejo com fundamento na falta de residência permanente do arrendatário, ao senhorio cabe apenas o ónus de alegar e provar que aquele deixou de ter residência permanente no local arrendado, que é o facto constitutivo do direito invocado. Enquanto que ao arrendatário cabe-lhe o ónus de alegar e provar os factos impeditivos do direito alegado, por exemplo, que no local arrendado permanecem familiares dependentes economicamente do arrendatário Vd. Aragão Seia, ob. cit. pg. 357..

Ora, no caso vertente resultou provado, na parte que interessa, que os Apelantes, pelo menos desde o início de 2002, fazem normalmente e com permanência a sua vida num imóvel sito em Oliveira de Azeméis, aí tomando as suas refeições, pernoitando e recebendo os seus amigos, estando inscritos no Centro de Saúde de Oliveira de Azeméis, como utentes esporádicos, tendo o Apelante o domicílio fiscal no mesmo Lugar de Oliveira de Azeméis, com o código de repartição 0132.

Acresce que os mesmos Apelantes cancelaram o telefone fixo (com o n.° 218492181) que estava instalado no andar locado e têm outro telefone instalado (com o n.° 256692175) no imóvel de Oliveira de Azeméis.

Além disso o Apelante indicou à "Caixa Nacional de Pensões", para efeitos de contactos relacionados com a sua pensão de reforma, que aufere através daquela "Caixa", a Rua (…) n.° 7, Lisboa.

Deste factualismo só se pode concluir que a partir do início de 2002, os Apelantes passaram a ter a sua residência permanente no imóvel sito Oliveira de Azeméis.

Alegam, porém, os Apelantes, por um lado, que fazem normalmente e com permanência, a sua vida no local arrendado, em Lisboa, sendo em Lisboa que vivem os seus filhos, que lhe dão o apoio quer moral, quer económico, que os Apelantes, septuagenários, precisam; o médico de família dos Apelantes é o Sr. Dr. (…), do Centro de Saúde dos Olivais, que utilizam habitualmente; encontram-se recenseados na Freguesia do Alto Pina em Lisboa; a resolução do contrato de aluguer do telefone fixo no locado, deveu-se ao facto dos RR terem telemóveis e que o domicílio para efeitos de recepção da pensão de reforma é a morada de um dos seus filhos.

Alegam, por outro lado, os Apelantes que são proprietários de um prédio sito em Oliveira de Azeméis, onde se deslocam com alguma frequência, nunca por mais de 10 dias; estão inscritos no Centro de Saúde de Oliveira de Azeméis, como utentes esporádicos, tendo a inscrição em Oliveira de Azeméis carácter preventivo; o domicílio fiscal de Oliveira de Azeméis, foi atribuído oficiosamente, uma vez que os Apelantes têm aí o referido imóvel; o telefone fixo de Oliveira de Azeméis, tem por base um contrato celebrado em 1973; a rede móvel dessa zona tem má cobertura.

Alegam, por último, que nada impede que os Apelantes tenham duas moradas e vivam alternadamente nessas moradas e que o facto de distribuírem o centro ou sede da sua vida familiar por duas residências, em localidades distintas, não deixam de ter a sua residência permanente no arrendado.

Sucede, todavia, que o factualismo alegado pelos Apelantes na parte em que não coincide com o dado por assente pelo tribunal recorrido não está provado, nem decorre de elementos de prova juntos autos e, por isso, não pode ser tomado em consideração.

Como se sabe, a decisão sobre a matéria de facto, por princípio, é inalterável pelo Tribunal da Relação, salvo nos casos excepcionais, previstos no art. 712º do CPC, de constarem do processo todos os elementos de prova, que serviram de base às respostas, ou de ter ocorrido gravação dos depoimentos prestados e ter sido impugnada, nos termos do artigo 690º-A, a decisão com base neles proferida ou de os elementos fornecidos pelo processo imporem uma resposta insusceptível de ser destruída por quaisquer outros meios de prova, ou ainda de o recorrente apresentar documento novo superveniente, que, por si só, seja suficiente para destruir a prova em que a resposta assentou.

No caso vertente, tendo embora ocorrido gravação dos depoimentos prestados, não foi impugnada a decisão sobre a matéria de facto, nem se verificam quaisquer outros requisitos que facultem a alteração daquela decisão.

Como acima se deixou exposto, e como os Apelantes até invocam, nada impediria que estes tivessem duas moradas e vivessem alternadamente em localidades distintas, sem que, consequentemente, deixassem de ter a sua residência permanente no arrendado. Só que no caso nenhuma prova foi feita de que a partir de início de 2002 continuassem a residir também no locado. Bem pelo contrário os factos apontam no sentido de que tal não se tem verificado.

De resto, sempre teria que resultar provado que em relação a cada uma das residências se verificava o condicionalismo previsto para o conceito de residência permanente: estabilidade, habitualidade, continuidade e efectividade de estada nessas residências enquanto centro da vida familiar, circunstâncias que carecem de um qualquer suporte justificativo ligado geralmente a razões de natureza profissional do agregado familiar ou a outras exigências da vida, o que parece no caso não se verificar por os Apelantes serem reformados, segundo dizem.

Daí que se conclua que da prova produzida é de concluir pela falta de residência permanente dos Apelantes no local arrendado desde início de 2002, e que, consequentemente, se existe fundamento para o despejo.

Improcedem, por isso, as conclusões do recurso, sendo de manter a decisão recorrida.

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IV. DECISÃO:

Em conformidade com os fundamentos expostos, nega-se provimento à apelação e confirma-se a decisão recorrida.

Custas nas instâncias pelos Apelante.

Lisboa, 15 de Dezembro de 2005.


FERNANDO PEREIRA RODRIGUES

FERNANDA ISABEL PEREIRA

MARIA MANUELA GOMES



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(1).-Vd. Aragão Seia, in “Arrendamento Urbano”, 3ª ed. pg. 344 e Pais de Sousa, in “Anotações ao Regime do Arrendamento Urbano”, 6ª ed. pg. 217.

(2).-A. Varela, RLJ 123-159.

(3).-G. Telles, parecer na CJ, 1989, Vol. II, pg. 33.

(4)Vd. designadamente Ac. De 10.10.2002, in WWW.dgsi.pt

(5).-Vd. Aragão Seia, ob. cit. pg. 357.