Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
15398/16.0T8LSB.L1-6
Relator: ANA PAULA A. A. CARVALHO
Descritores: ESCRITURA DE COMPRA E VENDA
PRESUNÇÕES JUDICIAIS
FACTOS INSTRUMENTAIS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/21/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I –  Sendo a escritura pública de compra e venda outorgada após o trânsito em julgado da sentença que declarou a nulidade da anterior aquisição a favor da ré transmitente, provando-se que os representantes legais das rés são as mesmas pessoas físicas, é de presumir que a ré compradora tinha perfeito conhecimento de que o prédio não pertencia à vendedora.
II - Os factos instrumentais que resultem da instrução da causa só devem ser considerados pelo tribunal, nos termos previstos no artigo 5º nº 2 alínea a) do C.P.C., quando estejam correlacionados ou interligados com os factos principais ou essenciais.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 6ª Seção do Tribunal da Relação de Lisboa:

RELATÓRIO

O Estado Português intentou acção declarativa com processo comum contra as rés VILANORTE – CONSTRUÇÕES, LDA. e AVTS – SOCIEDADE DE CONSTRUÇÕES, LDA. pedindo que:

a) Se declare a nulidade e a ineficácia do contrato de compra e venda celebrado pelas Rés, por escritura pública lavrada no 24.º Cartório Notarial de Lisboa, sito na Avenida da República, nº 15, 1.º andar, em Lisboa, perante o notário Licenciado Jorge Artur de Oliveira Lopes, em 06 de Setembro de 2006;
 
b) Se ordene o cancelamento do registo de aquisição de 1/10 do imóvel descrito na 5.ª Conservatória de Registo de Lisboa, na ficha n.º 747/2001/0221, da freguesia de Benfica, a favor da Ré AVTS – Sociedade de Construções, Lda., levado a efeito pela inscrição AP. 28 de 2006/09/07.

Para tanto, alega, em síntese, que:
- no dia 30.01.2001, foi celebrado um contrato de compra e venda entre o Estado e a R. Vilanorte, tendo por objecto uma parcela de terreno com a área de 4.277 m2, a destacar do prédio descrito na 5.ª CRP de Lisboa sob o n.º 1904 e na 6.ª CRP de Lisboa sob o n.º 176, parcela de terreno essa que se encontra hoje descrita na 5.ª CRP de Lisboa sob o n.º 2747;
- por sentença transitada em julgado em 13.02.2006, foi o referido contrato declarado nulo e ordenado o cancelamento do registo de aquisição a favor daquela Ré;
- no dia 06.09.2006, foi celebrado um contrato de compra e venda entre as ora RR., pelo qual a R. Vilanorte vendeu à Ré AVTS 1/10 avos do prédio descrito na CRP sob o n.º 2747;
- a R. AVTS tinha perfeito conhecimento que a R. Vilanorte não era legítima proprietária do bem transaccionado.
Conclui que o contrato de compra e venda celebrado em 06.09.2006 é nulo, por consubstanciar uma venda de bens alheios, já que teve por objecto um prédio propriedade do Estado.
As rés contestaram, separadamente, propugnando pela sua absolvição do pedido, porquanto e em suma:
- a acção de nulidade do contrato de compra e venda de 30.01.2001 não vincula a R. AVTS, que nela não foi parte, e uma vez que o registo provisório dessa acção caducou ope legis em 15.07.2005, pelo decurso do prazo de 3 anos, sem que tivesse sido renovado;
- nem na data do contrato de compra e venda celebrado entre as rés (06.09.2006), nem na data do registo de aquisição a favor da Ré AVTS, existia qualquer facto a si oponível, que invalidasse o acto de aquisição;
- o A. registou a propriedade do prédio descrito na CRP sob n.º 1904 por meio de justificação administrativa, à qual recorreu abusivamente, pelo que o A. não é proprietário desse prédio, sendo certo que o mero registo não é constitutivo de direitos;
- a presente acção foi intentada passados mais de 3 anos sobre o registo de aquisição onerosa a favor da R. AVTS;
- os legais representantes das rés, que intervieram no contrato de compra e venda de 06.09.2006, não sabiam da data do trânsito em julgado da sentença proferida na acção referida, sendo que, nessa data, a propriedade do terreno estava registada em nome da R. Vilanorte, pelo que se presumia que o direito existia como lhe pertencendo;
- a postura do Estado relativamente ao contrato que celebrou com a 1.ª R. revela má-fé, na modalidade de venire contra factum proprium, e constitui abuso de direito, já que o Estado pretende prevalecer-se de supostas ilegalidades a que o próprio deu azo.
O autor respondeu por escrito, concluindo como na petição inicial.
Foi dispensada a audiência prévia, tendo-se proferido despacho saneador (no qual se julgou improcedente a excepção dilatória da incompetência material do tribunal), identificou-se o objecto do processo e enunciaram-se, concretamente, os temas da prova, com reclamação por parte das rés, parcialmente atendida (fls. 305 a 308).
Procedeu-se à realização da audiência final, com observância do formalismo legal, e foi elaborada a sentença que julgou a acção procedente, com o seguinte dispositivo:
«. a) declaro a nulidade e a ineficácia do contrato de compra e venda celebrado pelas Rés, por escritura pública lavrada no dia 06.09.2006, perante o notário Licenciado Jorge Artur de Oliveira Lopes, a fls. 125 a 126v, do Livro n.º 23-A;
b) ordeno o cancelamento do registo de aquisição de 1/10 do prédio urbano descrito na 5.ª Conservatória de Registo de Lisboa, sob o n.º 2747, a favor da Ré AVTS – Sociedade de Construções, Lda., levado a efeito pela inscrição AP. 28 de 2006/09/07.
Custas pelas RR.»
*
Não se conformando, a ré Avts – Soc. de Construções, Lda. apresentou recurso de apelação, em que pugna pela revogação da sentença.
A apelante formula as seguintes conclusões aperfeiçoadas das alegações de recurso:

« A. DAS NULIDADES DA SENTENÇA

1ª Nos presentes autos, o Autor  pretende estender , à  Recorrente, os efeitos da sentença do processo 9/2002 - acção de declaração de nulidade de aquisição de imóvel , que correu entre o Autor e a co-Ré Vilanorte.
2ª A partir dessa sentença, o Autor pretende declarar nula a escritura pública de aquisição de 06.09.2006, celebrada entre a co-Ré Vilanorte e a Recorrente, quanto a 1/10 do mesmo imóvel.
3ª Com relevância para a boa decisão da causa, foi invocada, pela Recorrente, a inexistência do registo da acção declarativa 9/2002, por caducidade do registo provisório que ocorreu em 15.07.2005 – art.ºs 8º a 12º da respectiva cont., vd. ib. art.º 31º da réplica e recl. do desp. saneador.
4ª Perante factos plenamente provados nos docs. 1 (certidão), docs 3 e 9, (despachos da conservadora), da contest., o tribunal a quo limita-se a dar como provado que foi anotada a caducidade do registo, omitindo qualquer referência, quer à provisoriedade do registo da acção que caducou, enquanto tal, e determinou a falta de registo da acção, quer à data em que ocorreu a caducidade.
5ª A sentença recorrida deixa ainda de conhecer da questão da ausência de registo da sentença acção 9/2002, nas datas, da aquisição pela Recorrente e do respectivo registo (06.09.2006 e 07.09.2006).
6ª Mais, invocou a Recorrente, que a sentença do processo nº 9/2002, nunca foi registada quanto ao 1/10 adquirido pela recorrente, facto, também plenamente provado, a partir do doc. 1, p.8  e do, doc. 9, p.3 despacho da contest. da Recorrente.
7ª Ficou por conhecer a questão da inoponibilidade da sentença do processo 9/2002, à Recorrente, por, inexistência do registo da acção (derivada da caducidade do registo provisório), não registo da sentença, nem antes, nem depois da aquisição da Recorrente, não ter sido  parte nessa acção, (facto invocado no art.º 28º da contestação da Recorrente e plenamente provado por certidão - doc. 3 da p.i.).
8ª Omitiu ainda o tribunal a questão da falta de qualquer título de propriedade a favor do Autor, no que respeita ao objecto da escritura de 06.09.2006- matéria alegada e impugnada na contestação (art.ºs 7º e ss, 20º e 21º)
9ª Deixou o tribunal a quo de julgar, as questões do abuso de direito e da má fé, a título subsidiário, por o Autor ter invocado, como fundamentos do proc. 9/2002, factos falsos e que se se tivessem verificado, seria o Autor o causador dos vícios do negócio[1] e estar em incumprimento do contrato-promessa (confr. alegação dos artºs. 49º e ss. da contestação).
10ª As omissões da sentença, supra, determinam a sua nulidade, nos termos do art.º 615º, 1, al. d)- 1ª parte, do CPC, violando também os artos 5º e  608º, 2, do CPC e 333º, 1, do CC.
11ª Nos presentes autos, apenas está em causa a determinação do direito de propriedade de 1/10 do terreno e não da sua totalidade, pelo que não  cumpre ao tribunal conhecer do restante, como o fez, constituindo nulidade nos termos do artº 615º, 1, als. d) e e), do CPC.

B - Do Objecto Do Processo
12ª O objecto do processo, conforme já reclamado, não é decidir, se o imóvel, era, ou não, propriedade alheia, mas sim, determinar se o Autor pode ser reconhecido como proprietário com base na sentença do processo 9/2002, quanto à parte de 1/10 adquirida pela Recorrente em 6.9.2006, «destruindo» esta  aquisição.
13ª A sentença recorrida, erradamente, dá como assente a vexata quaestio, ou seja, o invocado direito de propriedade do Autor sobre a parte de 1/10 adquirida pela Recorrente – quando foi matéria impugnada (artºs 7º e ss, 20º e 21º da sua contestação), e reclamada a propósito dos temas de prova, logo é incorrecta a sua inclusão como pressuposto do tema de prova 1.
14ª A decisão recorrida, ao dar como assente e provado o direito de propriedade do Autor, quanto ao 1/10 adquirido pela Recorrente, está a estender a eficácia do caso julgado da sentença do processo 9/2002 à Recorrente, violando o direito de defesa da Recorrente (previsto no art. 3º,1, do CPC e 20º, 1, da Const. e os art.ºs 621º e 622º do CPC, a contrario), que não foi parte dessa acção, nem interveio na discussão processual.
15ª Deste modo, deveria a questão do direito de propriedade sobre 1/10 ser apreciada pelo tribunal, antes de se lançar na averiguação da data em que ocorreu o conhecimento do trânsito em julgado pela Recorrente – temas de prova 1 e 2.
16ª Como supra se referiu, é inoponível essa sentença à Recorrente, quanto aos fundamentos da acção, pois não foi parte, e quanto à parte decisória, por não existir registo da acção, nem da sentença, quanto à parte adquirida pela recorrente. (vide, certidão histórica e despacho da Conservadora in doc. 9, p. 3, de 31.1.2007, ref. Aps. 14,15,16 e 17, de 7.1.2007, transcrito supra, alegação 38, al.u)).
17ª Inexistindo direito de propriedade sobre 1/10, do Autor, oponível à Recorrente, o tema 1 de prova tem de ser afastado, pois baseia-se num pressuposto jurídico inexistente, tal como já se havia reclamado aquando da respectiva fixação.
18ª Deste modo, a matéria dos 1º e 2º temas de prova, referente ao conhecimento do trânsito em julgado da sentença 9/2002, encerra, em si, uma contradição, quanto à Recorrente, porquanto não existe, nem trânsito em julgado, nem caso julgado, quanto a si.
19ª Não havendo, nem trânsito julgado, nem caso julgado, decorrente do processo 9/2002, quanto à Recorrente, os temas de prova 1 e 2 têm de ser afastados, pois baseiam-se nesse pressuposto jurídico, logo, não poderiam dar-se como provados os factos J e K como a sentença faz.  
20ª Na hipotese académica de tal não suceder, no julgamento, não ficaram provados os factos J e K, ao contrário do que a sentença, em certo ponto, afirma.
21ª As testemunhas, MD, PL, MC, CM, CF, MM, nada conheciam para a prova dos temas de prova 1 e 2, pois não conheciam a Recorrente, ou sequer sabiam algo sobre o conhecimento da Recorrente sobre o trânsito em julgado.
22ª Assim, os excertos dos depoimentos das testemunhas registados entre os seguintes tempos, 00:02:48s a 00:02:50s, 00:07:33s a 00:08:34s, 00:04:50s a 00:05:47s, 00:20:45s a 00:24:55s, 00:26:06s a 00:26:10s, 00:17m00 a 00:17:20s, de 00:30:20s a 00:34:30s, de 00:38:28s a 00:41:21s, 00:48:47s’ a 00:48:49s, impunham dar os factos  J e K como não provados em audiência.
23ª O Autor alegou que era proprietário da totalidade do imóvel, por trânsito da sentença do proc. 9/2002 (art.º 44º da pi), e que a Recorrente, em 06.09.2006, tinha conhecimento desse facto, o que constituía má fé (art.º 31º da réplica).
24ª Tendo sido o direito de propriedade do Autor impugnado, bem como o conhecimento e a má fé (tema 1), a prova de tais  factos constitutivos da pretensão do Autor, não incumbia à Recorrente, mas ao Autor, ao contrário do que decide a sentença violando o art.º 342º, 1, do CC.
25ª Por outro lado, erra, ainda, porquanto, a prova, quer do direito de propriedade, quer do conhecimento do trânsito em julgado duma sentença[2], está restringida à prova documental, e não é passível de fixação, nem por prova testemunhal, nem por presunção judicial (art.º 351º,393º, 1, do CC ) e, mesmo admitindo o contrário, não se podem fundar presunções a partir de factos não provados, ou, com elas, inverter o ónus de prova. (art.ºs 341º, 349º, do CC).
26ª Segundo os art.ºs 371º, 1, e 372º,1, do CC e 574º,2, do CPC, ficou plenamente, a partir dos documentos não impugnados que,
a. A Recorrente não foi parte de declaração de nulidade da acção n.º 9/2002 (cfr. doc. 3 da pi).
b. pela Ap. 57, de 16.07.2002, foi a acção 9/2002 registada provisoriamente por natureza e por dúvidas - cfr. certidão do histórico, doc. 1 contest., p. 8  (alegação no art.º 8º da contest.).
c. o registo provisório por natureza, da acção 9/2002, caducou em 15.7.2005, por não ter sido renovado, ou convertido no prazo de vigência de 3 anos – cfr. art.º 92º, n.º 1, al. a) e n.º3, do CRPred., versão, DL 193/2003, 23/08, e ib. despacho da Conservadora de 06.09.2006 na requisição da Ap. 57, de 16.07.2002 – doc. 1, p. 8 e docs. 9, 2 e 3, da sua contest. (alegação no artº 8º da sua contest.).
d. a caducidade do registo da acção foi anotada em 06.09.2006 e não foi realizado qualquer outro registo da acção 9/2002, posterior à Ap. 57, de 16.7.2002- cfr. certidão do histórico que constitui o doc. 1 da contestação, p. 9 – facto alegado no art.º 10º a 12º da contestação da Recorrente AVTS.
e. Pela Ap. 14 de 21.2.2001, foi registada a aquisição da co-Ré Vilanorte, dando origem à inscrição G-1 e pela Ap. 28, de 7.9.2006, foi registada a aquisição pela Recorrente de 1/10 do mesmo imóvel (cfr. cert. do histórico, doc. 1 contest., p. 8 e p.3)
f. Pela Ap. 14 de 16.1.2007, o Autor requereu o cancelamento do registo de aquisição da inscrição G-1 (aquisição da co-Ré Vilanorte),
g. O pedido formulado pela Ap. 14 de 16.1.2007, foi satisfeito apenas parcialmente, quanto a 90%, tendo sido salvaguardada a aquisição da Recorrente, (conforme despacho da Conservadora sobre as Aps. 14,15,16 e 17, de 16.1.2007, datado de de 31.1.2007- doc. 9 da contestação, p. 3 e doc.1 da contestação, p. 8).
27ª O art.º 289º, 1, do CC, apenas se aplica às partes dum processo judicial, para as restantes funcionam as regras especiais do CPC (art.º285ºCC), pelo que a sentença em crise, ao aplicar tal preceito à Recorrente, infringe o art.º 20º, da Const., e o art.º 3º,1, do CPC.
28ª Inexistindo registo da acção de declaração de nulidade nº 9/2002, por caducidade do registo provisório (Ap. Ap. 57, de 16.07.2002) ocorrida ope legis em 15.7.2005 (art.º 92º, n.º 1, al. a) e n.º3 do CRPred, versão do DL 193/2003), está ausente um dos requisitos essenciais de aplicação do art.º 291º, do CC, que consiste no registo da acção de declaração de nulidade.
29ª Outra das premissas essenciais à aplicação do art.º 291º, do CC que está omissa, é a necessidade do terceiro, alheio ao negócio anterior, estar em juízo na acção em que se declarou a nulidade/anulação desse negócio, só assim se compreendendo, a oponibilidade do vício do negócio em que não interveio, referida no n.º 3, do art.º 291º.
30ª A aplicação do art.º 17º, do C.R.Pred. carecia também do pressuposto ausente do registo da acção de nulidade n.º 9/2002, pelo que também não se poderia equacionar.
31ª Para além dos óbices à aplicação do art.º 291º, do CC, já apontados, sem conceder, também o conhecimento do trânsito em julgado (efeito jurídico que só ocorre dentro dum processo), e inoponível à Recorrente, não se enquadra no conceito legal de conhecimento do «vício do negócio nulo ou anulável», do n.º 3 do art.º 291º do CC.
32ª O Autor peticiona o reconhecimento dum direito inoponível à recorrente (na medida em que a sentença do processo 9/2002, também não o é), direito, esse não registado, que foi impugnado pela Recorrente, titular dum direito de propriedade registado, incompatível essa pretensão do Autor.
33ª Impunha-se face aos factos plenamente provados, ao tribunal a quo, declarar a inexistência do registo da acção 9/2002, por caducidade do registo provisório sem se ter convertido em definitivo, nos termos dos art.º 10º e 11º,1 e 2, do CRPred., ao invés de considerar a eficácia erga omnes da sentença e a respectiva retroactividade face a terceiros, violando os arts.º, 8º-A,1, al. b), do CRPred., 3º, 1, 621º e 622º( a contrario), do CPC, 289º,1, do CC e art.º 20º, da Const..
34ª Deste modo, é inoponível, ineficaz, e de nenhum efeito, a sentença do processo 9/2002, quanto à Recorrente (art.º 8º-A, 1. Al. b),  e 5º, 1, do CRPred.), pelo que a decisão apelada é incorrecta quando qualifica, face à Recorrente, o bem que a mesma adquiriu, como bem alheio, ou chama à colação a aplicação do art.º892º, do CC.
35ª O mesmo raciocínio se aplica à boa, ou má fé, da Recorrente face à sentença anterior, o que, sem conceder, implicava irrelevância do seu conhecimento da sentença, já que os fundamentos da mesma, não se aplicam à Recorrente.
36ª Cumpria, pois, aplicar, em substituição dos preceitos escolhidos pela sentença recorrida, os arts.º 5º, 1 e 6º, do CRPred. e 263º,3, do CPC, dando prevalência ao único facto registado que é o direito de propriedade da Recorrente em detrimento da pretensão do Autor. (art.º 7º, CRPred.)
37ª De qualquer forma, se por hipótese académica, não procedessem os argumentos supra indicados, haveria que declarar a actuação do Autor, em abuso do direito e como de má-fé, pelo que nunca poderia invocar ele próprio a má-fé da Recorrente.
38ª Para esse efeito, além das falsidades quanto aos vícios invocados na petição do processo 9/2002, a que o mesmo Autor, se se verificassem, teria dado origem, há que acrescentar que o Autor omitiu nessa acção, que o negócio se destinava a dar cumprimento parcial ao contrato-promessa de 1997 e que, mesmo assim, o Autor estava em mora e continuou em mora quanto ao cumprimento desse contrato-promessa.
39ª Tal facto instrumental adquirido em audiência, nos termos do art.º 5º, 2, al.a), do CPC, de que o Autor quando propôs essa acção, estava em mora, resulta do registo de gravação de 00:49:38s a 00:50:10s do depoimento da testemunha Maria Alcina.
40ª Deste modo, também a sentença erra, porquanto a Recorrente impugnou tais vícios e não os aceitou, e invocou, como questão prévia, a inoponibilidade da sentença.
Nestes termos, não se verificando qualquer invalidade, registral, ou substantiva, que se projecte na aquisição e respectivo registo, pela Recorrente de 6.9.2006 e 7.9.2006, deve permanecer incólume a posição da Recorrente, revogando-se a sentença recorrida e, Assim, se fazendo JUSTIÇA!»
        *
Foram apresentadas contra-alegações, pugnando pela manutenção da sentença e improcedência do recurso.

Obtidos os vistos legais, cumpre apreciar.
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Questões a decidir:

O objeto e o âmbito do recurso são delimitados pelas conclusões das alegações, nos termos do disposto no artigo 635º nº 4 do Código de Processo Civil. Esta limitação objetiva da atuação do Tribunal da Relação não ocorre em sede da qualificação jurídica dos factos ou relativamente a questões de conhecimento oficioso, desde que o processo contenha os elementos suficientes a tal conhecimento (cf. Artigo 5º, nº 3, do Código de Processo Civil). Similarmente, não pode este Tribunal conhecer de questões novas que não tenham sido anteriormente apreciadas porquanto, por natureza, os recursos destinam-se apenas a reapreciar decisões proferidas (Abrantes Geraldes, Recursos no N.C.P.C., 2017, Almedina, pág. 109).

Importa apreciar as seguintes questões:

a). Se a decisão recorrida é nula por omissão de pronúncia e por excesso de pronúncia nos termos indicados nas alegações de recurso?
b). Se a decisão recorrida, ao dar como assente e provado o direito de propriedade do Autor, quanto ao 1/10 adquirido pela Recorrente, está a estender a eficácia do caso julgado da sentença do processo 9/2002 à Recorrente, violando o direito de defesa da Recorrente (previsto no art. 3º,1, do CPC e 20º, 1, da Const. e os art.ºs 621º e 622º do CPC, a contrario), que não foi parte dessa acção, nem interveio na discussão processual?
c). Se a decisão recorrida julgou erradamente como provados os factos J e K, quando os depoimentos das testemunhas identificadas nas alegações da recorrente impunham que fossem considerados não provados?
d). A decisão recorrida aplicou erradamente as regras do ónus da prova, relativamente ao direito de propriedade do autor, bem como ao conhecimento e má-fé (tema 1), pois a prova de tais factos constitutivos incumbia ao autor, por força do disposto no artigo 342º nº 1 do C.C.?
e). Por outro lado, a decisão recorrida erra, ainda, porquanto, a prova, quer do direito de propriedade, quer do conhecimento do trânsito em julgado duma sentença, está restringida à prova documental, e não é passível de fixação, nem por prova testemunhal, nem por presunção judicial (art.º 351º,393º, 1, do CC ) e, mesmo admitindo o contrário, não se podem fundar presunções a partir de factos não provados, ou, com elas, inverter o ónus de prova (art.ºs 341º, 349º, do CC)?
f). Segundo os art.ºs 371º, 1, e 372º,1, do CC e 574º,2, do CPC, ficou plenamente provado, a partir dos documentos não impugnados que,
a. A Recorrente não foi parte de declaração de nulidade da acção n.º 9/2002 (cfr. doc. 3 da pi).
b. pela Ap. 57, de 16.07.2002, foi a acção 9/2002 registada provisoriamente por natureza e por dúvidas - cfr. certidão do histórico, doc. 1 contest., p. 8  (alegação no art.º 8º da contest.).
c. o registo provisório por natureza, da acção 9/2002, caducou em 15.7.2005, por não ter sido renovado, ou convertido no prazo de vigência de 3 anos – cfr. art.º 92º, n.º 1, al. a) e n.º3, do CRPred., versão, DL 193/2003, 23/08, e ib. despacho da Conservadora de 06.09.2006 na requisição da Ap. 57, de 16.07.2002 – doc. 1, p. 8 e docs. 9, 2 e 3, da sua contest. (alegação no artº 8º da sua contest.).
d. a caducidade do registo da acção foi anotada em 06.09.2006 e não foi realizado qualquer outro registo da acção 9/2002, posterior à Ap. 57, de 16.7.2002- cfr. certidão do histórico que constitui o doc. 1 da contestação, p. 9 – facto alegado no art.º 10º a 12º da contestação da Recorrente AVTS.
e. Pela Ap. 14 de 21.2.2001, foi registada a aquisição da co-Ré Vilanorte, dando origem à inscrição G-1 e pela Ap. 28, de 7.9.2006, foi registada a aquisição pela Recorrente de 1/10 do mesmo imóvel (cfr. cert. do histórico, doc. 1 contest., p. 8 e p.3)
f. Pela Ap. 14 de 16.1.2007, o Autor requereu o cancelamento do registo de aquisição da inscrição G-1 (aquisição da co-Ré Vilanorte),
g. O pedido formulado pela Ap. 14 de 16.1.2007, foi satisfeito apenas parcialmente, quanto a 90%, tendo sido salvaguardada a aquisição da Recorrente, (conforme despacho da Conservadora sobre as Aps. 14,15,16 e 17, de 16.1.2007, datado de de 31.1.2007- doc. 9 da contestação, p. 3 e doc.1 da contestação, p. 8).?
g). Consequentemente, face aos factos plenamente provados, impunha-se ao tribunal recorrido declarar a inexistência do registo da acção 9/2002, por caducidade do registo provisório sem se ter convertido em definitivo, nos termos dos art.º 10º e 11º,1 e 2, do CRPred., ao invés de considerar a eficácia erga omnes da sentença e a respectiva retroactividade face a terceiros, violando os arts.º, 8º-A,1, al. b), do CRPred., 3º, 1, 621º e 622º( a contrario), do CPC, 289º,1, do CC e art.º 20º, da Const..?
h). Sendo inoponível, ineficaz, e de nenhum efeito, a sentença do processo 9/2002, quanto à Recorrente (art.º 8º-A, 1. Al. b), e 5º, 1, do CRPred.), a decisão apelada é incorrecta quando qualifica, face à Recorrente, o bem que a mesma adquiriu, como bem alheio, ou chama à colação a aplicação do art.º 892º, do CC, aplicando-se o mesmo raciocínio à boa ou má-fé da recorrente?
i). A decisão recorrida errou ao não aplicar, em substituição dos preceitos escolhidos, os arts.º 5º, 1 e 6º, do CRPred. e 263º,3, do CPC, dando prevalência ao único facto registado que é o direito de propriedade da Recorrente em detrimento da pretensão do Autor  (art.º 7º, CRPred.)?
j). De qualquer forma, e caso assim não se entenda, haveria que declarar a actuação do Autor, em abuso do direito e como de má-fé, pelo que nunca poderia invocar ele próprio a má-fé da Recorrente, pois, além das falsidades quanto aos vícios invocados na petição do processo 9/2002, a que o mesmo Autor, se se verificassem, teria dado origem, há que acrescentar que o Autor omitiu nessa acção, que o negócio se destinava a dar cumprimento parcial ao contrato-promessa de 1997 e que, mesmo assim, o Autor estava em mora e continuou em mora quanto ao cumprimento desse contrato-promessa - facto instrumental adquirido em audiência, nos termos do art.º 5º, 2, al. a), do CPC, de que o Autor quando propôs essa acção, estava em mora (cfr. resulta do registo de gravação de 00:49:38s a 00:50:10s do depoimento da testemunha Maria Alcina)?
               
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FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
A factualidade provada e não provada consignada na sentença recorrida é a seguinte:

2.1. Factos Provados:
Factos já provados antes da audiência final:
A – Por escritura pública de 30.01.2001, outorgada na dependência do Banco Internacional de Crédito, S.A., a fls. 41 a 44 do Livro n.º 184-F, MM, em representação do Estado Português, declarou: «que o Estado Português é proprietário do (…) prédio urbano com a área de oitenta e quatro mil seiscentos e cinquenta metros quadrados, sito na Travessa da Luz números 2, 4 e 6; Estrada da Luz número 174 e Rua do Seminário, número 138, nas freguesias de Benfica e Carnide, concelho de Lisboa, descrito na Quinta Conservatória de Registo Predial de Lisboa sob o número mil novecentos e quatro, da freguesia de Benfica e na Sexta Conservatória do Registo Predial de Lisboa sob o número cento e setenta e seis da freguesia de Carnide inscrito na respectiva matriz da freguesia de Carnide sob o artigo 1085, com o valor patrimonial de 415.800$00» e «que pela presente escritura (…) o Estado Português destaca, do imóvel atrás identificado, uma parcela de terreno com a área de quatro mil duzentos e setenta e sete metros quadrados, que confronta a norte com a Avenida General Norton de Matos, a sul e poente com a estrada da Luz e a nascente com o Município de Lisboa, parcela esta que vende à sociedade “Vilanorte – Construções, Lda., pelo preço de duzentos milhões de escudos, recebendo, nesta data, em contrapartida, uma garantia bancária de igual montante», tendo AS e mulher MS, na qualidade de únicos sócios e gerentes da sociedade Vilanorte – Construções, Lda., declarado aceitar este contrato;
B – A parcela de terreno referida na alínea anterior encontra-se actualmente descrita na Conservatória do Registo Predial de Lisboa, sob o n.º 2747, da freguesia de Benfica e sobre ela foram efectuados os seguintes registos:
i) inscrição n.º 39 de 22.03.1995, aquisição a favor do Estado Português, por justificação administrativa;
ii) inscrição n.º 14 de 21.02.2001, aquisição a favor de Vilanorte – Construções, Lda., por compra ao Estado Português, cancelado pela apresentação n.º 14 de 16.01.2007;
iii) inscrição n.º 57 de 16.07.2002, provisório por natureza, acção, tendo sido oficiosamente anotada a caducidade em 06.09.2006;
iv) inscrição n.º 28 de 07.09.2006, aquisição de 1/10 a favor de AVTS – Sociedade de Construções, Lda., por compra a Vilanorte – Construções, Lda., conforme certidão permanente de fls. 150v a 157, que se dá por reproduzida;
C – Por escritura pública de 06.09.2006, outorgada no Cartório Notarial de Lisboa de Jorge Artur de Oliveira Lopes, a fls. 125 a 126v do Livro n.º 23-A, AS, na qualidade de gerente em representação da sociedade Vilanorte – Construções, Lda., declarou que, em nome da sociedade por si representada e pelo preço de cem mil euros, que já recebeu, vende à sociedade AVTS – Sociedade de Construções, Lda., no acto representada pela sua gerente MS, que declarou aceitar a venda para a sua representada, um dez avos do prédio urbano, composto por lote de terreno para construção situado na Estrada da Luz, freguesia de Benfica, concelho de Lisboa, descrito na 5.ª Conservatória do Registo Predial de Lisboa, sob o n.º 2747, da referida freguesia, com a aquisição registada a favor da sociedade sua representada conforme inscrição G, apresentação catorze, de vinte um de Fevereiro de dois mil e um, inscrito na respectiva matriz sob o artigo 2587,da freguesia de S. Domingos de Benfica, com o valor patrimonial de 1.005.095,00 € (e corresponde ao direito transmitido 100.509,50 €), conforme certidão de fls. 9 a 11, que se dá por reproduzida;
D – Correu termos pela 3.ª Secção da 7.ª Vara Cível de Lisboa uns autos de acção de processo ordinário, registados sob o n.º 9/2002, instaurados em 15.01.2002, em que era A. o Ministério Público e R. Vilanorte – Construções, Lda., no âmbito dos quais foi proferida sentença em 09.06.2003, declarando nulo o contrato de compra e venda celebrado através da escritura pública de 30.01.2001 e ordenado o cancelamento do registo de aquisição do prédio descrito na 5.ª CRP de Lisboa sob o n.º 2747, a favor da R. e feito pela inscrição G-1, tendo tal sentença transitado em julgado em 13.02.2006, conforme certidão de fls. 14 a 116, que se dá por reproduzida;
E – A sociedade Vilanorte – Construções, Lda., encontra-se matriculada na CRC sob o n.º 501499229, sendo seus únicos sócios e gerentes AS e MS, tendo o primeiro renunciado à gerência em 29.01.2008, conforme certidão permanente de fls. 116 a 118, que se dá por reproduzida;
F – A sociedade AVTS – Sociedade de Construções, Lda., encontra-se matriculada na CRC sob o n.º 507620046, sendo seus sócios AS, MS, MS e GS, sendo seus gerentes os dois primeiros, conforme certidão permanente de fls. 116 a 118, que se dá por reproduzida;
G – AS e MP celebraram entre si casamento católico em 04.09.1971, conforme certidões de fls. 122 a 124, que se dão por reproduzidas;
H – No dia 19.12.1997, entre o Estado Português e a sociedade Vilanorte – Construções, Lda., foi celebrado o “contrato-promessa de permuta de bens imóveis”, cuja cópia consta de fls. 19 a 20 dos autos, e cujo teor se dá por integralmente reproduzido:
I – No dia 16.01.2007, o Estado requereu o cancelamento dos registos referidos na al. B ii) e iv) e a anexação do prédio descrito sob o n.º 2747 ao prédio descrito sob o n.º 1904, o que foi recusado por falta de título, por despacho do senhor conservador de 31.01.2007, conforme documento de fls. 183v a 186, que se dá por reproduzido.

Factos provados em audiência final:

J – Quando outorgou a escritura pública referida na al. C), a Ré AVTS – Sociedade de Construções, Lda., através da sua representante MS, tinha perfeito conhecimento de que o prédio objecto da mesma não pertencia à Ré Vilanorte – Construções, Lda., mas ao Estado Português;
K – O gerente da Ré Vilanorte, Lda., e a gerente da Ré AVTS, Lda., bem sabiam da data do trânsito em julgado da sentença proferida no processo referido na al. D).

2.2. Factos não Provados:

Não foram alegados quaisquer factos relevantes para a decisão da causa que não se tenham provado.
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FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

a). Se a decisão recorrida é nula por omissão de pronúncia e por excesso de pronúncia nos termos indicados nas alegações de recurso?
A primeira nulidade da sentença apontada pela apelante consiste no seguinte:
«12) A sentença em crise, limita-se a referir que a caducidade do registo foi anotada oficiosamente, nos termos do art.º 11º, 4 do CRP, não referindo quando teve lugar.
13) Ora, a caducidade é anotada no registo logo que verificada (art.º 11º, 4, do CRPred.), no entanto a mesma opera por força da lei (art.º 11º, 1 CRPred.), e não por força de anotação.
14) Ainda, é omissa acerca do facto de não estar ainda hoje registada a acção de nulidade que correu entre o Estado e a co-Ré, nem a respectiva sentença e apenas estar registada a aquisição de 90% do imóvel em causa pelo Estado.
15) Estando em causa a pretensão da repercussão, da sentença do processo 9/2002, na agora recorrente que não foi parte desse processo, impõe-se o conhecimento da inexistência do registo da acção 9/2002 e da respectiva sentença, por caducidade do registo provisório, como factos essenciais. (art.º 5º, 1 e 2, do CPC)
16) De referir, que foi junta nos articulados a necessária prova, da verificação da caducidade do registo provisório da acção de nulidade em 15.07.2005 (decorria da lei em vigor, art.º 92º, 1, al. a) e n.º 3 e, se dúvidas houvesse, foi junto o despacho da conservadora fixando a vigência em 3 anos a contar da Ap. 57 de 16.07.2002 – cfr. Doc.1, p.8 (certidão história) e docs. 9, 2 e 3, todos da contestação.
17) Ocorreu, por conseguinte a nulidade da sentença, nos termos do art.º 615º, 1, al.d), do CPC, por violação do art.º 608, 2, e do princípio do dispositivo (art.º 5º, do CPC).»
A nulidade invocada está directamente relacionada com o artigo 608º, nº2, do Código de Processo Civil, segundo o qual “O juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras; não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras.”
Neste circunspecto, há que distinguir entre questões a apreciar e razões ou argumentos aduzidos pelas partes.
A omissão de pronúncia como causa de nulidade da sentença circunscreve-se às questões/pretensões formuladas de que o tribunal tenha o dever de conhecer para a decisão da causa e de que não haja conhecido, realidade esta distinta da invocação de um facto ou argumento pela parte sobre os quais o tribunal não se tenha pronunciado.
Com efeito, o julgador não tem que analisar e apreciar todos os argumentos, todos os raciocínios, todas as razões jurídicas invocadas pelas partes em abono das suas posições. Por isso, não pode falar-se em omissão de pronúncia quando o tribunal, ao apreciar a questão que lhe foi colocada, não toma em consideração um qualquer argumento alegado pelas partes no sentido de procedência ou improcedência da acção. O que importa é que o julgador conheça de todas as questões que lhe foram colocadas, excepto aquelas cuja decisão tenha ficado prejudicada pela solução dada a outras.
A fundamentação jurídica da sentença impugnada é a seguinte:
«Através da presente acção, pretende o A. que se declare a nulidade e a ineficácia do contrato de compra e venda celebrado pelas RR. em 06.09.2006 e se ordene o cancelamento do registo de aquisição feito com base no mesmo.
Vejamos.
Decorre da factualidade provada que:
- no dia 30.01.2001 foi celebrado entre o Estado e a 1.ª R. Vilanorte um contrato de compra e venda tendo por objecto uma parcela de terreno com a área de 4.277m2, descrita na CRP de Lisboa sob o n.º 2747 (após destaque do prédio descrito com o n.º 1904) e registada a favor do A. desde 22.03.1995;
- a R. Vilanorte registou tal aquisição a seu favor em 21.02.2001;
- em 16.07.2002 foi feito um registo provisório de uma acção, em que o Estado pedia a declaração de nulidade da referida compra e venda e o cancelamento do registo de aquisição a favor da R. Vilanorte;
- por sentença em 09.06.2003, foi tal contrato de compra e venda declarado nulo e ordenado o cancelamento do registo de aquisição a favor da R. Vilanorte;
- a sentença referida transitou em julgado em 13.02.2006;
- em 06.09.2006 foi anotada a caducidade do registo da acção referida;
- no dia 06.09.2006, as RR. celebraram entre si o contrato de compra e venda em causa nestes autos, tendo por objecto 1/10 do prédio descrito na CRP sob o n.º 2747;
- a R. AVTS registou tal aquisição a seu favor em 07.09.2006;
- o registo de aquisição a favor da R. Vilanorte foi cancelado em 16.01.2007.
Não existem dúvidas que o acordo celebrado entre as RR. por escritura pública de 06.09.2006 consubstancia um contrato de compra e venda tal como se encontra definido no art. 874.º do CC.
Ora, como é consabido, em princípio, a constituição ou transferência de direitos reais sobre as coisas determinadas dá-se por mero efeito do contrato (cfr. art. 408.º do CC).
À data da celebração do referido contrato, a propriedade do prédio objecto do mesmo encontrava-se registada a favor da vendedora, a R. Vilanorte, por o ter comprado ao Estado Português.
Havia sido efectuado um registo de acção que, contudo, caducou antes da referida venda (art. 92.º, n.º 3 do Código de Registo Predial - CdRP, na versão vigente à data), conforme, de resto, anotação oficiosa feita em 06.09.2006.
O registo definitivo constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define (cfr. art. 7.º do CdRP).
Sucede que a compra e venda a favor da vendedora Vilanorte veio a ser, posteriormente, declarada nula, por sentença judicial, que também ordenou o cancelamento do registo que existia a seu favor.
Ora, tendo a declaração de nulidade efeito retroactivo (cfr. art. 289.º, n.º 1 do CC), coloca-se a questão e saber se o contrato de compra e venda celebrado entre as RR. em 06.09.2006 é nulo por ter tido objecto coisa alheia, propriedade do Estado Português (conforme registo de 22.03.1995).
É o que, em princípio, decorre do art. 892.º do CC, onde se dispõe que «é nula a venda de bens alheios sempre que o vendedor careça de legitimidade para a realizar».
No caso dos autos, e atentos os efeitos retroactivos da declaração de nulidade, a R. Vilanorte não era titular do direito a que se reporta o contrato de 06.09.2006, que, desta forma, teve por objecto um bem alheio.
Sucede que o legislador consagrou um desvio à regra geral do art. 289.º do CC.
Assim, de acordo com o preceituado no art. 291., n.º 1 do CC, «a declaração de nulidade…do negócio jurídico que respeito a bens imóveis…não prejudica os direitos adquiridos sobre os mesmos bens, a título oneroso, por terceiro de boa fé, se o registo de aquisição for anterior ao registo da acção de nulidade…».
São, pressupostos, cumulativos, deste art. 291.º que:
a) tenham sido celebrados dois negócios sobre o mesmo bem;
b) esses dois negócios sejam sucessivos, assentando a transmissão visada pelo segundo negócio numa aquisição ou constituição de direitos resultante do primeiro negócio;
c) as aquisições ou constituições de direitos visadas pelos dois negócios tenham sido registadas;
d) o segundo negócio seja uma aquisição a título oneroso;
e) tenha havido lugar à declaração de nulidade ou à anulação do primeiro negócio;
f) o adquirente no segundo negócio esteja de boa fé, ou seja, desconhecesse o vício do negócio inválido.
Estando verificados tais requisitos, a lei distingue ainda duas situações:
– o registo da aquisição resultante do segundo negócio é posterior ao registo da acção de nulidade ou anulação, caso em que a invalidade é oponível ao adquirente no segundo negócio;
– o registo da aquisição resultante do segundo negócio é anterior ao registo da acção de nulidade ou anulação e, neste caso, a lei distingue duas sub-hipóteses:
a) ainda não passaram três anos sobre o negócio inválido, caso em que se mantém a regra da oponibilidade;
b) já passaram esses três anos, caso em que a invalidade é inoponível ao terceiro.
No caso dos autos, decorre da matéria de facto provada (als. J) e K)), que a R. AVTS tinha perfeito conhecimento de que o prédio objecto do contrato de compra e venda de 06.09.2006 não pertencia a R. Vilanorte, mas ao Estado Português, e sabia da data do trânsito em julgado da sentença que declarou a nulidade do primeiro negócio.
Não está, por conseguinte, preenchido o último pressuposto supra apontado: a boa-fé ou desconhecimento da invalidade do negócio por parte da R. AVTS, compradora.
Saliente-se que o ónus da alegação e prova dos factos integrantes da boa-fé prevista no n.º 1 do art.º 291, ou seja, no caso, a ignorância de que o prédio objecto do segundo negócio pertencia ao Estado e o desconhecimento sem culpa do carácter definitivo da sentença que declarou a invalidade do primeiro negócio, impendia sobre a R AVTS, por constituir matéria de excepção (cfr., neste sentido, o acórdão do STJ de 26.10.2004).
O art. 291.º do CC visa, como se viu, proteger o terceiro de boa-fé da retroactividade dos efeitos de declaração de nulidade ou de anulação do negócio jurídico.
Destarte, não estando a R. AVTS de boa-fé, não se encontra protegida da retroactividade dos efeitos da declaração de nulidade que dimana da sentença de 09.06.2003, transitada em julgado em 13.02.2006.
E, não estando a R. AVTS de boa-fé, não há que trazer à colação o disposto no n.º 2 do art. 291.º.
Coloca-se, ainda, a questão de saber se o caso dos autos não será, ao invés, subsumível na previsão do art.1 7.º, n.º 2 do CdRP.
Afigura-se-nos que não.
Alinhamos no entendimento daqueles que consideram que o referido artigo trata dos casos de nulidade do registo resultantes dos factos elencados no art. 16.º do CdRP e não dos casos de cancelamento do registo em resultado da invalidade dos negócios que lhe serviram de base (v.g., acórdão do STJ de 16.11.2010, in www.dgsi.pt, onde se escreveu que «o art. 291.º trata da nulidade e anulabilidade do negócio jurídico (nulidade substantiva), ao passo que o art. 17.º trata da nulidade do registo (nulidade registral»).
No caso vertente, o vício do registo resulta da invalidade do negócio de que resultou o direito registado, pelo que é aplicável o art. 291.º do CC.
Conforme escreve Rui Pinto Duarte, in O Registo Predial, Agosto de 2011, in www.fd.unl.pt, «a redacção do art. 291 provoca uma ilusão: aquilo que é excepção aparenta ser regra e vice-versa. Na verdade, o que o art. 291 determina é que a invalidade dos negócios de transmissão de imóveis e móveis sujeitos a registo prejudica os direitos que tenham sido transmitidos, a título oneroso, a terceiro de boa-fé – a menos que o registo da acção de declaração de nulidade ou de anulação seja feito passados mais de três anos sobre o negócio inválido e esteja já registada a aquisição pelo terceiro. Ou seja, o art. 291 afirma o princípio nemo plus iuris, fazendo-lhe uma excepção em caso de a acção destinada a fazer declarar a invalidade demorar muito tempo. O art. 17, n.º 2 do CR Predial baseia-se na necessidade de protecção da fé pública do registo, o mesmo é dizer da protecção da confiança ou, ainda, das expectativas dos terceiros. Os interesses daquele que se viu desapropriado de um direito são postergados em favor dos interesses daquele que confiou na exactidão do registo. É exactamente o contrário do princípio nemo plus iuris...».
Contudo, as conclusões a que chegámos seriam as mesmas ainda que se considerasse que o art. 291.º do CC só é aplicável quando o terceiro não age com base no registo (isto é, quando o negócio inválido não foi registado), aplicando-se o art. 17.º do CdRP quando exista registo da aquisição a favor do transmitente, pois que, como se viu, a R. AVTS actuou de má-fé, não beneficiando, também, da protecção do referido art. 17.º, n.º 2.
Enfim, atentos os efeitos retroactivos da declaração de nulidade decorrente da sentença de 09.06.2003 terá de concluir-se que a R. Vilanorte não era titular do direito a que se reporta o contrato de 06.09.2006, que, desta forma, teve por objecto um bem alheio (propriedade do Estado Português), sendo certo que a R. AVTS não beneficia da protecção supra referida, por não estar de boa-fé.
Procede, pois, a acção.»
Da factualidade ponderada, resulta claramente que a sentença proferida no processo 9/2002 transitou em julgado após a caducidade do registo da ação, ou seja, o registo converteu-se em definitivo com o cancelamento da inscrição G-1, em que estava anotada a aquisição a favor da primeira ré (inscrição G-1). Assim sendo, e tal como é salientado pelo tribunal recorrido, «a compra e venda a favor da vendedora Vilanorte veio a ser, posteriormente, declarada nula, por sentença judicial, que também ordenou o cancelamento do registo que existia a seu favor».

Como segunda causa de nulidade da sentença, a recorrente invoca a «nulidade por omissão de pronúncia acerca da inexistência do direito de propriedade do autor, falta de título», alegando que:

«18) Impunha-se ao tribunal apreciar o invocado direito de propriedade do Estado sobre os 10% adquiridos pela Recorrente, antes de o declarar, já que o mesmo foi impugnado pela Recorrente, entre outros, nos arts. 7º e ss., 20º 21º, 35º a 38º, da contestação.
19) Relativamente a esta matéria, pronunciou-se também o Autor, na réplica, entre outros, nos art.ºs 39º e 46º, desse articulado e houve reclamação do despacho saneador, a propósito dos temas de prova fixados.
20) Da omissão do conhecimento desta matéria, decorreu também a nulidade da sentença, nos termos do art.º 615º, 1, al. d), do CPC, por violação das mesmas disposições acima indicadas.»
Não se vislumbra em que medida poderá ter havido alguma omissão, pois na decisão recorrida é ordenado o cancelamento do registo de aquisição de 1/10 do prédio objeto do litígio a favor da recorrente, no seguimento da procedência da ação.

Por último, a terceira causa de nulidade apontada nas alegações de recurso é a «nulidade por omissão do conhecimento do abuso do direito do Estado/Má-fé do autor», que é equacionada nos seguintes moldes:

«21) A Recorrente invocou que o Estado esteve de má-fé, não só antes como ao propor a presente acção e, por conseguinte, não podia invocar a má-fé contra a Recorrente.
22) Quer os factos em que fundou a referida excepção, quer os efeitos jurídicos foram omitidos pelo tribunal.
23) Com efeito, na contestação, a Recorrente arguiu nos artigos a actuação de má-fé e em abuso do direito do Estado.
24) Verifica-se, por conseguinte a nulidade da sentença por omissão de pronúncia das questões em supra, nos termos do art.º 615º, 1, al. d) -1ª parte, conjugado com os artos 5º e 608º, 2, do CPC.»
No fundo, a apelante pretende beneficiar da factualidade e questões jurídicas que foram suscitadas na ação de processo ordinário, com o Nº 9/2002, mas que são estranhas ao objeto da presente lide, em que não se discute o contrato de alienação celebrado entre o Estado (ora autor) e a primeira ré, VILANORTE, Lda.
Na situação vertente, importa sim determinar se a primeira ré era ou não proprietária da coisa vendida à segunda ré, sendo irrelevantes as motivações, negociações, procedimentos e acordos que conduziram à celebração do contrato que veio a ser declarado nulo no âmbito da referida ação, bem como se o Estado cumpriu as obrigações para si decorrentes dessa declaração de nulidade. Esses factos não são constitutivos do direito do autor invocado na presente lide, nem têm a virtualidade de o modificar, impedir ou extinguir, tal como não se integram na defesa por impugnação, nos termos do artigo 571º do C.P.C.

Resta, ainda, apreciar o outro vício da sentença recorrida suscitado como «nulidade por excesso de conhecimento», que é configurado do seguinte modo:
«25) Nos presentes autos, apenas está em causa a apreciação da validade da aquisição do direito de propriedade da Recorrente quanto a 1/10 do terreno e não quanto à sua totalidade.
26) Assim, são excedidos os poderes do tribunal quando conclui na página 8 da sentença, no 2º parágrafo, a propósito dos temas de prova,
« o contrato de compra e venda de 30.01.2001 havia sido declarado nulo e ineficaz e que, por isso, a transferência da propriedade do prédio objecto do mesmo não subsistia.»
27) A sentença ao julgar matérias em referência à totalidade do imóvel, está a conhecer matéria sobre a qual não podia pronunciar-se, já que o pedido respeita à declaração de nulidade da aquisição de 615º, 1, als. d) e e), do CPC.»

Também não se vislumbra que a sentença padeça deste vício, pois no segmento decisório é ordenado «o cancelamento do registo de aquisição de 1/10 do prédio urbano descrito na 5.ª Conservatória de Registo de Lisboa, sob o n.º 2747, a favor da Ré AVTS – Sociedade de Construções, Lda., levado a efeito pela inscrição AP. 28 de 2006/09/07». Por consequência, é manifesto que a decisão não incidiu sobre a totalidade do imóvel.

Improcedem, assim, as conclusões recursórias no tocante aos vícios da sentença.
b). Se a decisão recorrida, ao dar como assente e provado o direito de propriedade do Autor, quanto ao 1/10 adquirido pela Recorrente, está a estender a eficácia do caso julgado da sentença do processo 9/2002 à Recorrente, violando o direito de defesa da Recorrente (previsto no art. 3º,1, do CPC e 20º, 1, da Const. e os art.ºs 621º e 622º do CPC, a contrario), que não foi parte dessa acção, nem interveio na discussão processual?

A questão jurídica suscitada pela recorrente prende-se com os efeitos e alcance da figura jurídico processual do caso julgado.

Conforme estatui o artigo 580º nº 1 do C.P.C., as exceções da litispendência e do caso julgado pressupõem a repetição de uma causa; se a causa se repete estando a anterior ainda em curso, há lugar à litispendência; se a repetição se verifica depois de a primeira causa ter sido decidida por sentença que já não admite recurso ordinário, há lugar à exceção de caso julgado. Segundo dispõe o artigo 581º do C.P.C., repete-se a causa quando se propõe uma ação idêntica a outra quanto: aos sujeitos (isto é quando as partes são as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica); ao pedido (isto é, quando a pretensão deduzida nas duas ações procede do mesmo facto jurídico, isto é, do mesmo princípio gerador do direito, da mesma sua causa eficiente).
Quer a exceção da litispendência, quer a exceção de caso julgado, têm por fim evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer, ou de reproduzir, uma decisão anterior (nº 2 do artigo 580º do C.P.C.).
Compreende-se, por isso, a afirmação de que, para se aferir da repetição  – ou não – da ação, deve atender-se «não só ao critério formal (assente na tríplice identidade dos elementos que definem a ação), fixado e desenvolvido no art. 498º [atual, artigo 581º], mas também à diretriz substancial  traçada no nº 2, do art. 497º [atual, 580º], onde se afirma que a exceção da litispendência (tal como a de caso julgado), tem por fim evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou reproduzir uma decisão anterior» (Antunes Varela, Sampaio e Nora, J.M. Bezerra, Manual de Processo Civil, Coimbra Editora, Limitada, 2ª edição, p. 302).

No mesmo sentido se afirma que a «razão de ser da litispendência [bem como do caso julgado], permite que ela se verifique mesmo que as ações tenham processo diferente ou ainda que uma seja declarativa e outra seja executiva (Acórdão do S.T.J. de 06.06.2000, Processo nº 00A327, disponível no sítio da internet do IGFEJ).
Importa ainda precisar os efeitos e alcance da figura jurídico processual do caso julgado, tendo presente que, transitada em julgado a sentença ou o despacho saneador que decida do mérito da causa, a decisão sobre a relação material controvertida fica a ter força obrigatória dentro do processo e fora dele nos limites fixados nos artigos 580º e 581º, sem prejuízo do disposto nos artigos 696º a 702º (artigo 619º nº 1 do C.P.C.) e a sentença constitui caso julgado nos precisos limites e termos em que julga (artigo 621º do C.P.C.).
Com efeito, partindo sempre do pressuposto da prévia existência de uma decisão que resolveu uma questão que entronca na relação material controvertida apreciada, ou que versou sobre a relação processual constituída, pretende-se evitar que essa mesma questão venha mais tarde a ser validamente definida, em termos diferentes, pelo mesmo ou por outro tribunal, nem sempre se torna claro precisar o concreto alcance do caso julgado formado (Acórdãos do S.T.J, de 20.06.2012, de 15.11.2012, de 21.03.2012, no mesmo sítio).
Impõe-se, por consequência, distinguir entre a exceção dilatória de caso julgado – pressupondo o confronto de duas ações (uma delas contendo uma decisão já transitada em julgado), e a tríplice identidade entre ambas já descrita (de sujeitos, de causa de pedir e de pedido) -, que visa o efeito negativo da inadmissibilidade da segunda ação, por forma a evitar a repetição de causas. E a força e autoridade de caso julgado – decorrente de uma anterior decisão que haja sido proferida, designadamente no próprio processo sobre a matéria em discussão -, que se prende com a sua força vinculativa, visando o efeito positivo de impor a primeira decisão, como pressuposto indiscutível da segunda decisão de mérito, e que pode funcionar independentemente da tríplice identidade exigida pela exceção. Pressupõe apenas que a decisão de determinada questão não pode voltar a ser discutida, pois é «entendimento dominante que a força do caso julgado material abrange, para além das questões diretamente decididas na parte dispositiva da sentença, as que sejam antecedente lógico necessário à emissão da parte dispositiva do julgado» (Acórdão do S.T.J. de 21.03.2012, já citado). 
Neste segundo caso (de força e autoridade do caso julgado) «não é a decisão, enquanto conclusão do silogismo judiciário, que adquire o valor de caso julgado, mas o próprio silogismo considerado no seu todo: o caso julgado incide sobre a decisão como conclusão de certos fundamentos e atinge estes fundamentos enquanto pressuposto da decisão» (Miguel Teixeira de Sousa, Estudos sobre o Novo Processo Civil, pág. 579).
Por exemplo, se «numa ação de condenação o réu for condenado a entregar certa coisa ao autor, a sentença proferida, uma vez transitada, obstará a que, em nova ação proposta pelo vencedor para obter a indemnização do dano proveniente da falta de cumprimento da obrigação de entrega, o réu volte a levantar a questão da existência desta obrigação. Essa questão prejudicial está definitivamente julgada» (Antunes Varela, Sampaio e Nora, J.M. Bezerra, obra citada, p.309, em nota).
Na situação vertente, a causa de pedir da presente acção é a circunstância de a coisa objecto da compra e venda celebrada entre as rés ser alheia e de as rés conhecerem tal facto, o que constitui consequentemente o fundamento dos pedidos formulados pelo autor.
Na primeira acção, que foi intentada pelo ora autor contra a primeira ré (identificada na alínea D) dos factos provados) transitou em julgado a declaração de nulidade do contrato de compra e venda celebrado através da escritura pública de 30.01.2001, com o consequente cancelamento do registo de aquisição do prédio a favor dessa ré.
A segunda ré – apelante - não foi parte nessa acção, por ser alheia à relação material controvertida, que opunha o ora autor, na qualidade de proprietário de uma quota de terreno indivisa (14/16 avos), à ré VILANORTE Construções, Lda., que por seu turno foi demandada enquanto comproprietária do dito terreno indiviso (a quota dos restantes 2/16 avos pertencia à Fábrica da Igreja Paroquial de São Francisco de Assis), e porque entre o autor e aquela ré tinha sido outorgado contrato de promessa de permuta de bens imóveis, o qual veio a ser declarado nulo em virtude de preterição de formalidades essenciais, designadamente, a omissão dos procedimentos imperativos estabelecidos relativamente a alienação de bens imóveis pertencentes ao Estado (regulada à data pelo Decreto-Lei nº 309/89, de 19/09, e artigo 3º da Lei do Orçamento do Estado para 2001).
Como facilmente se intui, a ora apelante não era então titular de qualquer direito conexo ou entroncado com a relação material controvertida, assim como não era sujeito à época de algum negócio que influísse direta ou indirectamente na decisão a proferir a título principal.
No fundo, sendo o Estado titular do direito de propriedade sobre a parcela de terreno objecto do presente litígio, goza de modo pleno e exclusivo do direito de propriedade, tal como se encontra consagrado no artigo 1305º do Código Civil, sendo-lhe ainda facultado os meios de defesa previstos no artigo 1311º e seguintes do C.C.
Conforme é reiterado no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 15/2013, de 17.6 (com texto disponível no sítio do próprio Tribunal), o caso julgado tem proteção constitucional alicerçada, quer no disposto no n.º3 do artigo 282.º, quer nos princípios da confiança e da segurança jurídica, decorrentes da própria ideia de Estado de Direito, emergente do artigo 2.º, ambos da Constituição. Nesta sequência, a decisão proferida no âmbito do processo 9/2002 adquiriu a força e autoridade do caso julgado, a partir do momento em que se tornou definitiva, sendo oponível tanto às partes que intervieram no litígio, como à ora apelante, ou a quaisquer outras pessoas singulares ou colectivas.
Consequentemente, a questão suscitada nestas conclusões recursórias não merece acolhimento.
c). Se a decisão recorrida julgou erradamente como provados os factos J e K, quando os depoimentos das testemunhas identificadas nas alegações da recorrente impunham que fossem considerados não provados?
Nesta parte, a apelante sustenta que o tribunal incorreu em contradição entre os fundamentos e a decisão de dar como provados os factos por prova em audiência, quando os factos deveriam ter sido julgados como não provados, perante a ausência, em audiência, de qualquer prova sobre os mesmos. Em abono desta tese, são transcritos diversos excertos de testemunhos prestados nas alegações de recurso.
Os factos J e K constituem a única factualidade controvertida sobre a qual foi produzida prova:
«J – Quando outorgou a escritura pública referida na al. C), a R. AVTS – Sociedade de Construções, Lda., através da sua representante MS, tinha perfeito conhecimento de que o prédio objecto da mesma não pertencia a R. Vilanorte – Construções, Lda., mas ao Estado Português;
K – O gerente da R. Vilanorte, Lda., e a gerente da R. AVTS, Lda., bem sabiam da data do trânsito em julgado da sentença proferida no processo referido na al. D).»

A fundamentação da decisão de facto consignada na sentença é, a este propósito, do seguinte teor:
«No que concerne às als. J) e K), apesar de nenhuma das testemunhas inquiridas ter revelado conhecimento dos factos nelas vertidos (por desconhecerem os legais representantes das RR. e não terem tido qualquer intervenção ou conhecimento do contrato celebrado em 06.09.2006), o tribunal considerou-os provados, com base em presunções judiciais assentes em regras da experiência comum e da normalidade da vida.
Com efeito, nas alíneas referidas estão em causa estados subjectivos, isto é, o conhecimento ou a percepção das RR. sobre determinadas realidades.
Como é consabido, a natureza de interioridade desse “conhecimento” impede a sua demonstração directa por terceiros que não os experienciaram (testemunhas), pelo que a sua demonstração tem que ser feita com recurso a presunções judiciais.
Na verdade, a prova de um estado subjectivo apenas pode ser realizada (com excepção dos casos em que há confissão) de forma indirecta ou mediata, inferindo-se a sua existência a partir da prova directa de outros factos que surgem associados ao estado subjectivo, por meio de uma regra de experiência que permite inferir, numa lógica de probabilidade, a verdade do estado subjectivo.
A verificação do estado subjectivo pode, pois, ser presumida a partir de factos conhecidos.
Presunção é a dedução lógica de um facto a partir de outro, segundo regras de experiência, que, por sua vez, são juízos de normalidade que descrevem o que geralmente acontece no mundo real, extraindo-se da observação da realidade.
No caso dos autos, a dificuldade de prova do conhecimento a que aludem os n.ºs 1 e 2 dos temas da prova é agravada pelo facto de as RR. serem pessoas colectivas, o que constitui uma abstracção jurídica. Embora dotadas de personalidades jurídicas, o conhecimento e a vontade manifestada pelas RR. advêm, obviamente, do conhecimento e vontade das pessoas físicas que, legalmente, as representam e vinculam.
Ora, no caso vertente, a verificação do conhecimento referido nos n.ºs 1 e 2 dos temas da prova retira-se de dois factos conhecidos:
- os legais representantes das RR. eram, até 2008, os mesmos e eram, ademais, casados entre si (als. E), F) e G) dos factos provados);
- a sentença proferida, em 09.06.2003, na acção identificada na al. D) dos factos provados transitou em julgado em 13.02.2006.
Do primeiro facto referido, retira-se, por dedução lógica, assente nas regras de experiência comum, que a 2.º R. (representada pelas mesmas pessoas físicas que representam a 1.ª R.) não podia deixar de saber da pendência da acção a que alude a al. D) dos factos assentes e da sua evolução e desfecho e, por conseguinte, que o contrato de compra e venda de 30.01.2001 havia sido declarado nulo e ineficaz e que, por isso, a transferência da propriedade do prédio objecto do mesmo não subsistia.
Já do segundo facto mencionado extrai-se, por ilação lógica, que a 1.ª R. teve a percepção que da última decisão do Tribunal Constitucional não foi interposto recurso e, por isso, representou que a sentença proferida na acção em causa se tornou definitiva em 13.02.2006 (já que a si competia dar instruções ao seu mandatário para reagir, podendo, contra a decisão proferia pelo Tribunal Constitucional). E sendo, à data dos factos, os mesmos os legais representantes das RR., é evidente que a 2.ª R., na pessoa desses legais representantes, também sabia e estava consciente que a sentença de 09.06.2003 havia transitado em julgado.
Como é bom de ver, os sócios-gerentes das RR. não sabem nem deixam de saber sobre a realidade de determinado facto, consoante agem em representação de uma ou outra R.. Ao invés, o conhecimento e a representação que têm da realidade, enquanto pessoas físicas, mantêm-se presentes quando actuam como representantes de uma ou outra das RR. e quando fazem opções e tomam decisões em nome destas, com base nesse conhecimento.»

No nosso ordenamento jurídico vigora o princípio da liberdade de julgamento ou da livre convicção, face ao qual o tribunal aprecia livremente as provas, sem qualquer grau de hierarquização e fixa a matéria de facto em sintonia com a convicção firmada acerca de cada facto controvertido, tendo porém presente o princípio a observar em casos de dúvida, consagrado no artigo 414º do C.P.C., de que a «dúvida sobre a realidade de um facto e sobre a repartição do ónus da prova resolve-se contra a parte a quem o facto aproveita». Conforme é realçado por Ana Luísa Geraldes («Impugnação», in Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor José Lebre de Freitas, Vol. I. Coimbra, 2013, pág. 609 e 610), em «caso de dúvida, face a depoimentos contraditórios entre si e à fragilidade da prova produzida, deverá prevalecer a decisão proferida pela 1ª instância, em observância dos princípios da imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova, com a consequente improcedência do recurso nesta parte». E mais à frente remata: «O que o controlo de facto em sede de recurso não pode fazer é, sem mais, e infundadamente, aniquilar a livre apreciação da prova do julgador construída dialeticamente na base dos referidos princípios da imediação e da oralidade.»

Nesta sequência, para que a decisão da 1ª instância seja alterada haverá que averiguar se algo de “anormal” se passou na formação dessa apontada “convicção”, ou seja, ter-se-á que demonstrar que na formação da convicção do julgador de 1ª instância, retratada nas respostas que se deram aos factos, foram violadas regras que lhe deviam ter estado subjacentes, nomeadamente face às regras da experiência, da ciência e da lógica, da sua conformidade com os meios probatórios produzidos, ou com outros factos que deu como assentes.

Na verdade, as testemunhas ouvidas (e considerando as transcrições exaradas nas alegações) denotaram falta de conhecimento direto acerca do contrato celebrado em 06.09.2006. Mas a questão essencial é que, tal como é salientado, os legais representantes das rés eram à data dos factos as mesmas pessoas físicas, ademais casados entre si, e compareceram presencialmente na escritura pública realizada em 06.09.2006. Consequentemente, a valoração feita pelo tribunal recorrido não merece qualquer censura, está bem fundamentada e mostra-se inteiramente fundada nas regras da experiência, da ciência e da lógica, não enfermando de qualquer contradição.

Conclui-se assim que não há fundamento para alterar a decisão quanto à matéria de facto provada.
d). A decisão recorrida aplicou erradamente as regras do ónus da prova, relativamente ao direito de propriedade do autor, bem como ao conhecimento e má-fé (tema 1), pois a prova de tais factos constitutivos incumbia ao autor, por força do disposto no artigo 342º nº 1 do C.C.?

Invoca a apelante, a este propósito, a argumentação seguinte:
«71) Quanto ao ónus de prova, decidiu erradamente o tribunal que era à recorrente AVTS que incumbia a prova da boa-fé na aquisição do direito de propriedade que se encontra registado.
72) O Autor, nos presentes autos pretende obter a declaração constitutiva do seu direito de propriedade sobre 10% do imóvel em questão, através da declaração de nulidade da compra e venda entre as Rés que pauta estarem de má-fé, pelo que logo aí estipula o CC que aquele que invocar um direito deve fazer prova dos factos constitutivos (art.º 342º, 1, do CC).
73) A prova dos factos constitutivos que integram a causa de pedir, como é o caso da má-fé invocada pelo Autor, numa acção constitutiva de direitos, incumbe ao Autor (art.º 342º, 1, do CC).
74) Ainda que assim não fosse, o registo definitivo de aquisição do direito pela Ré recorrente cria uma presunção de que o direito existe nos precisos termos em que se encontra registado (art.º 7º, do CRPred), há uma presunção de conformidade com a lei.
75) Assim, qualquer que seja o fundamento para invalidar o direito de propriedade registado em nome da Recorrente AVTS, Lda., a respectiva prova incumbe ao Autor, sob pena de violação também do art. 350º, 1, do CC.»
Em primeiro lugar, o tribunal recorrido não atribui à segunda ré, na qualidade de subadquirente da parcela de terreno objeto do litígio, o ónus da prova da boa-fé na aquisição do direito de propriedade que se encontra registado, mas sim para efeitos de aplicação do disposto no artigo 291º nº 1 do Código Civil, que visa proteger o terceiro de boa-fé da retroatividade dos efeitos da declaração de nulidade ou de anulação do negócio jurídico.
Na verdade, os únicos factos controvertidos submetidos a julgamento (alíneas J) e K)) foram alegados pelo autor e integram a causa de pedir ou os fundamentos da ação destinada a obter a declaração de nulidade e a ineficácia do contrato de compra e venda celebrado entre as rés, em 06.09.2006, por ter como objeto coisa alheia. Assim, o autor assenta o efeito jurídico pretendido com os pedidos formulados na circunstância da coisa objeto da compra e venda ser alheia e de as rés terem conhecimento de tal facto. Consequentemente, a contraprova destes factos incumbia às rés, por força do disposto no artigo 346º do C.C., ou por integrar matéria de exceção, tal como é delineado no nº 2 do artigo 342º do mesmo código.
A apelante traz à colação o disposto sobre as presunções legais, no artigo 350º do C.C., que não se aplica no caso presente, pois um dos pedidos formulados na ação é precisamente o cancelamento do registo de aquisição lavrado a favor da ré.
e). Por outro lado, a decisão recorrida erra, ainda, porquanto, a prova, quer do direito de propriedade, quer do conhecimento do trânsito em julgado duma sentença, está restringida à prova documental, e não é passível de fixação, nem por prova testemunhal, nem por presunção judicial (art.º 351º,393º, 1, do CC ) e, mesmo admitindo o contrário, não se podem fundar presunções a partir de factos não provados, ou, com elas, inverter o ónus de prova (art.ºs 341º, 349º, do CC)?

Os argumentos da recorrente são, nesta parte, os seguintes:
«94) As presunções judiciais são juízos lógicos do tribunal em que estabelece um nexo de causalidade entre um facto conhecido e um facto desconhecido, dando este último como provado. (art.º 349º do CC)
95) As presunções não servem como meio de prova alternativo aos factos não provados em audiência de julgamento5, mas sim para fixar factos complementares dos factos provados.
96) O artigo 349º, do CC, não pretende dispensar aquele que está onerado com o ónus da prova de a apresentar em juízo.
97) No caso concreto, o Autor havia invocado a má fé das Rés Vilanorte e AVTS como facto constitutivo do seu direito de ver cancelada a aquisição do imóvel pela Ré AVTS. (cfr. artº 44º da p.i.)
(…)
98) Verifica-se, por conseguinte, a inadmissibilidade de presunção judicial para prova dos quesitos “J” e “K”, quando os mesmos estiveram a ser objecto de prova e foram dados como não provados, por falta de prova.
99) Este meio de prova só é admissível nos mesmos termos em que é admissível a prova testemunhal, isto é, não se podem dar factos desconhecidos como provados que não o pudessem ser, através da produção de prova testemunhal. (art.º 351º, do CC)
100) Ora, bem sabido é que, a prova testemunhal, tal como as demais, serve para fixar, ou afastar, factos controvertidos, ou necessitados de prova (art.º 341º, do CC), mas não para provar factos não provados em audiência.
101) Nem a prova testemunhal, nem as presunções judiciais, servem para provar consequências jurídicas, em vez de factos, pelo que não admissíveis os saltos lógicos efectuados na sentença.
102) No caso em apreço, fixou-se, a partir de certos factos que o tribunal deu por assentes, consequências jurídicas, por meio de presunção judicial.»
A argumentação desenvolvida pela recorrente mostra-se prejudicada pelas conclusões já extraídas quanto à distribuição do ónus da prova, e sobre os factos constitutivos do direito invocado pelo autor, tal como pela improcedência da impugnação da matéria de facto provada nas alíneas J) e K).
Em aditamento, realça-se que o tribunal recorrido lançou mão de presunções judiciais para fazer a demonstração destes factos, ao abrigo do disposto no artigo 351º do C.C., pois esta factualidade admite a prova testemunhal, por não estar incluída nas situações que restringem este meio de prova, aludidas no artigo 393º do C.C., tais como quando a lei exige documento escrito como forma de declaração negocial ou para prova do contrato de seguro (Luís Filipe Pires de Sousa, Prova Testemunhal, Alm., 2013, pág. 199 a 202).
f). Segundo os art.ºs 371º, 1, e 372º,1, do CC e 574º,2, do CPC, ficou plenamente provado, a partir dos documentos não impugnados que,

h. A Recorrente não foi parte de declaração de nulidade da acção n.º 9/2002 (cfr. doc. 3 da pi).
i. pela Ap. 57, de 16.07.2002, foi a acção 9/2002 registada provisoriamente por natureza e por dúvidas - cfr. certidão do histórico, doc. 1 contest., p. 8  (alegação no art.º 8º da contest.).
j. o registo provisório por natureza, da acção 9/2002, caducou em 15.7.2005, por não ter sido renovado, ou convertido no prazo de vigência de 3 anos – cfr. art.º 92º, n.º 1, al. a) e n.º3, do CRPred., versão, DL 193/2003, 23/08, e ib. despacho da Conservadora de 06.09.2006 na requisição da Ap. 57, de 16.07.2002 – doc. 1, p. 8 e docs. 9, 2 e 3, da sua contest. (alegação no artº 8º da sua contest.).
k. a caducidade do registo da acção foi anotada em 06.09.2006 e não foi realizado qualquer outro registo da acção 9/2002, posterior à Ap. 57, de 16.7.2002- cfr. certidão do histórico que constitui o doc. 1 da contestação, p. 9 – facto alegado no art.º 10º a 12º da contestação da Recorrente AVTS.
l. Pela Ap. 14 de 21.2.2001, foi registada a aquisição da co-Ré Vilanorte, dando origem à inscrição G-1 e pela Ap. 28, de 7.9.2006, foi registada a aquisição pela Recorrente de 1/10 do mesmo imóvel (cfr. cert. do histórico, doc. 1 contest., p. 8 e p.3)
m. Pela Ap. 14 de 16.1.2007, o Autor requereu o cancelamento do registo de aquisição da inscrição G-1 (aquisição da co-Ré Vilanorte),
n. O pedido formulado pela Ap. 14 de 16.1.2007, foi satisfeito apenas parcialmente, quanto a 90%, tendo sido salvaguardada a aquisição da Recorrente, (conforme despacho da Conservadora sobre as Aps. 14,15,16 e 17, de 16.1.2007, datado de 31.1.2007- doc. 9 da contestação, p. 3 e doc.1 da contestação, p. 8).?

Esta matéria resulta de conclusões estabelecidas a partir do histórico contido nas certidões do registo predial identificadas nas alegações, bem como nos documentos identificados, sendo apreciada na questão jurídica suscitada pela apelante, a seguir.
g). Consequentemente, face aos factos plenamente provados, impunha-se ao tribunal recorrido declarar a inexistência do registo da acção 9/2002, por caducidade do registo provisório sem se ter convertido em definitivo, nos termos dos art.º 10º e 11º,1 e 2, do CRPred., ao invés de considerar a eficácia erga omnes da sentença e a respectiva retroactividade face a terceiros, violando os arts.º, 8º-A,1, al. b), do CRPred., 3º, 1, 621º e 622º( a contrario), do CPC, 289º,1, do CC e art.º 20º, da Const..?
Na perspetiva da apelante, o tribunal recorrido não valorou corretamente os efeitos da caducidade do registo provisório lavrado na ação nº 9/2002.
No entanto, na sentença é elencada a factualidade provada, do seguinte modo:
«Decorre da factualidade provada que:
- no dia 30.01.2001 foi celebrado entre o Estado e a 1.ª R. Vilanorte um contrato de compra e venda tendo por objecto uma parcela de terreno com a área de 4.277m2, descrita na CRP de Lisboa sob o n.º 2747 (após destaque do prédio descrito com o n.º 1904) e registada a favor do A. desde 22.03.1995;
- a R. Vilanorte registou tal aquisição a seu favor em 21.02.2001;
- em 16.07.2002 foi feito um registo provisório de uma acção, em que o Estado pedia a declaração de nulidade da referida compra e venda e o cancelamento do registo de aquisição a favor da R. Vilanorte;
- por sentença em 09.06.2003, foi tal contrato de compra e venda declarado nulo e ordenado o cancelamento do registo de aquisição a favor da R. Vilanorte;
- a sentença referida transitou em julgado em 13.02.2006;
- em 06.09.2006 foi anotada a caducidade do registo da acção referida;
- no dia 06.09.2006, as RR. celebraram entre si o contrato de compra e venda em causa nestes autos, tendo por objecto 1/10 do prédio descrito na CRP sob o n.º 2747;
- a R. AVTS registou tal aquisição a seu favor em 07.09.2006;
- o registo de aquisição a favor da R. Vilanorte foi cancelado em 16.01.2007.»
Destes factos infere-se que a sentença transitou em julgado em 13.02.2006 e a caducidade do registo da ação foi anotada em 06.09.2006, ou seja, depois de ser obtida a decisão de procedência do pedido formulado, que foi precisamente o de ordenar o cancelamento do registo de aquisição a favor da primeira ré.
Seguindo a exposição feita por Madalena Teixeira (na Ação de Formação “Direito Registal”, decorrida a 24 de fevereiro de 2017, no Centro de Estudos Judiciários), «o registo provisório da ação acaba por desempenhar a importante função de “reservar o lugar” para o registo da própria decisão judicial transitada em julgado… A este propósito, começamos por sublinhar que a inscrição da ação judicial só se justifica na perspetiva da obtenção de uma decisão de procedência do pedido, essa, sim, geradora dos efeitos previstos no art. 3.º do CRP… Daí que, na sua conceção técnica, o registo comece por ser provisório (por ainda só haver uma pretensão de alteração da situação jurídica do prédio) e de sinalização do facto que inicia o iter tendente à obtenção do efeito pretendido, e, em face da decisão judicial de procedência transitada em julgado, se transmute depois, com a sua conversão em definitivo, em registo dessa decisão, passando a valer como publicitação definitiva do efeito alcançado».

Nesta sequência, a matéria anteriormente indicada pela apelante é irrelevante pois carece de qualquer virtualidade para alterar o enquadramento jurídico feito na decisão recorrida. A partir do momento em que transitou em julgado a sentença proferida no âmbito do processo 9/2002, que declarou nulo o contrato de compra e venda celebrado através da escritura pública de 30.01.2001 e ordenou o cancelamento do registo de aquisição a favor da primeira ré (inscrição G-1), o registo da ação converteu-se em definitivo.

Similarmente, a conclusão retirada pela apelante na alínea g) é igualmente irrelevante, pois a aquisição da recorrente só poderá ser objeto de cancelamento a partir do trânsito em julgado da decisão recorrida, nos termos do artigo 3º nº 1 alínea c) do C.Reg.Pred. A decisão recorrida não incorreu, portanto, em qualquer erro de julgamento a este respeito.

h). Sendo inoponível, ineficaz, e de nenhum efeito, a sentença do processo 9/2002, quanto à Recorrente (art.º 8º-A, 1. Al. b), e 5º, 1, do CRPred.), a decisão apelada é incorrecta quando qualifica, face à Recorrente, o bem que a mesma adquiriu, como bem alheio, ou chama à colação a aplicação do art.º 892º, do CC, aplicando-se o mesmo raciocínio à boa ou má-fé da recorrente?

A apelante socorre-se de novo da argumentação expendida sobre a não oponibilidade da eficácia do caso julgado da sentença proferida no Processo 9/2002, que sintetiza do seguinte modo:
«39) Os fundamentos esgrimidos na acção 9/2002 e a sentença declarando a nulidade que daí decorreu, não têm qualquer eficácia fora do processo, relativamente à Recorrente que tem uma posição jurídica incompatível com a decisão.
40) Como se referiu supra, nos presentes autos, o Autor alega ser proprietário de 10% dum terreno, cuja aquisição se encontra registada a favor da Recorrente AVTS, com fundamento na sentença da acção declarativa de nulidade que propôs contra a co-Ré Vilanorte.
41) A Recorrente não interveio, ou foi parte no processo 9/2002, cuja sentença o Autor pretende ser aplicável a esta recorrente.
42) Relativamente à sentença, a Recorrente não é terceira juridicamente indiferente, mas, sim, terceira juridicamente interessada, já que a sua situação jurídica de proprietária de 10% do imóvel é substancialmente incompatível com a sentença.
43) Portanto, a regra, é a da eficácia do caso julgado sobre a relação material controvertida «inter partes».
44) Assim, o caso julgado da acção 9/2002 não é oponível à recorrente 2 , nem a respectiva sentença desse processo vale, por si só, como título do direito de propriedade do Autor.»

Compreende-se que a recorrente se insurja com o argumento de que «não é terceira juridicamente indiferente, mas sim terceira juridicamente interessada» à relação material controvertida e discutida no âmbito do litígio anterior. Mas são inteiramente aplicáveis as conclusões já extraídas sobre o efeito e alcance da autoridade do caso julgado material que se tornou definitivo com o trânsito em julgado da primitiva decisão. Os eventuais prejuízos sofridos pela ora ré poderão quando muito ser discutidos no âmbito de outro litígio, mas não constituem matéria de exceção suscetível de influir no desfecho da presente acção (tal como concluiu o tribunal recorrido), pois carecem da virtualidade para impedir, modificar ou extinguir o direito invocado pelo autor, seguindo a definição consagrada no artigo 571º nº 2 do C.P.C.

i). A decisão recorrida errou ao não aplicar, em substituição dos preceitos escolhidos, os arts.º 5º, 1 e 6º, do CRPred. e 263º,3, do CPC, dando prevalência ao único facto registado que é o direito de propriedade da Recorrente em detrimento da pretensão do Autor (art.º 7º, CRPred.)?

«104) Além da aplicação do art.º 291º, 1, do CC, não ser correcta, também a separação entre o art.º 291º e 17º, do CRPred. não foi realizada de acordo com a letra da lei.
105) Sustenta-se a posição do acórdão do STJ, datado de 14.06.20056, onde se conclui,
«No momento presente há uma acesa discussão na doutrina nacional acerca da delimitação entre as hipóteses que caem sob a alçada desta norma (art.17/2 CRP) e as que estão sujeitas ao regime previsto no art.º 291º do Código Civil (…). Pela nossa parte, cremos que este último preceito só deve aplicar-se quando o terceiro de boa-fé não tenha actuado com base no registo, isto é, quando o negócio nulo ou anulável não tenha sido registado.»
O tribunal recorrido afastou a proteção conferida ao subaquirente, a título oneroso, tanto por aplicação do disposto no artigo 291º nº 1 do C.C., como por via da ressalva estabelecida no artigo 17º nº 2 do C.Reg.Predial, devido à circunstância de ter concluído que a segunda ré, recorrente, atuou de má-fé. Nesta sequência, a argumentação da apelante não merece acolhimento.

j). De qualquer forma, e caso assim não se entenda, haveria que declarar a actuação do Autor, em abuso do direito e como de má-fé, pelo que nunca poderia invocar ele próprio, a má-fé da Recorrente, pois, além das falsidades quanto aos vícios invocados na petição do processo 9/2002, a que o mesmo Autor, se se verificassem, teria dado origem, há que acrescentar que o Autor omitiu nessa acção, que o negócio se destinava a dar cumprimento parcial ao contrato-promessa de 1997 e que, mesmo assim, o Autor estava em mora e continuou em mora quanto ao cumprimento desse contrato-promessa - facto instrumental adquirido em audiência, nos termos do art.º 5º, 2, al.a), do CPC, de que o Autor quando propôs essa acção, estava em mora (cfr. resulta do registo de gravação de 00:49:38s a 00:50:10s do depoimento da testemunha Maria Alcina)?

A este respeito, o apelante sintetiza os seus argumentos do seguinte modo:
«106) A título subsidiário, se as demais objecções à pretensão do Autor não, deveria o tribunal declarar a má-fé do Autor, porquanto, o mesmo, ou veio alegar, na acção 9/2002, factos falsos, ou que o mesmo deu origem com a sua conduta.
107) Mais, devia dar-se como facto instrumental adquirido em audiência, nos termos do art.º 5º, 2, al.a), do CPC, que o Autor quando propôs essa acção, estava em mora quanto ao contrato-promessa de 1997, resulta do registo de gravação de 00:49:38s a 00:50:10s do depoimento da testemunha Maria Alcina.
108) Estando, o Autor numa situação de má-fé, nunca podia prevalecer-se de qualquer invocação de má-fé da parte oposta.»

Conforme flui da argumentação desenvolvida, a apelante pretende beneficiar da factualidade e questões jurídicas que foram suscitadas na ação de processo ordinário, com o Nº 9/2002, mas que são estranhas ao objeto da presente lide, em que não se discute o contrato de alienação celebrado entre o Estado (ora autor) e a primeira ré, VILANORTE, Lda.

Os factos instrumentais que resultem da instrução da causa só devem ser considerados pelo tribunal, nos termos previstos no artigo 5º nº 2 alínea a) do C.P.C., quando estejam correlacionados ou interligados com os factos principais ou essenciais, que são «os previstos nas fatispécies das normas das quais pode emergir o efeito prático-jurídico pretendido pelo autor ou pelo reconvinte (ou nos quais pode fundar-se a exceção deduzida pelo réu), sendo imprescindíveis para a procedência da ação ou da reconvenção (ou da exceção) – art. 581º, nº 4» (Paulo Ramos Faria e Ana Luísa Loureiro, Primeiras Notas ao NCPC, 2013, Vol. I, Alm., pág. 36). 

Na situação vertente, importa determinar se a primeira ré era ou não proprietária da coisa vendida à segunda ré, sendo irrelevantes as motivações, negociações, procedimentos e acordos que conduziram à celebração do contrato que veio a ser declarado nulo no âmbito da ação nº 9/2002, bem como se o Estado cumpriu as obrigações para si decorrentes dessa declaração de nulidade. Esses factos não são constitutivos do direito do autor invocado na presente lide, nem têm a virtualidade de o modificar, impedir ou extinguir, tal como não se integram na defesa por impugnação, nos termos do artigo 571º do C.P.C.
*
As conclusões recursórias não merecem, por consequência, qualquer acolhimento.
*
DECISÃO

Em face do exposto, acorda-se em julgar a apelação improcedente, mantendo-se a decisão recorrida.

Custas a cargo da apelante.

Lisboa, 21.06.2018,

Ana Paula Albarran Carvalho

Maria Manuela Gomes

Gilberto Jorge


[1] Abuso do direito, na modalidade de venire contra factum proprium.
[2] O trânsito em julgado de uma sentença é uma decisão processual, pois só o tribunal  sabe quando fez as notificações, e interpreta as regras sobre prazos, certificada pelo tribunal, sendo que junto aos autos não há qualquer prova documental do conhecimento da Recorrente.