Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
2384/11.6TBMTJ-C.L1-7
Relator: ANA RESENDE
Descritores: EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
RENDIMENTO DISPONÍVEL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 09/18/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: ALTERADA A DECISÃO
Sumário: 1. Constitui objetivo da exoneração do passivo restante, a concessão de uma “segunda oportunidade”, ou “começar de novo”, sem prejuízo da satisfação dos credores da insolvência, tal como se prevê no art.º 1, do CIRE, ainda que de forma reflexa, no atendimento dos limites da respetiva admissibilidade.
2. Todos os rendimentos que advenham ao devedor deverão constituir rendimento disponível, no atendimento da respetiva afetação às finalidades previstas no art.º 241, do CIRE, excetuando, contudo, o que seja razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar.
3. Na determinação do que deva considerar por mínimo necessário ao sustento digno do devedor, a opção legislativa passou pela utilização de um conceito aberto, a que subjaz o reconhecimento do princípio da dignidade humana, necessariamente assente na noção do montante que é indispensável a uma existência condigna, a avaliar face às particularidades da situação concreta do devedor em causa, impondo-se, uma efetiva ponderação casuística no juízo a formular.
(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: ACORDAM NA 7ª SECÇÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA
           
I - Relatório
            1. A e B vieram interpor recurso do despacho inicial de exoneração do passivo restante, na parte em que ordena a cessão dos rendimentos que os devedores venham auferir, com exclusão do montante equivalente a dois salários mínimos.
            2. Nas suas alegações formulam as seguintes conclusões:
· Vem o presente recurso interposto do despacho inicial de exoneração do passivo restante e nomeação de fiduciário, proferido em 19.03.2012.
· O que está em causa no presente recurso é a decisão do tribunal a quo que ordena a cessão dos rendimentos que os devedores venham a auferir, com exclusão do montante equivalente a 2 salários mínimos, fazendo uma incorreta aplicação dos normativos legais previstos na alínea b) e i) do n.º 3 do artigo 239 do CIRE bem como os preceitos constitucionais previstos nos artigos n.º 1, do artigo 59, n.º 2, a) e art.º 65 da Constituição da República.
· Entendem os apelantes que o montante do rendimento a ceder por estes, deve ser fixado respeitando o conceito legal de rendimento disponível definido no n.º 3, do art.º 239, do CIRE.
· A noção de sustento minimamente digno deve ser recortada do conjunto de circunstâncias de tempo e lugar em que se verifica a inserção social dos devedores e agregado familiar. Será naturalmente diferente, em termos quantitativos, quando se trata da vida num grande centro urbano, ou numa pequena comunidade rural e variável, necessariamente, com o número de pessoas a cargo dos insolventes e se estes têm idosos doentes acamados, carecidos de assistência permanente, como se verifica no presente processo. Para além de outros fatores a considerar pelo julgador, atentas as regras da simples experiência da vida.
· O seu fundamento radica, desde logo, no art.º 1 da Declaração dos Direitos Humanos, bem como nos artigos 1.º e 59, n.º 2, da Constituição da República. Para além da consideração de elementares princípios de Justiça, Igualdade e Proporcionalidade.
· No caso sob recurso os Apelantes demonstraram pela apresentação de provas bastantes e suficientes (que submetidas ao contraditório dos demais interessados processuais não foram postas em causa) que auferem mensalmente a quantia líquida de 1761,00€ e têm despesas mínimas que ascendem a 1423,00€, conforme o art.º 13, da PI e documento comprovativo da despesa com o acolhimento da mãe, no montante de 750,00€, apresentado, em 17.01.2012.
· Ficou provado nos autos que a mãe da devedora mulher necessita de internamento em lar de idosos conforme documento médico por ser totalmente dependente de terceiros nas suas atividades diárias. (doc. 6, junto à PI)
· Foi alegado e provado no processo, que o agregado familiar é composto pelos requerentes, e que estes, para além das suas despesas têm de contribuir com 400,00€ mensais, para além da reforma da mãe, para as despesas com a mãe da devedora, que se encontra acamada e carece de acompanhamento permanente conforme declaração médica constante do processo que foi junto à PI como doc. 6.
· A Mma Juiza do Tribunal a quo na sentença em que declarou a insolvência dos devedores, deu como provado: “Os Requerentes gastam mensalmente, em média, a quantia de €411,51 com renda de casa, €12,93 com água, €53,95 com eletricidade, €30,00 com telefone, € 420,00 com alimentação, e pelo menos € 125,00 com artigos de higiene nomeadamente fraldas, para a mãe da requerente…”
· Assim, reconheceu o Tribunal a quo que os requerentes necessitavam, pelo menos, mensalmente de 1073,39€ sem contar com as despesas de internamento da mãe.
· E para o apuramento do total de despesas com a mãe da requerente mulher, na assembleia de credores a Mma Juiza ordenou que com vista à apreciação do pedido de exoneração do passivo restante e a fim de melhor concretizar as efetivas despesas dos devedores desde já se notifica o Exmº Mandatário dos mesmos para, no prazo de 5 dias, apresentar nos autos documentos comprovativos do montante da pensão de reforma auferida pela mãe da requerente e, bem assim, declaração do lar onde a mesma se encontra internada, onde conste o montante da mensalidade para e a identificação da pessoa que procede a tal pagamento.
· Em cumprimento do douto despacho transcrito, os devedores juntaram os referidos documentos. Estes documentos atestam que a devedora mulher para pelo internamento da sua mãe a importância de 750.00€ e que a reforma auferida pela mãe é de 488,00€.
· Nestas condições os requerentes fizeram prova de que têm a efetuar mensalmente, pelo menos, ao montante de 1.335,00€, considerando os 1.073,00€ reconhecidos na sentença que declarou a insolvência somados aos 262,00€ que têm que pagar uma vez que a reforma da mãe é somente de 488,00€.
· No entanto no despacho inicial de exoneração do passivo restante o Tribunal a quo não teve em atenção estas despesas mínimas imprescindíveis à sobrevivência do agregado familiar e da mãe da requerente mulher e fixou como rendimento indisponível para a cessão, somente o equivalente a duas vezes o ordenado mínimo, ou seja o montante de 970,00€
· Ora com este montante os requerentes ficarão numa situação muito abaixo do nível de pobreza, numa situação de penúria e miséria não tendo direito ao rendimento disponível que seja razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado.
· A decisão recorrida faz uma incorreta aplicação dos normativos legais previstos nas alíneas b) i) do n.º 3, do art.º 239 do CIRE e viola, para além deste normativo, os preceitos constitucionais previstos nos artigos 1.º , artigo 59, n.º 2, alínea a), artigo 65, da Constituição da República.
· Na verdade se considerarmos as despesas absolutamente necessárias ao sustento minimamente digno dos insolventes e comprovadas nos autos, de 1.423,00€ ao ser atribuída a quantia de 970,00€ como rendimento indisponível, os insolventes não poderão sequer sobreviver. Assim ou a mãe é condenada à morte prematura ou os insolventes não terão sequer dinheiro para a alimentação.
· Refira-se ainda que o rendimento mensal dos insolventes é de 1.761,00€ pelo que existe uma margem razoável para que seja fixado como rendimento indisponível uma importância próxima de 3 ordenados mínimos, restando ainda para cessão uma importância razoável respeitando o princípio da proporcionalidade.
· Conclui-se assim, que o valor fixado como indispensável para fazer face às despesas do agregado familiar dos ora apelantes de 970,00€ é notoriamente insuficiente para um sustento minimamente digno, em conformidade com os preceitos legais.
· No caso concreto, face às disposições legais supra referidas terá que ser próximo de 3 vezes o ordenado mínimo nacional, e no mínimo 1.335,00€ que são as despesas absolutamente indispensáveis ao agregado familiar (com renda de casa, alimentação e contributo para as despesas com a mãe da requerente).

3. Cumpre apreciar e decidir.
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            II – Enquadramento facto-jurídico
            Presente que o objeto do recurso é definido pelas conclusões do recorrente importando em conformidade decidir as questões[1] nelas colocadas, a saber está, se como pretendem os Recorrentes, deve ser alterada a quantia mensal fixada no montante equivalente a dois salários mínimos, como exclusão do rendimento disponível dos devedores, ora Apelantes.
Como fundamento da sua pretensão alegam que foi feita no despacho sob recurso uma incorreta aplicação dos normativos legais previstos na alínea b), i) do n.º 3 do art.º 239, do CIRE, para além dos preceitos constitucionais consagrados nos artigos 1.º, 59.º n.º 2, a) e 65.º, da CRP, na medida em que no despacho inicial da exoneração do passivo restante não foram atendidas as despesas mínimas imprescindíveis à sobrevivência do agregado familiar e da mãe da Recorrente, apontando que no caso concreto, o quantitativo em causa deverá ser próximo de três vezes o ordenado mínimo nacional, ou no mínimo 1.335,00€, que constituem as despesas absolutamente indispensáveis.
A) do factualismo
 Resulta dos autos:
1. Os ora Recorrentes vieram em 10 de outubro de 2011, apresentar-se à insolvência alegando, essencialmente:
- serem casados sob o regime de comunhão de adquiridos;
- o Requerente, pensionista, recebendo a remuneração mensal líquida de 1.138,00€ e a Requerente, auferindo uma remuneração mensal líquida de 623,00€, têm como rendimento mensal líquido do agregado familiar de 1.761,00€, só podendo dispor de 1.356,97€, devido a penhora de 404,49€, no vencimento do primeiro;
- os Requerentes foram proprietários e sócios gerentes de uma sociedade comercial, decorrendo contra eles, por reversão uma execução pelas dívidas que a sociedade não conseguiu satisfazer no montante de 89.717,00€;
- para suportar os encargos familiares e satisfazer as dívidas da sociedade, viram-se obrigados a recorrer a diversos créditos bancários, quer pessoais quer ao consumo.
- conseguiram até março de 2011 cumprir as prestações relativas aos créditos pessoais, no entanto com a assunção das dívidas da sociedade por reversão, e as despesas familiares, nomeadamente com a mãe da Requerente, ficaram impossibilitados de honrar os seus compromissos com os credores.   
 -  as obrigações assumidas pelos Requerentes ascendem a 129.077,00€;
 2. Foi declarada, por sentença, a insolvência dos Recorrentes, consignando-se como assentes, os seguintes factos:
- Os Requerentes são casados entre si desde 17 de abril de 1976, no regime de bens de comunhão de adquiridos.
- O Requerente marido é pensionista ..., auferindo em média a remuneração mensal líquida de €1.138,00.
- Sobre o seu rendimento incide uma penhora no montante de 404,49€;
- A Requerente mulher trabalha na ….., auferindo, em média a remuneração mensal líquida de 623,00€
- A mãe da Requerente está imobilizada e carece de internamento, pelo que se encontra internada no lar de idosos da …...
- Os Requerentes foram proprietários e sócios gerentes de uma sociedade comercial, decorrendo contra os requerentes uma execução – processo n.º…., pelas dívidas que aquela sociedade não conseguiu satisfazer no montante de pelo menos 89.717,00€.
- Para fazer face às despesas do agregado familiar e com a mãe da Requerente mulher se encontrasse internada em lar de idosos e carece de cuidados especiais e para satisfazer as dívidas da sociedade acima referida, os Requerentes recorreram a diversos créditos bancários.
- Em data não concretamente apurada do ano de 2008 os Requerentes efetuaram dois empréstimos junto do Banco C., no montante global de 19.000,00€, tendo as prestações mensais de 193,00€ sido pagas até março de corrente ano, sendo que a dívida naquela data em que teve lugar o incumprimento era de pelo menos 18.945,00€.
- Em novembro de 2006, os Requerentes efetuaram um empréstimo junto do Banco D, no montante de 5.000,00€. A prestação foi desde o início de 107,00€. Têm também um cartão de crédito, com um plafond de 2.500,00€, que têm utilizado com uma prestação mensal de 124,00€, sendo o valor em dívida para com esta entidade de pelo menos 2.777,00€
- Em 2004 os Requerentes contrataram com a E um crédito com um plafond de 3.000,00€, com uma prestação de 101,00€ e em 2006, um crédito de 10.000,00€ com uma prestação de 230,00€. Esses créditos foram sendo reutilizados na medida em que o plafond ficava disponível. Os Requerentes liquidaram pontualmente as prestações apenas até janeiro deste ano, sendo a quantia em dívida para com esta entidade de pelo menos 13.474,00€.
- Em 2004 os Requerentes contrataram com F, um empréstimo a utilizar através de um cartão de crédito com um plafond de 4.000,00€. A mensalidade foi no início, de 141,00€, variando posteriormente, consoante a utilização dos montantes dos saldos, sendo que os Requerentes devem a tal entidade pelo menos a quantia de 4.067,00€.
- No âmbito da ação executiva referida, a G exige dos Requerentes enquanto sócios gerentes e avalistas, o pagamento das dívidas daquela sociedade, quantia que assume pelo menos no montante de 89.717,00€.
- Todas as dívidas descritas são da responsabilidade de ambos os Requerentes.
- Os Requerentes só conseguiram cumprir com o pagamento das prestações mensais relativas aos seus créditos pessoais até março do corrente ano.
- Os Requerentes gastam, em média, a quantia de 411,51€ com renda de casa, 12,93€ com água, 53,95€ com eletricidade, 30,00€ com telefone, 420,00€ com alimentação e pelo menos 125,00€ com artigos de higiene nomeadamente fraldas, para a mãe da Requerente.
- Os Requerentes não possuem outros bens além dos rendimentos auferidos a título de pensão e salário.
3. O Administrador da insolvência no relatório efetuado nos termos do art.º 155 do CIRE, referenciou:
- O agregado familiar é constituído pelos Requerentes, tendo o marido 64 anos de idade, reformado, auferindo a pensão mensal de 1.138,00€, enquanto a mulher tem 58 anos, exerce as funções de telefonista, auferindo mensalmente a quantia de 623,00€
- os Requerentes  foram sócios e gerentes da sociedade comercial “H, Lda, que encerrou nos anos noventa, assumindo as dívidas contraídas no âmbito da atividade comercial da referida sociedade.
- até 2008, com muitas dificuldades foram liquidando as obrigações assumidas, recorrendo a pequenos créditos.
- em 2009 ficaram com a responsabilidade de contribuir mensalmente com a quantia de 400,00€ para ajudar a mãe da Requerente que se encontra internada/acamada numa instituição.
- o aumento das despesas tornou-se incomportável na economia familiar, contribuindo para que desde março de 2011 deixassem de poder cumprir pontualmente com as obrigações.
Propondo, em conformidade:
- o encerramento do processo nos termos do art.º 232, do CIRE, concluindo-se assim pela insuficiência da massa insolvente nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 230, n.º 1, d) do CIRE, após a verificação dos créditos, tendo em conta a não possuírem os Requerentes qualquer tipo de bens,  nem móveis, nem imóveis, nada ter a opor à requerida exoneração do passivo restante.
4. Em sede de Assembleia de Credores, a credora E não se opôs à concessão do benefício de exoneração do passivo restante, considerando como necessário ao sustento minimamente digno dos devedores, o montante relativo a dois salários mínimos nacionais, mencionando os Requerentes antes a quantia de três salários mínimos face às despesas referenciadas, bem como as decorrentes da doença da mãe da Devedora, tendo em conformidade sido ordenada a junção do comprovativo do montante da pensão de reforma auferida pela mãe da Requerente, e a declaração do Lar onde a mesma se encontra internada, e o quantitativo da mensalidade paga e identificação da pessoa que faz tal pagamento. 
5. Os Insolventes vieram juntar a fls. 131, cópia de documento do Centro Nacional de Pensões, com a indicação que a I foi satisfeita em 2011, pensão mensal no valor de 394,19€ acrescido de complemento de dependência de 94,77€ e de fls. 132, cópia de declaração na qual consta que é satisfeito mensalmente o montante de 750,00€ pelos cuidados prestados a I, importância essa suportada pela filha B.
6. Foi proferido então o despacho no qual se consignou:
(…) Assim sendo e inexistindo qualquer facto que permita fundar alguma das exclusivas causas que justificam o indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante, de entre as que se encontram previstas no artigo 238.º, n.º 1, alíneas a) a g), do CIRE, importa admitir liminarmente tal pedido, o que se decide.
Pelo exposto, em consonância com o estatuído no artigo 239.º, n.º 1, 2 e 3, do CIRE, determino que durante o prazo de 5 (cinco) anos, a contar da data de encerramento do processo de insolvência (período da cessão), o rendimento disponível que os devedores venham a auferir, com exclusão do montante equivalente a 2 (dois) salários mínimos, seja cedido a fiduciário, o qual desde já se nomeia como sendo o Exmo. Sr. Administrador da Insolvência nestes autos nomeado, ficando os devedores com as obrigações expressas no artigo 239.º, n.º 4 do CIRE, sob pena de não lhe ser concedido a final o pedido de exoneração, e ficando o Sr. Administrador da Insolvência com as obrigações constantes do artigo 241.º do CIRE, devendo ainda ter-se presente que a exoneração não abrange os créditos previstos no artigo 242.º do CIRE.
 (…)
7. Por insuficiência da massa insolvente foi declarado encerrado o processo em que foi decidida a insolvência dos Requerentes.
B) do direito
Apreciando.
Como é sabido, se o devedor for uma pessoa singular, pode-lhe ser concedida a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência, ou nos cinco anos posteriores ao encerramento deste, requerida que seja, como no caso sob análise no requerimento de apresentação à insolvência, nos termos dos artigos 235 e 236, do CIRE, consubstanciando-se, desse modo numa libertação definitiva do devedor quanto ao passivo não satisfeito totalmente, naquele processo ou no espaço de tempo em referência, nas condições fixadas no incidente em causa.
Importa salientar como o objetivo da exoneração do passivo restante, a concessão de uma “segunda oportunidade”, ou “começar de novo”, sem prejuízo da satisfação dos credores da insolvência, tal como se prevê no art.º 1, do CIRE, ainda que de forma reflexa, no atendimento de limites da respetiva admissibilidade[2].
Deferido, liminarmente, o pedido de exoneração, como se verificou nos presentes autos, determina o Juiz que durante o prazo de cinco anos, subsequente ao prazo de encerramento do processo de insolvência, o rendimento disponível do devedor considera-se cedido a uma entidade, designada de fiduciária, para os fins do art.º 241, do CIRE, caso do pagamento das custas do processo de insolvência ainda em dívida, e da remuneração já vencida do administrador da insolvência e do fiduciário, bem como de despesas efetuadas, e a distribuição do remanescente pelos credores da insolvência, nos termos prescritos para o pagamento aos credores no processo de insolvência.
Assim, e conforme já se consignou em tal âmbito, em termos que não se configuram que devam ser alterados[3], se atentarmos ao disposto no art.º 239, do CIRE, resulta do consignado, no seu n.º 3, o estabelecimento do princípio que todos os rendimentos que advenham ao devedor deverão constituir rendimento disponível, no atendimento da respetiva afetação às finalidades previstas já referenciadas no art.º 241, também do CIRE, excetuando, contudo, o que seja razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, considerando-se que tal montante não deverá exceder três vezes o salário mínimo nacional, salvo decisão fundamentada do juiz em contrário.
Refira-se que se tem como bom o entendimento[4] que na previsão da subalínea i) da al. b) do n.º 3 do art.º 239 do CIRE, o legislador estabeleceu dois limites: um mínimo, avaliado por um critério geral e abstrato – o sustento minimamente condigno do devedor e seu agregado familiar –  a preencher pelo juiz em cada caso concreto, conforme as circunstâncias particulares do devedor; e um limite máximo obtido através de um critério quantificável e objetivo – o equivalente a três salários mínimos nacionais – o qual, excecionalmente, poderá ser excedido em casos que o justifiquem.
Assim, e no concerne à determinação do que deva considerar por mínimo necessário ao sustento digno do devedor, a opção legislativa passou pela utilização de um conceito aberto, a que subjaz o reconhecimento do princípio da dignidade humana, necessariamente assente na noção do montante que é indispensável a uma existência condigna, a avaliar face às particularidades da situação concreta do devedor em causa, impondo-se, uma efetiva ponderação casuística no juízo a formular no que respeita à fixação do quantitativo excluído da cessão dos rendimentos.
Reportando-nos aos presentes autos, considerou-se na decisão sob recurso, e centrado que está o mesmo no quantitativo destinado ao sustento dos Insolventes, que do rendimento disponível que estes viessem a auferir, seria excluído o montante equivalente a dois salários mínimos para tanto, questionando-se se tal quantia se mostra suficiente, perante os elementos constantes dos autos, para garantir o mínimo essencial, a uma existência condigna no atendimento da realidade delimitada.
Ora, se é certo que a resolução de tal problema passa, sem dúvida pela ponderação dos factualismo atendível, como se deve entender que foi feito aquando da prolação do decidido, ainda que expressamente não referenciado, temos também que ter presente, que como fenómeno social em análise, sempre será passível de alterações decorrentes das vivências dos envolvidos.
Desta forma, tendo em conta o que foi oportunamente trazido ao processo, resulta que o atendimento da verba correspondente a dois salários mínimos[5] será insuficiente para prover os encargos enunciados e tidos como demonstrados, encargos esses que não se divisa que vão para além dos minimamente necessários a uma existência condigna, na observância também dos deveres de entreajuda geracional.
Surge-nos, em conformidade, na ponderação de todo o factualismo constante dos autos no concerne às responsabilidades dos devedores apuradas, e atendíveis, tendo em consideração os parâmetros enunciados, que deverá ser alterado o montante não objeto de cessão para o equivalente a três salários mínimos nacionais, assegurando-se assim o sustento mínimo digno dos devedores, bem como a satisfação do interesse dos credores, na medida em que não deixa de haver um remanescente para tanto.
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III – DECISÃO
Nestes termos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação, em julgar procedente a apelação, e em consequência, revogam a decisão recorrida no que se reporta ao valor do rendimento indisponível, fixando-o em três salários mínimos.
           Sem custas.

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Lisboa, 18 de setembro de 2012

Ana Resende
Dina Monteiro
Luís Espírito Santo
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[1] O Tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos ou fundamentos que as partes indiquem para fazer valer o seu ponto de vista, sendo que, quanto ao enquadramento legal, não está o sujeito às razões jurídicas invocadas pelas partes, pois o julgador é livre na interpretação e aplicação do direito, art.º 664, do CPC.
[2] Cfr., Ac. do STJ de 21de outubro de 2010, in www.dgsi.pt.
[3] No acórdão proferido no processo 1359/09.0TBAMD.L1, de 12 de abril de 2011, subscrito por este Coletivo.
[4] Cfr. também acórdão do proferido no Processo n.º1220/10.5YXLSB-A.L1, de 18 de janeiro de 2011, desta secção.
[5] Na vigência do DL 143/2010, de 31 de dezembro, que consagrou como retribuição mínima mensal garantida, a partir de 1 de janeiro de 2011, a quantia de 485,00€.