Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
383/14.5T8AMD.L1-2
Relator: CARLOS CASTELO BRANCO
Descritores: NULIDADE DA DECISÃO
MORDEDURA DE CÃO
RESPONSABILIDADE CIVIL DO DONO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/24/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I) As questões a resolver pelo julgador, nos termos e para os efeitos do artigo 608.º, n.º 2, do CPC, estão diretamente ligadas ao pedido e à respetiva causa de pedir, encontrando-se apenas e necessariamente vertidos nos articulados e suas alterações processualmente previstas, não estando o juiz obrigado a apreciar e a rebater cada um dos argumentos de facto ou de direito que as partes invocam com vista a obter a procedência da sua pretensão, ou a pronunciar-se sobre todas as considerações tecidas para esse efeito.
II) Na decorrência do estatuído no artigo 552.º, n.º 1, al. d) do CPC, para o autor, e dos artigos 572.º a 574.º, para o réu, em conjugação com o que se encontra vertido nos artigos 5.º, 259.º, 264.º, 265.º, 410.º, 588.º, 589.º e 596.º, n.º 1, do CPC, quanto ao começo e desenvolvimento da instância e ao âmbito da instrução e discussão do processo, e ainda, com o disposto no artigo 147.º do CPC (prevendo que os articulados são as peças em que as partes expõem os fundamentos da ação e da defesa e formulam os pedidos correspondentes), a introdução de questões – ressalvados os requerimentos orais que podem ser apresentados em sede de audiência prévia ou inerentes à instrução do processo – no processo civil sobre as quais se pretende que o tribunal profira uma decisão, deve ser feita nos moldes previstos naqueles normativos, obedecendo à forma escrita.
III) Conforme deflui do artigo 604.º, n.º 3, al. e) do CPC, as alegações orais destinam-se à exposição pelos advogados das “conclusões, de facto e de direito, que hajam extraído da prova produzida”, com elas procurando fixar – procedendo à análise crítica da prova produzida – os factos que devem considerar-se provados e aqueles que devem considerar-se como não provados, de entre os que integram os temas da prova previamente fixados e se revelem de utilidade decisiva para o julgamento de mérito.
IV) Esse momento processual não é o adequado para a formulação de requerimento sobre o mérito da causa ou sobre alguma questão relacionada com o pedido e a causa de pedir formulados.
V) A pretensão, expressa pela Ilustre Advogada do réu, aquando da produção de alegações orais nos termos do artigo 604.º, n.º 3, al. e) do CPC, de introduzir na esfera de questões a decidir pelo Tribunal a quo, uma nova questão relacionada com o conhecimento do pedido e da causa de pedir invocados, que não deduziu na contestação ou em qualquer articulado subsequente, não determina que o Tribunal tivesse de sobre ela tomar posição e emitir juízo, pelo que, da circunstância de a sentença recorrida não se ter pronunciado sobre a temática, não advém qualquer nulidade para tal decisão.
VI) Não se afigura que a condenação do arguido no âmbito de um processo penal sumaríssimo comporte a violação de algum direito de defesa do mesmo ou que a aplicação de medidas penais no âmbito de um processo penal sumaríssimo implique a impossibilidade de aproveitamento para o processo civil do teor do decidido em tal processo penal, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 623.º do CPC.
VII) Não deixa de estar no espaço público, um cão ainda que sentado num veículo privado, quando o referido espaço não estava confinado, mas antes aberto sobre a via pública, possibilitando que se lançasse sobre quem, por ali, passasse, sem que o réu tenha tomado as devidas precauções que a situação concreta exigiria.
VIII) Na fixação da indemnização por danos não patrimoniais deve o tribunal recorrer à equidade, tendo em atenção o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso.
IX) Ponderando a tenra idade da autora à data dos factos – então com 4 anos – a gravidade dos ferimentos e as dores tidas, bem como, a cicatriz permanente que afecta a vida de relação da autora, a sequela física com que ficou que altera a sensibilidade do seu lábio, não podendo ser corrigida com os conhecimentos médicos actuais, não se vislumbra que o montante fixado pela 1.ª instância (€ 22.000,00) esteja em desarmonia com a pauta que tem sido aplicável, nem com os critérios de fixação da indemnização por danos não patrimoniais.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 2.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

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1. Relatório:
DC…, menor, representada pelos seus pais, LF… e AF…, identificada nos autos, intentou a presente acção declarativa, sob a forma comum, pedindo a condenação do réu FJ…, também identificado nos autos, a pagar-lhe o montante de € 46,70 (quarenta e seis euros e setenta cêntimos) a título de danos patrimoniais, bem como, o montante de € 31.000,00 (trinta e um mil euros) a título de danos não patrimoniais.
Alegou que, encontrando-se na companhia dos seus pais, estes aproximaram-se do réu, de quem eram amigos, que estava sentado no interior do porta bagagens da sua carrinha com um cão de raça Pit Bull Terrer, que estava sem trela e sem açaimo. Uma vez que conviviam com o animal desde há cerca de ano e meio, a mãe perguntou ao réu se podia acariciar o animal, o que este autorizou. Assim, depois de a autora o acariciar, o cão, de forma repentina e intempestiva, salta do interior do porta  bagagem e desfere uma dentada no lábio superior da requerida, o que fez com que perdesse substância na metade esquerda do lábio. Além do trauma da dentada, a autora foi sujeita a cirurgia plástica experienciando forte dores, alteração do regime alimentar, além de impossibilitada de frequentar o pré-escolar e ficou marcada na face, alteração estética que a irá acompanhar ao longo da vida, o que gera mazela psicológicas, com problemas de autoestima e confiança. Apenas após os 15 anos de idade poderá realizar uma operação plástica de reconstrução facial, o que lhe provocará sofrimento.
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Citado, o réu reconhece estar sentado no interior do porta-bagagens, juntamento com o cão, de raça Bull Terrier, um animal de companhia, cão que frequentou uma escola, é calmo e está ensinado e registado e que nunca mordeu mais nenhuma pessoa e está habituado a crianças, sendo que o cão estava preso com trela presa na argola de segurança do carro, reconhecendo que o cão não tinha açaimo. Nega que tenha sido questionado ou tenha autorizado qualquer carícia ao cão. Afirma que, enquanto o pai da autora e o réu se cumprimentavam, o cão ladrou demasiado perto da cara da menina, atingindo a parte superior do lábio da mesma. Diz que os pais da autora não impediram que ela se aproximasse do cão e que ela não estava familiarizada com o mesmo pois, apesar de o conhecer, não brincava com ela. Foi ele próprio quem transportou a autora às instalações da Cruz Vermelha onde foram prestados os primeiros socorros, esteve sempre presente para ajudar, e que a autora, à noite, já se encontrava bem, passeando com os pais, não tendo detetado grandes transtornos na pessoa da autora e que estava em boa recuperação e sem mazelas.
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Realizada audiência prévia e audiência final, veio a ser proferida, em 23-04-2018, sentença julgando parcialmente procedente a acção e condenando o réu a pagar à autora € 22.000,00 (vinte e dois mil euros) a titulo de danos não patrimoniais, acrescidos de juros de mora vencidos depois da prolação desta decisão à taxa legal até integral pagamento.
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Não se conformando com a referida sentença, dela apela o réu, formulando as seguintes conclusões:
“1. A douta sentença recorrida deu como provada, sob o n.º 2, a seguinte matéria de facto: “Por sentença datada de 11 de Fevereiro de 2014, transitada em julgado no mesmo dia, proferida no processo …/…, que correu termos no Juízo de Pequena Instância Criminal da Amadora, Comarca da Grande Lisboa-Noroeste, o arguido FJ…, foi condenado, em processo especial sumaríssimo, pela prática de um crime de ofensa à integridade física negligente, prevista e punida pelo art. 148º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 60 dias de multa à taxa diária de 5 euros, relativamente aos factos que são objeto desta ação”.
2. A convicção do douto Tribunal recorrido assentou na certidão judicial onde consta um requerimento para aplicação de sanção em processo sumaríssimo e da sentença proferida pelo Juízo de Pequena Instância Criminal da Amadora, Comarca da Grande Lisboa-Noroeste, transitada em julgado, que condenou o réu pela prática de um crime de ofensa à integridade física por negligência numa pela de 60 dias de multa.
3. Com base no art. 623º do Código de Processo Civil considerou o douto Tribunal a quo a existência da presunção ilidível “quanto aos factos constantes de sentença penal condenatória”.
4. Da mencionada sentença não constam quaisquer factos, nem sequer por remissão, e os factos constantes da acusação não foram, necessariamente, sujeitos ao princípio do contraditório, que é estruturante do processo penal, para além de que nem sequer foram efetivamente julgados por um Tribunal, onde tal contraditório teria sido assegurado.
5. Ademais, parece até incongruente com o princípio in dubio pro reo a consideração de que “a concordância do arguido quanto à mesma (sanção) tem como implícito o reconhecimento da verdade dos factos que lhe são imputados”, pois se no processo penal não foram discutidos os factos, nada parece impedir que o ali arguido e ora R./Recorrente possa discutir, em igualdade de circunstâncias (isto é, sem o funcionamento do mecanismo presuntivo) com a A., a matéria de facto alegada.
6. Além do mais, o R. alegou e demonstrou que a aceitação da sanção teve exclusivamente em vista não prejudicar a possibilidade de ingressar no mercado de trabalho.
7. A douta sentença recorrida deu como provada, sob o n.º 5, a seguinte matéria de facto: “O cão estava no interior do porta-bagagens sem trela nem açaime”.
8. Em sede de audiência de discussão e julgamento, os pais da A. afirmaram que o cão estava sem trela.
9. Contudo, no seu depoimento prestado, como testemunha, nos autos criminais, admitidos nos presentes autos, o pai da A. reconhece que o cão estava com trela.
10. O R., quer em sede de contestação, quer em sede de declarações de parte, afirmou que o cão tinha trela, mas não tinha açaimo.
11. O mesmo assumiu prontamente que o cão não usava açaimo, mas tinha trela com 72 cm, estava preso na argola do carro, Renault Laguna, cuja bagageira tem 1,2 a 1,5 metros de comprimento, e confirmou que, após a mordidela, o cão ficou no mesmo lugar, porque senão ficaria pendurado pelo pescoço.
12. As testemunhas confirmaram igualmente que o cão andava sempre com trela.
13. Não se vislumbra por que razão o R. assumiria uma circunstância (de não ter açaimo) e não assumiria outra (de não ter trela, se fosse o caso).
14. Compete à A. demonstrar os factos que alega.
15. Perante as contradições entre A. e R., e em especial entre o pai e a mãe da A., e ainda entre a A. e as testemunhas, parece que a dúvida impede a demonstração de que o cão estava sem trela, não podendo por isso sustentar, coerentemente, a convicção do douto Tribunal a quo de que o cão não tinha trela.
16. No entanto, as testemunhas confirmaram perentoriamente que o cão em causa andava sempre preso com trela, pelo que se crê ter havido erro de julgamento quanto a este facto.
17. Ainda no que tange à trela, o douto Tribunal a quo concluiu que aquela “não serviu o seu propósito”.
18. Sempre se dirá que nunca a trela serviria o seu propósito sempre e quando, em qualquer lugar, uma criança se aproximasse de tal forma do animal, que ocupasse o espaço envolvente deste, como fez a A. e como foi reconhecido pelos seus pais.
19. A douta sentença recorrida deu como provada, sob o n.º 9, a seguinte matéria de facto: “(…) DC… perguntou ao pai se podia acariciar o cão.”, e sob o n.º 10, a seguinte matéria de facto: “Porque já estavam familiarizados com o animal por convívios anteriores, o pai autorizou que a filha o fizesse (acariciar o cão), ao que o réu, apercebendo-se da situação, não se opôs.”.
20. Os pais da A. tentaram demonstrar a familiaridade desta com o cão, afirmando que a filha brincava diariamente com este e até lhe dava comida à boca, tendo o pai reconhecido que “o cão nunca representou perigo para ninguém”.
21. Na versão do mesmo, a A. terá perguntado ao pai e ao R. se podia acariciar o cão. O pai “disse que sim” e o R. “não disse que não”.
22. O douto Tribunal a quo deu como assente que o R. não se opôs a que a A. acariciasse o cão, o que o pai da A. interpretou como consentimento.
23. Porém, o pai da A. acabou por admitir que nem ele, nem a mãe da A. pediram autorização ao R. para que a criança acariciasse o cão.
24. Afigura-se inequívoco que os pais da A. articularam os depoimentos utilizando muitas vezes as mesmas palavras e as mesmas expressões com o notado propósito de responsabilizar o R., obrigando-o dessa forma a pagar uma indemnização.
25. Contudo, os pais da A. acabaram por deixar escapar a sua verdadeira opinião sobre o sucedido: o pai desabafou: “Foi um mês de azar” e a mãe afirmou : “foi uma infelicidade”.
26. Em qualquer dos casos é possível notar uma total falta de autocensura quer pelo evento em discussão nos autos, quer pela queda da criança no vão da escada.
27. Como reconheceu a mãe da A., a autorização decorreu da ausência de receio por parte dos pais, e não pela alegada anuência do R.
28. As testemunhas vieram corroborar aquilo que as regras da experiência já ditavam, isto é, que inexistia qualquer tipo de relação entre o cão e a A. porquanto eram os próprios pais que não permitiam que esta se aproximasse daquele e que nem sequer era possível brincar com ele atirando objetos porque o mesmo estava sempre preso na trela.
29. Por seu turno, o R. afirmou que ninguém lhe pediu consentimento para que a A. acariciasse o cão.
30. Aliás, nenhum facto foi relatado, a partir do qual seja possível extrair que, aquando do pedido, o R. se terá apercebido dele, sendo esta apreciação uma mera conclusão do pai da A. a que o douto Tribunal a quo, erradamente, aderiu.
31. Portanto, uma vez mais as contradições entre os depoimentos do pai e da mãe da A. não podem sustentar a consideração de o R. se apercebeu do pedido e nada disse, equivalendo esta ausência de resposta a uma anuência por parte do R.
32. Mais uma vez, tendo presente o ónus da prova, competia à A. demonstrar os factos por si alegados, o que não fez, e por isso, se considera ter havido erro de julgamento quanto aos factos dados como provados em 9 e 10.
33. A douta sentença recorrida deu como provada, sob o n.º 29, a seguinte matéria de facto: “A autora e o Chuck estavam habituados a partilharem o mesmo espaço, ainda que os pais da autora tivessem cuidado para que a criança não interagisse livremente com o animal.”.
34. Os pais da A. tentaram demonstrar ao longo dos seus depoimentos uma relação de habitualidade e familiaridade da A. com o cão e vice-versa.
35. Contudo, essa versão fica totalmente destruída perante os depoimentos do R. e das testemunhas, razão pela qual, na perspetiva do Recorrente, o douto Tribunal a quo julgou erradamente como provada a habitualidade de convívio e partilha do mesmo espaço entre a criança e o cão, quando estes, na realidade, não interagiam.
36. Mas ainda que fosse considerado como na douta sentença recorrida, forçoso é concluir que, se que os pais tinham o cuidado de não deixar a A. interagir livremente com o animal, então no dia do evento não tiveram esse cuidado e a falta dele não é apto a imputar ao R. qualquer responsabilidade (…).
37. Pelo exposto, o fato dado como provado sob o n.º 29 deveria ter sido dado como não provado, o que se requer.
38. Aliás, são inúmeras as contradições entre os depoimentos dos pais da A. que, conjuntamente com a A. e o R., foram as únicas pessoas presentes no evento.
39. As mencionadas contradições põem em evidência um propósito claro dos pais da A. em contar os factos de modo a responsabilizar o R. para, assim, obter o pagamento de uma indemnização.
40. A douta sentença recorrida, em momento algum, afirma de forma clara e inequívoca o lugar onde ocorreu o evento, apesar de reconhecer no facto provado sob o n.º 5 que o cão estava no interior do porta-bagagens.
41. Contudo, este é um facto relevante para a apreciação jurídica dos factos, porquanto a natureza pública ou privada do local onde aquele ocorreu é apta a influenciar a determinação da responsabilidade pelo evento, ou pelo menos, a delimitar os deveres do R.
42. Resulta dos depoimentos dos pais da A. e do R. que o evento ocorreu no interior do veículo.
43. O douto Tribunal recorrido limitou-se a afirmar que “não resultou provado que a autora tivesse entrado no porta-bagagens e aí sido mordida”, ao arrepio da versão dos pais da A. e, também assim, do R.
44. Neste contexto, não pode deixar de considerar-se que o evento ocorreu em lugar privado uma vez que o interior da bagageira não pode ser acedido livremente por toda a gente, como se de um local público se tratasse.
45. Por este motivo, o uso da trela deixa de ter relevância, como também considerou a douta sentença recorrida, mas com fundamento distinto: não estando em espaço público, o cão não estava obrigado a usar trela ou açaimo, apesar de efetivamente estar, ao tempo do evento, preso com trela, como já demonstrado.
46. No que respeita à dinâmica do evento, nenhum dos intervenientes alegou que o evento não tenha ocorrido quando a A. se dirigiu ao cão para o acariciar.
47. Quer isto dizer que quem realiza a ação de aproximação do cão é a A. e não o inverso. É esta que entra no espaço onde se encontra o cão e não o inverso. É esta que toma a iniciativa de tocar o cão e não o inverso. Foi o pai que autorizou a A. a tocar no cão e não o inverso.
48. Daí que não pode concluir-se, como fez a douta sentença recorrida, que a “avaliação que o réu fazia do perigo era que era nulo”, porquanto o R. tinha domínio sobre o cão, que estava preso na argola do carro com trela e cujo comprimento não lhe permitia sair de dentro do porta-bagagens da viatura em que se encontrava.
49. Diferentemente, o R. não tinha, nem poderia ter, o domínio sobre a criança, uma vez que este pertence aos progenitores que a acompanhavam.
50. Em face do exposto, não praticou o R. qualquer ação ou omissão conducente à produção dos danos, tendo o cão apenas reagido à aproximação da A., pois nada mais, no que tange à dinâmica do evento propriamente dito, se conseguiu demonstrar.
51. Portanto, nenhuma censura pode ser dirigida a R.
52. Assim, salvo melhor opinião, não logrou a A. provar a responsabilidade do R., uma vez que nenhum ato típico e/ou ilícito foi praticado pelo R. Por este motivo, deve o R. ser absolvido.
53. A douta sentença recorrida alicerça, em parte, a sua decisão no alegado silêncio do R. (na alegada hipótese de não ter respondido ao suposto pedido de autorização do R.).
54. O silêncio não tem valor declarativo, salvo se houver lei, uso ou convenção.
55. Ora não foi alegado, nem sequer demonstrado, a existência de qualquer lei, uso ou convenção a atribuir valor ao alegado silêncio da R.,
independentemente da interpretação que cada um, nomeadamente os pais da A. pudessem fazer ou tenham feito.
56. Assim, também por esta via, se demonstra que, em face de toda a prova produzida, deve o R. ser absolvido.
57. A douta sentença recorrida fixou uma indemnização por danos patrimoniais correspondente a 22.000,00 €, da qual se recorre, sem prejuízo de todo o exposto quanto à matéria de responsabilidade.
58. Em face da jurisprudência nacional, tal valor afigura-se desproporcionadamente elevado tendo em conta os danos sofridos pela A. e constantes dos factos provados sob os n.º 13 a 19.
59. Se comparada a indemnização arbitrada com o valor atribuído ao dano morte, que oscila entre os 50.000 € e os 70.000 €, facilmente se torna evidente a desproporção do montante da indemnização, entendendo-se adequada uma indemnização não superior a 7.500,00 €.
60. Em sede de alegações, o R. requereu que, relativamente a qualquer indemnização que pudesse, eventualmente, ser arbitrada, fosse determinado o depósito desta em conta bancária titulada exclusivamente pela menor, que não pudesse ser movimentada pelos pais até aquela completar a maioridade, salvo ordem em contrário do Tribunal.
61. Contudo, na douta sentença requerida nada é referido a tal respeito, pelo que a douta sentença recorrida é nula.
Termos em que se requer ao Venerando Tribunal da Relação de Lisboa que revogue a douta sentença recorrida, substituindo-a por acórdão que considere a nulidade da sentença por omissão de pronúncia, a matéria de facto sindicada como provada e não provada, nos termos requeridos, considerar que o evento ocorreu em lugar privado, que é irrelevante o silêncio do R., que este não é civilmente responsável pelos danos da A. e, consequentemente, que absolva o R. do pedido, ou subsidiariamente, que fixe indemnização não superior a 7.500,00 €, a depositar em conta bancária exclusivamente titulada pela A.

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A autora contra-alegou concluindo que:
“1. O Recorrente deu a sua anuência quanto à aproximação da criança ao seu cão, por o mesmo ser considerado calmo, dócil e que se dava com as crianças.
2. Face ao contexto de amizade e convívio, o tribunal a quo ficou convencido e bem que a menor estava condicionada pelos pais a só tocar no cão com autorização e, por outro lado, que o Recorrente não tinha qualquer objecão a que a menina tocasse no animal, pelo que, quando se apercebeu que a menor se aproximava do cão e que o pai autorizara a que tocasse no animal, não tomou qualquer iniciativa nem manifestou qualquer oposição.
3. A avaliação que o Recorrente fazia do perigo perante aquela situação, era praticamente nulo.
4. A verdade é que, a ter trela, a mesma não impediria o cão de chegar à Recorrida com a intenção de morder. O que aconteceu.
5. Ao contrário do que o Recorrente afirma, o Tribunal a quo decidiu e bem que tais situações foram confirmadas pelas várias testemunhas em sede de audiência de discussão e julgamento.
6. Os país da Recorrida foram concisos e precisos quando afirmaram que, à data dos factos, eram amigos do Recorrente, e que a sua filha já tinha, por diversas vezes, convivido com o cão do réu.
7. Razão pela qual a Recorrida confiava que nada lhe poderia acontecer.
8. Quanto ao ponto 29., o Tribunal a quo valorizou e bem as declarações prestadas pelos pais da Recorrida, que reconheceram que o cão não apresentava qualquer perigo, que não era agressivo para as pessoas, trazendo a confiança necessária para que a sua filha brincasse com o mesmo.
9. Contudo, os pais da Recorrida não permitiam que a mesma interagisse livremente com o cão, solicitando sempre a sua autorização para tal.
10. Conforme avaliou e bem o Tribunal a quo, a Recorrida, com 4 anos de idade na altura dos factos, sofreu danos, resultantes de lesões corporais, da operação, cicatriz na face, (alteração de sensibilidade), que merecem ser tutelados pelo direito.
11. Não é apenas a dor física, como o próprio sofrimento psicológico que necessita de ser reparado.
12. O Tribunal a quo considerou os seguintes factos:- Idade da Recorrida: 4 anos;-Gravidade dos ferimentos;- Quantum doloris de 5, numa escala de 7;- Cicatriz no lábio com 3,5cm, desfigurou de forma grave a face da Recorrida, e que poderá ser apenas parcialmente corrigida, afetando desse moda a sua vida.
13. Considerando todos os elementos, não poderia ser outro o valor fixado pelo Tribunal a quo a titulo de indemnização”.

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2. Questões a decidir:
Sendo o objecto do recurso balizado pelas conclusões do apelante, nos termos preceituados pelos artigos 635º, nº 4, e 639º, nº 1, do CPC, as questões a decidir são:
a) Se ocorre a invocada nulidade da sentença nos termos do artigo 615º, nº 1, al. d) do CPC, por omissão de pronúncia, por a sentença não referir o depósito da indemnização em conta bancária titulada exclusivamente pela menor, que não pudesse ser movimentada pelos pais até aquela completar a maioridade, salvo ordem em contrário do Tribunal?
b) Impugnação da matéria de facto:
b.1) Se o Tribunal não deveria ter considerado o facto n.º 2) como provado, nos termos do artigo 623.º do CPC - “Por sentença datada de 11 de Fevereiro de 2014, transitada em julgado no mesmo dia, proferida no processo …/…, que correu termos no Juízo de Pequena Instância Criminal da Amadora, Comarca da Grande Lisboa-Noroeste, o arguido FJ…, foi condenado, em processo especial sumaríssimo, pela prática de um crime de ofensa à integridade física negligente, prevista e punida pelo art. 148º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 60 dias de multa à taxa diária de 5 euros, relativamente aos factos que são objeto desta ação” – por não ter sido exercido contraditório sobre os factos daquele processo, atenta a forma processual especial sumaríssima sob que o mesmo correu termos?
b.2) Se o facto 5) dado como provado na sentença recorrida deve passar a ter a seguinte redação: “O cão estava no interior do porta-bagagens com trela e sem açaime”?
b.3) Se os factos 9) e 10) dados como provados na sentença recorrida devem ser alterados para o seguinte: “(…) DC… perguntou se podia acariciar o cão.” (9) e “Apesar de a A. não estar familiarizada com o animal, o pai autorizou que a filha o fizesse (acariciar o cão)” (10) e se o facto dado como provado sob o n.º 29 - “A autora e o Chuck estavam habituados a partilharem o mesmo espaço, ainda que os pais da autora tivessem cuidado para que a criança não interagisse livremente com o animal” - deveria ter sido dado como não provado?
c) Do mérito da apelação:
c.1) Se não ocorre responsabilidade do réu, porque o evento ocorreu no interior do veículo (lugar privado) e porque é irrelevante o seu silêncio (não ter respondido ao suposto pedido autorização) não equivalendo a consentimento?
c.2) Se é “desproporcionalmente elevado tendo em conta os danos sofridos pela A.” o valor da indemnização arbitrada (€ 22.000,00) não devendo ser superior a € 7.500,00?

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3. Enquadramento fáctico:
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A SENTENÇA RECORRIDA CONSIDEROU COMO PROVADA A SEGUINTE FACTUALIDADE:
1. DC… nasceu no dia 10 de agosto de 2007, filha de LF… e de AF…;
2. Por sentença datada de 11 de Fevereiro de 2014, transitada em julgado no mesmo dia, proferida no processo …/…, que correu termos no Juízo de Pequena Instância Criminal da Amadora, Comarca da Grande Lisboa-Noroeste, o arguido FJ…, foi condenado, em processo especial sumaríssimo, pela prática de um crime de ofensa à integridade física negligente, prevista e punida pelo artigo 148.º, n.º1 do Código Penal, na pena de 60 dias de multa à taxa diária de 5 euros, relativamente aos factos que são objeto desta ação;
3. No dia 15 de maio de 2012, pelas 16h20, FJ… estava sentado no interior do porta-bagagens aberto da sua carrinha Renault Laguna, de matrícula …-…-UM, juntamente com o seu animal de estimação, um cão de raça Bull Terrier chamado Chuck;
4. A carrinha estava estacionada junto da igreja paroquial da Brandoa, na Amadora;
5. O cão estava no interior do porta-bagagens sem trela nem açaime;
6. O local onde se encontrava o réu está perto de três escolas, sendo utilizado por jovens e crianças no percurso entre a escola e casa.
7. A dado momento, LF…, que seguia na sua viatura juntamente com AF… e DC…, avistou o réu;
8. Porque eram amigos, LF… estacionou a sua viatura atrás da viatura do réu para o cumprimentar;
9. Ao cumprimentarem-se, DC… perguntou ao pai se podia acariciar o cão;
10. Porque já estavam familiarizados com o animal por convívios anteriores, o pai autorizou que a filha o fizesse, ao que o réu, apercebendo-se da situação, não se opôs;
11. Ao acariciar o animal, este reagiu ao gesto da autora e deu-lhe uma dentada que a atingiu no lábio superior;
12. LF… e o réu transportaram a autora ao quartel da Corporação da Cruz Vermelha e ela foi transportada daqui para o Hospital de Santa Maria, onde entrou pelas 17h12;
13. Em consequência da referida mordedura, a autora ficou com uma ferida no lábio superior, com perda de substância (vermelhão, rolo branco e pele) e laceração do músculo orbicularis oris;
14. Foi operada no próprio dia, tendo sido submetida a lavagem e desbridamento da ferida, miorrafia do orbicularis oris e enxerto de pele parcial tie over, colhido do couro cabeludo temporal esquerdo;
15. Aquela ferida determinou uma incapacidade temporária geral que foi fixada em 15 dias e uma incapacidade temporária parcial de 165 dias;
16. Nos primeiros 15 dias, a autora não frequentou a pré-escola, não tendo convivido com amigos e educadores;
17. Foi ainda fixado um quantum doloris de 5 numa escala de 1 a 7 pontos, de gravidade crescente;
18. Em consequência da mordedura, a autora ficou com uma cicatriz nacarada e queloide no hemilábio superior esquerdo, medindo 3,5 cm de eixo maior por 2 cm de eixo menor, acompanhada de alterações de sensibilidade, valorizável em 5 pontos, numa escala de 1 a 7 pontos, de gravidade crescente, por se considerar que a cicatriz a desfigura de maneira grave;
19. A cicatriz é valorizável em 4% pela Tabela Nacional de Incapacidades (II-1.2.1 (0,01-0,06)] e em 4 pontos de acordo com a Tabela de Avaliação de Incapacidades Permanentes em Direito Civil de acordo com Pa0101 (1 a 10 pontos);
20. Em condições normais, a cicatriz poderá ser parcialmente corrigida futuramente, durante a adolescência / vida adulta;
21. Em consequência da mordedura, os pais da autora tiveram despesas com combustível para deslocação às consultas de 12,50 euros;
22. Tiveram ainda despesas de farmácia de 34,20 euros;
23. Antes de ter sido adquirido pelo réu, o cão Chuck frequentou uma escola para educação de canídeos;
24. À data dos factos tinha consultas regulares no veterinário e estava vacinado;
25. Tinha licença emitida pela junta de freguesia da Brandoa referente a “Animal de Companhia” de categoria “A”;
26. Antes da situação referida em 3), a família da autora e o réu reuniam-se com outros amigos, várias vezes por semana, em convívios em que muitos deles levavam cães;
27. Nesse grupo de amigos, o cão Chuck é tido como um cão calmo e dócil, não sendo conhecidos outros comportamentos de agressividade contra outras pessoas;
28. O réu aceita que o cão interaja com crianças, nomeadamente com os sobrinhos e filhos de amigos;
29. A autora e o Chuck estavam habituados a partilharem o mesmo espaço, ainda que os pais da autora tivessem cuidado para que a criança não interagisse livremente com o animal.

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A SENTENÇA RECORRIDA CONSIDEROU COMO NÃO PROVADA A SEGUINTE FACTUALIDADE:
1. Nas circunstâncias referidas em 10) dos factos provados, LF… perguntou ao réu se podia acariciar o animal;
2. O réu respondeu afirmativamente;
3. A autora sofreu uma significativa perda de peso devido à alteração do regime alimentar.
4. O susto do ataque causou trauma à criança, que ficou com receio de lidar com animais.

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4. Enquadramento jurídico:

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a) Se ocorre a invocada nulidade da sentença nos termos do artigo 615º, nº 1, al. d) do CPC, por omissão de pronúncia, por a sentença não referir o depósito da indemnização em conta bancária titulada exclusivamente pela menor, que não pudesse ser movimentada pelos pais até aquela completar a maioridade, salvo ordem em contrário do Tribunal?
Considera o recorrente que:
“Em sede de alegações, o R. requereu que, relativamente a qualquer indemnização que pudesse, eventualmente, ser arbitrada, fosse determinado o depósito desta em conta bancária titulada exclusivamente pela menor, que não pudesse ser movimentada pelos pais até aquela completar a maioridade, salvo ordem em contrário do Tribunal.
Contudo, na douta sentença requerida nada é referido a tal respeito, pelo que a douta sentença recorrida é nula, nos termos do art. 615º, alínea d), do Código de Processo Civil”.
Um recurso incide sempre sobre uma decisão que recaiu sobre determinadas questões, visando-se com ele apreciar da manutenção, alteração ou revogação daquela, razão pela qual, enquanto meio de impugnação de uma decisão judicial, o recurso apenas pode incidir, em regra, sobre questões que tenham sido anteriormente apreciadas, não podendo o tribunal ad quem confrontar-se com questões novas (assim, Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, Novo Regime, p. 94).
Os recursos constituem, assim, mecanismos destinados a reapreciar decisões proferidas e não a analisar questões novas, pois que a diversidade de graus de jurisdição determina, em regra, que os tribunais superiores sejam apenas confrontados com questões que as partes discutiram nos momentos próprios.
Apenas podem ser excepcionadas desta regra aquelas situações em que essas questões novas sejam de conhecimento oficioso e o processo contenha os elementos imprescindíveis.
Uma tal regra encontra a sua justificação no princípio da preclusão, quer por desprezar a finalidade dos recursos (art. 627º, nº 1 do C.P.C.), quer para não impedir a supressão de graus de jurisdição.
Assim, conclui-se que os recursos se destinam a sindicar as decisões impugnadas, estando a intervenção do tribunal “ad quem” circunscrita às questões que dela foram objecto, ou dito de outra forma, está-lhe vedado apreciar quaisquer outras, salvo se de conhecimento oficioso, uma vez que, nas questões novas, a parte submete a um tribunal de recurso questão que ao tribunal recorrido não cumpria conhecer, porque não lhe fora colocada.
Nos termos do n.º 1 do artigo 615.º do Código de Processo Civil, relativo às causas de nulidade da sentença, uma sentença é nula quando:
a) Não contenha a assinatura do juiz;
b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;
c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível;
d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento;
e) O juiz condene em quantidade superior ou em objecto diverso do pedido.
Apenas existirá nulidade da sentença por omissão de pronúncia com referência às questões objecto do processo, não com atinência a todo e qualquer argumento esgrimido pela parte.
A nulidade por omissão de pronúncia supõe o silenciar, em absoluto, por parte do tribunal sobre qualquer questão de cognição obrigatória, isto é, que a questão tenha passado despercebida ao tribunal, já não preenchendo esta concreta nulidade a decisão sintética e escassamente fundamentada a propósito dessa questão (assim, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 01-03-2007, Processo 07A091, relator SEBASTIÃO PÓVOAS).
Caso o tribunal se pronuncie quanto às questões que lhe foram submetidas, isto é, sobre todos os pedidos, causas de pedir e exceções que foram suscitadas, ainda que o faça genericamente, não ocorre o vício da nulidade da sentença, por omissão de pronúncia. Poderá, todavia, existir mero erro de julgamento, atacável em via de recurso, onde caso assista razão ao recorrente, se impõe alterar o decidido, tornando-o conforme ao direito aplicável.
A nulidade da sentença (por omissão de pronuncia) há de, assim, resultar da violação do dever prescrito no n.º 2 do referido artigo 608º do Código de Processo Civil do qual resulta que o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras, e não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras.
A questão a decidir pelo julgador está diretamente ligada ao pedido e à respetiva causa de pedir, não estando o juiz obrigado a apreciar e a rebater cada um dos argumentos de facto ou de direito que as partes invocam com vista a obter a procedência da sua pretensão, ou a pronunciar-se sobre todas as considerações tecidas para esse efeito. O que o juiz deve fazer é pronunciar-se sobre a questão que se suscita apreciando-a e decidindo-a segundo a solução de direito que julga correta.
De acordo com o nº 2 do art. 608º do CPC,“o juiz resolve todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras”, pelo que, não se verifica omissão de pronúncia quando o não conhecimento de questões fique prejudicado pela solução dada a outras, sendo certo que, o dever de pronúncia obrigatória é delimitado pelo pedido e causa de pedir e pela matéria de exceção.
“O dever imposto no nº 2, do artigo 608º diz respeito ao conhecimento, na sentença, de todas as questões de fundo ou de mérito que a apreciação do pedido e da causa de pedir apresentadas pelo autor (ou, eventualmente, pelo réu reconvinte) suscitam. Só estas questões é que são essenciais à solução do pleito e já não os argumentos, razões, juízos de valor ou interpretação e aplicação da lei aos factos. Para que este dever seja cumprido, é preciso que haja identidade entre a causa petendi e a causa judicandi, entre a questão posta pelas partes e identificada pelos sujeitos, pedido e causa de pedir e a questão resolvida pelo juiz” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 15-03-2018, Processo nº 1453/17.3T8BRG.G1, relatora EUGÉNIA CUNHA).
Assim, “importa distinguir entre os casos em que o tribunal deixa de pronunciar-se efetivamente sobre questão que devia apreciar e aqueles em que esse tribunal invoca razão, boa ou má, procedente ou improcedente, para justificar a sua abstenção, sendo coisas diferentes deixar de conhecer a questão de que devia conhecer-se e deixar de apreciar qualquer consideração, argumento ou razão produzida pela parte, por não ter o tribunal de esgotar a análise da argumentação das partes, mas apenas que apreciar todas as questões que devam ser conhecidas, ponderando os argumentos na medida do necessário e suficiente” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 25-03-2019, Processo 226/16.5T8MAI-E.P1, relator NELSON FERNANDES).
Na realidade, como se referiu no Ac. do Tribunal da Relação de Coimbra de 28-09-2011 (P.º n.º 480/09.9JALRA.C1, relator ORLANDO GONÇALVES): “1.- A nulidade de sentença por omissão de pronúncia refere-se a questões e não a razões ou argumentos invocados pela parte ou pelo sujeito processual em defesa do seu ponto de vista. 2.- O que importa é que o tribunal decida a questão colocada e não que tenha que apreciar todos os fundamentos ou razões que foram invocados para suporte dessa pretensão”.
Se a decisão não faz referência a todos os argumentos invocados pela parte tal não determina a nulidade da sentença por omissão de pronúncia, sendo certo que a decisão tomada quanto à resolução da questão poderá muitas vezes tornar inútil o conhecimento dos argumentos ou considerações expendidas, designadamente por opostos, irrelevantes ou prejudicados em face da solução adotada.
Conclui-se – como se fez no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 08-05-2019 (Processo 1211/09.9GACSC-A.L2-3, relatora MARIA DA GRAÇA SANTOS SILVA) - que: “A omissão de pronúncia é um vício que ocorre quando o Tribunal não se pronuncia sobre essas questões com relevância para a decisão de mérito e não quanto a todo e qualquer argumento aduzido. O vocábulo legal -“questões”- não abrange todos os argumentos invocados pelas partes. Reporta-se apenas às pretensões deduzidas ou aos elementos integradores do pedido e da causa de pedir, ou seja, às concretas controvérsias centrais a dirimir”.
No caso em apreço considera o recorrente que a sentença é nula, porque não conheceu do requerimento do réu de que, caso fosse atribuída indemnização, fosse determinado que a mesma seria objecto de depósito em conta bancária titulada exclusivamente pela menor, que não pudesse ser movimentada pelos pais até aquela completar a maioridade, salvo ordem em contrário do Tribunal. Tal requerimento foi produzido aquando da produção de alegações orais (cfr. minutos 20.34 a 21.09 da gravação da sessão da audiência de 12-02-2019).
Ora, a questão que se coloca é a de saber se o Tribunal estava vinculado ao conhecimento desta invocação?
Vejamos:
No caso, a invocação deduzida pela Ilustre Advogada do réu não obedeceu à forma escrita, tendo sido produzida oralmente, oralidade que, contudo, ficou registada, de harmonia com o legalmente previsto – cfr. artigo 155.º, n.º 1, do CPC – na gravação do julgamento dos autos.
Desde já se refira que, até ao momento da produção das alegações orais pela Ilustre Advogada do réu, não tinha tal invocação sido produzida no processo.
Ora, “as questões sobre as quais o juiz está obrigado a pronunciar-se na sentença, são apenas aquelas que integram o pedido e a sua fundamentação ou seja, a causa de pedir, sendo que tanto aquele como esta são apenas e necessariamente vertidos nos articulados e suas alterações processualmente previstas” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 15-09-2010, Processo 327/06.8TBLGS.E1, relator ANTÓNIO MANUEL RIBEIRO CARDOSO).
Dito de outro modo: “Para efeitos da nulidade prevista na alínea d) do n.º1 do art.º 615.º do CPC, as questões submetidas à apreciação do tribunal identificam-se com os pedidos formulados, com a causa de pedir ou com as exceções invocadas, desde que não prejudicadas pela solução de mérito encontrada para o litígio” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 24-05-2018, Processo: 2962/16.7T8STB.E1, relator TOMÉ RAMIÃO).
Na realidade, na decorrência do estatuído no artigo 552.º, n.º 1, al. d) do CPC, para o autor, e dos artigos 572.º a 574.º, para o réu, em conjugação com o que se encontra vertido nos artigos 5.º, 259.º, 264.º, 265.º, 410.º, 588.º, 589.º e 596.º, n.º 1, do CPC, quanto ao começo e desenvolvimento da instância e ao âmbito da instrução e discussão do processo, e ainda, com o disposto no artigo 147.º do CPC, prevendo que os articulados são as peças em que as partes expõem os fundamentos da ação e da defesa e formulam os pedidos correspondentes, verifica-se, inelutavelmente, que a introdução de questões – ressalvados, claro está, os requerimentos orais que podem ser apresentados em sede de audiência prévia ou inerentes à instrução do processo – no processo civil sobre as quais se pretende que o tribunal profira uma decisão, deve ser feita nos moldes previstos naqueles normativos, obedecendo à forma escrita.
Mas, para além deste aspecto, importa afirmar que não se coaduna com a função das produção de alegações orais, a de apresentação de requerimentos visando introduzir uma questão nova no processo.
É que, na realidade, conforme deflui do artigo 604.º, n.º 3, al. e) do CPC, as alegações orais destinam-se à exposição pelos advogados das “conclusões, de facto e de direito, que hajam extraído da prova produzida”.
“Nessas alegações, os advogados expõem as conclusões, de facto e de direito, que hajam extraído da prova produzida (…), com elas procurando fixar – procedendo à análise crítica da prova produzida – os factos que devem considerar-se provados e aqueles que devem considerar-se como não provados, de entre os que integram os temas da prova previamente fixados e se revelem de utilidade decisiva para o julgamento de mérito” (assim, Francisco Ferreira de Almeida; Direito Processual Civil, Vol. II, Almedina, Coimbra, 2015, p. 340).
Assim, esse momento processual não é o adequado para a formulação de requerimento sobre o mérito da causa ou sobre alguma questão relacionada com o pedido e a causa de pedir formulados.
No caso, a pretensão expressa pela Ilustre Advogada do réu, aquando do momento da produção de alegações orais, nos termos do artigo 604.º, n.º 3, al. e) do CPC, ao pretender introduzir na esfera de questões a decidir pelo Tribunal a quo, uma nova questão relacionada com o conhecimento do pedido e da causa de pedir invocados, que não deduziu na contestação ou em qualquer articulado subsequente, não determinava que tal Tribunal tivesse de sobre ela tomar posição e emitir juízo.
Assim, conclui-se que, da circunstância de a sentença recorrida não se ter pronunciado sobre a temática da forma do depósito da indemnização a favor da autora, advenha qualquer nulidade para tal decisão.
Nestes termos, conclui-se, não se verificar a nulidade invocada.

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b) Impugnação da matéria de facto:
Alega o apelante que deve ser alterada a matéria de facto constante da sentença.
Sobre a temática da impugnação da matéria de facto, dispõe o artigo 640º, nº 1, do Código de Processo Civil que:
«Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas».
No que toca à especificação dos meios probatórios, «quando os meios probatórios invocados tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes» (artigo 640º, nº 2, al. a) do Código de Processo Civil).
Quanto ao cumprimento deste ónus impugnatório, o mesmo deve, tendencialmente, fazer-se nos seguintes moldes: “(…) enquanto a especificação dos concretos pontos de facto deve constar das conclusões recursórias, já não se afigura que a especificação dos meios de prova nem, muito menos, a indicação das passagens das gravações devam constar da síntese conclusiva, bastando que figurem no corpo das alegações, posto que estas não têm por função delimitar o objeto do recurso nessa parte, constituindo antes elementos de apoio à argumentação probatória” (assim, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19-02-2015, Processo 299/05.6TBMGD.P2.S1, relator TOMÉ GOMES).
Assim, aos concretos pontos de facto, concretos meios probatórios e à decisão deve o recorrente aludir na motivação do recurso (de forma mais desenvolvida), sintetizando-os nas conclusões.
As exigências legais referidas têm uma dupla função: Delimitar o âmbito do recurso e tornar efectivo o exercício do contraditório pela parte contrária (pois só na medida em que se sabe especificamente o que se impugna, e qual a lógica de raciocínio expendido na valoração/conjugação deste ou daquele meio de prova, é que se habilita a contraparte a poder contrariá-lo).
O recorrente deverá apresentar «um discurso argumentativo onde, em primeiro lugar, alinhe as provas, identificando-as, ou seja, localizando-as no processo e tratando-se de depoimentos a respectiva passagem e, em segundo lugar, produza uma análise crítica relativa a essas provas, mostrando minimamente por que razão se “impunha” a formação de uma convicção no sentido pretendido» (Ac. do Tribunal da Relação do Porto de 17-03-2014, Processo nº 3785/11.5TBVFR.P1, relator ALBERTO RUÇO).
Os aspectos de ordem formal devem ser modelados em função dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade (cfr. Ac. do STJ de 28-04-2014, P.º nº 1006/12.2TBPRD.P1.S1, relator ABRANTES GERALDES);
Não cumprindo o recorrente os ónus do artigo 640º, n.º 1 do C.P.C., dever-se-á rejeitar o seu recurso sobre a matéria de facto, uma vez que a lei não admite aqui despacho de aperfeiçoamento, ao contrário do que sucede quanto ao recurso em matéria de direito, face ao disposto no art. 639º, nº 3 do C.P.C. (cfr. Ac. do Tribunal da Relação de Guimarães de 19-06-2014, P.º n.º 1458/10.5TBEPS.G1, relator MANUEL BARGADO);
A cominação da rejeição do recurso, prevista para a falta das especificações quanto à matéria das alíneas a), b), e c) do n.º 1, ao contrário do que acontece quanto à matéria do n.º 2 do art. 640.º do CPC (a propósito da «exatidão das passagens da gravação em que se funda o seu recurso»), não funciona automaticamente, devendo o Tribunal convidar o recorrente a suprir a falta de especificação daqueles elementos ou a sua deficiente indicação (cfr. Ac. do STJ de 26-05-2015, P.º n.º 1426/08.7CSNT.L1.S1, relator HÉLDER ROQUE).
Dever-se-á usar de maior rigor na apreciação da observância do ónus previsto no n.º 1 do art. 640.º (de delimitação do objecto do recuso e de fundamentação concludente do mesmo), face ao ónus do n.º 2 (destinado a possibilitar um acesso mais ou menos facilitado pela Relação aos meios de prova gravados relevantes, que tem oscilado em exigência ao longo do tempo, indo desde a transcrição obrigatória dos depoimentos até uma mera indicação e localização exacta das passagens da gravação relevantes) (neste sentido, Ac. do STJ de 29-10-2015, P.º n.º 233/09.4TBVNG.G1.S1, relator LOPES DO REGO);
O ónus atinente à indicação exacta das passagens relevantes dos depoimentos gravados deve ser interpretado em termos funcionalmente adequados e em conformidade com o princípio da proporcionalidade, pelo que a falta de indicção, com exactidão, só será idónea a fundamentar a rejeição liminar se dificultar, de forma substancial e relevante, o exercício do contraditório, ou o exame pelo tribunal, sob pena de ser uma solução excessivamente formal, rigorosa e sem justificação razoável (cfr. Acs. do STJ, de 26-05-2015, P.º nº 1426/08.7CSNT.L1.S1, relator HÉLDER ROQUE, de 22-09-2015, P-º nº 29/12.6TBFAF.G1.S1, relator PINTO DE ALMEIDA, de 29-10-2015, P.º n.º 233/09.4TBVNG.G1.S1, relator LOPES DO REGO e de 19-01-2016, P.º nº 3316/10.4TBLRA-C1-S1, relator SEBASTIÃO PÓVOAS).
A apresentação de transcrições globais dos depoimentos das testemunhas não satisfaz a exigência determinada pela al. a) do n.º 2 do art. 640.º do CPC (neste sentido, Ac. do STJ de 19-02-2015, P.º nº 405/09.1TMCBR.C1.S1, relatora MARIA DOS PRAZERES BELEZA), o mesmo sucedendo com o recorrente que procede a uma referência genérica aos depoimentos das testemunhas considerados relevantes pelo tribunal para a prova de quesitos, sem única alusão às passagens dos depoimentos de onde é depreendida a insuficiência dos mesmos para formar a convicção do juiz (cfr. Ac. do STJ de 28-05-2015, P.º n.º 460/11.4TVLSB.L1.S1, relator GRANJA DA FONSECA).
Nas conclusões do recurso devem ser identificados com precisão os pontos de facto que são objecto de impugnação, bastando quanto aos demais requisitos desde que constem de forma explícita da motivação (neste sentido, Acs. do STJ de 19-02-2015, P.º nº 299/05.6TBMGD.P2.S1, relator TOMÉ GOMES, de 01-10-2015, P.º nº 824/11.3TTLRS.L1.S1, relatora ANA LUÍSA GERALDES, de 11-02-2016, P.º nº 157/12-8TVGMR.G1.S1, relator MÁRIO BELO MORGADO).
Note-se, todavia, que atenta a função do tribunal de recurso, este só deverá alterar a decisão sobre a matéria de facto se concluir que as provas produzidas apontam em sentido diverso ao apurado pela tribunal recorrido. Ou seja: “I. Mantendo-se em vigor, em sede de Recurso, os princípios da imediação, da oralidade, da concentração e da livre apreciação da prova e guiando-se o julgamento humano por padrões de probabilidade e nunca de certeza absoluta, o uso, pelo Tribunal da Relação, dos poderes de alteração da decisão da 1ª instância sobre a matéria de facto só deve ser efectuado quando seja possível, com a necessária segurança, concluir pela existência de erro de apreciação relativamente a concretos pontos de facto impugnados. II: Assim, a alteração da matéria de facto só deve ser efectuada pelo Tribunal da Relação, quando este Tribunal, depois de proceder à audição efectiva da prova gravada, conclua, com a necessária segurança, no sentido de que os depoimentos prestados em audiência final, conjugados com a restante prova produzida, apontam em direcção diversa, e delimitaram uma conclusão diferente daquela que vingou na primeira Instância” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 14-06-2017, Processo 6095/15T8BRG.G1, relator PEDRO DAMIÃO E CUNHA).
A insuficiência da fundamentação probatória do recorrente não releva como requisito formal do ónus de impugnação, mas, quando muito, como parâmetro da reapreciação da decisão de facto, na valoração das provas, exigindo maior ou menor grau de fundamentação, por parte do tribunal de recurso, consoante a densidade ou consistência daquela fundamentação (neste sentido, Ac. do STJ de 19-02-2015, P.º nº 299/05.6TBMGD.P2.S1, relator TOMÉ GOMES).
Estas as linhas gerais em que se baliza a reapreciação da matéria de facto na Relação.
Vejamos, pois, as questões que, neste âmbito, foram suscitadas pelo apelante.

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b.1) Se o Tribunal não deveria ter considerado o facto n.º 2) como provado, nos termos do artigo 623.º do CPC - “Por sentença datada de 11 de Fevereiro de 2014, transitada em julgado no mesmo dia, proferida no processo …/…, que correu termos no Juízo de Pequena Instância Criminal da Amadora, Comarca da Grande Lisboa-Noroeste, o arguido FJ…, foi condenado, em processo especial sumaríssimo, pela prática de um crime de ofensa à integridade física negligente, prevista e punida pelo art. 148º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 60 dias de multa à taxa diária de 5 euros, relativamente aos factos que são objeto desta ação” – por não ter sido exercido contraditório sobre os factos daquele processo, atenta a forma processual especial sumaríssima sob que o mesmo correu termos?
Considera o recorrente que a convicção do Tribunal recorrido assentou na certidão judicial onde consta um requerimento para aplicação de sanção em processo sumaríssimo e da sentença proferida pelo Juízo de Pequena Instância Criminal da Amadora, Comarca da Grande Lisboa-Noroeste, no âmbito do processo sumaríssimo …/… (e não …/…), transitada em julgado a 11/02/2014, que condenou o réu pela prática de um crime de ofensa à integridade física por negligência numa pela de 60 dias de multa e que, “compulsada a sentença e os factos alegados pela autora nesta ação como factos constitutivos do seu direito à indemnização, verifica-se que os mesmos se reportam à mesma realidade histórica”.
Mais invoca o recorrente que, contudo, “da mencionada sentença não constam quaisquer factos, nem sequer por remissão, e os factos constantes da acusação, elencados nos respetivos pontos 1 a 5 (dado que os pontos 6 e 7 versam sobre matéria conclusiva e jurídica) não foram, necessariamente, sujeitos ao princípio do contraditório, que é estruturante do processo penal, constante do art. 32º, n.º 5, da Lei Fundamental, e replicado no art. 61º, n.º 1, do Código de Processo Penal, para além de que nem sequer foram efetivamente julgados por um Tribunal, onde tal contraditório teria sido assegurado (…). Se no processo penal não foram discutidos os factos, nada parece impedir que o ali arguido e ora R./Recorrente possa discutir, em igualdade de circunstâncias (isto é, sem o funcionamento do mecanismo presuntivo) com a A., a matéria de facto alegada. Além do mais, o R. alegou e demonstrou que a aceitação da sanção teve exclusivamente em vista não prejudicar a possibilidade de ingressar no mercado de trabalho, nomeadamente no estrangeiro, como alegado e documentado no art. 41º a 44º da contestação e doc. 3 junto a esta”.
Vejamos:
Na sentença recorrida refere-se que “o facto provado 2) assenta na análise da certidão da sentença e requerimento para aplicação de sanções em processo sumaríssimo emitida pelo tribunal de folhas 96 e seguintes.”.
A certidão de fls. 96 e ss. dos autos respeita a peças do processo, de natureza criminal, com a forma sumaríssima e com o n.º …/…, no âmbito do qual foi o ora réu condenado pela prática de um crime de ofensa à integridade física negligente, p. e p. pelo artigo 148.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 60 dias de multa, à taxa diária de 5 euros, perfazendo a multa um total de € 300,00.
A referida certidão contém o mencionado despacho condenatório e a promoção do Ministério Público correspondente, dele constando enunciados os factos determinativos da condenação, acolhidos pelo tribunal criminal.
E o elenco factual constante de tal certidão criminal coincide, sem dúvida, com os factos que estão em discussão no presente processo de natureza cível.
Assim, não se mostra ter a sentença recorrida incorrido em erro de julgamento relativamente ao mencionado facto n.º 2) dado como provado, o qual tem, na realidade, suporte factual na aludida certidão.
Todavia, estaria vedado ao Tribunal considerar tal certidão – e a decisão nela inscrita – por não ter sido exercido contraditório pelo ora réu sobre os factos daquele processo, atenta a forma processual especial sumaríssima sob que o mesmo correu termos?
Na sentença recorrida, a questão vem colocada e respondida nos seguintes termos:
“Coloca-se a questão da força probatória da sentença penal condenatória transitada em julgado nestes autos de natureza civil, nomeadamente quanto à dinâmica dos eventos que fundamentam o pedido nestes autos.
O artigo 623.º do Código de Processo Civil, com a epígrafe Oponibilidade a terceiros da decisão penal condenatória dispõe o seguinte:
A condenação definitiva proferida no processo penal constitui, em relação a terceiros, presunção ilidível no que se refere à existência dos factos que integram os pressupostos da punição e os elementos do tipo legal, bem como dos que respeitam às formas do crime, em quaisquer ações civis em que se discutam relações jurídicas dependentes da prática da infração.
Enquanto que, no artigo 421.º do CPC, se estabelece que as decisões sobre matéria de facto em outro processo estão sujeitas à livre apreciação da prova no novo processo e valem neste como princípio de prova, os artigos 623.º e 624.º do CPC consagram a força probatória plena quanto a certos factos constantes de sentença penal condenatória ou absolutória, em resultado da atribuição de valor de presunção legal ilidível ao que nela foi decidido a esse respeito – assim Rui Pinto, in Notas ao Código de Processo Civil, Coimbra editora, Abril de 2014, 397 e ss.
Na esteira do acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra datado de 15-05-2011, relatado por Teles Pereira, e de acórdão do Supremo Tribunal de justiça de 11-03-2003 (in www.dgsi.pt) entendemos que, caso o autor e réu tivessem intervindo na ação penal na qualidade de assistente e arguido, a sentença pena tinha eficácia absoluta. Contudo, como o autor nesta ação não assumiu a qualidade de sujeito processual, terá de ser considerado terceiro em relação àquela decisão criminal, beneficiando, contudo, de uma presunção ilidível a favor dos factos provados na sentença condenatória, na parte relativa à existência dos factos que integram os pressupostos da punição e os elementos do tipo legal, bem como dos que respeitam às formas do crime.
O réu coloca a questão de a sentença no processo crime ter sido proferida em processo sumaríssimo, prevista no artigo 392.º do CPP, que como caraterística a inexistência de audiência de julgamento, aplicando-se uma sanção com a concordância dos intervenientes processuais. Assim, por não ter existido apreciação da realidade de facto, defende que a realidade descrita na acusação não se poderia impor a outros processos.
Não concordamos. Ainda que proferida em processo sumaríssimo, a decisão que aplica a sanção tem efeito de sentença condenatória, que não admite recurso (artigo 397.º do CPP), pelo que a concordância do arguido quanto à mesma tem como implícito o reconhecimento da verdade dos factos que lhe são imputados.
Não deixa, porém, de ser uma presunção ilidível, pelo que é necessário aferir se o réu logrou ilidir essa presunção”.
Será que este juízo merece censura?
Desde já importa considerar que a condenação criminal do réu ocorreu no âmbito de um processo sumaríssimo.
O Código de Processo Penal de 1987 introduziu o processo sumaríssimo como manifestação de consenso e oportunidade, à semelhança do arquivamento em caso de dispensa de pena e da suspensão provisória do processo, tendo em vista a celeridade processual e a diminuição da estigmatização resultante do processo penal ordinário.
O processo sumaríssimo “não releva da oportunidade, mas antes da legalidade, uma vez que irá resultar do processo sumaríssimo uma condenação judicial, uma sentença condenatória. Contudo, trata-se de um processo “quase exclusivamente escrito”, poupando o arguido à “cerimónia” do julgamento. Estamos perante um processo que depende da concordância do arguido, e em que este intervém antes mesmo de haver uma decisão quanto aos termos da sua condenação, o que tem um reflexo extremamente positivo na reafirmação das normas desrespeitadas” (assim, Viviana Gomes Ribeiro Cortesão; OS ACORDOS SOBRE A SENTENÇA EM PROCESSO PENAL - Um Novo Consenso No Direito Processual Penal, FDUC, Coimbra, 2013, p. 27, disponível em: https://estudogeral.sib.uc.pt/handle/10316/35080).
O processo sumaríssimo é um processo especial, previsto no artigo 392.º do CPP, e para que haja lugar à sua tramitação é necessário que esteja em causa um crime punível com pena de prisão não superior a cinco anos ou que o crime seja punível só com pena de multa.
A pedido do arguido ou depois de ouvido pelo Ministério Público, pode este entender que ao caso não deve ser concretamente aplicada pena ou medida de segurança não privativas da liberdade deve requerer ao tribunal que ao caso seja aposta a forma do processo sumaríssimo.
Se estivermos diante procedimento que dependa de acusação particular, o requerimento levado pelo MP ao tribunal tem de conter a concordância do assistente.
Do requerimento deve constar a identificação do arguido, a descrição dos factos imputados, as normas violadas, a prova existente e ainda as razões pelas quais não deve o arguido ser condenado em pena de prisão. O requerimento termina com a indicação das sanções concretamente propostas e da quantia exacta a título de reparação dos danos.
O requerimento chegado ao juiz pode ser rejeitado e reenviado para outra forma de processo, quando for considerado legalmente inadmissível o procedimento, quando o requerimento for manifestamente infundado, ou quando o julgador entender que a sanção proposta é manifestamente insusceptível de realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
No caso de estarmos perante a situação em que o juiz não rejeita o requerimento, este notifica o arguido do conteúdo do requerimento do MP e tem quinze dias, querendo, para deduzir oposição.
Se o arguido não apresentar oposição ao requerimento, o juiz, por despacho, procede à aplicação da sanção e condenação no pagamento de taxa de justiça, valendo o despacho como sentença condenatória e não admite recurso ordinário. Se, ao invés, o arguido tiver deduzido oposição, o juiz reenvia, desde logo, o processo para outra forma.
Ora, não se afigura que a condenação do arguido no âmbito do processo sumaríssimo comporte a violação de algum direito de defesa do mesmo ou que a aplicação de medidas penais no âmbito de um processo penal sumaríssimo implique a impossibilidade de aproveitamento para o processo civil do teor do decidido em tal processo penal.
Concordamos, neste ponto, com Carlos Miguel Leal Mendes Cardoso (O PROCESSO SUMARÍSSIMO - Análise de alguns aspetos prático-processuais do instituto; Coimbra, 2015, pp. 51-52, disponível em: https://eg.uc.pt/bitstream/10316/34651/1/O%20Processo%20Sumarissimo.%20Analise%20de%20alguns%20aspetos%20pratico-processuais%20do%20instituto.pdf) afirmando: “consideramos que não há lugar a qualquer violação do direito de defesa do arguido, uma vez que lhe é dada a possibilidade de se opor à aplicação da sanção, num prazo de quinze dias; ou caso se decida remeter ao silêncio é de toda a conveniência que este seja valorado positivamente pelo juiz, pois, segundo a alínea c) do n.º 2 do art. 396º do CPP, o arguido foi informado das consequências da sua não oposição, rectius, do seu silêncio ou inércia, sendo tal circunstância pressuposto suficiente para fazer surgir no juiz a convicção de que, ainda assim, o arguido se remeteu ao silêncio, mas fê-lo de forma informada e bem ciente dos efeitos que, com a sua conduta, se viriam a desencadear. Acresce o facto de a nomeação de defensor ao arguido, nos termos da alínea a) do n.º 1 do art. 396º do CPP, ser oficiosa e preceder as exigências de notificação pessoal daquele, devendo, também, o requerimento do MP ser notificado ao defensor, conforme aponta o art. 396º n.º 3 do CPP. Sendo assim, antes de vir ao processo manifestar a sua não oposição ou, ao invés, a sua oposição, o arguido há de ter efetuado contactos com o seu defensor que, no cumprimento dos seus deveres deontológicos de agir e defender o seu cliente, deverá esclarecê-lo a cerca da questão de direito em causa. Por outras palavras, deverá o defensor, por um lado, clarificar o arguido dos efeitos da sua oposição ou não oposição, nomeadamente que em caso da sua não oposição, o juiz proferirá um despacho condenatório irrecorrível e, por outro, aconselhá-lo para que se dê ao caso o melhor desenlace, tendo em conta o interesse do seu cliente e a forma mais eficaz e exigível para que se realize o direito no caso concreto, pois, conforme aponta Maria Leonor Assunção “do correto aconselhamento do arguido pelo seu defensor (…) dependerá o cumprimento da ideia nuclear de consenso””.
Considerando o que se vem referindo, claramente se chega à conclusão de que o despacho condenatório que venha a ser proferido pelo juiz, no âmbito de um processo penal sumaríssimo, resulta de diversos factores que o pressupõem e que determinam, quanto à respectiva factualidade que lhe está imanente, a necessária articulação com a proposta de aplicação que lhe seja endereçada pelo Ministério Público. Não se vislumbra, pois, qualquer violação do contraditório pela aplicação da medida em que foi condenado o ora réu, ter tido lugar na forma processual penal em que ocorreu.
Por outro lado, sobre o sentido do artigo 623.º do CPC, acompanha-se o decidido pelo Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 23-02-2017 (Processo: 268/11.7TBRDD.E1, Relator MANUEL BARGADO):
“I – O que está em causa nos arts. 623º e 624º do CPC não é, propriamente, a eficácia do caso julgado penal, mas sim a definição da eficácia probatória extraprocessual legal da sentença penal condenatória ou absolutória transitada em julgado.
II - Essa definição é feita pelo estabelecimento duma presunção ilidível da existência dos factos em que a condenação se tiver baseado, ou, simetricamente, em caso de absolvição, da inexistência dos factos imputados ao arguido.
III - A eficácia probatória da sentença penal condenatória transitada em julgado no processo civil em que se discutam relações jurídicas dependentes da prática da infração, nos termos do artigo 623º do CPC, traduz-se assim no seguinte: em relação a terceiros, aquela sentença constitui presunção ilidível no que se refere à existência dos factos que integram os pressupostos da punição e os elementos do tipo legal, bem como dos que respeitam às formas do crime.
IV - Decorre implicitamente desta norma, sob pena de não fazer sentido a ressalva dela constante quando se trate de terceiros, que, em relação aos próprios arguidos, os factos referidos na mesma norma devem ser considerados provados no processo civil.
V - Provada, no processo penal, a prática dum acto criminoso que constitua ilícito civil, o titular do interesse ofendido não tem o ónus de provar na acção civil subsequente o acto ilícito praticado nem a culpa de quem o praticou, sem prejuízo de continuar onerado com a prova do dano sofrido e do nexo de causalidade”.
Ora, o tribunal recorrido explicitou, de forma perfeitamente compatível com este entendimento, que a sentença penal tem uma feição condenatória e que, a concordância do arguido quanto à mesma – sendo que, o mesmo poderia ter tomado posição diversa - tem como implícito o reconhecimento da verdade dos factos que lhe são imputados.
E, de igual sorte, legitimam que o Tribunal recorrido considerasse tal factualidade, do modo como o fez no facto provado n.º 2.
Assim, verifica-se inexistir qualquer vício de julgamento ou algo que obste à manutenção no elenco dos factos provados do que ali consta como n.º 2.

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b.2) Se o facto 5) dado como provado na sentença recorrida deve passar a ter a seguinte redação: “O cão estava no interior do porta-bagagens com trela e sem açaime”?
Considera o recorrente que o facto n.º 5, dado como provado na sentença recorrida, deverá passar a ter a seguinte redação: “O cão estava no interior do porta-bagagens com trela e sem açaime”.
Desde já se diga que no elenco de testemunhos e depoimentos que faz, o réu alude a aspectos dos depoimentos que são, em si mesmo, imprestáveis para a demostração que procura efectuar.
Assim, por exemplo, dizer-se que “o cão andava sempre sem trela e sem açaimo” não permite concluir que no dia dos factos tal tenha sucedido. Do mesmo modo, referir-se que o cão foi no carro até aos bombeiros (com a A., o R. e o pai da A.), onde o R. lhe continuou a bater, também nada demonstra sobre o local onde o cão do réu se encontrava aquando do evento, ou se o mesmo estava, então, com ou sem trela e/ou açaime. E, ainda, salientar-se que “o cão andava sempre com trela” e que o réu só soltava o cão em sítio específicos, fechados, também nada demonstra sobre a factualidade em discussão (saber se o cão, na ocasião do evento danoso, tinha ou não trela/açaime).
Mas, para além deste aspecto, invocou o réu que “as testemunhas confirmaram perentoriamente que o cão em causa andava sempre preso com trela, pelo que se crê ter havido erro de julgamento quanto a este facto, não só pelo já exposto quanto à sentença condenatória, mas também porque a contradição entre as versões apresentadas pelo pai da A. (no processo-crime e no processo cível) não é apta a demonstrar a realidade do facto que afirmou ser e não ser, quando as testemunhas corroboram integralmente a versão do R. Assim, impõe-se retificar aquele, dando-se como provado que “O cão estava no interior do porta-bagagens com trela e sem açaime”, o que requer”.
Relativamente aos termos da factualidade apurada em sede de sentença penal condenatória no processo criminal de que foi objecto o réu, verifica-se que, em face do disposto no artigo 623.º do CPC, a condenação em causa, definitiva, constitui “em relação a terceiros, presunção ilidível no que se refere à existência dos factos que integram os pressupostos da punição e os elementos do tipo legal”.
Conforme se decidiu no Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 23-02-2017 (Processo 268/11.7TBRDD.E1, relator MANUEL BARGADO): “O que está em causa nos arts. 623º e 624º do CPC não é, propriamente, a eficácia do caso julgado penal, mas sim a definição da eficácia probatória extraprocessual legal da sentença penal condenatória ou absolutória transitada em julgado. Essa definição é feita pelo estabelecimento duma presunção ilidível da existência dos factos em que a condenação se tiver baseado, ou, simetricamente, em caso de absolvição, da inexistência dos factos imputados ao arguido. A eficácia probatória da sentença penal condenatória transitada em julgado no processo civil em que se discutam relações jurídicas dependentes da prática da infração, nos termos do artigo 623º do CPC, traduz-se assim no seguinte: em relação a terceiros, aquela sentença constitui presunção ilidível no que se refere à existência dos factos que integram os pressupostos da punição e os elementos do tipo legal, bem como dos que respeitam às formas do crime. Decorre implicitamente desta norma, sob pena de não fazer sentido a ressalva dela constante quando se trate de terceiros, que, em relação aos próprios arguidos, os factos referidos na mesma norma devem ser considerados provados no processo civil. Provada, no processo penal, a prática dum acto criminoso que constitua ilícito civil, o titular do interesse ofendido não tem o ónus de provar na acção civil subsequente o acto ilícito praticado nem a culpa de quem o praticou, sem prejuízo de continuar onerado com a prova do dano sofrido e do nexo de causalidade.”
No caso, está demonstrado no processo penal que correu termos antes do presente, nomeadamente, que: “No dia 15/5/2012, pelas 16h20, o arguido tinha o seu cão de raça Bull Terrier no interior da bagageira do seu veículo (…), sem trela, nem açaime”.
No caso, lê-se na sentença recorrida, nomeadamente, o seguinte:
“Enquanto que, no artigo 421.º do CPC, se estabelece que as decisões sobre matéria de facto em outro processo estão sujeitas à livre apreciação da prova no novo processo e valem neste como princípio de prova, os artigos 623.º e 624.º do CPC consagram a força probatória plena quanto a certos factos constantes de sentença penal condenatória ou absolutória, em resultado da atribuição de valor de presunção legal ilidível ao que nela foi decidido a esse respeito – assim Rui Pinto, in Notas ao Código de Processo Civil, Coimbra editora, Abril de 2014, 397 e ss.
Na esteira do acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra datado de 15-05-2011, relatado por Teles Pereira, e de acórdão do Supremo Tribunal de justiça de 11-03-2003 (in www.dgsi.pt) entendemos que, caso o autor e réu tivessem intervindo na ação penal na qualidade de assistente e arguido, a sentença pena tinha eficácia absoluta. Contudo, como o autor nesta ação não assumiu a qualidade de sujeito processual, terá de ser considerado terceiro em relação àquela decisão criminal, beneficiando, contudo, de uma presunção ilidível a favor dos factos provados na sentença condenatória, na parte relativa à existência dos factos que integram os pressupostos da punição e os elementos do tipo legal, bem como dos que respeitam às formas do crime. (…).
Não deixa, porém, de ser uma presunção ilidível, pelo que é necessário aferir se o réu logrou ilidir essa presunção.
Assim, quanto à dinâmica dos factos, o tribunal procedeu à análise dos factos provados constantes daquela decisão à luz crítica da prova produzida nestes autos em audiência de julgamento, nomeadamente das declarações de parte e da prova testemunhal.
Assume especial importância o depoimento das pessoas que estavam presentes com a autora, os pais desta e o réu, dono do cão.
O pai da autora, LF…, relatou que (…), no dia dos autos, parou a viatura que conduzia atrás da viatura do réu, ao ver que ele se encontrava sentado no porta-bagagens, com o cão deitado a seu lado, tendo decidido cumprimentá-lo. Saiu do carro com a mulher e com a filha, e cumprimentou o réu, recostando-se ao capô do seu carro. Nessa altura, a sua filha perguntou-lhe se podia fazer uma festinha no cão, o que autorizou e a que o réu não se opôs, o que interpretou como consentimento. Mais explicou que a filha seguiu o procedimento que lhe tinha ensinado: deu primeiro a mão ao cão para que a cheirasse para, depois, fazer uma festinha. Nessa altura, o cão estava deitado ao lado do dono e não tinha trela. No instante que a filha faz a festinha no cão, este deu um impulso para a frente e mordeu a filha, arrancando-lhe metade do lábio (…).
Afirmou que o cão não tinha trela naquele momento porque, depois da dentada, o réu começou a bater no cão para o castigar e que este saiu para fora do carro, sem trela (…).
A mãe da autora, AF…, relatou que, no dia dos autos, viram o réu F… sentado no porta-bagagens do seu veículo, que estava estacionado na berma da estrada, e que ao seu lado estava deitado o Chuck. O marido parou o veículo atrás do veículo do réu, tendo saído para cumprimenta-lo. Ao chegar perto do amigo, a filha pediu para fazer festas ao cão, ao que o dono não se opôs. Os adultos deram a mão ao cão e a filha, depois de dar a mão a cheirar, quando estava a fazer uma festinha no focinho, junto aos olhos, o cão deu um impulso em frente e mordeu o lábio da filha.
Relatou que as coisas ocorreram numa fração de segundo, tendo o cão ficado de pé nas quatro patas. Nega que o cão tivesse trela e também não tinha açaime.
O réu FJ… [d]isse que [o cão] não usava açaimo (…). Quanto ao acontecimento que deu origem ao processo, explicou que estava sentado na bagageira aberta do seu carro, com o cão sentado ao seu lado, como se fosse um cão de louça, e com uma trela de 72 cm. Relatou que o pai da menina chegou ao pé de si e que o cumprimentou, tendo então ouvido latidos. Quando olhou, a menina estava com sangue na boca e o cão continuava sentado (…).
Foram estas as pessoas que estavam presentes no momento do evento (…).
O réu apresentou ainda várias testemunhas que, não tendo estado presentes na situação, abonaram, essencialmente, sobre o comportamento e maneira de ser do cão.
AT… é companheira do réu, vivendo com ele como se marido e mulher se tratasse. Falou do cão como se também fosse seu.
Descreveu o cão como sendo um animal calmo, que lida com adultos e crianças, uma vez que interage sem agressividade.
Apesar disso, não deixam que ninguém toque no cão sem a sua permissão, além de que o mesmo nunca anda solto, não usando açaime por não ser obrigatório.
Especialmente com crianças conhecidas, o cão brinca e está disponível para as crianças, nunca tendo existido qualquer motivo para ter receio.
Relativamente à autora em particular, explicou que a mesma não tinha relação consigo, uma vez que, depois da criança nascer, davam-se poucas vezes, algumas delas sem o cão. Questionada sobre se não estavam reunidos com outros amigos, disse que trabalhava 12 horas por dia e não dava feedback da situação.
Reconhece que não esteve presente no momento da dentada, mas veio ter com eles ao hospital, tendo convivido juntos com o grupo de amigos no final da noite. Ali estava a autora, tendo-a encontrado animada e bem-disposta. Mesmo quando estão em grupo, o cão está sempre com trela por ser obrigatório por lei.
A testemunha VR… declarou que faz parte do grupo de amigos que se reunia em convívio diário, do qual fazem parte os pais da autora e o réu. Deixou de se relacionar com os pais da ré devido a esta situação.
Explicou que os amigos se reuniam em convívio quase todos os dias, em convívio por várias horas, especialmente à noite. Nesses convívios, as pessoas levavam os cães, incluindo o cão do réu e o seu próprio cão, que era um pastor alemão. Os amigos do grupo tinham cães, pelo que a D… cresceu com aqueles animais e, apesar dos pais não estimularem o convívio, eles estavam por lá. Por norma, os cães estavam presos por trela, principalmente o do réu por ser um cão mais elétrico.
O cão do réu brincava com as pessoas, aceitava festinha, saltava etc. Relativamente à autora, a testemunha referiu que os pais dela não deixavam que tivesse contato com o animal e que não era o dono do cão que impedia, uma vez que a autora não tinha receio dos cães.
Disse desconhecer qualquer ataque do cão do réu a qualquer pessoa. Tem um filho de dois anos e frequente a casa do autor, não tendo qualquer receio.
JT… é companheiro da testemunha V…, sendo parte do grupo de amigos que convivia todos os dias, no qual incluía a autora e o réu. Descreve o Chuck como um cão que nunca foi mau, que tem confiança nele, deixando que o seu filho de 2 ano brincar com ele. Os pais da D… não deixavam a filha brincar com o animal, porque era um Bull Terrier e tinham receio. A D… só tocava no cão se ela pedisse. Nunca a viu atirar coisas ao cão. Diz que o cão estava com trela e que o dono a levava para outro parque para poder andar mais solto.
A testemunha FM… disse ser cunhado do réu, conhecendo o Chuck desde o 1.ºdia. Descreveu o cão como sendo calmo, tranquilo, não ladra nem rosna. Tem uma criança de 8 anos que foi companheira de brincadeira do cão.
MA… contou que conhece o réu desde há 16 anos e o Chuck é um animal tranquilo, que é dado à brincadeira, que nunca ladra. O filho chegou a brincar aos cavalinhos com o cão.
FJA… identificou-se como o sogro do réu. Disse que o Chuck é um cão dócil, o que sabe por o passear na rua quando a filha e o genro não podem. Tem duas netas que brincam com ele e ele nunca fez mal, assim como nunca fez mal a um cão de que é dono.
Tendo em conta a prova produzida nos autos, importa descreve a formação da convicção do tribunal à luz das regras de experiência e de vida em sociedade (…).
Os factos provados 3) e seguintes dizem respeito à dinâmica dos eventos que levaram a que a autora fosse mordida pelo cão. Como referimos supra, existe uma presunção ilidível quanto aos factos dados como provados e que levaram à condenação do réu em processo-crime.
Analisada a prova produzida nestes autos, o tribunal considera que não foi ilidida a presunção decorrente daquela sentença condenatória.
O ponto de partida é a constatação de que existe um acordo dos intervenientes diretos relativamente às circunstâncias de tempo e local em que os factos ocorreram, estando admitidos por acordo: foi no dia 15 de maio de 2012, pelas 16h20, no parque de estacionamento das traseiras da Igreja Paroquial da Brandoa e, naquele momento, o réu encontrava-se sentado no porta bagagens do seu veículo, que estava aberto, com um cão de raça Bull Terrier, de que era proprietário, ao seu lado. É ainda aceite que aquele local é um local muito usado por crianças e está perto de escolas – factos provados 3), 4) e 6) (…).
Constatamos, ainda, que as versões dos factos apresentadas pelos pais da autora e pelo réu, nas suas declarações, têm por base uma dinâmica comum: o réu estava sentado no porta-bagagens do seu veículo com o seu cão e foram os pais da autora quem vieram ao seu encontro, tendo parado o veículo atrás do seu – facto provado 7) e 8).
Existem factos que são contrariados por autora e réu, nomeadamente o facto de o cão estar ou não com trela colocada no interior do veículo do réu (este admite desde logo que o cão não tinha açaime). Sobre este ponto, o tribunal fica convencido de que o cão não tinha trela. Admite-se que, estando o cão deitado, a trela poderia não ser vista por quem se aproximasse. Contudo, mereceu credibilidade a versão dada por LF… de que declarou que, imediatamente depois da dentada, viu o réu a castigar o cão e que este estava fora do carro, sem trela, o que dá a entender que o cão não a tinha colocada no momento imediatamente anterior. O local onde o cão se encontrava colocado apoia esta dinâmica. Efetivamente, o cão estava no interior do veículo, sentado ao lado do seu dono, sendo de admitir, face às regras de experiência e de vida em sociedade, que o réu considerasse que aquele espaço ainda se situava no seu domínio privado, não tendo necessidade de conter o cão com a trela.
Este facto está abrangido pela presunção resultante da sentença condenatória, o que não foi ilidida pela prova apresentada ao tribunal (…)”.
Estas referências do Tribunal a quo não merecem qualquer censura.
De facto, ao contrário do que invoca o réu e atento o supra exposto, não seria a autora que teria de demonstrar a inexistência de trela e açaime, mas sim, o réu (para quem entenda que tal lhe seria ainda possível nos presentes autos) que, caso pretendesse ilidir a presunção resultante do precedente processo penal, teria de demonstrar que o cão na ocasião tinha trela (dado que, quanto ao açaime o réu referiu expressamente que tal não ocorria no momento do sucedido). Assim, não tem sentido a alusão à norma do n.º 1 do artigo 342.º do CC que se reporta a diversa situação daquela a que respeitam os autos.
Neste conspecto, as invocadas “diferentes versões” sobre o sucedido – incluindo o trecho das declarações do pai da autora prestadas em sede de processo crime - teriam de ser, concludentemente afastadas pelo réu, o que, atentos os escassos meios de prova directamente assinalados sobre o momento em que o cão mordeu na autora, não se logrou, no entender do Tribunal recorrido – sem que tal juízo possa, com êxito, ser afastado por este Tribunal – efectuar: “…o tribunal fica convencido de que o cão não tinha trela… mereceu credibilidade a versão dada por LF… de que declarou que, imediatamente depois da dentada, viu o réu a castigar o cão e que este estava fora do carro, sem trela, o que dá a entender que o cão não a tinha colocada no momento imediatamente anterior. O local onde o cão se encontrava colocado apoia esta dinâmica. Efetivamente, o cão estava no interior do veículo, sentado ao lado do seu dono, sendo de admitir, face às regras de experiência e de vida em sociedade, que o réu considerasse que aquele espaço ainda se situava no seu domínio privado, não tendo necessidade de conter o cão com a trela”.
Contrariamente ao que parece entender o réu, não basta, para se considerarem provados factos, que o réu os afirme, ou que as testemunhas chamadas a depor se pronunciem num determinado sentido para que o juiz necessariamente aceite esse sentido ou versão, já que ele não é um mero depositário de depoimentos.
A actividade judicatória, na valoração dos depoimentos, há-de atender a uma multiplicidade de factores que tem a ver, designadamente, com as garantias de imparcialidade, as razões de ciência, a espontaneidade dos depoimentos, a seriedade, o raciocínio, as lacunas, as hesitações, a linguagem, o tom de voz, o comportamento, as coincidências, as contradições, a linguagem gestual, etc.
No caso dos autos, conforme decorre cristalinamente da fundamentação constante da sentença recorrida, o Juiz a quem cabia aferir da credibilidade dos meios de prova produzidos, atribuiu crédito ao depoimento do pai da autora, pelos motivos que explanou. E, por outro lado, também não deixou de explicar – desde logo, em face da falta de presença no momento do evento - porque é que não atribuiu credibilidade aos depoimentos das testemunhas que depuseram e porque é que, apesar de tudo, concluiu que a presunção do artigo 623.º do CPC não resultou ilidida.
Tal não merece qualquer censura, inexistindo motivo que determine a alteração da matéria de facto, no sentido pugnado pelo réu.

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b.3) Se os factos 9) e 10) dados como provados na sentença recorrida devem ser alterados para o seguinte: “(…) DC… perguntou se podia acariciar o cão.” (9) e “Apesar de a A. não estar familiarizada com o animal, o pai autorizou que a filha o fizesse (acariciar o cão)” (10) e se o facto dado como provado sob o n.º 29 - “A autora e o Chuck estavam habituados a partilharem o mesmo espaço, ainda que os pais da autora tivessem cuidado para que a criança não interagisse livremente com o animal” - deveria ter sido dado como não provado?
Sustenta tal alteração, perante o que refere serem “as contradições entre os depoimentos do pai e da mãe da A.”, as quais, em seu entender “não podem sustentar a consideração de o R. se apercebeu do pedido e nada disse, equivalendo esta ausência de resposta a uma anuência por parte do R. Tendo presente o ónus da prova, competia à A. demonstrar os factos por si alegados, o que não fez”.
As considerações precedentemente efectuadas - quanto à possibilidade de ilisão probatória pelo próprio réu - valem quanto aos demais pontos da matéria de facto que o apelante procura impugnar, pelo que, não incidia sobre a autora o ónus probatório de ilisão da responsabilidade do réu.
De todo o modo, vejamos, ainda assim, se as provas produzidas inculcam no sentido pugnado pelo réu.
Importa referir, liminarmente, que não tem valia probatória para a demonstração da factualidade atinente, a “verdadeira opinião sobre o sucedido” que o réu na sua alegação refere ter sido transmitida pelos pais da autora.
Por outro lado, também não resulta dos depoimentos dos pais da autora, que se escutaram, que estes tenham articulado “os depoimentos utilizando muitas vezes as mesmas palavras e as mesmas expressões com o notado propósito de responsabilizar o R., obrigando-o dessa forma a pagar uma indemnização”, sendo que, como se viu, o Tribunal fez, na motivação da fundamentação da decisão de facto, a avaliação crítica dos depoimentos prestados, incluindo dos pais da autora.
Dito isto, considera o réu que o facto provado em 9) – “Ao cumprimentarem-se, DC… perguntou ao pai se podia acariciar o cão” – deverá passar a ter a seguinte redação: “(…) DC… perguntou se podia acariciar o cão.” e que o facto n.º 10) – “Porque já estavam familiarizados com o animal por convívios anteriores, o pai autorizou que a filha o fizesse, ao que o réu, apercebendo-se da situação, não se opôs” – deverá passar a ter a seguinte redação: “Apesar de a A. não estar familiarizada com o animal, o pai autorizou que a filha o fizesse (acariciar o cão)”.
Vejamos:
O pai da autora referiu, expressamente, que a autora o questionou: “Pai, posso fazer festinha ao cão?”, questão a que o pai da autora terá respondido que “sim”, sendo que, o réu “não disse que não”.
A mãe da autora referiu, por seu turno, que “nós saímos os 3 ao mesmo tempo, a menina pediu para fazer uma festa ao cão, tendo pedido a nós…como pais...autorização” e que o seu marido pediu ao réu para fazer festa ao cão, ao que o réu terá anuído.
Ora, não obstante existir alguma diferente descrição do sucedido, essa diferença não é de molde a inquinar a compatibilidade dos depoimentos dos pais da autora, incidindo a mesma sobre um aspecto lateral – o pedido de autorização a um dos pais ou a ambos – que, na perspectiva do Tribunal, mereceu que fosse incluída na descrição factual apurada, o relato mais conforme com o depoimento prestado pelo pai da autora.
De facto, lê-se na sentença recorrida, a este respeito, o seguinte:
“Outro ponto de discordância assenta na interação inicial entre o réu e os pais da autora e na autorização para que a autora tocasse no cão. Não se provou que LF… ou AC… tivessem perguntado expressamente ao réu se a filha podia fazer uma festa no cão. LF… admitiu que não pediu autorização expressamente e AC… não o fez pessoalmente (factos não provados 1) e 2)].
Contudo, o tribunal ficou convencido que a amizade e os convívios praticamente diários entre a família da autora e o réu e outros amigos (em que estavam crianças e cães) fizeram com que o pai da autora sentisse que podia contar com a anuência do réu. Aliás, o réu apercebendo-se da aproximação de uma criança de 4 anos de idade ao seu cão, que estava ao seu lado, não agiu nem deu qualquer aviso sobre a existência de perigo ou a necessidade de ter cautela. O próprio réu admite que não era por sua iniciativa que a autora não interagia normalmente com o cão, já que o cão é calmo, dócil e dava-se com crianças (…)”.
Face a este contexto de amizade e convívio, o tribunal ficou convencido, por um lado, que a autora estava condicionada pelos pais a só tocar no cão com autorização e, por outro lado, que o réu não tinha qualquer objeção a que a menina tocasse no animal, pelo que, quando se apercebeu que a menina do cão se aproximava do cão e que o pai autorizara a que tocasse no animal, não tomou qualquer iniciativa nem manifestou qualquer oposição. A avaliação que o réu fazia do perigo era que era nulo.
Sobre a dentada propriamente dita, nem o réu nem o pai LF… viram o ato de mordedura do cão na autora, por se estarem a cumprimentar, o que ambos reconhecem. Também relativamente à mãe AC…, o tribunal não ficou convencido que a mesma tenha acompanhado o ato de morder. O tribunal reconhece que existem algumas discrepâncias nos depoimentos prestados pelos pais da autora, mas considera que não são graves e que se podem dever à velocidade em que os factos ocorreram, à perspetiva em que se encontravam ou pelo tempo entretanto decorrido”.
Ora, como se referiu no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 02-11-2017 (Processo n.º 501/12.8TBCBC.G1, relatora MARIA JOÃO MATOS): “O recorrente que pretenda contrariar a apreciação crítica da prova feita pelo Tribunal a quo terá de apresentar razões objectivas para contrariar a prevalência dada a um meio de prova sobre outro de sinal oposto, ou o maior crédito dado a um depoimento sobre outro contrário, não sendo suficiente para o efeito a mera transcrição de excertos de alguns dos depoimentos prestados, já antes ouvidos pelo julgador sindicado e ponderados na sua decisão recorrida (art. 640º do C.P.C.)”.
Considerando o já expendido, tal não se divisa na alegação do recorrente em face da alteração pretendida a respeito do facto n.º 9).
Relativamente às outras alterações – a respeito dos factos 10) e 29) - pretendidas pelo réu, diga-se que não se vislumbra, em face dos depoimentos prestados, que haja algum elemento que determine a conclusão de que a autora não tinha familiaridade – anterior à data dos factos – com o cão, nem que os mesmos não estivessem habituados a partilhar o mesmo espaço, ainda que os pais da autora tivessem cuidado para que a criança não interagisse livremente com o animal, tendo o Tribunal asseverado tal factualidade, de acordo com a motivação de facto que salientou, a qual não padece de qualquer erro interpretativo.
Invoca, contudo, o réu, em contrário, o seu próprio depoimento, o de VA… e de JT….
Vejamos:
Relativamente ao depoimento do réu, o mesmo referiu que os amigos conviviam com o cão, “que o cão sempre foi um cão sossegado com pessoas e animais…, que o cão passeava só para fazer necessidades e passeá-lo”, dizendo que em 90% das vezes em que o réu estava com os seus amigos, o cão fixava no carro, mas, contraditoriamente, referiu, logo de seguida, que “era um cão em que toda a gente mexia…e se dirigirem ao cão para fazerem festas, ele fica logo disponível para fazer festas e rodas…”, mencionado que se fosse vindo de um conhecido deixava interagir com o seu cão. Disse que os pais da autora não permitiam que a filha interagisse com o cão, mas que tal sucedia por eles, mas não por si.
Quanto a VA… a mesma referenciou, a respeito do relacionamento da autora com o cão, num primeiro momento de forma bastante afirmativa que, “como grupo de amigos frequentávamos o mesmo espaço de convívio – esclarecendo a testemunha que tal sucedia junto à Igreja da Brandoa - , mas a criança nunca mexeu no cão; nunca houve contacto físico, porque os pais da D… não deixavam e o réu também não queria desrespeitar os pais e não deixava mexer no cão”, mencionando que, “por norma, os cães estavam presos, principalmente o do Sr. F… por ser um cão mais elétrico, estava preso…”, e acabando por referir, com menos afirmação, não se recordar de brincadeiras entre a autora e o cão do réu, nem ter visto a autora dar comida ao cão do réu, dizendo que os pais da autora não deixavam aproximar-se do cão do réu “…em demasia…”.
Por fim, JT… mencionou, referindo-se à autora, que “ela nunca mexeu no cão, porque nem o pai, nem a mãe deixavam, porque o cão era um bull terrier e o que se constava era que eram cães maus….se tocou, pediam às vezes ao F… e ele às vezes deixava…”, tendo dito, contudo, posteriormente, de forma que procurou categórica, nunca ter visto a autora a brincar com o cão, nem a lhe dar comida.
Ora, tendo presentes os meios de prova produzidos e, mesmo considerados criticamente os mencionados depoimentos – do réu, de VA… e de JT… - , deles se retira que a autora e o cão estavam habituados a partilharem o mesmo espaço, ainda que os pais da autora tivessem cuidado para que a criança não interagisse livremente com o animal, aspecto que foi, indelevelmente assinalado, desde logo, pelo réu, sendo que, por outro lado, tais depoimentos não permitem infirmar o facto vertido no ponto 10).
Veja-se, a este respeito, o elucidativo depoimento de AQ… referindo que o cão do réu: “Está habituado a lidar com pessoas, com crianças…com pessoas da família, amigos próximos…se forem pessoas do nosso conhecimento e que nós autorizemos a mexer…desde que sejam pessoas do nosso meio, está habituado a mexer e a lidar…”. Referiu, contudo, contraditoriamente, às afirmações precedentes que, relativamente à relação da autora com o cão do réu, que esta não existia, procurando explicar que, “…tendo em conta o nosso trabalho, não eram pessoas que eu via…”. Mais disse, com emotividade, aliás assinalada pelo Tribunal, nunca ter assistido a autora a atirar garrafas ao cão do réu, nem a dar comida ao mesmo.
Assim, conjugados todos os meios de prova, e explicitado detalhadamente, e de forma compatível com o resultado probatório alcançado, o processo de formação da convicção crítica do Tribunal sobre os mesmos, não merece censura a conclusão alcançada pelo Tribunal recorrido a respeito dos mencionados factos 9), 10) e 29) constantes dos factos provados.
Improcede, pois, in totum, o recurso no que respeita à impugnação da matéria de facto arguida.

*
c) Do mérito da apelação:
Nos termos do artigo 639.º do CPC, o recorrente deve apresentar a sua alegação, na qual conclui, de forma sintética, pela indicação dos fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão.
Versando o recurso sobre matéria de direito, as conclusões devem indicar:
a) As normas jurídicas violadas;
b) O sentido com que, no entender do recorrente, as normas que constituem fundamento jurídico da decisão deviam ter sido interpretadas e aplicadas;
c) Invocando-se erro na determinação da norma aplicável, a norma jurídica que, no entendimento do recorrente, devia ter sido aplicada.

*
c.1) Se não ocorre responsabilidade do réu, porque o evento ocorreu no interior do veículo (lugar privado) e porque é irrelevante o seu silêncio (não ter respondido ao suposto pedido autorização) não equivalendo a consentimento?
Em termos de recurso de direito, o apelante entende que há elementos que determinariam a sua não responsabilização, que o Tribunal recorrido não considerou.
Invoca, por um lado, que o evento ocorreu num lugar privado (o interior do seu veículo) e, por outro lado, que o facto de não ter respondido ao pedido de autorização para a autora fazer festa no cão, não equivale a consentimento, não podendo ser valorado o seu silêncio para o responsabilizar.
Apreciando:
Ora, quanto ao local onde ocorreu o evento importa convocar os factos provados sob os números 3 a 6:
“3. No dia 15 de maio de 2012, pelas 16h20, FJ… estava sentado no interior do porta-bagagens aberto da sua carrinha Renault Laguna, de matrícula …-…-UM, juntamente com o seu animal de estimação, um cão de raça Bull Terrier chamado Chuck;
4. A carrinha estava estacionada junto da igreja paroquial da Brandoa, na Amadora;
5. O cão estava no interior do porta-bagagens sem trela nem açaime;
6. O local onde se encontrava o réu está perto de três escolas, sendo utilizado por jovens e crianças no percurso entre a escola e casa”.
Por outro lado, na certidão do processo penal de que o réu foi objecto consta do facto n.º 6, que o réu tinha o seu cão “dentro da bagageira do seu veículo, estacionado num local público, sem trela nem açaime, não tendo previsto, como devia, que a qualquer momento o seu cão poderia fugir da bagageira e morder quem por ali passasse…”.
A sentença recorrida abordou claramente o problema do local onde ocorreu o evento, depois de passar em revista os diplomas legais potencialmente aplicáveis, com especial enfase para o artigo 7.º do D.L. n.º 314/2003, de 17 de dezembro e para o artigo 6.º do D.L. 276/2001. De 17 de Outubro.
Consta da referida sentença, designadamente, o seguinte:
“Da responsabilidade extracontratual – continuação – da situação em concreto
Provou-se que, no dia 15 de maio de 2012, o réu estava sentado no interior do porta-bagagens da sua carrinha, que estava estacionada junto da igreja paroquial da Brandoa, juntamente com o seu cão, que estava no interior do porta-bagagens, sem trela nem açaime.
Nessas circunstâncias, o cão deu uma dentada que atingiu o lábio superior da autora, com 4 anos de idade, no momento em que esta estava a acariciar o animal.
Em consequência desta dentada, a autora, além do mais, ficou com uma ferida no lábio superior, com perda de substância e laceração do músculo orbicularis oris, deixando-a com uma cicatriz e perda de sensibilidade no lábio.
Existe aqui uma violação ilícita da saúde e integridade física da autora, que não é, obviamente, imputável ao animal por o mesmo ser um animal irracional, destituído de consciência e de vontade, daí de personalidade jurídica.
A responsabilização que se coloca aqui é o da imputação do dano ao detentor de um cão por ação ou omissão ilícita e culposa (negligente) relativamente ao dever de vigilância do animal.
Efetivamente, o artigo 493.º do Código Civil estabelece uma presunção de culpa, por violação do dever de vigilância sobre coisas ou animais (culpa in vigilando): Quem (…) tiver assumido o encargo de vigilância de quaisquer animais responde pelos danos que a coisa ou os animais causarem, salvo se se provar que os danos se teriam igualmente produzido ainda que não houvesse culpa sua.
Existe assim uma inversão da regra constante do artigo 487.º do Código Civil, cabendo ao autor da lesão provar que o dano não provém de culpa sua.
A culpa é apreciada, na falta de qualquer critério legal, pela diligência de um bom pai de família, em face às circunstâncias de cada caso, que podia e devia ter agido de outro modo – artigo 487.º, n.º 2 do Código Civil.
Importa aferir se o detentor do cão violou regras jurídicas ou de regras de cuidado (segundo o padrão de um bonus paterfamilias) que visavam evitar o resultado que se acabou por produziu, que foi a violação da integridade física da autora.
Como referimos supra, de acordo com o artigo 6.º do D.L. 276/2001. De 17 de Outubro, incumbe ao detentor do animal o dever especial de o vigiar de forma a que este ponha em risco a vida ou integridade física de outras pessoas.
Por seu turno, é proibida a presença na via ou lugar públicos de cães sem estarem acompanhados pelo detentor e sem açaimo funcional, exceto quando conduzidos à trela, em provas ou treino ou, tratando-se de animais utilizados na caça, durante os atos venatórios – artigo 7.º do D.L. 314/2003, de 17 de dezembro.
A primeira questão que se coloca é o de saber se o animal estava colocado em local privado e se tal facto isentava dos deveres de vigilância do animal.
A conclusão que alcançamos é a que o cão Chuck, ainda que sobre o espaço do porta-bagagens do veículo do réu, estava, para este efeito, num local público, porquanto não confinado do restante espaço onde circulam pessoas ou animais. Ainda que o cão estivesse no espaço destinado ao porta-bagagens do veículo, o veículo estava parado na via pública junto à igreja paroquial da Brandoa e o porta-bagagens estava aberto, pelo que o cão podia alcançar e ser alcançado por seres ou objetos que estivessem na via pública. O cão estava livre na via pública.
Efetivamente, na situação dos autos, não resultou provado que a autora tivesse entrado no porta-bagagens e aí sido mordida. A menina estava na via e foi alcançada pelo cão com uma dentada, no momento em que o acariciava. Não vemos qualquer diferença entre o cão estar sentado ou deitado num porta-bagagens aberto ou estar deitado num banco de jardim ou na via propriamente dita.
Por isso, consideramos que o réu, tendo o cão ao seu lado, no espaço público, estava obrigado a ter o cão com açaimo funcional, isto é, um utensílio que, aplicado no animal sem lhe dificultar a função respiratória, não lhe permite comer nem morder, ainda que o cão não seja um animal perigoso ou potencialmente perigoso.
O cão do réu não tinha qualquer açaimo funcional nem tinha trela, pelo que existe a violação de uma norma de cuidado, funcionalmente estava a evitar consequências com as que acabaram por ocorrer. Além disso, o cão não estava a ser conduzido à trela, uma vez que estava sem trela.
Além disso, ainda que se provasse que o cão tinha a trela, a mesma não estava instalada de forma a cumprir o seu objetivo, que era impedir de interagir com pessoas ou animais. Ou seja, tendo açaime não podia morder. Tendo trela, conseguiu morder.
Deste modo, o réu atuou com negligência ao permitir que o cão de que é dono estivesse ao seu lado, sobre a via pública, sem ter colocado o açaime de contenção, o que tornou possível que o cão tivesse dado uma dentada na autora, causando-lhe ferimentos graves”.
Ora, não se afigura que tenha havido errónea aplicação do Direito aos factos, por ter sido considerado que o evento ocorreu no espaço público.
Na realidade, o réu e o cão estavam no carro, o qual se encontrava na via pública e do modo como o cão se encontrava, possibilitava que se desse, como deu, o evento dos autos.
A tese de que, estando o cão sentado no veículo do réu, pertença deste, determinaria que o evento se considerasse como registado em espaço não público, e de tal sorte não determinaria responsabilidade para o proprietário do mesmo, não merece acolhimento.
É que, por um lado, concorda-se com o mencionado na sentença recorrida, no sentido de que não deixa de estar no espaço público, um cão ainda que sentado num veículo privado, notando-se que o referido espaço não estava confinado, mas antes aberto sobre a via pública, possibilitando a ocorrência do evento sobre quem por ali passasse.
Assim, o caso dos autos não tem paralelo com a situação a que se referiu o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 14-06-2016 (Processo 3673/11.5TBVFR.P1, relator RUI MOREIRA) onde se concluiu que “a presença de um cão G… num espaço vedado e o seu ataque a alguém que aí entrou, quando na entrada se assinalava a presença do animal e quando a esse alguém foi instruído que aguardasse - o mesmo significa que não entrasse até nova instrução - não pode considerar-se um risco especial inerente à qualidade e à detenção do animal naquelas circunstâncias”.
Ou seja: O relevante para a não responsabilização do réu seria a demonstração da tomada dos cuidados inerentes à actividade de risco desenvolvida – detenção de um cão na via pública (um veículo estacionado na via pública, enquanto via de comunicação aberta ao trânsito, não deixa de estar nesta e num espaço público –cfr. o artigo 1.º, al. x) do Código da Estrada) – e a eventual demonstração de responsabilidade de terceiro. Ambas as situações não tiveram lugar.
Mas, por outro lado, em diversos casos, a lei não deixa de inculcar a responsabilização do proprietário do veículo, pelo facto de algum evento ocorrer no interior de um veículo, ou seja, num bem objecto do direito de propriedade de alguém (cfr. v.g. artigos 55.º e 84.º do Código da Estrada).
O relevante a este respeito não é a circunstância de o cão estar sentado no porta-bagens do carro do réu, mas sim, o facto de o mesmo estar em condições que possibilitariam que se lançasse sobre quem, por ali, passasse, sem que o réu tenha tomado as devidas precauções que a situação concreta exigiria.
Para a não responsabilização do réu importaria que este conseguisse ilidir a presunção de culpa que sobre si recaía, atenta a detenção do animal. O que, por exemplo, poderia concluir-se se, estando o cão fechado no interior do veículo, fosse a autora que entrando pelo veículo a dentro, ou colocando o seu braço sobre alguma fresta aberta do mesmo, proporcionasse uma intempestiva reação do cão, desencadeadora da mordedura. Ora, esta situação não resultou minimamente demonstrada.
Assim, soçobra o invocado pelo réu a este respeito, não permitindo concluir por irresponsabilidade da sua parte.
Mas, o réu considerou também que não pode ser responsabilizado pelo evento, “porquanto o silêncio não tem valor declarativo, como prescreve o art. 218º do Código Civil, salvo se houver lei, uso ou convenção. Ora não foi alegado, nem sequer demonstrado, a existência de qualquer lei, uso ou convenção a atribuir valor ao alegado silêncio da R., independentemente da interpretação que cada um, nomeadamente os pais da A. pudessem fazer ou tenham feito. Mais: de acordo com as regras da experiência comum, o silêncio ou falta de resposta, determinaria a repetição da pergunta, porquanto se inexistia, como se demonstrou, qualquer relação entre a criança e o cão, que uso ou habitualidade existiria no silêncio a uma pergunta que nunca havia sido feita no passado. Refira-se que ninguém, na audiência de discussão e julgamento, afirmou que os pais da A. alguma vez, antes do evento, o tivessem interpelado com questão idêntica, pelo que não pode ser atribuído qualquer valor ao alegado silêncio do R.”.
Importa relembrar a factualidade apurada:
“7. A dado momento, LF…, que seguia na sua viatura juntamente com AF… e DC…, avistou o réu;
8. Porque eram amigos, LF… estacionou a sua viatura atrás da viatura do réu para o cumprimentar;
9. Ao cumprimentarem-se, DC… perguntou ao pai se podia acariciar o cão;
10. Porque já estavam familiarizados com o animal por convívios anteriores, o pai autorizou que a filha o fizesse, ao que o réu, apercebendo-se da situação, não se opôs”.
Ora, não resulta da sentença recorrida que a responsabilização do réu tenha assentado no facto n.º 10 supra aludido e, nomeadamente, na não “oposição” do réu ao contacto pretendido pela autora com o cão do réu.
Como resulta expresso e cristalino da decisão recorrida, a responsabilização do réu decorre da criação de uma situação de perigo pelo réu, “ao deixar o cão num local público sem um dispositivo de contenção que o impedisse de atingir uma criança e ao permitir que uma criança de 4 anos de idade se aproximasse do cão e fizesse carícias, ficando sujeita ao risco de ser mordida, o que aconteceu. Face aos factos provados, temos o entendimento que o réu não logrou ilidir a presunção de culpa constante do artigo 493.º do Código Civil: não logrou demonstrar que nenhuma culpa nos danos causados pelo Bull Terrier nem provou que os danos se teriam produzido ainda que não houvesse de culpa sua”.
A circunstância de o réu não se ter oposto ao contacto pretendido com o cão, apenas ilustra a ausência de outro comportamento pelo réu, que o permitisse desculpabilizar.
Ora, na economia da decisão recorrida, tal circunstância não foi valorada positivamente no sentido condenatório, tanto mais que, foi o réu que, na realidade, não ilidiu a presunção do artigo 493.ºdo CC.
Mas, se assim é, nenhum relevo tem – em termos de excluir a responsabilização do réu – a circunstância de o mesmo nada ter dito.
A apelação deduzida não poderá, pois, neste conspecto, proceder, atenta a irrelevância da conclusão alcançada pelo réu, que não infirma a responsabilização em que o mesmo incorreu.

*
c.2) Se é “desproporcionalmente elevado tendo em conta os danos sofridos pela A.” o valor da indemnização arbitrada (€ 22.000,00) não devendo ser superior a € 7.500,00?
Por fim, invoca o apelante – citando vários acórdãos dos tribunais superiores – que o valor da indemnização fixada é desproporcionadamente elevado tendo em conta os danos sofridos pela A. e constantes dos factos provados sob os n.º 13 a 19.
Desde já se diga que, “na fixação da indemnização por danos não patrimoniais deve o tribunal recorrer à equidade, tendo em atenção o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso; A gravidade do dano não patrimonial causado deve medir-se por um padrão objetivo, sem atender à sensibilidade especialmente exacerbada do lesado” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 07-11-2017, Proc. 9756/06.6TBCSC 7ª Secção, relatora CONCEIÇÃO SAAVEDRA).
No caso, o acervo probatório apurado inculca o seguinte:
- Que a autora foi mordida por uma dentada do cão do réu que a atingiu no lábio superior;
- Que a mesma foi transportada no dia dos factos para o quartel da Corporação da Cruz Vermelha e, daí, para o Hospital de Santa Maria, onde entrou pelas 17h12;
- Que em consequência da referida mordedura, a autora ficou com uma ferida no lábio superior, com perda de substância (vermelhão, rolo branco e pele) e laceração do músculo orbicularis oris;
- Que a autora foi operada no próprio dia, tendo sido submetida a lavagem e desbridamento da ferida, miorrafia do orbicularis oris e enxerto de pele parcial tie over, colhido do couro cabeludo temporal esquerdo;
- Que aquela ferida determinou uma incapacidade temporária geral que foi fixada em 15 dias e uma incapacidade temporária parcial de 165 dias, sendo que, nos primeiros 15 dias, a autora não frequentou a pré-escola, não tendo convivido com amigos e educadores;
- Que foi fixado um quantum doloris de 5 numa escala de 1 a 7 pontos, de gravidade crescente;
- Que em consequência da mordedura, a autora ficou com uma cicatriz nacarada e queloide no hemilábio superior esquerdo, medindo 3,5 cm de eixo maior por 2 cm de eixo menor, acompanhada de alterações de sensibilidade, valorizável em 5 pontos, numa escala de 1 a 7 pontos, de gravidade crescente, por se considerar que a cicatriz a desfigura de maneira grave;
- Que a cicatriz é valorizável em 4% pela Tabela Nacional de Incapacidades (II-1.2.1 (0,01-0,06)] e em 4 pontos de acordo com a Tabela de Avaliação de Incapacidades Permanentes em Direito Civil de acordo com Pa0101 (1 a 10 pontos);
- Que em condições normais, a cicatriz poderá ser parcialmente corrigida futuramente, durante a adolescência / vida adulta.
Na sentença recorrida refere-se, a este respeito, o seguinte:
“Quanto aos danos não patrimoniais resultou provado que, como consequência direta e necessária da mordedura do cão, a ofendida, com 4 anos de idade:
- Ficou com uma ferida no lábio superior.com perda de substância (vermelhão, rolo branco e pele) e laceração do músculo orbicularis oris;
- Foi operada no próprio dia, tendo sido submetida a lavagem e desbridamento da ferida, miorrafia do orbicularis oris e enxerto de pele parcial tie over, colhido do couro cabeludo temporal esquerdo;
- Aquela ferida determinou uma incapacidade temporária geral que foi fixada em 15 dias e uma incapacidade temporária parcial de 165 dias;
- Nos primeiros 15 dias, a autora não frequentou a pré-escola, não tendo convivido com amigos e educadores;
- Foi ainda fixado um quantum doloris de 5 numa escala de 1 a 7 pontos, de gravidade crescente;
- Em consequência da mordedura, a autora ficou com uma cicatriz nacarada e queloide no hemilábio superior esquerdo, medindo 3,5 cm de eixo maior por 2 cm de eixo menor, acompanhada de alterações de sensibilidade, valorizável em 5 pontos, numa escala de 1 a 7 pontos, de gravidade crescente, por se considerar que a cicatriz a desfigura de maneira grave;
- A cicatriz é valorizável em 4% pela Tabela Nacional de Incapacidades (II-1.2.1 (0,01-0,06)] e em 4 pontos de acordo com a Tabela de Avaliação de Incapacidades Permanentes em Direito Civil de acordo com Pa0101 (1 a 10 pontos);
- Em condições normais, a cicatriz poderá ser parcialmente corrigida futuramente, durante a adolescência / vida adulta.
Estes danos (dores resultantes de lesões corporais, da operação e inerentes incómodos, cicatriz, alteração de sensibilidade, privação de contato com amigos) constituem, pois, danos morais, os quais merecem, pela sua lesão e gravidade, a tutela do direito.
A obrigação de reparação ainda os sofrimentos e as dores suportadas (quantum doloris) quer por força direta de agressões externas, quer por efeito imediato de tais agressões, quer por força de processos iatrogénicos de dor. Não é só a dor física como o próprio sofrimento psicológico.
Considerando por um lado, a idade da autora à data dos factos (4 anos), a gravidade dos ferimentos, o quantum doloris de 5 numa escala de 7, a cicatriz que ficou no lábio com 3,5 cm de eixo maior, desfigurando de forma grave a face da autora, e que poderá ser apenas parcialmente corrigida, afetando a vida de relação, a alteração de sensibilidade que ficou no lábio, que não é possível de corrigir face aos conhecimentos médicos atuais, ao tempo entretanto decorrido;
Considerando, por outro lado, a circunstância de a agressão ter ocorrido num contexto de algum modo inesperado, num grupo de pessoas amigas que tinham uma certa expetativa em relação ao comportamento do cão, o que atenua de algum modo o juízo de censurabilidade do réu;
Tendo em conta estas considerações, o Tribunal julga adequado fixar, a título de indemnização por danos não patrimoniais, a quantia de € 22.000,00 (vinte e dois mil euros)”.
Relativamente a esta matéria, e para aferir do grau de compatibilidade relativa do quantum indemnizatório, importa verificar como tal quantum foi considerado em algumas decisões judiciais sobre situações factuais semelhantes (envolvendo mordedura por cães a crianças) à dos autos.
Na realidade, como se decidiu no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 05-02-2015 (Processo 218/11.0TCGMR.G1, relatora MARIA DA PURIFICAÇÃO CARVALHO), “na fixação da indemnização pelo dano não patrimonial resultante de acidente de viação, o indispensável recurso à equidade, não impede, antes aconselha, que se considere, como termo de comparação, valores pecuniários encontrados para o mesmo efeito noutras decisões judiciais relativas a casos semelhantes, sem prejuízo das especificidades e particularidades do caso que, concretamente, é submetido à apreciação do tribunal”.
Efectuando tal análise, vemos, por exemplo, no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 06-10-2010 (Processo 426/06.GAALB.C1, relator BRÍZIDA MARTINS):
“1. O arguido A em 14 de … de 2006, era dono de um cão de raça Rottweiler, de cor preta afogueado, nascido a 27 de Novembro de 2003, do sexo masculino, o qual se encontrava em condições não concretamente apuradas, num quintal, sito nos anexos do estabelecimento comercial denominado “K.., sito na Rua… da localidade de A… área da comarca do Baixo Vouga, Albergaria-a-Velha, da propriedade do arguido e por este explorado e sua esposa.
2. Entretanto, tal como já vinha sucedendo vezes anteriores, A, nesse dia, pelas 18h00, juntamente com a sua filha E, então menor de 16 anos de idade (nascida a 07/12/1991), deslocaram-se ao mencionado estabelecimento, o qual se encontrava aberto ao público.
3. Sendo que o arguido nesse mesmo instante se encontrava no quintal contíguo ao mencionado café, local onde também se encontrava o seu cão.
4. Sucede que no acto em que a ofendida E e sua mãe penetraram no interior, encontrando-se aí a esposa do arguido, aí surgiu o referido cão, vindo de um espaço anexo ao café, que circulava livremente, sem estar atrelado ou açaimado, sendo que a ofendida E ao aperceber-se da presença deste no interior do café, tal como já o vinha fazendo há cerca de 2 anos a essa parte, agachou-se de cócoras e começou a fazer-lhe festas.
5. Nesse acto, subitamente, e pese embora a presença da esposa do arguido, o cão atacou a ofendida E, desferindo-lhe diversas dentadas na face, mordendo-a junto ao olho esquerdo e cabeça, até que a esposa do arguido, M, conseguiu verbalmente que aquele se afastaste da ofendida, após o que aí compareceu o arguido, alertado por esta.
6. Em consequência, directa e necessária da descrita conduta do arguido, designadamente das mordeduras efectuadas pelo seu cão, sofreu E, dores e careceu de receber tratamento hospitalar, e as lesões descritas nos exames médico-legais de fls. 37 a 39, 57, 54, 60, 61, 122, 140 a 141, isto é, no crânio, cicatriz rosada na metade esquerda da região frontal, assente sobre o couro cabeludo, medindo dois centímetros de comprimento por meio centímetro de largura, cicatriz nacarada, curvilínea de concavidade lateral, na metade interna da pálpebra superior esquerda, com catorze milímetros de comprimento por um milímetro de largura depois de rectificada, retracção da metade interna do bordo palpebral superior esquerdo, tumoração mole, depressível, na linha média da pálpebra superior esquerda, com meio centímetro de diâmetro, cicatriz nacarada, pouco aparente, na região malar esquerda, com cinco milímetros de comprimento por um milímetro de largura, cicatriz nacarada, pouco aparente, na região bucal esquerda, com cinco milímetros de comprimento por um milímetro de largura, lesões que lhe demandaram, para cura, um período de 440 (quatrocentos e quarenta) dias, sendo os deles 30 primeiros dias com incapacidade para o trabalho em geral”. O tribunal concluiu pela atribuição de uma indemnização por danos não patrimoniais fixada em € 15.000,00 (quinze mil euros).
No acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 11-06-2015 (Processo 613/08.2TBSSB.E1, relator JAIME PESTANA), apurou-se a seguinte factualidade:
“As mordeduras provocaram feridas e perfurações com perda de sangue da menor (…), bem como dores à mesma.
No Hospital Garcia de Orta, a ora autora, (…), foi encaminhada para o serviço de Urgência Pediátrica e depois de observada, constatou-se, como consequência directa e necessária do ataque do animal, que apresentava várias feridas, por mordeduras de dia, sangrantes em ambos os pavilhões auriculares, na face e no couro cabeludo (região occipital), ombro direito e esfacelo profundo da face anterior e posterior da coxa direita, conforme relatório de fls. 40 e 41, que se dá aqui por integralmente reproduzido;
No Hospital Garcia de Orta, a ora autora, (…), recebeu os primeiros tratamentos, nomeadamente a saturação sob sedaçao e anestesia local das feridas e perfurações pelo especialista de cirurgia plástica, conforme documento de fls. 42 e 43, que aqui se dá por integralmente reproduzido;
(…) foi submetida a tratamentos em regime ambulatório no Hospital Garcia de Orta nos dias 14, 16, 21 e 25 de Novembro de 2005, data em que atingiu a cicatrização de todas as feridas;
Após 25-11-2005, (…) manteve-se em seguimento em Consulta Externa de Cirurgia Pediátrica por cicatrização hipertrófica da região da coxa, conforme documento de fls. 50, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido.
Coma consequência directa e necessária do ataque do cão Fred, para além do referido no artigo 22º, (…) ficou rasgada e mordida, com pedaços de carne, músculo e tecido arrancados e perfurações várias.
Como consequência directa e necessária do ataque do cão Fred, para além do referido no artigo 22º dos factos assentes, (…) veio a apresentar esfacelo da coxa direita em dois locais, cicatrizes em ambas as orelhas, com cerca 1,5 cm de comprimento; no braço direito, com as dimensões entre 1,5 e 3 cm de comprimento; e ainda na face anterior e posterior da coxa direita variável entre os 3 e os 7 cm de comprimento.
A autora andou, logo após o ataque, de cadeira de rodas.
A autora sofreu de défice funcional temporário parcial entre 9-11-2005 e 14-05-2008 (918 dias).
Em virtude das lesões com que ficou, (…) sofreu dores de grau 4.
Entre 09-11-2005 e 25-11-2005, (…) foi submetida a vários tratamentos mencionados nos documentos de fls. 44 a 46.
Após 25-11-2005, (…) passou a ser assistida em consulta de psicologia na Unidade de Pedopsiquiatria do Hospital Garcia de Orta.
(…) passou a apresentar sintomas de tristeza e vergonha, irrequietude, birras e instabilidade do sono, que se manifestaram no quadro de perturbação pós stress traumático, que a autora padeceu durante 1 ano após o ataque.
Foi constatado, após várias consultas de psicologia, que (…) sofre de perturbação pós stress traumático em virtude de não conseguir lidar com o trauma perna, braço direito e ambas as orelhas, ao ponto de não aceitar vestir saias ou calções curtos, camisas ou vestidos de manga cava, vindo necessitando de acompanhamento psicológico, durante 1 ano após o ataque.
Antes do ataque do cão “Fred”, (…) não tinha problemas físicos.
Antes do ataque do cão “Fred”, (…) era uma criança activa, extrovertida, alegre e saudável.
Depois do ataque em questão (…) passou a apresentar-se com um carácter inibido e uma expressão triste.
Tendo sentimentos de angústia e tristeza em virtude do ataque sofrido.
(…) passou a ter baixa auto-estima (sentimento de diminuição) e debilidades nos relacionamentos com os outros.
(…) sente-se envergonhada em virtude das cicatrizes de que é portadora.
(…) não aceita andar com o cabelo apanhado, por vergonha das cicatrizes.
(…) sofre de défice funcional permanente da integridade física e psíquica fixada em quatro pontos e dano estético permanente quantificado no grau 5.
Em virtude do ataque do cão, (…) ficou com a roupa que vestia destruída.
(…) mantém a necessidade de acompanhamento psicológico e as cicatrizes não podem ser eliminadas, apenas reduzidas na sua espessura”.
E, com base nela, foi arbitrada a quantia de € 45.000,00 a titulo de indemnização por danos não patrimoniais.
Ora, como se assinalou no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 28-04-2009 (Processo 2805/06.0TJLSB.L1-1, relatora ROSÁRIO GONÇALVES):
“1- Na indemnização por danos não patrimoniais há que compensar realmente o lesado pelo mal que lhe foi causado, atribuindo-lhe um valor significativo e não meramente simbólico, como forma de mitigar o abalo moral suportado, encontrando um grau justo, evitando desproporções e que satisfaça o escopo legal padronizado.
2- Há que incutir na sociedade em geral e aos donos dos animais em especial, o respeito pela liberdade dos transeuntes (adultos e crianças) que usam a via pública, poupando-os às investidas daqueles que de forma insólita perturbam a sua tranquilidade e a sua integridade física.
3- Sendo o espaço público de todos, implica tal, uma maior rigidez de comportamentos e capacidade de controle, no sentido de todos que tenham à sua guarda animais, não só lhes criem as condições adequadas, como, assumam o dever de não importunar ninguém”.
Tendo em conta o que vem referido e ponderando, em concreto, a tenra idade da autora à data dos factos – então com 4 anos – a gravidade dos ferimentos e as dores tidas, bem como, o demais referido na decisão recorrida (a cicatriz permanente que afecta a vida de relação da autora, a sequela física com que ficou que altera a sensibilidade do seu lábio, não podendo ser corrigida com os conhecimentos médicos actuais) não se vislumbra que o montante fixado pela 1.ª instância esteja em desarmonia com a pauta que tem sido aplicável, nem com os critérios de fixação da indemnização.
Afigura-se-nos, pois adequado o montante fixado na decisão recorrida.
A apelação deduzida será, pois, de julgar integralmente improcedente, mantendo-se a sentença recorrida.
As custas nesta instância incidirão sobre o apelante, que ficou vencido.

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5. Decisão:
Em face do exposto, acorda-se em julgar a apelação improcedente, mantendo-se a sentença recorrida.
Custas pelo apelante.
Notifique e registe.
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Lisboa, 24 de Outubro de 2019.

Carlos Castelo Branco - Relator
Lúcia Celeste da Fonseca Sousa -1.ª Adjunta
Luciano Farinha Alves - 2.º Adjunto