Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
16215/15.4T8LRS.L1-2
Relator: PEDRO MARTINS
Descritores: ACÇÃO DE INABILITAÇÃO
PRODIGALIDADE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 09/14/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I. “[...A] prodigalidade consubstancia-se em gastos excessivos (injustificados e perdulários). Não basta, no entanto, a existência de gastos excessivos (ainda que alguém os considere injustificados e reprováveis), uma vez que a liberdade é um princípio fundamental do nosso ordenamento jurídico […] e cada um deve ter a possibilidade de fazer com o seu património aquilo que entender. É necessário, portanto, que o entendimento do inabilitando se encontre diminuído. Assim, p. ex., nada impede uma pessoa de, independentemente da idade, utilizar todo o seu património para fazer a viagem com que sempre sonhou.” (esta citação e a seguinte são de Jorge Morais de Carvalho, CC anotado, Almedina, 2017).
II. “[…O] regime da inabilitação visa tutelar o interesse do inabilitado, protegendo-o da sua incapacidade, e não o interesse de terceiros, nomeadamente dos potenciais herdeiros.”
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo assinados.


Relatório:


A, casado, intentou contra o pai, R, divorciado, a presente acção requerendo a inabilitação deste por prodigalidade, pedindo ainda uma decisão provisória sem contraditório prévio.
Alegou para o efeito, em síntese [aproveitou-se aqui, no essencial, a feita pela sentença recorrida], a dissipação do património mobiliário do réu, em centenas de milhares de euros e que existe o perigo de inexistência de liquidez para o pagamento dos impostos do seu vasto património imobiliário.

O réu contestou, impugnando de facto e direito.

Por despacho de 16/03/2016, foi determinada a notificação do requerente para juntar aos autos plano de cumprimento do contrato de mútuo alegado no art. 23 da PI.

A 07/04/2016, o autor, a pretexto de tal notificação, aproveitou para alegar uma série de outras coisas, em requerimento que não chegou a notificar ao réu (este ainda não tinha apresentado contestação).

Realizado o julgamento, foi proferida sentença julgando a acção improcedente e absolvendo o réu do pedido.

O autor recorre desta sentença, para que sejam alterados vários dos factos dados como provados e não provados e seja revogada a absolvição do pedido, reproduzindo, para este último efeito, na parte de direito, quase ipsis verbis o que já tinha dito na petição inicial a esse propósito.

O réu contra-alegou defendendo a improcedência do recurso.
*

Questões que importa decidir: se a decisão da matéria de facto deve ser alterada e se o réu deve ser, agora, declarado inabilitado por prodigalidade.
*

Factos provados [os itálicos, as partes entre parenteses rectas, as substituições [assinaladas com =>], os rasurados, as eliminações {assinalados com […]} e os pontos 10-A, 19, 20, 21 e 22 correspondem a alterações decorrentes do que será decidido mais à frente neste acórdão]:
1. O réu nasceu em 30/07/1953.
2. Encontra-se divorciado de MR desde 16/11/2015.
3. O réu vive com o seu filho P, nascido em 13/01/1988.
4. O autor é filho do réu e da ex-mulher do réu, nascido em 12/10/1978.
5. Antes do decretamento do divórcio, estiveram os cônjuges separados de facto desde [pelo menos] 2008, remontando o seu casamento a 1977.
6. Em 2008, por morte de sua mãe, o réu herdou um conjunto de imóveis e valores em dinheiro => Em 2007, por morte de seu pai, o réu herdou um conjunto vasto de imóveis e valores em dinheiro e em 2008, por morte de sua mãe, herdou também valores em dinheiro.
7. O réu teve em 2014 um rendimento de 8005,07€ anuais, a que corresponde uma média mensal de 667€, fruto de pensão de reforma.
8. O réu sustenta o seu filho P, de forma exclusiva, desde 2008. Inclusive, pagou propinas universitárias.
9. O réu tem despesas com águas, luz, gás, alimentação, vestuário, saúde, médico-medicamentosas, impostos e seguros.

10. Em 16/11/2015, por via da partilha decorrente do divórcio, foram adjudicados ao réu os seguintes bens, pelo valor global de 350.000€:
a.- Fracção autónoma designada pela letra “A”, destinada exclusivamente a habitação, correspondente ao primeiro andar esquerdo, do prédio em regime de propriedade horizontal, sito na Rua X, em X, freguesia de X (extinta), concelho de X, descrito sob o n.º 00, da 2ª Conservatória do Registo Predial X;
b.- Prédio urbano, composto por parcela de terreno para construção, com a área de 680 m2, sito na Rua Y, n.º 00, Y, freguesia de Y (extinta), concelho de Y, descrito sob o n.º 00, da 1ª CRP de Y;
c.- Prédio rústico, de terra de vinha, oliveiras, pereiras, macieiras, cerejeiras e cultura arvense, com área de 5240 m2, sito em lugar de W, freguesia de W, concelho de W, descrito sob o n.º 00, da CRP de W, inscrito na matriz sob o artigo 00, secção W;
d.- Veículo automóvel, ligeiro de passageiros, com a Marca Mercedes-Benz, modelo 204K, matrícula 00-AA-00.
10-A. O autor é ainda proprietário de outros 18 prédios urbanos.

11. O autor, enquanto titular de conta conjunta com o réu, levantou o saldo da conta, no valor de 60.000€.
12. O autor recebeu 220.000€ a título de empréstimo para aquisição da sua casa de habitação, dinheiro provindo também, do património do réu.
13. O autor iniciou o pagamento do empréstimo em Janeiro de 2009, com uma mensalidade de 803,58€.
14. Em 2013, a mensalidade a pagar pelo autor passa para 501€.
15. Assim, o autor fez os seguintes pagamentos: de 2009 a 2012: 4 x 12 x 803,58€; de 2013: 2 x 500€ + 7 x 501€; 2014: 10 x 501€; 2015: 3 x 501€, ou seja, o valor total de 45.573,94€.
16. O último pagamento que o autor fez foi em Maio de 2015.
17. […]
18. A conta nº 000-00.00000-0 aberta junto do MG, conta à ordem, é titulada pelo réu, cfr. documento 7 junto com a petição inicial.
19. O réu procedeu a 148 levantamentos (34 deles feitos em 17 dias, ou seja 17 levantamentos duplos) em dinheiro da conta 042-10.015819-7, aberta junto do MG, no período entre 03/01/2014 e 30/09/2015 (= 639 dias), 144 deles de 200€ e 4 de 150€.
20. Tal conta foi creditada, durante os primeiros nove meses de 2015, para além de com 3 pagamentos efectuados pelo autor, de 501€, com 6 resgates, de 10.000€ + 10.002,87€ + 20.000€ + 20.000€ + 10.000€ + 55.000€, com entregas de numerário, de 260€ + 130€ + 70€ + 350€ + 400€ + 300€, com uma transferência de 5000€, com rendimentos CEMG de 2304€, com pagamento de reembolso de CEMG 160.000€, com três seg, montepio: 1704,03€ + 1704,03€ + 1704,03€, e com uma entrega de valores de 500€.
21. Tal conta foi creditada, em 2014, para além dos 10 pagamentos feitos pelo autor, com entrega de valores: 500€; com transferências de 5000€ + 2.500€ + 2500€ + 2500€ + 2500€ + 2500€ + 2500€ + 2000€ + 1000€ + 750€ + 750€ + 1000€; com entrega de numerário: 20€ + 260€ + 150€; com rendimentos CEMG 2304€ + 2304€; e com uma contratação de 30.000€. 
22. O autor tem (reportado à data da PI) problemas de saúde e já teve um AVC.
*

Da impugnação da decisão da matéria de facto
[…]

Decidindo:
O autor só dizia que o réu tinha herdado, em 2007, bens e dinheiros do seu pai.
O réu, dizendo que o seu pai tinha falecido em 2006, aceitou o facto.
No decurso da produção da prova, soube-se – resulta das várias passagens transcritas ao longo das alegações e contra-alegações dos depoimentos/declarações prestados, reproduzidas neste acórdão - que a mãe do réu também morreu, que esta também tinha bens, que o réu é o único filho do casal e que aceitou a herança.
Note-se que nenhuma das partes se preocupou em esclarecer se os pais do réu estavam casados ou não, qual era o regime de bens do eventual casamento, se algum deles tinha bens pessoais ou não; se por morte do pai, que morreu primeiro, se fizeram ou não partilhas, quer do património conjugal comum, quer da herança do pai; etc.
Perante isto, não é material ou legalmente impossível que em 2007, por morte de seu pai, o réu tenha herdado um conjunto vasto de imóveis e valores em dinheiro e como o réu aceitou esta conclusão de direito, ela tinha que se dar como provada. Note-se que de há muito se admite que as partes possam reconhecer situações ou qualidades jurídicas (mortes, casamentos, chamamentos à herança, aceitações de herança) desde que elas não sejam aquilo que se discute no processo.
Neste sentido, por exemplo, tem-se admitido que as partes podem reconhecer determinadas situações ou qualidades jurídicas – assim, por exemplo, têm-se admitido que se dê como provado que A é casado com B, ou que A é proprietário de X. Isto desde que essas qualidades jurídicas não sejam precisamente o objecto do processo. Como diz, por exemplo, Oliveira Ascensão, “se o litígio não recai sobre a propriedade e o réu não a contesta, nada mais será necessário. O autor actua como proprietário, ainda que implicitamente. Se o réu o aceita, há a admissão desse qualidade.” E depois de desenvolver estas afirmações, com apoio legal e doutrinal, Oliveira Ascensão conclui: “A admissão de um direito invocado como questão prévia é assim uma figura normal na ordem jurídica portuguesa” (Acção de reivindicação, em Estudos em memória de Castro Mendes, Lex, 1995, págs. 34/36).
Oliveira Ascensão invoca no mesmo sentido a posição assumida por Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio Nora, Manual de Processo Civil, 2ª edição, Coimbra Editora, 1985, págs. 537/538, em nota 3: “A meio termo entre a confissão do facto e a confissão do pedido se situam aqueles casos em que a parte reconhece o direito ou a relação jurídica invocada pela contraparte contra ela. Importa, nestes casos, saber se a parte quis reconhecer o facto constitutivo do direito - e, nesse caso haverá verdadeira confissão do facto - ou reconheceu apenas a existência do direito, sem se referir ao facto constitutivo – e, quando assim seja, haverá apenas que aplicar o disposto no art. 458 do CC”, com base na qual acrescenta que “daqui resulta que os direitos podem ser objecto de admissão e que esta dispensa a prova dos factos constitutivos e que nenhuma razão há para excluir esta regra quando está em causa uma questão prévia.”
Esta posição, como diz Oliveira Ascensão, é perfilhada por Lebre de Freitas embora a acabe por reconduzir à confissão de factos, numa passagem que agora se pode ver no CPC anotado junto com Isabel Alexandre, admitindo a eficácia do acto de reconhecimento dum direito prejudicial da parte contrária no mero plano dos factos – como confissão (art. 352 CC) ou como presunção (art. 458 CC), consoante nele seja ou não feita menção aos factos constitutivos desse direito (vol. I, Coimbra Editora, Set2014, págs. 19/20).
Por outro lado, face ao que já se disse acima, também é claro que o réu em 2008, por morte de sua mãe, herdou pelo menos valores em dinheiro. Estes factos não são factos essenciais, mas apenas instrumentais, pelo que o juiz os pode dar como provados mesmo sem terem sido alegados pelas partes, desde que resultem da prova produzida no processo (art. 5/2-a do CPC).
Assim, aquilo que foi dado como provado está certo na medida no assinalado no § anterior, e aquilo que o autor dizia no art. 20 da PI está provado por admissão do autor.
Pelo que o ponto 6 passará a ter a seguinte redacção: Em 2007, por morte de seu pai, o réu herdou um conjunto vasto de imóveis e valores em dinheiro e em 2008, por morte de sua mãe, herdou também valores em dinheiro.
Não deixe de se dizer, no entanto, que muito provavelmente o tribunal recorrido é que terá razão: partindo das regras da experiência comum e da lógica das coisas, do que foi dito na audiência de julgamento e das regras jurídicas aplicáveis, muito provavelmente haveria um património comum dos pais do réu, que seriam casados num regime de comunhão, património comum que não foi partilhado logo depois da morte do pai, ou seja, não se concretizou nem a meação da mãe nem a herança do pai; pelo que o réu só terá recebido (sendo isto o que interessava à acção) tudo depois da morte da mãe, em 2008, por ser o filho único; até lá seria apenas um dos dois titulares daquele património não partilhado.
E acrescente-se: o que se sabe, de certeza, que não é possível estar certo – porque não tem qualquer sentido jurídico - é aquilo que foi sendo afirmado ao longo do julgamento pela ex-mulher do réu, que está do lado do autor, com um manifesto interesse em que o seu filho ganhe a acção, de que os bens eram da família, ou eram património familiar, ou eram, indirectamente, dos filhos do réu. Esta convicção da ex-mulher do réu, dá bem a ideia do que está em causa nesta acção, ou seja: a defesa do património que a ex-mulher do réu considera ser ‘indirectamente’ dos filhos, continuando, com esta acção de fins de 2015, a actuação que até essa data impediu na prática o marido de vender o seu (dele, marido) património, apesar de estar separada dele pelo menos desde 2008.
[…]
*

Do recurso sobre matéria de direito
Diz o autor:
59. De acordo com o art. 152 do CC, podem ser inabilitados (…) aqueles que, pela sua habitual prodigalidade (…), se mostrem incapazes de reger convenientemente o seu património.
60. Enunciando o conceito de prodigalidade, MANUEL DE ANDRADE (Teoria Geral da Relação Jurídica, Vol.II, Reimpressão, Coimbra, 1998, pág. 98 e ss) ensina que é a tendência (HEINRICH EWALD HÖRSTER chama-lhe «defeito da vontade ou do carácter» - A Parte Geral do CC Português, Almedina, 1992, pág. 343) para a dissipação, para malbaratar o próprio património, gastando-se em despesas desproporcionadas, ao mesmo tempo que improdutivas e injustificáveis.
61. Pródigo será pois o dissipador, aquele que derrete os seus haveres em «vãs profusões» (tribuno Tarrible, na discussão do Cód. Civ. Francês), em despesas loucas, desatinadas (AUBRY E RAU, FERRARA), em verdadeiras delapidações próprias de quem não dá o devido apreço ao valor do dinheiro (FERRARA); será quem, na fórmula vaga mas algum tanto sugestiva das nossas Ordenações (IV, 103, 6), «desordenadamente gasta» ou «destrói a sua fazenda» (Ob. cit. pág. 99).
62. Numa chamada de atenção pertinente para a presente acção, MOTA PINTO (Teoria Geral do Direito Civil, 3ª edição actualizada, Coimbra Editora, pág. 236, nota 1) explica que «Se as despesas são de montante muito elevado, mas cabem dentro do rendimento da pessoa, não há prodigalidade: não é pródigo quem gasta – gaste o que gastar – do rendimento. É necessário que as despesas ultrapassem o rendimento e ponham em risco o capital.»
63. Lembra-o o ac. do STJ de 23/06/1970 (BMJ 198, pág. 106) quando refere que a prodigalidade não se traduz apenas em despesas, mas naquelas que, sendo exageradas em relação aos rendimentos de quem as faz, injustificadas e reprováveis, implicam a dissipação ou possibilidade de perda do próprio capital ou dos bens donde provêm os rendimentos.
64. Mesmo considerando a liberdade económica como a trave mestra do nosso sistema jurídico, como refere MENEZES CORDEIRO (Tratado de Direito Civil, I – Parte Geral, Tomo III – Pessoas, Almedina, 2004, pág. 426), "a inabilitação do pródigo visa primeiramente acautelar os interesses dele contra a sua própria incapacidade" (A. VARELA e PIRES DE LIMA, Código Civil Anotado, Volume I, 4ª Edição, Coimbra Editora, pág. 99).
65. Considerando a factualidade que terá de se dar como provada em face da impugnação da matéria de facto, parece resultar evidente que o réu colocou em causa, a sua poupança em liquidez, tendo o autor o justificado receio que o réu lance mão do seu património imobiliário para manter os seus gastos voluptuários.
66. Caso o património imobiliário seja consumido ao mesmo ritmo das suas poupanças, estará em breve o réu em situação de penúria e total dependência de terceiros.
67. Atenta a idade e os problemas de saúde do réu é previsível, ou antes seguro, que o mesmo necessitará de meios financeiros acrescidos num futuro próximo.
68. Torna-se absolutamente necessário, em face da prodigalidade do réu, que é grave, habitual, e actual, que se proteja o capital constituído pelo seu património imobiliário, sujeitando-o a uma administração criteriosa e evitando actos de disposição que estejam apenas e tão só ao serviço das suas despesas voluptuárias.
69. Afigura-se assim que a inabilitação é a única forma de acautelar os interesses do réu, e apenas deste.
70. Em face do exposto, justifica-se que, nos termos do artigo 154 do CC, a administração do património imobiliário do réu a um curador nomeado pelo tribunal.

Decidindo:
Estas conclusões correspondem exactamente ao corpo das alegações do recurso, nada aí havendo que não conste destas e correspondem também, quase na íntegra, a tudo o que o autor já dizia na petição inicial.
Mas aí dizia ainda o autor, que o réu logrou esgotar a sua poupança de 690.000€ em 8 anos, metade da qual em apenas um ano (art. 53 da PI). A alegação deste estado de coisas chocante permitiu-lhe intentar a acção de inabilitação e pedir mesmo uma decisão provisória sem audição do réu, isto é, sem que lhe fosse dada a possibilidade de se defender, o que o tribunal teve o cuidado de não conceder.
Agora, neste recurso, o autor nem tentou demonstrar que tais factos deviam ser considerados provados e não há a mais pequena notícia de o réu ter gasto 690.000€ em 8 anos, nem 345.000€ em um ano.
Por outro lado, um dos gastos que permitia ao autor fazer a afirmação da prodigalidade, foi um empréstimo de 220.000€ (parte daqueles 690.000€) que o réu teria feito ao próprio autor, obviamente com o seu (dele, réu) dinheiro, na lógica da petição. Ora, qualificar tal favor que o pai lhe fez como um acto de prodigalidade, sintoma de incapacidade subjacente à inabilitação por ser habitual, é inaceitável.
Mas, para além disso, o autor veio agora dizer que o empréstimo não tinha sido feito pelo pai e o dinheiro não tinha saído do património do pai.
Ainda, sabe-se que o réu está a sustentar sozinho o outro filho desde 2008 – isto é, sem qualquer contribuição da mãe, ex-mulher do réu -, o que obviamente corresponde a uma despesa relevante. O autor não falava disto. Este sustento corresponde a um acto de prodigalidade habitual que deva dar lugar à inabilitação? O pai sustentar, sozinho, um dos filhos porque a mãe não contribui para esse sustento, é um acto de prodigalidade?
Outra das acusações que o autor fazia, era que o réu tinha despesas mensais de 6000€, ou seja, 200€/dia (embora dissesse que os gastos diários eram ‘entre 200€ e 600€’) e fazia levantamentos diários entre 200€ e 400€. Não se provaram factos que minimamente sustentassem tal conclusão. O autor, em 21 meses, fez 17 levantamentos duplos (num total de 34 levantamentos) com um máximo de 400€ (nalguns casos foi de 350€). E nesses 21 meses fez 148 levantamentos, o que corresponde a 1 em cada 4,35 dias. E a um total de 11.550€ + 17.850€ = 29.400€, o que é igual a 1400€/mês ou 46,66€/dia.
E mesmo que ficassem provados, eles seriam indícios de prodigalidade? O réu tem 20 prédios urbanos e um rústico e tem as despesas inerentes com eles (impostos, seguros, etc.). Sustenta-se a ele e a um dos filhos. Mesmo que gastasse 6000€ (ou mais) por mês tal corresponderia necessariamente a gastos excessivos? Mesmo tendo em conta que, em 2014, foram-lhe creditados numa sua conta bancária (existe necessariamente outra onde é depositada a reforma de 667€, conta que não está referida nos factos provados, pelo que nem sequer se pode dizer que a situação de rendimentos do réu está minimamente descrita nos autos) 66.044€ e, em 2015, 300.931,96€? E isto sem que se saiba nada, porque o autor nada alegou sobre isso, quanto aos rendimentos prediais dos 21 prédios do tem. E também sem que se saiba de outras contas bancárias que o réu tem. E sem que se saiba o que é que tem sido nelas creditado..
A acção de inabilitação não é uma acção de prestação de contas. O réu não tem de prestar contas dos seus gastos ou da venda do seu património a ninguém, nem aos seus filhos nem à sua ex-mulher. O património é seu e não dos filhos. Ele não está a gerir património alheio. O filho autor apenas poderia pôr em causa a actuação do réu se, no caso, tivesse alegado (e viesse a provar) a prática habitual de actos pródigos. Caberia, pois, ao autor, a alegação e prova de tudo o que permita concluir pela prodigalidade de tais actos. Ou seja, no caso, caberia, por exemplo, ao autor, provar que os 21 prédios do réu não precisariam de realização de despesas ou que o réu não fez despesas com eles e que os prédios não proporcionam rendimentos ao réu.
Para além de tudo isto, o autor ainda tem direito à devolução, pelo filho autor, dos 60.000€ que este retirou de uma outra conta titulada também pelo réu (sem que o autor invocasse que era contitular do dinheiro; dizia apenas ser contitular da conta e que tinha retirado o dinheiro para acautelar o pagamento futuro de despesas pelo réu, o que indicia evidentemente que o dinheiro era do réu e não também dos filhos, já que certamente o filho não aceitaria que fosse com o seu dinheiro que o réu pagasse as despesas próprias).
Em suma, dos factos provados não há qualquer um que permita sequer o começo da afirmação de que eles revelam prodigalidade do réu e muito menos uma habitual prodigalidade.
E, não tendo o autor dito uma palavra que fosse contra a fundamentação de direito da sentença recorrida, remete-se para esta que já explicava que:
“a prodigalidade corresponderá à realização de gastos inúteis, anómalos, e desproporcionados à situação patrimonial do incapaz (citamos o ac. do STJ de 25/01/2005, proc. 04A4480, consultado em www.dgsi.pt), com risco de tomber dans le besoin" ("cair na necessidade", expressão do artigo 488, n.º 3, do Código Civil francês).”

E continua a sentença:
Ainda, o instituto visa, como todas as incapacidades previstas na lei, exclusivamente, a protecção do incapaz. Neste âmbito, o paradigma é radicalmente diferente do previsto no Código de Seabra. […] Pressupunha, então, a protecção de interesses de terceiros. Tal solução revela-se, actualmente, manifestamente inconstitucional.
Ainda, para justificar a inabilitação, impõe-se que se revele a habitualidade, ou seja, uma tendência.
Compulsada a matéria de facto provada, não vislumbramos matéria que preencha o conceito de "habitual prodigalidade" por parte do réu.
[…]
Acresce […] que o réu aufere reforma superior à retribuição mínima garantida, circunstância que, por princípio, tornará desnecessária a intervenção dos obrigados a alimentos.”
Adite-se a este último argumento que o réu continuará, ainda, a receber, por muitos anos, as prestações mensais do empréstimo feito ao autor, em valor quase igual também ao SMN. E terá muito provavelmente rendimentos prediais.

Posto isto,
O ac. do STJ, citado pela sentença recorrida, ainda remete para outros dois, um de 22/10/1996, proc. 96A447 [só sumário: … sem se demonstrar que tais despesas se mostram injustificadas e reprováveis, não podem considerar-se verificados os requisitos necessários para a aplicação da medida de inabilitação por prodigalidade, que é uma medida de carácter excepcional só adequada aos casos de manifesta dissipação do património] e o outro de 30/06/1977, proc. 066715 [só sumário: por prodigalidade entende-se a propensão para gastos inúteis ou desproporcionados à situação patrimonial daquele que habitualmente os pratica, só neste caso se justificando a inabilitação].

No ac. do TRP de 24/09/1991, proc. 9320968 [só sumário], diz-se: I- Ao referir o artigo 152 do CC que podem ser inabilitados os indivíduos que pela sua "habitual prodigalidade" se mostram incapazes de reger convenientemente o seu património, visa os indivíduos que praticam habitualmente actos de delapidação patrimonial, de dissipação, de despesas desproporcionadas aos rendimentos, improdutivas e injustificadas.
II- Tais actos não se confundem com a administração ruinosa ou pouco perspicaz.
III- É ao requerente da inabilitação que compete provar os elementos constitutivos da prodigalidade habitual da requerida e, portanto, o destino que esta deu ao dinheiro realizado com as vendas dos seus bens.

No ac. do TRC de 13/09/2016, proc. 2382/09.0TBFIG.C2, diz-se: 2.- Devem ser sujeitos a inabilitação os indivíduos portadores de anomalia psíquica que, embora de carácter permanente, não seja tão grave que justifique a interdição ou aqueles que se revelem incapazes de reger o seu património por habitual prodigalidade ou pelo abuso de bebidas alcoólicas ou estupefacientes, tratando-se, neste caso, de pessoas que praticam habitualmente actos de delapidação patrimonial (actos de dissipação ou despesas desproporcionadas aos rendimentos, improdutivas e injustificáveis). 3. A inabilitação por prodigalidade é uma medida de carácter excepcional só adequada aos casos em que o requerido manifesta propensão para delapidar os bens que lhe pertencem e/ou para gastos inúteis ou desproporcionados à respectiva situação patrimonial.

No ac. do TRC de 19/02/2013, proc. 1685/10.5T2AGD.C1, escreve-se:
1- Para efeitos de inabilitação (art. 152 CC), a prodigalidade não se traduz em despesas elevadas, mas naquelas que sendo exageradas em relação aos rendimentos de quem as faz, injustificadas e reprováveis, implicam a dissipação ou possibilidade de perda do próprio capital ou dos bens donde provêm os rendimentos.
2- A prodigalidade, para constituir fundamento de inabilitação deve revestir a natureza de habitual, abrangendo os indivíduos que praticam habitualmente actos de delapidação patrimonial, devendo, para o efeito, atender-se, concretamente, ao capital do requerido e à natureza das despesas, sendo necessário que as despesas ultrapassem o rendimento e (ou) ponham em risco o capital, mostrando-se improdutivas e injustificáveis.
3- Por prodigalidade entende-se a existência de uma propensão para a dissipação desregrada de bens, quer em proveito próprio, quer alheio, o que leva a supor que a pessoa, que assim procede, estará incapaz de reger ou administrar convenientemente o seu património.
4- Os interessados na inabilitação devem alegar e provar (art. 342 CC) que há habitualidade actual na prática de actos ruinosos na administração dos bens e da sua dissipação e que isso constitui perigo actual para o património do inabilitando.

António Agostinho Guedes (em Comentário ao CC, Parte geral, Universidade Católica Portuguesa, Faculdade de Direito, Set2014, págs. 336-337) diz que:
“[…] não basta a mera verificação de uma debilidade por parte da pessoa enquadrável em alguma das categorias previstas na norma [art. 152 do CC], sendo também necessário que essa debilidade revele uma incapacidade de querer e entender que justifique as medidas de protecção resultantes da inabilitação.
[…]

É necessário ter sempre presente que a incapacidade jurídica é decretada no interesse do incapaz, pelo que não poderá ser decretada a incapacidade de alguém que, mesmo sofrendo daqueles males, se mostre capaz de reger o seu património (e a sua pessoa, naturalmente). Ou seja, o simples facto de alguém sofrer de urna anomalia psíquica, surdez-mudez, cegueira, habitual prodigalidade ou usar bebidas alcoólicas ou estupefacientes não é suficiente para decretar uma inabilitação, sendo ainda necessário que algum desses factos produza uma diminuição na capacidade de querer e entender da pessoa que a impeça de reger o seu património, assim justificando a restrição da sua capacidade de exercício.
A habitual prodigalidade pode ser caracterizada como a tendência de certa pessoa para uma dissipação desordenada do seu património, para efectuar despesas injustificadas e desproporcionadas em relação aos rendimentos e / ou aos bens que possui (CARVALHO FERNANDES, 2012: 360).
[…]”

E Jorge Morais de Carvalho (CC anotado, por vários, Almedina, 2017, págs. 173-174), diz que:
“4.- Entende-se normalmente que a prodigalidade se consubstancia em gastos excessivos (injustificados e perdulários). Não basta, no entanto, a existência de gastos excessivos (ainda que alguém os considere injustificados e reprováveis), uma vez que a liberdade é um princípio fundamental do nosso ordenamento jurídico (António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, Vol. I ­Parte Geral, Tomo III, Coimbra, Almedina, 2004, p. 427) e cada um deve ter a possibilidade de fazer com o seu património aquilo que entender. É necessário, portanto, que o entendimento do inabilitando se encontre diminuído.
Assim, p. ex., nada impede uma pessoa de, independentemente da idade, utilizar todo o seu património para fazer a viagem com que sempre sonhou.
A prodigalidade tem de ser habitual para ser causa de inabilitação, não bastando, em princípio, neste sentido, um ato isolado.
É importante ter em conta que o regime da inabilitação visa tutelar o interesse do inabilitado, protegendo-o da sua incapacidade, e não o interesse de terceiros, nomeadamente dos potenciais-herdeiros.
[…]

6.- Não é suficiente que a pessoa tenha uma anomalia psíquica ou se encontre afectada por habitual prodigalidade ou pelo abuso de bebidas alcoólicas ou de estupefacientes, sendo ainda necessário que se mostre incapaz de reger convenientemente o seu património.
[…]”
[isto naturalmente com uma ressalva, qual seja, de que a afirmação de que “cada um deve ter a possibilidade de fazer com o seu património aquilo que entender” deve ser entendida neste contexto, e não no sentido, por exemplo, de que o proprietário pode destruir as suas coisas. Como diz um autor alemão citado por Manuel da Costa Andrade, Consentimento e Acordo em Direito Penal, Coimbra Editora, 1991, pág. 557, “‘um direito de o pro­prietário destruir as suas coisas [jus abutendi] só nas cabeças absurdas’ pode caber”. Também em direito civil se poderia invocar a cláusula dos bons costumes, ao abrigo do art. 334 do CC, para tentar impedir a destruição de uma obra de arte ou de um bem produtivo pelo proprietário do mesmo].
Anabela Susana de Sousa Gonçalves (Breve estudo sobre o regime jurídico da inabilitação, Estudos em homenagem ao Prof. Doutor Heinrich Ewald Hörster, Almedina, Dez2012), diz que:
“[A habitual prodigalidade e o abuso de bebidas alcoólicas e de estupefacientes] reportam-se a uma certa espécie de vícios que geram no caso concreto uma compulsão da pessoa para dissipar o seu património. Estão em causa comportamentos reiterados e atuais. A lei refere, em primeiro lugar, a habitual prodigalidade que se caracteriza por um comportamento persistente e repetitivo que se traduz na dilapidação progressiva do património da pessoa, através de gastos inúteis e infrutíferos, em prejuízo de si própria, ainda que eventualmente possa prejudicar também terceiros, por exemplo familiares ou o erário público. A pessoa encontra-se dependente de um comportamento reiterado de gastos, esbanjando de forma improdutiva e injustificada o seu património. Estão sempre em causa gastos desproporcionados face aos bens que constituem o património da pessoa, sem que se vislumbre uma utilidade de qualquer natureza naqueles gastos. Assim sendo, é necessária uma ponderação entre o valor, a utilidade da despesa e o conteúdo do património da pessoa. Não existindo aqueles requisitos, a prodigalidade não é relevante para efeitos da lei civil, por não abranger a simples prática de negócios ruinosos ou a administração pouco perspicaz do património".
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Em suma: no caso dos autos não há prática de actos pródigos, não há habitualidade, nem há diminuição da capacidade.
Nada justifica a inabilitação.
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Pelo exposto, julga-se improcedente o recurso.
Custas pelo autor.



Lisboa, 14/09/2017



Pedro Martins
Arlindo Crua
António Moreira