Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
43/21.0YHLSB.L1-PICRS
Relator: PAULA POTT
Descritores: CASO JULGADO
MOTIVOS DA DECISÃO
VALOR EXTRAPROCESSUAL DA PROVA
SENTENÇA PENAL ABSOLUTÓRIA
NULIDADES
RECONVENÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 01/27/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTES OS RECURSOS INDEPENDENTE E SUBORDINADO
Sumário: Impossibilidade de alargar o caso julgado aos motivos da decisão fora das situações previstas no artigo 91.º do Código de Processo Civil – Requisitos do caso julgado previstos no artigo 581.º do Código de Processo Civil – Valor extra processual das provas e valor da sentença penal absolutória – Requisitos da reconvenção
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam em conferência, na Secção da Propriedade Intelectual e da Concorrência, Regulação e Supervisão, do Tribunal da Relação de Lisboa

1. A autora propôs contra a ré, no Tribunal da Propriedade Intelectual, a presente acção declarativa, com processo comum, pedindo:
i. A condenação da ré ao pagamento de uma indemnização por perdas e danos resultantes da violação dos direitos de autor exclusivos do desenho/modelo criado pela autora, sendo o valor de 151.851,60 euros a título de prejuízo patrimonial por lucro cessante e 2.000,00 euros a título de despesas com a identificação e averiguação do fenómeno da violação dos direitos exclusivos;
ii. A apreensão de todas as bonecas copiadas, cujo desenho foi criação exclusiva da autora, à venda e nas instalações da ré e dos seus clientes;
iii. A condenação da ré numa sanção pecuniária compulsória, por força do artigo 829-A do Código Civil (doravante também CC), no valor de 100,00 euros por cada boneca existente no mercado, à venda ao público, que seja uma cópia, imitação ou usurpação autoral da criação da autora, levada a cabo pela ré ou a pedido desta por intermédio de terceiros fabricantes nacionais ou estrangeiros;
iv. A intervenção provocada subsidiária daqueles fabricantes, nos termos e para os efeitos dos artigos 39.º e 316.º do Código de Processo Civil (doravante também CPC), após implementação do dever processual de colaboração e cooperação da ré na identificação dos mesmos, sem prejuízo da condenação solidária.
2. Invocou, em síntese, como fundamentos da sua pretensão, que: os desenhos/modelos das bonecas em litígio são criação artística da autora, à qual cabe em exclusivo o direito de os fruir e utilizar; a autora é titular do direito de autor sobre essa criação intelectual independentemente de registo, nos termos, nomeadamente, dos artigos 9.º, 11º e 12º do Código de Direitos de Autor e Direitos Conexos (doravante também CDADC); não obstante, a ré utiliza o desenho/modelo das bonecas, imitando-as, reproduzindo-as e comercializando-as, sem autorização da autora e causando a esta prejuízos no seu giro comercial.
3. A ré contestou:
i. Impugnando a protecção jusautoral invocada pela autora;
ii. Deduzindo a excepção de caso julgado com base em decisão anterior já transitada, nomeadamente, a proferida no processo n.º 167/17.9YHLSB do 1.º Juízo do Tribunal da Propriedade Intelectual;
iii. Deduzindo reconvenção na qual pede a condenação da autora a pagar à R. quantia de 37.857,58 euros acrescida de juros legais, contados desde a data em que a ré foi impedida de comercializar os produtos em causa, com base nos danos causados pelos processos judiciais que tiveram origem na conduta da autora e levaram à apreensão da mercadoria da ré;
iv. Pedindo a condenação da autora como litigante de má-fé, em multa e indemnização condigna a favor da ré.
4. A autora replicou, pugnando pela improcedência, tanto da excepção de caso julgado, como da reconvenção.
5. O Tribunal da Propriedade Intelectual (doravante também Tribunal de 1ª instância), por despacho saneador de 22.9.2021, com a Referência 452888, aqui dado por reproduzido, que foi objecto do presente recurso, pôs termo ao processo, decidindo, no essencial, o seguinte:
i. Não admitir a reconvenção por considerar que a mesma não se enquadra em nenhuma das possibilidades previstas no artigo 266.º do CPC;
ii. Verificar que as partes tiveram oportunidade de se pronunciar e tomaram posição sobre as exceções e questões suscitadas;
iii. Julgar que, em face do teor dos articulados e documentos juntos, não há necessidade de dar cumprimento ao disposto no n.º 2, do artigo 590.º do CPC;
iv. Dispensar, com esses fundamentos, a realização de audiência prévia, por força do artigo 593.º, n.º 1, do CPC, e proferir de imediato o despacho a que alude o artigo 595º, do CPC;
v. Decidir que o Tribunal é competente, o processo é o próprio, não existem nulidades que o invalidem, as partes têm personalidade e capacidade judiciárias e são legítimas;
vi. Julgar verificada a exceção de caso julgado e, em consequência, absolver a ré da instância.
vii. Condenar a autora em custas
viii. Fixar o valor da ação em 153.861,60 euros
6. Do despacho referido no parágrafo anterior foi interposto recurso independente pela autora e recurso subordinado pela ré.
7. A título liminar, importa sublinhar que o Tribunal ad quem delimitará a sua área de intervenção ao objecto de cada um dos recursos, que a seguir enuncia com base, respectivamente, nas conclusões de cada um dos recorrentes, sem prejuízo de matérias de conhecimento oficioso que lhe caiba apreciar. As conclusões das partes serão apenas transcritas na parte em que tal se mostre necessário para clarificar a fundamentação do presente acórdão.
8. Dito isto, a autora interpôs recurso de apelação do despacho saneador referido no parágrafo 5, pedindo, no essencial que:
§ Seja revogado o despacho proferido, e substituído por outro, que julgue improcedente a excepção de caso julgado e consequentemente ordene o prosseguimento dos autos, com a prolação de despacho saneador e agendamento da audiência de julgamento;
§ Se decretem as inconstitucionalidades identificadas relativamente aos artigos 577.º - i), 580.º n.º 1, 581.º, 590.º n.º 1, 592.º, 593.º n.º 1, 595.º n.º 1 – b) e n.º 3, 621.º, conjugados com o artigo 3.º n.º 3 do CPC.
9. Nas conclusões, a autora/recorrente delimita o objecto do recurso independente como a seguir se enuncia sinteticamente: (i) a decisão recorrida deve ser anulada por ter transposto a matéria de facto dos processos 167/17.9YHLSB e 341/17.8YHLSB; (ii) o Tribunal de 1ª instância não especificou os fundamentos de facto e de direito da decisão, violando, entre outros, os artigos 615.º n.º 1 – b) do CPC e 205.º da Constituição da República Portuguesa (doravante também CRP); (iii) reduziu a decisão da lide à questão de direito, inviabilizando o apuramento dos factos alegados nos presentes autos; (iv) sendo a causa de pedir o reconhecimento dos direitos de autor, de acordo com a teoria da substanciação acolhida pelo artigo 581.º n.º 4 do CPC, falta um dos pressupostos do caso julgado, por não existir identidade entre a causa de pedir nesta acção, cujo objecto é a tutela de direitos de autor, e nas acções acima referidas, cujo objecto foi a protecção do direito de propriedade industrial.
10. A ré/recorrida contra-alegou pedindo a confirmação da decisão da 1ª instância que julgou procedente a excepção de caso julgado e interpôs recurso subordinado da decisão referida no parágrafo 5 supra, na parte em que não admitiu a reconvenção, ao abrigo do artigo 633.º do CPC.
11. Nas conclusões, a ré delimita o objecto do recurso subordinado como a seguir se enuncia sinteticamente: (i) razões de economia processual justificam a admissão da reconvenção; (i) os factos que integram a causa de pedir são os mesmos que fundamentam o pedido reconvencional; (iii) o pedido reconvencional deve ser admitido por força do artigo 266.º n.º 2 – a) do CPC.
12. O Tribunal de 1ª instância, admitiu o recurso como apelação, com subida imediata e efeito devolutivo. Nesse despacho, embora mencionando as referências Citius correspondentes às alegações da autora e às contra-alegações e recurso subordinado da ré, não fez alusão expressa ao recurso subordinado. Tal despacho foi proferido antes de terem sido juntas as contra-alegações da autora quanto ao recurso subordinado (cf. despacho de 2.12.2021, com a referência Citius 463573 e as eferências Citius 93150 e 94286, ali indicadas).
13. A autora, notificada pela ré das contra-alegações e do recurso subordinado interposto por esta, contra-alegou dentro do prazo previsto no artigo 638.º n.º 5 do CPC, pugnando pela improcedência do recurso subordinado.
14. Nada obsta à admissibilidade e apreciação do recurso independente interposto pela autora e afigura-se que, sendo aquele admissível, também o será o recurso subordinado, interposto pela ré, quanto à parte em que decaiu, não obstante ter sido absolvida da instância – artigo 633.º n.º 5 do CPC.
15. Assim sendo, tanto o recurso independente (pelos fundamentos expostos no despacho de admissão proferido em 1ª instância), como o subordinado (pelos fundamentos supra expostos), foram interpostos em tempo, são de apelação, têm subida imediata, efeito devolutivo e são admissíveis.
Delimitação do âmbito dos recursos independente e subordinado
16. Têm relevância para a decisão dos recursos as seguintes questões, suscitadas pelos argumentos das partes vertidos nas conclusões:
Recurso independente
A. Violação dos deveres de gestão processual
B. Nulidade do despacho saneador por falta de fundamentação
C. Alargamento do caso julgado aos motivos da decisão final
D. Requisitos do caso julgado
E. Valor extra-processual das provas e eficácia da decisão penal absolutória
Recurso subordinado
F. Requisito substantivo da reconvenção previsto no artigo 266.º n.º 2 – a) do CPC
Com relevância para a decisão o Tribunal usa os seguintes factos
17. Quanto ao litígio nos presentes autos, resulta do despacho recorrido, da petição inicial, da contestação e da réplica, que: 
§ O Tribunal de 1.ª instância, no mesmo despacho, proferiu três decisões, a saber (i) não admitir a reconvenção, (ii) dispensar a realização de audiência prévia e (iii) proferir despacho saneador que pôs termo ao processo, com base na procedência da excepção dilatória de caso julgado, a qual obstou ao conhecimento do mérito da causa – cf. artigos artigo 576.º n.ºs 1 e 2, 577.º - i) e 578.º, do CPC;
§ Em particular, o Tribunal de 1.ª instância julgou não ser necessário dar cumprimento ao artigo 590.º em face dos articulados e documentos juntos, dispensou a audiência prévia com fundamento no artigo 593.º n.º 1 do CPC e constatou que “As partes tiveram oportunidade e tomaram posição sobre as exceções e questões suscitadas”;
§ Nos artigos 36.º a 44º da contestação, a ré arguiu a excepção dilatória de caso julgado, sobre a qual a autora se pronunciou nos artigos 1.º a 7.º da réplica;
§ O Tribunal de 1.ª instância fundamentou a sua decisão de julgar procedente a excepção de caso julgado, distinguindo no despacho saneador os factos provados dos fundamentos jurídicos e, assentando a sua decisão, nomeadamente, em elementos constantes das decisões proferidas nos processos n.º 167/17.9YHLSB e n.º 341/17.8YHLSB, já transitadas e que envolveram as mesmas partes (cf. documentos 1 a 7 juntos aos autos com a contestação).
18. Relativamente aos antecedentes do litígio entre as partes, está provado por documento (cf. decisões judiciais proferidas nos processos a seguir mencionados, juntas aos presentes autos como documentos 1 a 7 da contestação, incluindo os acórdãos proferidos em sede de recurso que serão referidos infra), e são factos dos quais o Tribunal deve tomar conhecimento em virtude do exercício das suas funções (artigo 412.º, n.º 2 do CPC), que as partes estiveram envolvidas nos seguintes processos:
i. Providência cautelar n.º 101/17.6YHLSB do Tribunal da Propriedade Intelectual – a autora intentou uma providência cautelar contra a ré para que esta se abstivesse de fabricar e comercializar a boneca, na qual foi decretada a apreensão dessa mercadoria da ré;
ii. Processo n.º 341/17.8YHLSB do Tribunal da Propriedade Intelectual – a autora intentou contra a ré acção declarativa com base no reconhecimento do direito de propriedade industrial sobre a boneca cujo modelo/desenho se encontrava registado a seu favor no Instituto Nacional da Propriedade Industrial (doravante também INPI), com o numero de registo nacional 3223; neste processo a instância foi suspensa e posteriormente declarada extinta por inutilidade superveniente da lide, com fundamento no artigo 277.º - e) do CPC, devido à causa prejudicial (o processo nº 167/17.9YHLSB, a seguir mencionado, intentado pela ré, onde foi pedida a nulidade do registo);
iii. Processo n.º 853/14.5TAFUN do 2.º Juízo Local criminal do Funchal – a ré foi acusada (por factos relativos ao mesmo modelo/desenho acima referido) pela prática dos crimes de violação dos direitos exclusivos relativos a desenhos ou modelos e de venda desses produtos, tendo aí a autora deduzido contra a ré pedido cível, por adesão à acção penal; neste processo foi proferida decisão transitada em julgado, que absolveu a ré e o seu sócio gerente, tanto dos crimes imputados como do pedido cível
iv. Processo n.º 167/17.9YHLSB do Tribunal da Propriedade Intelectual – a ré (na presente acção) instaurou contra a autora (na presente acção), acção declarativa em que pediu a nulidade do registo nacional do desenho/modelo  n.º 3223, feito no INPI a favor da autora; a acção foi julgada procedente e o registo a favor da autora declarado nulo por decisão do Tribunal da Propriedade Intelectual; neste processo houve recurso para o Tribunal da Relação que alterou a matéria de facto mas julgou improcedente a apelação e confirmou a decisão recorrida; subsequentemente houve recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, que negou a revista; resulta das decisões juntas aos autos, proferidas nas três instâncias, que o vício concreto invocado, que esteve na base da nulidade do registo, consistiu na falta de novidade e singularidade, em virtude da divulgação ao público do modelo registado, mediante comercialização, ocorrida muito antes da data do depósito do pedido do registo, após ultrapassado o período de graça.
Apreciação do recurso independente
A. Violação dos deveres de gestão processual
19. A autora, nas conclusões, refere o seguinte: “(…) em matéria de «gestão inicial do processo e da audiência prévia», o Tribunal aplicou mal os artigos 590.°, n.° 1, 591.", 592.°, 593.º, n." 1, e 2, alínea a), e 595.º, n.°' 1, alínea b), e 2, do NCPC 2013, ao interpretar que, nos autos, se afigurava possível, sem dar disso indicação às partes, mediante "transmigração de dados dos processos 167/17.9YHLSB e 341/17.8YHLSB", fixar os factos e decidir, em saneador-sentença”.
20. O Tribunal começa aqui por analisar a questão da violação dos deveres de gestão processual e da aplicação dos 590.º a 593.º, 595.º e 596.º, relegando para análise ulterior a questão da transposição da matéria de facto constante dos outros processos, que será apreciada infra, à luz do valor extra-processual das provas e dos efeitos da sentença penal absolutória.
21. Têm particular relevo para a solução desta primeira questão as seguintes disposições legais:
§ Artigo 590.º n.º 2 do CPC: Findos os articulados, o juiz profere, sendo caso disso, despacho pré-saneador destinado a: a) Providenciar pelo suprimento de exceções dilatórias, nos termos do n.º 2 do artigo 6.º; b) Providenciar pelo aperfeiçoamento dos articulados, nos termos dos números seguintes; c) Determinar a junção de documentos com vista a permitir a apreciação de exceções dilatórias ou o conhecimento, no todo ou em parte, do mérito da causa no despacho saneador.
§ Artigo 592.º n.º 1 – b) do CPC: A audiência prévia não se realiza (…) b) Quando, havendo o processo de findar no despacho saneador pela procedência de exceção dilatória, esta já tenha sido debatida nos articulados.
§ Artigo 593.º n.º 1 do CPC: Nas ações que hajam de prosseguir, o juiz pode dispensar a realização da audiência prévia quando esta se destine apenas aos fins indicados nas alíneas d), e) e f) no n.º 1 do artigo 591.º.
22. No que diz respeito à alegada má aplicação do artigo 593.º n.º 1 do CPC, afigura-se que este preceito não tem aplicação no caso de o processo terminar no despacho saneador, como foi o caso. Nessa situação, seria mais adequado aplicar o artigo 592.º n.º 1 – b) do CPC.
23. Na verdade, enquanto o artigo 593.º n.º 1 do CPC permite ao Tribunal dispensar a audiência prévia quando o processo deva prosseguir (o que não foi o caso), o artigo 592.º n.º 1 do CPC prevê a não realização da audiência prévia no caso do processo findar no despacho saneador pela procedência de exceção dilatória que já tenha sido debatida nos articulados, como sucedeu no caso em análise.
24. No entanto, como resultará da apreciação que se segue, a acção deve prosseguir, para apreciação do mérito, nomeadamente para os fins indicados nas alíneas d), f) e g) do n.º 1 do artigo 591.º. do CPC, a saber: proferir despacho saneador, como previsto no artigo 595.º do CPC; proferir despacho destinado a identificar o objeto do litígio e a enunciar os temas da prova, como previsto no artigo 596.º do CPC; programar e designar data para audiência final, como previsto no artigo 591.º n.º 1 – g) do CPC.
25. A este propósito, nas conclusões a autora não pugna pela realização de audiência prévia, mas tão só, segundo o Tribunal julga perceber, pela prossecução do processo para apreciação do mérito da causa, com selecção dos temas de prova e designação de data para audiência final.
26. Pelo que, para os fins indicados no parágrafo 24, após baixa dos autos, o Tribunal de 1ª instância deverá proferir novo despacho nos termos do artigo 593.º n.º 2 do CPC.
27. Quanto à decisão do Tribunal de 1.ª instância, de não aplicar o artigo 590.º n.º 2 do CPC, igualmente posta em crise pelas conclusões da autora, esta disposição legal prevê a possibilidade de o juiz proferir despacho pré saneador, quando se verifica algum dos pressupostos ali enunciados. Ora, tendo em conta a junção aos autos das certidões das decisões anteriormente proferidas em processos que evolveram ambas as partes e a circunstância de as partes se terem pronunciado, nos articulados, sobre a excepção de caso julgado, tal decisão não merece censura.
28. Na verdade, tal como resulta dos articulados e documentos a eles juntos, mencionados  nos parágrafos 17 e 18, não havia lugar, na fase em questão, a proferir despacho pré saneador nos termos do artigo 590.º n.º 2 do CPC, por tal não se mostrar necessário para providenciar pelo suprimento de exceções dilatórias, pelo aperfeiçoamento dos articulados, ou pela junção de documentos com vista a permitir a apreciação de exceções dilatórias ou o conhecimento, no todo ou em parte, do mérito da causa no despacho saneador. Pelo que, sendo estes os requisitos da aplicação do artigo 590.º, n.º 2 do CPC e não se verificando nenhum deles, a decisão recorrida não violou tal preceito legal.
B. Nulidade do despacho saneador por falta de fundamentação
29. O quadro legal e constitucional a levar em conta para resolver esta questão é o seguinte:
§ Artigo 615.º n.º 1 do CPC: É nula a sentença quando: a) Não contenha a assinatura do juiz; b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão; c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível; d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento; e) O juiz condene em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido.
§ Artigo 205.º n.º 1 da CRP: As decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei.
30. O disposto no artigo 615.º do CPC é aplicável aos despachos e, por conseguinte, ao despacho saneador aqui impugnado, por força do artigo 613.º n.º 3, do CPC.
31. Importa sublinhar que o despacho saneador impugnado não se pronunciou sobre o mérito da causa. Ao invés, julgou procedente uma excepção dilatória – de caso julgado – que, embora mergulhe as suas raízes no direito processual material, tem caracter processual (Alberto dos Reis, Código de Processo Civil anotado, volume III, 4.ª edição, página 87). A procedência desta excepção obstou precisamente ao conhecimento do mérito da causa – artigos 576.º n.º 2 e 577.º - i) do CPC.
32. O que sucedeu foi que, para fundamentar a decisão que julgou procedente a excepção dilatória de caso julgado, o Tribunal de 1.ª instância utilizou as provas e a motivação da decisão, que constam do processo n.º 167/17.9YHLSB, que correu entre as partes, nomeadamente, levou em conta a apreciação sobre a inexistência de direitos de autor sobre os desenhos/modelos da boneca, por parte da ora autora, feita no acórdão proferido naqueles autos, em sede de recurso para a 2.ª instância.
33. Questão diversa é a da falta de indicação dos fundamentos de facto e de direito, no despacho recorrido. Da análise do mesmo resulta que tal indicação é feita de forma especificada. Pelo que, o despacho recorrido não violou o dever constitucional de fundamentar as decisões, previsto no artigo 205.º n.º 1 da CRP. Assim como não violou nenhuma das alíneas do artigo 615.º n.º 1 do CPC, uma vez que, não só é fundamentado, como não padece de contradição, ambiguidade ou obscuridade, ao pronunciar-se sobre a excepção dilatória suscitada nos articulados. Ao invés, o despacho recorrido, conforme mencionado nos parágrafos 17 e 18, indica claramente as questões que considera cobertas pela força de caso julgado e os elementos que levou em conta para fundamentar a decisão tomada sobre tal excepção dilatória. Por último, não se afigura que o despacho recorrido tenha conhecido de questão que não devesse conhecer ou condenado em quantidade superior ou objecto diverso do pedido. Na verdade, por um lado, a excepção dilatória de caso julgado, que apreciou, não só foi invocada pela ré na contestação, como é do conhecimento oficioso (artigo 578.º do CPC), por outro, o despacho saneador não apreciou o mérito (artigo 576.º n.º 2 do CPC).
34. Pelo que, o despacho saneador não enferma da nulidade, nem da inconstitucionalidade, apontadas pela autora nas conclusões.
C. Alargamento do caso julgado aos motivos da decisão final
35. O quadro legal relevante para solucionar esta questão é o seguinte:
§ Artigo 3.º, n.º 3 do CPC: O juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem.
§ Artigo 91.º do CPC: 1 - O tribunal competente para a ação é também competente para conhecer dos incidentes que nela se levantem e das questões que o réu suscite como meio de defesa. 2 - A decisão das questões e incidentes suscitados não constitui, porém, caso julgado fora do processo respetivo, exceto se alguma das partes requerer o julgamento com essa amplitude e o tribunal for competente do ponto de vista internacional e em razão da matéria e da hierarquia.
§ Artigo 621.º do CPC: A sentença constitui caso julgado nos precisos limites e termos em que julga: se a parte decaiu por não estar verificada uma condição, por não ter decorrido um prazo ou por não ter sido praticado determinado facto, a sentença não obsta a que o pedido se renove quando a condição se verifique, o prazo se preencha ou o facto se pratique.
36. No processo n.º 167/17.9YHLS, acima mencionado no parágrafo 18, o acórdão proferido em sede de recurso, pelo Tribunal da Relação, ao apreciar a questão da inconstitucionalidade, por violação dos direitos à iniciativa privada, liberdade criativa e artística, ali suscitada pela ré (autora na presente acção), contém a seguinte motivação: “Ora a ré não beneficia de registo válido porque nulo. E porque assim é, não goza da suposta protecção autoral. (…) flui dos factos provados que a Ré não criou – em termos inovatórios – os modelos desenhos em causa, limitando-se a reproduzir (…) desenhos/modelos pré-existentes.” (cf. páginas 45 a 52 do documento 4 junto à contestação).
37. A motivação acabada de mencionar no parágrafo 36, do processo 167/17.9YHLSB, constituiu um dos fundamentos pelos quais, nos presentes autos, o Tribunal de 1.ª instância, no despacho recorrido, concluiu pela existência de caso julgado.
38. Na verdade, a decisão da 1ª instância, aqui objecto de recurso, menciona o seguinte: “Assim, é inquestionável afirmar-se que, para efeitos de análise de formação de caso julgado nos presentes autos, as ações n.ºs 167/17.9YHLSB e 341/17.8YHLSB são indissociáveis uma da outra e devem ser aqui consideradas. E, na ação n.º 167/17.9YHLSB, pelos mesmos factos que agora estão em causa, foi apreciada a questão da titularidade dos direitos de autor, concluindo-se pela sua inexistência. Nesta medida, não considerar que, neste caso, o tribunal já se pronunciou sobre a questão que é objeto desta ação é criar a absurda possibilidade de decisões contraditórias, pondo em causa os referidos princípios de segurança jurídica e prestígio dos tribunais.” (sublinhado no texto original).
39. Da análise das decisões proferidas nos processos mencionados no parágrafo 18 supra, resulta que a questão da titularidade dos direitos de autor, embora faça parte da motivação do acórdão da 2.ª instância, não constituía o objecto do processo n.º 167/17.9YHLSB, nem do processo n.º 341/17.8YHLSB, nos quais, as questões jurídicas colocadas pelas partes ao Tribunal, foram, respectivamente: a nulidade do registo nacional de desenhos/modelos n.º 3223, feito a favor da autora no INPI, num caso; e a validade desse registo, conjugada com a alegada prática, pela ré, de actos ofensivos da protecção conferida pelo registo, no outro caso. Os efeitos concretos que as partes tiveram realmente em vista nesses litígios prendem-se assim com a validade ou nulidade do registo e os termos e limites em que foi proferida a sentença no processo n.º 167/17.9YHLSB, confirmada na 2.ª instância e no Supremo Tribunal de Justiça, referiram-se unicamente à declaração de nulidade do registo. Com base nessa decisão, foi posteriormente julgada extinta a instância, por inutilidade superveniente da lide, no processo n.º 341/17.8YHLSB (cf. documento 7 junto à contestação).
40. Pelo que, a utilização da motivação constante do acórdão proferido pelo Tribunal da Relação, no processo n.º 167/17.9YHLSB, sobre a impossibilidade de a autora gozar de protecção jusautoral, constituiu, por parte do tribunal a quo, um alargamento dos efeitos do caso julgado aos motivos daquele acórdão.
41. A este propósito, a autora refere nas conclusões do recurso independente: “Nos Processos n.ºs 167/17.9YHLSB e 341/17.8YHLSB apenas foi discutida a validade do Registo do Modelo/Desenho n.° 3223 e eventuais indemnizações devidas pela sua utilização indevida por terceiros.”
42. Ao passo que a ré contra alega o seguinte: “Por ser esta a realidade e a história das figuras do “vilão” e da “viloa” da Madeira era, e é, muito difícil encontrar modelo, que não perca a identidade daquelas figuras, por via de uma qualquer e inspirada genialidade criativa susceptível de encontrar protecção, em sede de propriedade intelectual – seja no âmbito da propriedade industrial, de que foi excluído por Acórdão do S.T.J. de 30-04-2020 (V. Doc. 5), confirmativo das instâncias, e transitado em julgado, seja no campo dos direitos de autor, de que, também, já foi excluído, pelas mesmas transitadas sentenças e acórdãos (V. Acórdão da Relação de Lisboa, 02-05-2019 – V. Doc. 4).”
43. Ou seja, a autora impugna o alargamento do caso julgado aos motivos da decisão anteriormente proferida na acção de nulidade do registo, enquanto a ré defende esse alargamento.
44. Importa, assim, decidir se tal alargamento dos efeitos do caso julgado aos motivos da decisão, operado pelo despacho recorrido, é admissível. Para isso, o Tribunal ad quem segue de perto a seguinte doutrina: Antunes Varela, J. Miguel Bezerra, Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2.ª edição revista e actualizada, Coimbra Editora, Limitada, páginas 714 a 719; Artur Anselmo de Castro, Direito Processual Civil, Volume III, Almedina, Coimbra, páginas 398 a 404; Manuel A. Domingues de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, páginas 327 a 335; e José Lebre de Freitas, “Um Polvo Chamado Autoridade do Caso Julgado”, Revista da Ordem dos Advogados, III – IV – 2019, assim como a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça citada por este último autor nas páginas 720 a 722.
45. Afigura-se, antes de mais, que a decisão proferida no processo n.º 167/17.9YHLSB constitui caso julgado prejudicial, no processo n.º 341/17.8YHLSB, na medida em que a primeira declarou a nulidade do registo, cuja titularidade era invocada no segundo processo aqui referido.
46. Dito isto, a solução para a questão aqui em análise deve ser encontrada à luz do artigo 91.º do CPC, acima transcrito, segundo o qual, o Tribunal competente para uma acção, é competente para conhecer de todos os incidentes que nela se levantarem e de todas as questões que o réu suscitar como meio de defesa. Sendo que, para efeito desta disposição legal, os incidentes serão aqui entendidos em sentido lato, como questões que tenham de ser previamente resolvidas para estatuir sobre a pretensão do autor e não na acepção estrita dos artigos 292.º a 361.º do CPC.
47. Um dos objectivos do artigo 91.º n.º 2 do CPC é garantir o princípio do contraditório (cf. artigo 3.º n.º 3 do CPC), relativamente ao uso, fora do processo, de decisões sobre questões suscitadas pelo réu como meio de defesa ou apreciadas incidentalmente no decurso da acção. De modo que, só excepcionalmente, quando alguma das partes o requeira, é que a sentença fará caso julgado quanto às questões mencionadas no artigo 91.º n.º 1.
48. A este propósito a ré contra-alega que foi a autora quem introduziu a questão dos direitos de autor no recurso interposto perante o Tribunal da Relação, no processo n.º 167/17.9YHLSB, o que é confirmado pela análise desse acórdão (documento n.º 4 junto à contestação. É assim certo que a questão foi ali apreciada no contexto da violação das normas constitucionais em matéria de reconhecimento dos direitos fundamentais à iniciativa privada, liberdade criativa e artística, suscitada pela ré. Porém, não resulta dos autos que, no processo n.º 167/17.9YHLSB, a ré, em sede de recurso, tenha requerido o julgamento com essa amplitude.
49. Pelo que, o artigo 91.º n.º 2 do CPC veda ao Tribunal de 1.ª instância, nos presentes autos, alargar o caso julgado aos motivos do acórdão da 2.ª instância, proferido naquele processo, na parte em que, ao referir-se à questão dos direitos de autor no contexto acima mencionado, considerou que a existência de tais direitos dependia da validade do registo.
50. A motivação da decisão do acórdão proferido em 2º instância, no processo n.º 167/17.9YHLSB, ao aludir à titularidade dos direitos de autor, versou sobre um ponto controvertido, que o Tribunal de 2.ª instância considerou prejudicial e resolveu, para decidir a pretensão da autora naquele processo mas que, não se identifica com tal pretensão e pode ser objecto de processo autónomo, na presente acção, na qual se venha a formar caso julgado.
51. Acresce que, o caso julgado no processo n.º 167/17.9YHLSB também não se estende à decisão proferida sobre os factos, como resulta do artigo 421.º do CPC e será explicado infra a propósito da questão do valor extra processual das provas.
52. Por último, resulta do artigo 621.º do CPC, tal como é interpretado pela doutrina acima citada, que a eficácia do caso julgado se limita aos efeitos concretos que as partes tiveram realmente em vista quando litigaram, respectivamente, em cada uma das acções anteriores, acima referidas. Estender a força do caso julgado a factos apurados, situações, ou relações jurídicas, pressupostas nas decisões proferidas nos processos anteriores, como fez o despacho recorrido, terá por efeito alargar a autoridade daquelas decisões a consequências que as partes não previram.
53. Pelo que, ao alargar o caso julgado aos motivos da decisão anterior, o despacho recorrido violou o disposto nos artigos 91.º, n.º 2 e 621.º do CPC e, nessa medida, desrespeitou igualmente o princípio do contraditório, resultante do artigo 3.º n.º 3 do CPC, devendo nessa parte ser revogado.
D. Requisitos do caso julgado
54. Para apreciar esta questão é relevante o artigo 581.º do CPC, segundo o qual:
1 - Repete-se a causa quando se propõe uma ação idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir.
 2 - Há identidade de sujeitos quando as partes são as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica.
3 - Há identidade de pedido quando numa e noutra causa se pretende obter o mesmo efeito jurídico.
4 - Há identidade de causa de pedir quando a pretensão deduzida nas duas ações procede do mesmo facto jurídico. Nas ações reais a causa de pedir é o facto jurídico de que deriva o direito real; nas ações constitutivas e de anulação é o facto concreto ou a nulidade específica que se invoca para obter o efeito pretendido.
55. São assim três os requisitos do caso julgado: a identidade das partes, do pedido e da causa de pedir. Como já foi explicado supra, e resulta do artigo 578.º do CPC, trata-se de uma questão que o Tribunal deve conhecer oficiosamente, pelo que serão a seguir analisados os referidos requisitos do caso julgado.
56. Importa decidir se, com os limites já apontados e que resultam dos artigos 91.º e 621.º do CPC, ainda assim, a presente acção constitui uma repetição do processo n.º 167/17.9YHLSB, ou do processo n.º 341/17.8YHLSB, na medida em que este, ao julgar a inutilidade superveniente da lide, levou em conta o caso julgado prejudicial resultante do primeiro.
57. A este propósito, a autora menciona o seguinte, nas conclusões do recurso independente: “Conforme se referiu supra, é lícito que a Autora formule a mesma pretensão as vezes que entender, desde que a causa de pedir seja distinta e é precisamente o que sucedeu no caso dos presentes autos. (…) Nestes autos não está em causa o Registo do Modelo/Desenho 11.0 3223, que tutelava a criação da Autora até à declaração de nulidade, mas sim os Direitos de Autor que advêm da criação das referidas bonecas, independentemente de qualquer registo constitutivo do direito de propriedade intelectual sobre as mesmas.”
58. Por seu lado a ré contra-alega o seguinte: “Agora, nesta acção, vem, de novo, [a autora] discutir os mesmos factos, quando sobre as duas qualificações jurídicas (propriedade industrial e direitos de autor) há decisão transitada em julgado (…)”.
59. Para decidir a questão, o Tribunal segue de perto a seguinte doutrina: Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, Volume III, 4.ª edição, Coimbra Editora Limitada, páginas 91 a 146; Manuel A. Domingues de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora Limitada, páginas 318 a 325.
60. É ainda à luz desta doutrina e do artigo 581.º do CPC, que será feita a distinção – suscitada na argumentação das partes – entre os factos jurídicos que integram a causa de pedir e a diferente qualificação jurídica dada aos factos pelas partes.
61. Para tal o Tribunal começa por apreciar se se verifica a tripla identidade (partes, causa de pedir e pedido) exigida pelo artigo 581.º do CPC para que se estar perante a excepção de caso julgado.
62. Nos três processos (este e os mencionados no parágrafo 56), as partes são as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica e ocupam a mesma posição na relação jurídica em causa. Não obsta à identidade das partes a circunstância de aparecerem em posição processual inversa no processo n.º 167/17.9YHLSB, nem o requerimento de intervenção provocada feito pela autora na petição inicial. Pelo que, existe identidade das partes.
63. Relativamente ao pedido e à causa de pedir, o artigo 581.º do CPC acolhe (como alega a autora) a teoria da substanciação, de acordo com a qual, o objecto da acção se identifica através de dois factores: a pretensão deduzida (direito a ser tutelado, individualizado no pedido); e o  acto ou facto jurídico que lhe deu causa (causa de pedir).
64. Existe, porém, uma particularidade, nas acções anulatórias, como foi o caso do processo n.º 167/17.9YHLSB. Nela, a causa de pedir consiste na nulidade específica invocada, não na categoria ou tipo abstracto em que se integra tal nulidade. Assim, a causa de pedir nessa acção consistiu no vício concreto, que incidiu sobre o facto jurídico – o registo do desenho/modelo nacional n.º 3223 de que era titular a ora autora. O vício concreto ali invocado resultou da falta de novidade e singularidade, em virtude da divulgação ao público do modelo registado, mediante comercialização, muito antes da data do depósito do pedido do registo, ultrapassando o período de graça (cf. documentos n.º 3, 4 e 5, juntos à contestação, mencionados no parágrafo 18).
65. Relativamente às outras duas acções:
§ Nas acções declarativas em que se invoca a protecção do direito sobre modelos/desenhos registados (processo n.º 341/17.8YHLSB), a causa de pedir consiste no facto jurídico do qual deriva o pretenso direito de propriedade industrial da autora, a saber, a singularidade e novidade protegidas pelo registo nacional do desenho/modelo, a que pode acrescer, quando se tratar se uma acção de condenação como foi o caso, o facto ilícito, alegadamente  praticado pela ré, ofensivo do direito protegido pelo registo;
§ Nas acções declarativas com vista ao reconhecimento da titularidade de direitos de autor (a presente acção), a causa de pedir consiste no facto jurídico de que derivam os direitos de autor, a saber, a criação intelectual da obra, a que pode acrescer, por se tratar de uma acção de condenação, o facto ilícito alegadamente praticado pela ré, ofensivo do direito de autor.
66. Resulta do acima exposto que, a causa de pedir – entendida como o concreto vício invocado, na acção de nulidade, e como o facto jurídico do qual deriva o pretenso direito, nos restantes casos – é diversa na presente acção, assim como são diversos os direitos que as partes pretendem ver tutelados, individualizados no pedido: nas acções anteriores, a protecção conferida pelo registo ao direito de propriedade industrial, num caso, e a nulidade desse registo, no outro; na presente acção, a tutela do direito de autor e a protecção dele resultante.
67. Pelo que, julgada procedente a nulidade do registo dos desenhos/modelos, com base no vício concreto acima enunciado, no processo n.º 167/17.9YHLSB, e julgada extinta a instância, por inutilidade superveniente da lide, no processo n.º 341/17.8YHLSB (devido  a caso julgado prejudicial resultante do primeiro processo mencionado), afigura-se que tais decisões não constituem obstáculo a que a autora proponha a presente acção, tendente à obtenção da tutela dos direitos de autor que alega ter sobre os mesmos desenhos/modelos.
68. Os efeitos concretos que a autora tem em vista na presente acção, e que estão aqui em litígio entre as partes, são diversos daqueles que as partes tinham em vista nas outras duas acções: eles prendem-se agora com a questão de saber se desenhos/modelos não registados também podem gozar de protecção jusautoral. É esta a questão de mérito, emergente de um facto jurídico diverso, que o Tribunal a quo terá de decidir e sobre a qual virá a formar-se caso julgado, sem que este ponha em causa a certeza do direito e a segurança das relações jurídicas, que o princípio da irrevogabilidade do caso julgado anterior visa proteger.
69. Embora a causa de pedir consista nos factos alegados pelas partes independentemente da qualificação jurídica que estas lhes dão, que não vincula o Tribunal (como contra-alega a ré), os factos que integram a causa de pedir são factos jurídicos (no caso das acções declarativas e de condenação) ou o vício específico invocado (no caso das acções de nulidade). É o que resulta da letra do artigo 581.º n.º 4 do CPC e da doutrina acima citada.
70. Ora, na acção para tutela da propriedade industrial, os factos jurídicos que integram a causa de pedir são diversos dos que integram a causa de pedir na acção para tutela dos direitos de autor, assim como é diversa a causa de pedir na acção de nulidade e na presente acção, pelos motivos já expostos supra, nos parágrafos 64 a 68.
71. Pelo que, na parte em julgou procedente a excepção dilatória de caso julgado e pôs termo ao processo, o despacho recorrido deve ser revogado e substituído por outro, que julga improcedente tal excepção e ordena o prosseguimento dos autos para os fins previstos no artigo 593.º n.º 2 do CPC, como acima mencionado no parágrafo 26.
E. Valor extra-processual das provas e eficácia da decisão penal absolutória
72. Os preceitos legais com especial relevo para solucionar esta questão são os seguintes:
§ Artigo 421.º do CPC:
1 - Os depoimentos e perícias produzidos num processo com audiência contraditória da parte podem ser invocados noutro processo contra a mesma parte, sem prejuízo do disposto no n.º 3 do artigo 355.º do Código Civil; se, porém, o regime de produção da prova do primeiro processo oferecer às partes garantias inferiores às do segundo, os depoimentos e perícias produzidos no primeiro só valem no segundo como princípio de prova.
2 - O disposto no número anterior não tem aplicação quando o primeiro processo tiver sido anulado, na parte relativa à produção da prova que se pretende invocar.
§ Artigo 624.º do CPC:
1 - A decisão penal, transitada em julgado, que haja absolvido o arguido com fundamento em não ter praticado os factos que lhe eram imputados, constitui, em quaisquer ações de natureza civil, simples presunção legal da inexistência desses factos, ilidível mediante prova em contrário.
2 - A presunção referida no número anterior prevalece sobre quaisquer presunções de culpa estabelecidas na lei civil.
73. A questão dos limites do caso julgado está ligada à questão do valor extra-processual das provas produzidas nos processos anteriores e à eficácia da decisão penal absolutória, que as partes suscitam na argumentação do recurso tal como se encontra vertida nas conclusões.
74. Para apreciar esta questão, importa levar em conta a distinção entre caso julgado formal e caso julgado material.
75. O caso julgado formal consiste na imodificabilidade da decisão dentro do mesmo processo, com excepção dos casos previstos no artigo 630.º do CPC (despachos de mero expediente ou proferidos no uso legal de um poder discricionário). É o que resulta do artigo 620.º do CPC.
76. Ao passo que o caso julgado material é o que incide sobre a relação jurídica em causa e que produz efeitos fora do processo, sendo irrevogável nos termos que resultam dos artigos 581.º e 625.º do CPC.
77. Dito isto, a decisão de facto proferida no processo n.º 167/17.9YHLSB, à qual alude o despacho recorrido em fundamentação que é impugnada pela autora nas conclusões do recurso, constitui apenas caso julgado formal, dentro do processo n.º 167/17.9YHLSB, como resulta do artigo 421. º do CPC.
78. Daqui resulta que, as provas produzidas naquela acção apenas podem ser invocadas pela ré na presente acção nos termos previstos no artigo 421.º do CPC e passando pelo crivo de nova apreciação judicial, que caberá ao Tribunal fazer na fase do julgamento.
79. Relativamente à decisão penal absolutória, proferida no processo n.º 853/14.5TAFUN, a sua eficácia na presente acção cível rege-se pelo disposto no artigo 624.º do CPC, ou seja, se se verificar o condicionalismo descrito neste preceito legal, a sentença absolutória terá o valor de presunção legal ilidível, da inexistência dos factos ali imputados aos arguidos, o que caberá igualmente ao Tribunal apreciar na fase do julgamento.
80. Pelo que, julgando o Tribunal ad quem improcedente a excepção dilatória de caso julgado, pelos fundamentos acima expostos, e carecendo de prova, além do mais, os factos mencionados nos parágrafos 78 a 80, por serem controvertidos, o processo deve baixar para que se conheça do mérito (cf. António Santos Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, 6.ª Edição Actualizada, página 382).
Apreciação do recurso subordinado
F. Requisito substantivo da reconvenção previsto no artigo 266.º n.º 2 – a) do CPC:
81. Preceitos legais relevantes:
§ Artigo 93.º do CPC:
1 - O tribunal da ação é competente para as questões deduzidas por via de reconvenção, desde que tenha competência para elas em razão da nacionalidade, da matéria e da hierarquia; se a não tiver, é o reconvindo absolvido da instância.
2 - Quando, por virtude da reconvenção, o tribunal deixe de ser competente em razão do valor, deve o juiz oficiosamente remeter o processo para o tribunal competente.
§ Artigo 266.º do CPC:
1 - O réu pode, em reconvenção, deduzir pedidos contra o autor.
2 - A reconvenção é admissível nos seguintes casos:
a) Quando o pedido do réu emerge do facto jurídico que serve de fundamento à ação ou à defesa;
b) Quando o réu se propõe tornar efetivo o direito a benfeitorias ou despesas relativas à coisa cuja entrega lhe é pedida;
c) Quando o réu pretende o reconhecimento de um crédito, seja para obter a compensação seja para obter o pagamento do valor em que o crédito invocado excede o do autor;
d) Quando o pedido do réu tende a conseguir, em seu benefício, o mesmo efeito jurídico que o autor se propõe obter.
3 - Não é admissível a reconvenção, quando ao pedido do réu corresponda uma forma de processo diferente da que corresponde ao pedido do autor, salvo se o juiz a autorizar, nos termos previstos nos n.ºs 2 e 3 do artigo 37.º, com as necessárias adaptações.
4 - Se o pedido reconvencional envolver outros sujeitos que, de acordo com os critérios gerais aplicáveis à pluralidade de partes, possam associar-se ao reconvinte ou ao reconvindo, pode o réu suscitar a respetiva intervenção.
5 - No caso previsto no número anterior e não se tratando de litisconsórcio necessário, se o tribunal entender que, não obstante a verificação dos requisitos da reconvenção, há inconveniente grave na instrução, discussão e julgamento conjuntos, determina em despacho fundamentado a absolvição da instância quanto ao pedido reconvencional de quem não seja parte primitiva na causa, aplicando-se o disposto no n.º 5 do artigo 37.º.
6 - A improcedência da ação e a absolvição do réu da instância não obstam à apreciação do pedido reconvencional regularmente deduzido, salvo quando este seja dependente do formulado pelo autor.
82. No recurso subordinado, a ré impugna a decisão que não admitiu a reconvenção. Nas conclusões, que delimitam o objeto do recurso subordinado, defende que o pedido reconvencional emerge dos mesmos factos que servem de fundamento à acção e que a reconvenção é admissível ao abrigo do disposto no artigo 266.º n.º 2 – a) do CPC.
83. A fundamentação da decisão recorrida quanto à não admissão da reconvenção foi, no essencial, a seguinte: “Nos termos do disposto no artigo 266.º, do Código de Processo Civil, o réu pode, em reconvenção, deduzir pedidos contra o autor, especificando depois a lei os critérios de admissibilidade. Entre tais critérios encontram-se: - a dedução de pedido de emerge do facto jurídico que serve de fundamento à ação ou à defesa; - o exercício do direito a benfeitorias; - o reconhecimento de compensação; - a obtenção do mesmo efeito jurídico pretendido pela parte contrária. Da análise do pedido reconvencional formulado, constata-se que não se enquadra em nenhuma das possibilidades previstas por lei.”
84. Para resolver a questão, importa, antes de mais, distinguir os requisitos processuais, dos requisitos substantivos da reconvenção (cf. Antunes Varela, J. Miguel Bezerra, Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2.ª Edição, Coimbra Editora Limitada, páginas 324 a 329).
85. São requisitos processuais da reconvenção, os previstos nos artigos 93.º e 266.º n.ºs 3 e 4 do CPC, a saber: (i) a competência  absoluta (em razão da matéria, da hierarquia e da nacionalidade) do Tribunal da acção, para conhecer da reconvenção; (ii) a manutenção da mesma forma de processo, excepto se o juíz autorizar forma diversa, nos termos do artigo 266.º n.º 3 do CPC; (iii) a identidade das partes, sem prejuízo do pedido reconvencional poder envolver outros sujeitos, em caso de pluralidade de partes, nos termos previstos no artigo 266.º n.º 4 do CPC. Nenhum destes requisitos está aqui em crise e, relativamente à competência absoluta (artigos 96.º e 97.º do CPC), que é do conhecimento oficioso (salvo nos casos em que disposições do direito da União Europeia impeçam que o Tribunal conheça oficiosamente da competência internacional), a decisão recorrida não merece censura.
86. São requisitos susbstantivos da reconvenção, os quatro tipos de situações, taxativamente previstas no artigo 266.º, n.º 2, alíneas a) a d) do CPC, que se referem à conexão que deve existir, entre o pedido principal e a reconvenção. Tais requisitos são alternativos. Ora é a verificação de um destes requisitos substantivos que está em causa no presente recurso subordinado.
87. A este propósito, a ré refere nas conclusões do recurso subordinado que: “Os factos que integram a causa de pedir são exactamente os mesmos que fundamentam o pedido reconvencional (…). Ainda nas conclusões, a ré menciona que a decisão recorrida “violou o disposto na alínea a) do n.º 2, do Art.º 266.º do CPCivil”. Nas alegações, em abono da interpretação que defende desta disposição legal, a ré cita a jurisprudência seguinte: “(…) Desde que se verifique uma coincidência parcial entre os factos que o R., ao contestar a tese do A., invocou para justificar a sua própria defesa (…)”.
88. Assim, nos termos do artigo 639.º n.º 2 do CPC, o Tribunal julga que o objecto do recurso subordinado se limita à questão de saber se foi ou não bem interpretado o artigo 266.º, n.º 2 – a) do CPC.
89. Para apreciar a questão, importa levar em conta os factos jurídicos que servem de fundamento à acção, à defesa e à reconvenção, como exige o artigo 266.º n.º 2 – a) do CPC.
90. Assim, tal como acima mencionado, na presente acção, o facto jurídico constitutivo da titularidade dos direitos de autor invocados, é a criação intelectual da obra, a que acresce, por se tratar de uma acção de condenação, o facto ilícito praticado pela ré, alegadamente ofensivo da protecção conferida pelos direitos de autor.
91. Na contestação, a ré defende-se alegando a excepção dilatória de caso julgado, impugnando os factos alegados pela autora e invocando a liberdade de comércio e de concorrência como facto jurídico impeditivo da pretensão da autora (artigos 64.º e 65.º da contestação).
92. Na reconvenção, o facto jurídico constitutivo do direito invocado pela ré é a liberdade de comércio e de concorrência (cf. artigos 90.º e 102 da reconvenção), a que acresce, por se tratar de uma acção de condenação, o facto ilícito praticado pela autora, alegadamente ofensivo do direito invocado pela ré.
93. De onde resulta que, o pedido reconvencional emerge dos factos jurídicos que servem de fundamento à acção e à defesa, a saber, o facto ilícito invocado pela autora, alegadamente praticado pela ré, ofensivo da protecção conferida pelos direitos de autor, e a liberdade de comércio e de concorrência, contraposta pela ré na defesa.
94. Pelo que, nessa parte, deve ser revogado o despacho recorrido e substituído por outro que admita a reconvenção ao abrigo do disposto no artigo 266.º, n.º 2 – a) do CPC.

Decisão
Acordam as Juízes desta secção em julgar procedentes os recursos independente e subordinado e, em conformidade:
I. Revogar o despacho recorrido substituindo-o por outro que admite a reconvenção e julga improcedente por não provada a excepção dilatória de caso julgado
II. Ordenar a baixa do processo para que os autos prossigam para os fins previstos no artigo 593.º n.º 2 do CPC e subsequente conhecimento do mérito da causa.
Custas a cargo de ambas as partes, na proporção do decaimento, que o Tribunal fixa em 1/5 a cargo da autora e 4/5 a cargo da ré – artigo 527.º n.ºs 1 e 2 do CPC.

Lisboa, 27.1.2022
Paula Pott
Mónica Pavão
Maria da Luz Seabra