Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
23037/22.4T8LSB.L1-6
Relator: NUNO GONÇALVES
Descritores: PRINCÍPIO DO DISPOSITIVO
CERTIFICADOS DE AFORRO
HERDEIROS
PRESCRIÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 12/21/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: - O processo civil norteia-se pelo princípio do dispositivo, segundo o qual, com algumas excepções, às partes cabe alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as exceções invocadas  (art.º 5.º, n.º 1, do Código de Processo Civil), devendo o juiz discriminar os factos que considera provados e não provados (art.º 607.º, n.ºs 3 e 4, do Código de Processo Civil). Em princípio, não é lícito ao juiz ao resolver o litígio socorrendo-se de factos não alegados pelas partes, com as excepções expressamente previstas na lei (vg. factos notórios).
- Relativamente à série de certificados de aforro, denominada «série B», o Decreto-Lei n.º 172-B/86, de 30 de Junho, estabeleceu que são nominativos, reembolsáveis, só transmissíveis por morte e assentados apenas a pessoas singulares.
- Actualmente, por morte do titular de um certificado de aforro, poderão os herdeiros requerer, dentro do prazo de 10 anos, a transmissão da totalidade das unidades que o constituem, efectivada pela emissão de novos certificados, que manterão a data da emissão dos que lhes deram origem, ou o respectivo reembolso, pelo valor que o certificado tiver à data em que o reembolso for autorizado.
- Para a contagem desse prazo, deverá ser adoptado o sistema subjectivo, que considera que respectivo início só se dá quando o credor tenha conhecimento dos elementos essenciais relativos ao seu direito.
- O Estado não pode impor aos herdeiros um dever de exaustiva procura de bens e direitos do de cujus, quando nada indiciará a sua existência.
- Para a procedência da excepção de prescrição do artigo 7.º, do Decreto-Lei n.º 172-B/86, de 30 de Junho, seria necessário que a ré alegasse e demonstrasse que decorreram dez anos desde o momento em que os herdeiros, após a aceitação da herança, tiveram conhecimento que os certificados de aforro da série B a integravam, até ao momento em que requereram a transmissão da titularidade ou o resgate.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:

1. Relatório.
1.1. Os autores VR e JC demandaram a ré Agência de Gestão da Tesouraria e da Dívida Pública - IGCP, E.P.E., peticionando a condenação desta a reconhecer o direito de propriedade dos AA. sobre os certificados de aforro identificados no artigo 9º da petição inicial e a pagar-lhes o correspondente valor de €80.073,82 (oitenta mil setenta e três euros e oitenta e dois cêntimos), acrescido dos juros de mora vencidos desde a data de citação e vincendos até efectivo e integral pagamento, à taxa de juro civil.
Invocaram para o efeito que MC era titular de uma conta aforro junto da ré. Este faleceu no dia 23-11-2002. Sucedeu-lhe a mulher, CC, e um filho. Apenas após a morte de CC algures entre o final de março/início de abril de 2021, em data que não conseguem precisar, os AA. tomaram conhecimento da existência dos Certificados subscritos pelo seu pai. Reclamaram o seu pagamento, o que foi recusado pela ré que invocou a prescrição.
1.2. A ré contestou a acção, excepcionando a prescrição do direito dos autores ao reembolso dos certificados de aforro, por terem decorrido mais de dez anos desde a data de falecimento do titular da conta.
Terminou pugnando pela procedência da excepção da prescrição ou pela improcedência da acção.
1.3. Os autos seguiram os seus termos até ser proferida sentença que decidiu julgar a ação improcedente, absolvendo a ré do pedido.
1.4. Os autores apelam dessa sentença, indicando as seguintes conclusões:
1 – A questão jurídica objecto do presente recurso consiste em saber se o início do prazo de prescrição aplicável aos certificados de aforro da série B deve contar-se da morte do aforrista ou se, pelo contrário, o prazo de prescrição apenas começa a correr a partir do momento em que o herdeiro do titular dos certificados de aforro teve conhecimento da sua existência.
2 – A sentença recorrida considerou que o prazo de prescrição tem o seu início com a morte do aforrista, pai dos Autores e, em consequência, julgou prescrito o direito dos Autores.
3 – Por outro lado, acrescentou a sentença recorrida que “(…) mesmo que se entendesse ser de iniciar a contagem do prazo a partir do conhecimento dos herdeiros, considerando que CC era (já) herdeira do titular MC, e não tendo resultado provado que a mesma desconhecesse a existência daqueles títulos, sempre aquele prazo se haveria por decorrido”.
4 –Entendem os Recorrentes que a sentença recorrida, ao considerar que o prazo de prescrição de 10 anos, previsto no art.º 7.º do Decreto-Lei n.º 172-B/86, de 30 de Junho, na redacção dada pelo artigo 12.º do Decreto-Lei 122/2002 de 4 de Maio, tem o seu início com a morte do titular dos certificados de aforro procedeu a uma errada interpretação da lei, violando a referida norma legal.
5 - Uma correcta interpretação de tal norma legal determina que o prazo de prescrição de 10 anos deve ser considerado um prazo sujeito a um sistema subjetivo, cuja contagem só se inicia quando, após a aceitação da herança, os herdeiros têm conhecimento da existência de certificados de aforro da série B no património do de cujus, pois só com o conhecimento da existência dos certificados podem exercer o seu direito (art.º 306.º, n.º 1 do CC).
6 – A sentença recorrida incorreu, pois, em erro de julgamento, tendo decidido ao arrepio daquela que é hoje jurisprudência pacífica dos tribunais superiores [Acórdão do TRL de 21.03.2019, proferido no processo n.º 491/16.8BEBRG; Acórdão do STJ de 08.11.2005, proferido no processo n.º 05A316; Acórdão do STJ de 08.01.2019, proferido no processo Proc. nº 25635/15.3T8LSB.L1.S1; Acórdão do STJ de 25.02.2021, proferido no processo 5354/18.0T8LSB.L1.S.1 e Acórdão do STJ de 11.05.2023, proferido no processo n.º 10463/21.5 T8LSA.L1.S1].
7 – Foi dado como não provado pela sentença recorrida que “CC desconhecia a existência dos Certificados de Aforro aquando do óbito do marido, MC”, facto que não foi alegado pelas partes, que não é instrumental, complemento ou concretização de facto alegado pelas partes, nem facto notório.
8 - Com base em tal facto, ainda que a título subsidiário, a sentença recorrida decidiu pela verificação de prescrição nos seguintes termos: “mesmo que se entendesse ser de iniciar a contagem do prazo a partir do conhecimento dos herdeiros, considerando que CC era (já) herdeira do titular MC, e não tendo resultado provado que a mesma desconhecesse a existência daqueles títulos, sempre aquele prazo se haveria por decorrido”.
9 -Ora, na sentença recorrida, o tribunal a quo, em violação do art.º 5.º do CPC, teve em consideração facto não alegado pelas partes.
10 – Por outro lado, a sentença recorrida conheceu da prescrição com fundamento distinto do alegado pela Ré; incorrendo em nulidade por excesso de pronúncia (cfr. no art.º 615.º, alínea c) do CPC, por referência ao art.º 303.º do Código Civil e art.º 579.º do CPC).
11- E por fim, ao concluir que “(…) não tendo resultado provado que a mesma desconhecesse a existência daqueles títulos, sempre aquele prazo se haveria por decorrido” a sentença recorrida operou a inversão do ónus da prova em violação do disposto no art.º 342.º, n.º 2 e 343.º, n.º 2 do CC, fazendo equivaler a falta de prova do desconhecimento da existência dos certificados ao conhecimento da sua existência e incorreu, ainda, em erro de interpretação do art.º 7.º do Decreto-Lei n.º 172-B/86, de 30 de Junho, na redacção dada pelo artigo 12.º do Decreto-Lei 122/2002 de 4 de Maio, violando a referida norma legal.
Concluíram no sentido do presente recurso ser julgado procedente e, em consequência, ser revogada a sentença recorrida e julgada totalmente procedente a acção proposta pelos autores.
1.5. A ré contra-alegou terminando por apresentar as seguintes conclusões:
1. Vem o presente recurso interposto pelos Autores/Recorrentes, da douta Sentença proferida pelo Tribunal “a quo” que julgou a ação improcedente e absolveu a Ré/Recorrida do pedido.
2. Contrariamente ao que os Autores/Recorrentes alegam, a douta decisão posta em crise não padece de qualquer erro na interpretação e aplicação do direito, devendo manter-se “in totum”.
3. De modo sumário, na Sentença proferida o Tribunal “a quo” adotou o sistema objetivo de início de contagem do prazo prescricional, essencialmente por em causa estar um prazo longo de prescrição que se entende dever assentar na verificação de um determinado evento, dando-se primazia à segurança jurídica.
4. Bem andou o douto Tribunal “a quo” ao concluir pela verificação daquela exceção, o qual, contrariamente ao alegado pelos Autores/Recorrentes, ateve-se aos seus limites naquela que foi a sua justa apreciação. Com efeito,
5. No artigo 7.º do Regime dos Certificados de Aforro Série B o legislador optou por consagrar um critério objetivo de contagem do prazo da prescrição, na medida em que a contagem de tal prazo é espoletada por um determinado evento/facto jurídico – a morte do aforrista - independentemente de concretos conhecimentos que o titular do direito (o herdeiro) possa ter quanto ao mesmo.
6. Em face da duplicidade de sistemas de prescrição existentes no nosso ordenamento jurídico – o sistema objetivo assente na verificação de um determinado evento e o sistema subjetivo assente no estado de conhecimento subjetivo do titular do direito - é possível concluir que esta opção do legislador foi uma opção evidentemente consciente e tomada sopesando os prós e os contras de cada sistema e dando primazia à proteção dos valores protegidos por um – neste caso o sistema objetivo – em detrimento do outro (o subjetivo).
7. No instituto da prescrição objetiva, cujo prazo começa a correr independentemente do conhecimento que disso tenha ou possa ter o respetivo titular do direito, domina uma preocupação de segurança jurídica, razão pela qual está previsto para casos com prazos mais longos, como o prazo de 10 anos aqui em causa.
8. O próprio TRIBUNAL CONSTITUCIONAL já se pronunciou sobre a figura da prescrição prevista no artigo 7.º do Regime dos Certificados de Aforro Série B, tendo decidido não julgar inconstitucional tal preceito, na redação que lhe foi dada pelo Decreto-Lei n.º 122/2002, de 4 de maio.
9. Pelo que, manifestamente, bem andou o Tribunal “a quo” ao seguir este entendimento.
10. Através do parecer elaborado pelo CONSELHO CONSULTIVO DA PROCURADORIA-GERAL DA REPÚBLICA (“PGR”), n.º 20/2010 de 14.04.2011, veio a concluir-se que “O prazo de dez anos, estabelecido no artigo 7.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 172-B/86, de 30 de Junho, para os herdeiros do titular de certificados de aforro requererem a transmissão da totalidade das unidades que os constituem ou o respetivo reembolso, sob pena de prescrição a favor do Fundo de Regularização da Dívida Pública, prevista no n.º 2 da mesma disposição, deve contar-se a partir da data do falecimento do titular aforrador”.
11. Este é um entendimento que, de acordo com a posição expressa pelo Conselho Consultivo da PGR, “se apoia no artigo 306.º, n.º 1 – 1.ª parte, do Código Civil, e no sistema objectivo aí adoptado que, como já se disse, dispensa qualquer conhecimento por parte do titular do direito”.
12. No mesmo sentido já se pronunciou a Jurisprudência, e tem sido esta a posição adotada pela Ré, designadamente em cumprimento de orientações que recebe da tutela na sequência da emissão de pareceres solicitados à PGR, como o que aqui se cita, e em consonância com o entendimento já vertido pelo TRIBUNAL CONSTITUCIONAL e por parte da jurisprudência, sendo, ademais, este o entendimento que tem na letra da lei o mínimo de correspondência e o qual, em face do seu prazo alargado, permite doutrinariamente a aplicação do sistema objetivo.
Mais,
13. A alegação do desconhecimento destes produtos de aforro não procede também porque, após o óbito do autor da herança (neste caso, aforrista), os herdeiros interessados têm de dar cumprimento a obrigações fiscais declarativas - concretamente, participação do óbito e entrega da relação de bens do de cujus junto da Autoridade Tributária –, que é o que decorre do artigo 26.º do Código do Imposto de Selo, aí devendo os herdeiros relacionar os “títulos e certificados da dívida pública e outros valores mobiliários”.
14. A tudo isto acresce o facto de a inércia dos herdeiros apenas os favorecer: enquanto não requererem a transmissão da totalidade das unidades que constituem os certificados de aforro ou o respetivo reembolso, este produto fica a capitalizar, gerando tantos mais juros quanto mais tempo demorarem os herdeiros a exercer o seu direito.
15. E, sendo o prazo de prescrição tão alargado, tal significaria que um herdeiro poderia, no limite, simplesmente “alegar” a sua ignorância sobre a existência dos certificados de aforro e vir reclamar o seu reembolso apenas passados vários anos após o términus do referido prazo de 10 anos, no momento que entendesse, o que, conjugado com a dificuldade que o ICGP muito provavelmente teria em fazer prova do efetivo conhecimento, por parte do herdeiro, da existência dos certificados de aforro, tornaria o sistema altamente permeável a abusos.
16. Pelo que outra interpretação do disposto no artigo 7.º do Regime dos Certificados de Aforro Série B – além de não ter o mínimo de correspondência na letra da lei – é uma interpretação perigosa e suscetível de conduzir a uma utilização abusiva do instituto da prescrição, já que se traduziria, na prática, na eliminação de qualquer limite máximo ao prazo de reclamação da transmissão das unidades dos certificados de aforro ou do respetivo reembolso e, por essa via, um incentivo à incúria e descuido daqueles a quem cabe o exercício dos direitos e cumprimento dos correspondentes deveres associados à herança.
17. Por todo o exposto, a única interpretação admissível do artigo 7.º, n.º 1, do Regime dos Certificados de Aforro Série B, é aquela segundo a qual o prazo de prescrição de 10 anos para os herdeiros do titular de certificados de aforro requererem a transmissão da totalidade das unidades que os constituem ou o respetivo reembolso, se conta a partir da data do óbito do aforrista; pelo que bem andou o Tribunal “a quo” na sua bem fundamentada decisão;
18. Operou, pois, a respetiva prescrição muito antes da data da instauração da presente ação e da citação da Ré para os termos da presente ação, tendo, aliás, já decorrido mais de 20 anos desde o facto que, nos termos da lei, determinou o início da contagem do prazo de prescrição previsto na mencionada disposição legal – a morte do aforrista.
19. Igualmente muitíssimo bem andou o Tribunal “a quo” ao ter considerado como não provado o facto de CC – mulher do titular aforrista - desconhecer a existência dos Certificados de Aforro aquando do óbito do marido, MC.
20. Efetivamente, o facto de os filhos desconhecerem a existência dos Certificados não significa que “a mãe não soubesse da sua existência, sendo certo que entre a data do óbito do marido e a sua decorreram quase 18 anos, tendo continuado a residir na mesma casa, onde os documentos se encontravam “arrumados” e para onde eram enviados os extratos, sem que tivesse passado aos seus filhos a gestão dos bens, tanto mais que não fez partilhas, sendo a cabeça de casal”.
21. E, assim, como bem se assinala na sentença recorrida “(…) mesmo que se entendesse ser de iniciar a contagem do prazo a partir do conhecimento dos herdeiros, considerando que CC era (já) herdeira do titular MC, e não tendo resultado provado que a mesma desconhecesse a existência daqueles títulos, sempre aquele prazo se haveria por decorrido.”
22. Com efeito, assentando a ação na alegação do desconhecimento da existência dos certificados de aforro, importa, mais do que a alegação de tal facto, lograr efetuar a sua prova, a qual, neste ponto, incumbia aos Autores efetuar, o que manifestamente não sucedeu em relação à herdeira mulher, CC.
23. E a este facto tinha, necessariamente, o Tribunal de atender, uma vez que o fundamento da ação, como se referiu, assenta no desconhecimento, pelos herdeiros, da existência dos certificados de aforro e que o fundamento da defesa assenta, também, na falta de atuação dos herdeiros.
24. Se a tese subjetiva considera que o termo inicial da contagem do prazo de prescrição exige o conhecimento, pelos herdeiros, da existência dos certificados de aforro e se a ação se fundamenta nesse desconhecimento, então cabia aos Autores demonstrar esse desconhecimento dos herdeiros, no que se inclui a herdeira CC.
25. Não há, contrariamente ao ora alegado pelos Recorrentes, qualquer violação do disposto no artigo 5.º do Código de Processo Civil, contendo-se a decisão nos seus justos, legais e devidos limites.
26. Nem a sentença, contrariamente ao alegado pelos Recorrentes, incorre em qualquer nulidade por excesso de pronúncia desde logo porque não é este o fundamento em que assenta a decisão recorrida, argumento que é aflorado “a latere” (“mesmo que se entendesse”); e ainda porque, mesmo que o fosse, se a tese subjetiva sustentada pelos Recorrentes considera que o termo inicial da contagem do prazo de prescrição exige o conhecimento, pelos herdeiros, da existência dos certificados de aforro e se a ação se fundamenta nesse desconhecimento, então cabia aos Autores demonstrar esse desconhecimento dos herdeiros, no que se inclui a herdeira CC – inserindo-se este facto na matéria trazida aos autos pelas partes.
27. A isto mais acresce a circunstância de o juiz não estar sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito, pelo que dentro da matéria dos autos, sempre poderia o Tribunal conhecer do objeto do litígio com fundamento distinto do alegado pela Ré – artigo 5.º, n.º 3, do Código de Processo Civil.
28. Em face de todo o exposto, bem andou a douta decisão recorrida, a qual deve manter-se nos seus precisos termos, com o que se faz a justiça que o caso concreto reclama.
1.6. As questões a decidir estão delimitadas pelas conclusões da recorrente e centram-se no seguinte:
- Na subsistência e relevância do único facto julgado como não provado;
- No momento a considerar para iniciar a contagem do prazo da excepcionada prescrição;
- Seu decurso e efeitos em face dos pedidos.
*
2. Fundamentação de facto.
2.1. Foi julgado provado que:
1. No dia 23/11/2002, faleceu MC.
2. O falecido era casado com CC.
3. Sucederam a MC, como únicos herdeiros legítimos, a sua mulher, CC, e o seu filho, JC, ora Autor.
4. MC deixou ainda testamento público no qual instituiu herdeira de toda a quota disponível VR, ora Autora.
5. No dia 26 de outubro de 2020, faleceu CC.
6. Os Autores eram ambos filhos de CC.
7. CC não deixou testamento ou qualquer outra disposição de última vontade, tendo-lhe sucedido, como únicos herdeiros, os seus dois filhos, aqui Autores.
8. MC era titular da Conta Aforro n.º …4, detida junto da aqui Ré, a qual, à data do seu óbito, era constituída pelos seguintes certificados de aforro da Série B:
a) emitido em 31-07-1992 nº …0 composto por 37 unidades, com a cláusula “também pode ser movimentado por CC”;
b) emitido em 12-08-1992 nº …9 composto por 1304 unidades, com a cláusula “também pode ser movimentado por CC”;
c) emitido em 08-10-1992 nº …6 composto por 1000 unidades, com a cláusula “também pode ser movimentado por CC”;
d) emitido em 21-10-1992 nº …36 composto por 1000 unidades, com a cláusula “também pode ser movimentado por CC”;
e) emitido em 03-11-1992 nº …06 composto por 1000 unidades, com a cláusula “também pode ser movimentado por CC”;
f) emitido em 03-12-1992 nº …5 composto por 1000 unidades, com a cláusula “também pode ser movimentado por CC”;
g) emitido em 14-12-1992 nº …15 composto por 1000 unidades, com a cláusula “também pode ser movimentado por CC”;
h) emitido em 02-02-1993 nº …1 composto por 800 unidades, com a cláusula “também pode ser movimentado por CC”;
i) emitido em 08-02-1993 nº …3 composto por 520 unidades, com a cláusula “também pode ser movimentado por CC”;
j) emitido em 23-07-1993 nº …606 composto por 520 unidades, com a cláusula “também pode ser movimentado por CC”;
k) emitido em 27-07-1993 nº …76 composto por 900 unidades, com a cláusula “também pode ser movimentado por JC”;
l) emitido em 13-10-1999 nº …01 composto por 400 unidades, com a cláusula “também pode ser movimentado por CC”;
m) emitido em 28-10-1999 nº …04 composto por 400 unidades, com a cláusula “também pode ser movimentado por CC”;
n) emitido em 13-03-2000 nº …34 composto por 680 unidades, com a cláusula “também pode ser movimentado por JC”;
o) emitido em 23-03-2000 nº …39 composto por 1000 unidades, com a cláusula “também pode ser movimentado por CC”.
9. O valor dos referidos certificados, à data do falecimento de MC, era de €49.653,22.
10. MC nunca solicitou o reembolso de tais certificados até à data do seu falecimento.
11. Da relação de bens apresentada aquando da habilitação de herdeiros, na sequência do óbito de MC, não constava qualquer menção aos Certificados de Aforro.
12. Da relação de bens apresentada aquando da habilitação de herdeiros, na sequência do óbito de CC, também não constava qualquer menção aos Certificados de Aforro.
13. CC nunca solicitou o reembolso de tais certificados até à data do seu falecimento.
14. À data do óbito de MC e de CC, os Autores desconheciam a existência dos referidos Certificados de Aforro.
15. Em data não concretamente apurada, no final de março / início de abril de 2021, os Autores tomaram conhecimento da existência dos Certificados subscritos por MC, tendo encontrado os documentos ao retirarem o recheio daquela que foi a casa de habitação de MC e de CC.
16. Nessa sequência, os Autores remeteram à Ré, em 16/06/2021, um email, solicitando informação sobre os Certificados de que era titular MC, solicitando o seu levantamento.
17. A Ré não acusou a receção, nem deu qualquer resposta.
18. Os Autores dirigiram-se ao posto dos CTT de Odivelas, em meados de 2021.
19. Nessa altura, preencheram os Mod. 710 (Pedido de Declaração dos Certificados de Aforro e Certificados do Tesouro detidos pelo Aforrista falecido) e o Mod. 706 (Habilitação de Herdeiros).
20. Estes pedidos deram origem a um processo interno designado pela Ré como “Entrada 24210/2021”.
21. No âmbito deste processo, por email datado de 03/08/2021, a Ré respondeu aos Autores, enviou em anexo o comprovativo dos valores dos certificados detidos por MC à data da sua morte e à data da morte de CC mas recusou-se a pagar o montante referente aos Certificados, invocando que os mesmos se encontravam prescritos a favor do Fundo de Regularização da Dívida Pública por não terem sido reclamados, pelos herdeiros, dentro do prazo legalmente estipulado para o efeito, de dez anos.
22. Por email datado de 25/10/2021, os Autores insistiram, informando a Ré que apenas nessa data tinham tido conhecimento da existência dos referidos Certificados.
23. Por email datado de 11/11/2021, a Ré voltou a argumentar com a prescrição dos títulos.
24. Por email, datado de 07/12/2021, os Autores insistiram uma vez mais no pedido de reembolso dos montantes correspondentes à totalidade do capital e juros remuneratórios dos referidos Certificados de aforro, tendo a Ré respondido, a 29/03/2022, invocando uma vez mais a prescrição dos títulos. 
25. A Ré é uma pessoa coletiva de direito público com natureza empresarial, dotada de autonomia administrativa e financeira, e património próprio, sujeita à tutela e superintendência do membro do Governo responsável pela área das finanças, conforme resulta do disposto no artigo 1.º, n.º 1, dos seus Estatutos, aprovados e publicados em anexo ao Decreto-Lei n.º 200/2012, de 27 de agosto.
26. A Ré tem por missão gerir, de forma integrada, a tesouraria, o financiamento e a dívida pública do Estado, nos termos do disposto no artigo 5.º, n.º 1, dos seus Estatutos.
27. Na sequência de protocolo celebrado entre a Ré e o Instituto de Registos e Notariado (IRN) em 2012, a Ré cruza regularmente a informação constante da sua base de dados de aforristas com a informação constante da base de dados de óbitos do IRN.
28. Foi nestas circunstâncias que, em 2012, a Ré tomou conhecimento do óbito do aforrista MC.
29. Na sequência desta informação, a Ré procedeu à imobilização da conta aforro n.º 16420004, por óbito do aforrista, em 03/12/2012.
30. Na data da ocorrência do óbito do aforrista, a conta aforro era constituída por 11561 unidades de certificados de aforro da série B, com a primeira subscrição em 31/07/1992 e a última em 23/03/2000, num total de quinze subscrições, no valor total de €49.653,22.
31. Em 03/12/2012, a Ré transferiu para o Fundo de Regularização da Dívida Pública (FRDP) o valor que se encontrava à data na conta aforro titulada pelo falecido, correspondente ao montante de €67.343,21.
32. Da conta aforro titulada pelo falecido foram emitidos extratos desde 06/01/1997 até à data do conhecimento do óbito, isto é, 03/12/2012, nunca tendo havido registo de qualquer devolução.
33. A partir de 2008, com a publicação do Decreto-Lei n.º 47/2008, de 13 de março, passou a existir o Registo Central de Certificados de Aforro (“RCCA”), com a finalidade de possibilitar a obtenção de informação sobre a existência de certificados de aforro e sobre a identificação do respetivo titular, ou seja, uma plataforma informática que contém a mesma informação contida no SPA (artigo 9.º-A aditado por este diploma).
*
3.2. Mais se julgou não provado que: CC desconhecia a existência dos Certificados de Aforro aquando do óbito do marido, MC.
*
3.3. Em primeiro lugar, os apelantes insurgem-se contra a sentença na parte em que julgou não provado que “CC desconhecia a existência dos Certificados de Aforro aquando do óbito do marido, MC”.
Consabidamente, o processo civil norteia-se pelo princípio do dispositivo, segundo o qual, com algumas excepções, às partes cabe alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as exceções invocadas  (art.º 5.º, n.º 1, do Código de Processo Civil), devendo o juiz discriminar os factos que considera provados e não provados (art.º 607.º, n.ºs 3 e 4, do Código de Processo Civil). Em princípio, não é lícito ao juiz ao resolver o litígio socorrendo-se de factos não alegados pelas partes, com as excepções expressamente previstas na lei (vg. factos notórios).
Ora, no caso dos autos, a posição dos autores está sintetizada no artigo 15.º, da douta petição inicial, ao referirem que: “Quer à data do falecimento de MC quer à data de falecimento de CC os aqui AA. desconheciam a existência sequer dos referidos Certificados de Aforro”.
Mais importante ainda, a ré tão pouco alegou que os herdeiros do MC – designadamente a CC – sabiam da existência dos certificados de aforro. Por muito que a ré argumente que o fundamento da acção é o desconhecimento pelos herdeiros da existência dos certificados de aforro, a realidade é que o fundamento da acção é o direito de propriedade sobre tais títulos e a sua transmissão por morte (ou reembolso). De acordo com uma das soluções possíveis de direito, a questão do conhecimento da existência apenas releva em termos de excepção da prescrição sobre tal direito. A prescrição poderá aproveitar à ré e não aos autores. Logo, era à ré que competia alegar e demonstrar o momento em que se iniciava a contagem do prazo para os herdeiros requererem a transmissão do direito ou o alternativo reembolso, nomeadamente por se tratar de um facto extintivo do direito – cfr. art.º 342.º, n.º 2, do Código Civil.
Não tendo sido alegada tal factualidade, o tribunal não deveria emitir qualquer julgamento sobre a mesma (provado/não provado), pelo que tal resposta se deve ter por não escrita.
Mas, de qualquer forma, a decisão de julgar não provado que: “CC desconhecia a existência dos Certificados de Aforro aquando do óbito do marido, MC” acabou por se revelar inócua, na medida em que não se pode tirar qualquer consequência ou efeito da mesma, pois, como refere o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 7/12/2006: “um facto não provado, não passa disso: de um facto não provado. Não é a prova do contrário. É tão-só, um não facto” – disponível na base de dados da DGSI, processo n.º 06P4258.
*
3.4. Uma vez que a ré não questionou o direito de MC titulado pelos certificados de aforro e se mostra demonstrada a habilitação-legitimidade dos autores para que lhes seja reconhecida a transmissão desse direito ou o reembolso, o recurso está centrado nas conclusões relativas à questão da excepção de prescrição.
O artigo 14.º, do Decreto-lei 43453, de 30 de Dezembro, autorizou o Ministro das Finanças a mandar emitir, por intermédio da Junta do Crédito Público e nos termos a estabelecer, títulos da dívida pública nominativos e amortizáveis, denominados certificados de aforro, destinados a conceder uma aplicação remuneradora aos pequenos capitais.
Relativamente à série de certificados de aforro, denominada «série B» - que é o caso sub judice – o Decreto-Lei n.º 172-B/86, de 30 de Junho, estabeleceu que são nominativos, reembolsáveis, só transmissíveis por morte e assentados apenas a pessoas singulares. Mais ainda, o artigo 7.º, desse diploma estabelecia que:
1 - Por morte do titular de um certificado de aforro, poderão os herdeiros requerer, dentro do prazo de cinco anos, a transmissão da totalidade das unidades que o constituem, efectivada pela emissão de novos certificados, que manterão a data da emissão dos que lhes deram origem, ou o respectivo reembolso, pelo valor que o certificado tiver à data em que o reembolso for autorizado.
2 - Findo o prazo a que se refere o número anterior, consideram-se prescritos a favor do Fundo de Regularização da Dívida Pública os valores de reembolso dos respectivos certificados, sendo, no entanto, aplicáveis as demais disposições em vigor relativas à prescrição.
Esse n.º 1, do artigo 7.º, foi alterado pelo Decreto-Lei n.º 122/2002, de 4 de maio, que lhe conferiu a seguinte redacção:
1 - Por morte do titular de um certificado de aforro, poderão os herdeiros requerer, dentro do prazo de 10 anos, a transmissão da totalidade das unidades que o constituem, efectivada pela emissão de novos certificados, que manterão a data da emissão dos que lhes deram origem, ou o respectivo reembolso, pelo valor que o certificado tiver à data em que o reembolso for autorizado.
Esse mesmo Decreto-Lei n.º 122/2002, de 4 de maio, também estipulou que: “Aplicam-se aos certificados de aforro as disposições gerais relativas à prescrição dos juros e do capital de empréstimos da dívida pública, constantes da Lei n.º 7/98, de 3 de Fevereiro” – art.º 7.º.
Por último, o Decreto-Lei n.º 47/2008, de 13 de Março, conferiu a seguinte redacção ao artigo 7.º, do Decreto-Lei n.º 172-B/86, de 30 de Junho:
1 - Por morte do titular de um certificado de aforro, podem os herdeiros requerer, dentro do prazo de 10 anos:
a) A transmissão da totalidade das unidades que o constituem; ou
b) O respectivo reembolso, pelo valor que o certificado tenha à data em que o reembolso seja autorizado.
(…).
O tempo é um importantíssimo facto jurídico que pode afectar as relações jurídicas de várias formas, nomeadamente em termos de extinção de direitos. O artigo 297.º, do Código Civil, estabelece que:
1. Estão sujeitos a prescrição, pelo seu não exercício durante o lapso de tempo estabelecido na lei, os direitos que não sejam indisponíveis ou que a lei não declare isentos de prescrição.        
2. Quando, por força da lei ou por vontade das partes, um direito deva ser exercido dentro de certo prazo, são aplicáveis as regras da caducidade, a menos que a lei se refira expressamente à prescrição.

Por outro lado, o artigo 306.º, n.º 1, do mesmo código refere que: O prazo da prescrição começa a correr quando o direito puder ser exercido; se, porém, o beneficiário da prescrição só estiver obrigado a cumprir decorrido certo tempo sobre a interpelação, só findo esse tempo se inicia o prazo da prescrição.
Subjacente a este instituto temos os princípios basilares da segurança e certeza, pressupondo, geralmente, a inércia do titular do direito.
Vistas estas considerações, desde já importa afirmar que a consagração de um prazo prescricional de 5 anos, depois alargado para 10 anos, não se traduz em qualquer favorecimento ou protecção dos titulares dos certificados de aforro, mas sim da entidade emitente. Esta é que beneficia da significativa redução do prazo ordinário de prescrição (extintiva) de 20 anos (art.º 309.º, do Código Civil) para 10 anos (em vigor no momento em que faleceu o titular dos certificados de aforro).
Ao contrário do que a apelada defende, não se vislumbra que o legislador tenha optado pela contagem do prazo a partir do momento do falecimento do titular. Pelo menos, essa alegada opção não é clara ou expressa. A lei extravagante não refere o momento a partir do qual se deverá iniciar a contagem do prazo. A lei simplesmente menciona um evento (Por morte do titular de um certificado de aforro) e estatui um prazo (poderão os herdeiros requerer, dentro do prazo de 10 anos, a transmissão da totalidade das unidades ou o reembolso).
Tendo presente as altíssimas considerações e valores que norteiam estes instrumentos financeiros (o preâmbulo do Decreto-Lei n.º 47/2008, de 13 de Março, apela à sua criação especificamente para captar a poupança das famílias e com distribuição directa ao retalho; difusão generalizada que levou a que hoje em dia represente cerca de 16 % da dívida em circulação do Estado; o cumprimento de uma finalidade de financiamento do Estado; e o estímulo à aplicação das poupanças familiares) seria espectável que o legislador consagrasse, de forma expressa e clara, que a morte do titular desencadearia logo a contagem do prazo especial e reduzido para o exercício dos direitos pelos seus herdeiros – se fosse essa a sua intenção – cfr. artigo 9.º, n.º 3, do Código Civil. A importância social e económica do direito, a necessidade de tutelar especiosamente a confiança do público a quem é dirigido (pessoas singulares e, particularmente, as famílias) e a necessidade de acautelar a segurança deveriam consagrar essa solução. Mas a lei extravagante não estipulou o momento a considerar para o início da contagem desse prazo prescricional, pelo que teremos que recorrer às regras gerais da prescrição.
Também não oferece dúvida que o Estado pode limitar ou condicionar o direito dos subscritores dos certificados de aforro, nomeadamente reduzindo o prazo de prescrição ordinário. O acórdão do Tribunal Constitucional n.º 396/2020 citado pela apelada já se pronunciou pela não inconstitucionalidade artigo 7.º do Regime dos Certificados de Aforro Série B, mas apenas na vertente e pressupostos que estavam aí em discussão. Esse juízo esgotou-se na questão concretamente colocada ao tribunal e que difere substancialmente do presente caso, pois ali provou-se que: “Em 15-02-2006, a Autora, na qualidade de herdeira e munida da documentação necessária, dirigiu-se aos serviços da Autoridade Tributária e Aduaneira, onde participou o óbito de sua mãe e relacionou os bens por ela deixados, de onde constam os referidos Certificados de Aforro”. Ou seja, a herdeira sabia da existência dos certificados de aforro e omitiu o pedido de transmissão ou resgate. Esse pressuposto factual não se verifica no caso em apreço.
Quanto ao início da contagem do prazo, o acórdão Supremo Tribunal de Justiça de 11/5/2023, citando Menezes Cordeiro, refere que, em termos de direito comparado, se observam dois grandes sistemas: o objectivo e o subjectivo.
Pelo sistema objectivo, o prazo começa a correr assim que o direito possa ser exercido e independentemente do conhecimento que, disso, tenha ou possa ter o respectivo credor. Pelo subjectivo, tal início só se dá quando o credor tenha conhecimento dos elementos essenciais relativos ao seu direito”. O sistema objectivo é o tradicional sendo compatível com prazos longos ao invés do sistema subjectivo que postula, em regra, prazos curtos.
O Código Civil optou, como regra, pelo sistema objectivo, veja-se o art.º 306º, nº1.
Há, no entanto, situações em que o Código adoptou o sistema subjectivo: a prescrição só se inicia a contar do momento em que o credor tenha conhecimento do direito que lhe compete, como sucede com os casos previstos no art.º 482º (prescrição do direito à restituição do enriquecimento, e no art.º 498º (prescrição do direito à indemnização).
No caso particular da contagem do prazo de prescrição do pedido de reembolso dos certificados de aforro, o Supremo Tribunal de Justiça, de forma unânime, que se saiba, tem seguido o sistema subjectivo, basicamente por duas ordens de razões: por a questão se colocar num contexto sucessório, e pelo fundamento específico da prescrição, a saber, a negligência do titular do direito e que, por isso, só a exigência do conhecimento da existência e titularidade do direito satisfaz o pressuposto de o direito poder ser exigido, referido no art.º 306º do CC" – disponível na base de dados da DGSI, processo n.º 10463/21.5T8LSB.
Acompanha-se o entendimento desse douto aresto – aliás, no seguimento da demais jurisprudência aí citada – por ser o conforme à lei e necessariamente justo. Na verdade, o legislador nacional sentiu a necessidade de adoptar o sistema subjectivo na contagem de alguns prazos, afastando-se da solução exclusivamente objectiva. Subjacente a essa distinção está o desconhecimento por parte do titular da existência do próprio direito. A realidade sociológica evidencia que os herdeiros geralmente desconhecem em toda a extensão a universalidade que compõe a herança. O próprio legislador reconhece essa realidade e dificuldade dos herdeiros como é salientado pelo acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 25/2/2021 (citado no anterior aresto): “Ora, na transmissão de bens por via sucessória, os herdeiros, muitas vezes, podem não ter conhecimento da totalidade dos bens que integram o património do de cujus, realidade que se reflete em alguns aspectos do regime sucessório, como a possibilidade do herdeiro pedir judicialmente, a todo o tempo, a restituição de bens da herança a quem os possua (art.º 2075º do CC), a do legatário poder reivindicar a entrega dos bens legados sem dependência de prazo (art.º 2279º do CC), ou a previsão de partilhas adicionais, quando se verifique a omissão de bens (art.º 2122º do CC).  
(…)
Assim sendo, o prazo de prescrição de 10 anos aqui em análise deve ser considerado um prazo sujeito a um sistema subjectivo, cuja contagem só se inicia quando, após a aceitação da herança, os herdeiros têm conhecimento da existência de certificados de aforro da série B no património do de cujus, sem prejuízo do decurso do prazo de prescrição ordinária, cuja contagem se inicia com a aceitação da herança, nos termos do art.º 306º do CCivil”.
O Estado – como pessoa de bem – deverá acautelar os interesses das famílias que lhe confiam as suas poupanças, particularmente nas situações de transmissão por morte da titularidade de direitos sobre certificados de aforro, não onerando os herdeiros com encargos e deveres desproporcionados, particularmente quanto a factos que desconhecem e não estão obrigados a conhecer.
A própria instituição de um registo central de certificados de aforro através do Decreto-Lei n.º 47/2008, de 13 de Março, evidencia as dificuldades no acesso à informação, se bem que não seja claro se a sua criação se deveu à premência de informar os interessados ou ao interesse do Estado na pronta prescrição dos valores de reembolso.
O Estado não pode impor aos herdeiros um dever de exaustiva procura de bens e direitos do de cujus (certificados de aforro na Agência de Gestão da Tesouraria e da Dívida Pública, contas bancárias na Suíça, imóveis em todos os Registos Prediais do país, etc.), quando nada indiciará a sua existência.
Ao contrário do que é sustentado pelos apelantes, entende-se que não se verifica a invocada nulidade da sentença por excesso de pronúncia, porquanto o tribunal foi expressamente chamado a conhecer da excepção de prescrição – o que fez dentro dos limites e com a liberdade que lhe é concedida pela lei: O juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito – art.º 5.º, n.º 3, do Código de Processo Civil.
No caso dos autos, o titular dos certificados de aforro, MC, faleceu no dia 23-11-2002. Para a procedência da excepção de prescrição do artigo 7.º, do Decreto-Lei n.º 172-B/86, de 30 de Junho, seria necessário que a ré alegasse e demonstrasse que decorreram dez anos desde o momento em que os herdeiros, após a aceitação da herança, tiveram conhecimento que os certificados de aforro da série B a integravam, até ao momento em que requereram a transmissão da titularidade ou o resgate.
Era à ré que competia a alegação e comprovação dos factos em que assenta a invocada prescrição – cfr. citado art.º 342.º, n.º 2, do Código Civil. Não o tendo feito, a excepção será julgada improcedente.
*
3.5. Com a improcedência da excepção, em bom rigor, não procede o pedido de reconhecimento da propriedade sobre os certificados de aforro.
O que a lei reconhece é o exercício em alternativa da:
a) Transmissão da totalidade das unidades que o constituem, efectivada pela emissão de novos certificados, que manterão a data da emissão dos que lhes deram origem; ou,
- O respectivo reembolso – cfr. art.º 7.º, Decreto-Lei n.º 172-B/86, de 30 de Junho.
Uma vez que os autores pedem o pagamento dos certificados de aforro (saldo), entende-se que não pretendem efectivamente exercer a transmissão do direito (da esfera ou titularidade do de cujus para a sua esfera), mas sim o reembolso do saldo. Logo, apenas será reconhecido o direito dos autores ao reembolso.
Os autores liquidaram o valor dos certificados em €80.073,82. Porém, não indicaram os factos em que se basearam para alcançar esse valor. A informação mais actualizada que se apurou refere que, em 03/12/2012, a ré transferiu para o Fundo de Regularização da Dívida Pública (FRDP) o valor que se encontrava à data na conta aforro titulada pelo falecido, correspondente ao montante de €67.343,21. Porém, a mesma é insuficiente para liquidar integralmente o pedido, nomeadamente porque se desconhece o valor que deveria existir na conta aforro na data da interpelação para o pagamento (caso o saldo não tivesse sido anteriormente transferido). Por esse motivo o tribunal condena no que vier a ser liquidado, sem prejuízo de condenação imediata na parte que já seja líquida – cfr. art.º 609.º, n.º 2, do Código de Processo Civil.
*
3. Decisão:
3.1. Pelo exposto, na procedência da apelação, acordam em:
a) Revogar a sentença;
b) Julgar improcedente a excepção de prescrição;
c) Condenar a ré a pagar aos autores o montante líquido de €67.343,21;
d) Condenar a ré a pagar aos autores o montante que se vier a liquidar correspondente ao saldo da conta aforro titulada por MC à data em que a ré foi citada (9/11/2022) que exceda o montante liquidado em c);
e) Condenar a ré a pagar aos autores os juros vencidos e vincendos sobre a quantia já liquidada desde a data da citação e até efectivo e integral pagamento à taxa legal que estiver em vigor; e,
f) Absolver a ré do demais peticionado pelos autores.
3.2. As custas são a suportar pelos apelantes e pela apelada na proporção de 1/6 e 5/6, respectivamente.
3.3. Notifique.

Lisboa, 21 de Dezembro de 2023
Nuno Gonçalves
João Brasão
Gabriela de Fátima Marques