Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
4929/2006-6
Relator: PEREIRA RODRIGUES
Descritores: JULGADO DE PAZ
COMPETÊNCIA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/22/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário: I. A competência dos Julgados de Paz é uma competência exclusiva e não alternativa.
II. Se a competência fosse meramente alternativa, por se tratar de um desvio à regra, justificava-se que o legislador tivesse prevenido da inexistência de obrigatoriedade de recorrer à jurisdição dos Julgados de Paz.
III. E tanto é uma competência exclusiva que o legislador estabeleceu uma norma transitória a determinar que as acções pendentes à data da criação e instalação dos Julgados de Paz prosseguissem os seus termos nos tribunais onde foram propostas.
IV. Esta norma não faria o menor sentido se a competência dos Julgados de Paz fosse meramente alternativa da dos Tribunais Judiciais, pois que então não haveria qualquer justificação ou fundamento para o desaforamento destas acções, para as quais eram, e continuariam a ser, competentes aqueles tribunais.
Decisão Texto Integral: ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA:
I. OBJECTO DO RECURSO.

A. intentou, nos Juízos da Pequena Instância Cível de Lisboa, contra B., acção, com processo sumaríssimo, pedindo a condenação deste a pagar-lhe a quantia de € 2.808,92, relativos à reparação de defeitos de viatura usada, que o R lhe vendera com garantia pelo período de seis meses.

O R contestou, pugnando pela improcedência da acção e pediu a condenação do A como litigante de má fé.

Prosseguindo os autos os seus trâmites, veio a ser proferido douto despacho a julgar o tribunal incompetente em razão da matéria para o conhecimento da presente acção e, em consequência, a absolver o réu da instância, do seguinte teor:

Os presentes autos configuram uma acção para efectivação de responsabilidade civil contratual.

O valor atribuído pelo autor à acção é de € 2.808,92, ou seja, inferior à alçada do Tribunal Judicial de Pequena Instância, razão por que o autor configurou a acção segundo a forma de processo sumaríssimo.

Sucede porém que, nos termos do artigo 9.º, n.º 1, alínea h) da Lei n.º 78/2001, de 13 de Julho, é da competência dos Julgados de Paz a apreciação e decisão sobre “acções que respeitem à responsabilidade civil contratual e extracontratual”.

Trata-se de competência “exclusiva” (ainda que condicional), atento o disposto nos artigos 211.º da Constituição e 66.º do Código de Processo Civil, daqui resultando que a acção deveria ter sido interposta no Julgado de Paz criado e instalado nesta Comarca, sendo o Tribunal Judicial incompetente em razão da matéria para o processamento e decisão do peticionado.

A incompetência em razão da matéria constitui uma excepção dilatória (artigo 494.º, alínea a) do Código de Processo Civil), de conhecimento oficioso (artigo 102.º, n.º 1 do Código de Processo Civil) e gera a absolvição do réu da instância (artigo 105.º, n.º 1 do Código de Processo Civil).

Por conseguinte e nos termos dos fundamentos supra referidos, julgo este Tribunal incompetente em razão da matéria para o conhecimento dos presentes autos e, em consequência, absolvo o réu da instância (artigo 288.º, n.º 1, alínea a) do Código de Processo Civil)”.

Inconformado com a decisão, veio o Ministério Público interpor recurso para este Tribunal da Relação, apresentando doutas alegações, com as seguintes CONCLUSÕES:

1. A douta sentença recorrida absolveu o Réu da instância, por incompetência absoluta do Tribunal de Pequena Instância Cível de Lisboa, nos termos do disposto nos artgs. 102º, nº 1, 105º, nº 1, 288º, nº 1, alínea a), 493º, nº 2 e 494º, alínea a), todos do Cód. Proc. Civil, sustentando que a competência para apreciação da matéria em discussão nos autos pertence ao Julgado de Paz instalado na comarca de Lisboa;

2. Fundamentou a sua posição no artg. 9º, nº 1, alínea h) da Lei nº 78/2001, de 13 de Julho, no artg. 66º do Cód. Proc. Civil e no artg. 211º da C.R.P.

3. Discordamos de tal posição, entendendo que a natureza dos Julgados de Paz é alternativa e não exclusiva.

4. Não se encontrando o território nacional coberto pela instalação de Julgados de Paz, não faz sentido que esta jurisdição conheça, em exclusivo, de matérias apreciadas por Tribunais Judiciais em outras circunscrições territoriais.

5. Igualmente, o princípio da reserva de jurisdição, ou a disponibilidade das partes na possibilidade de submeterem os litígios materialmente judiciais nos tribunais judiciais, aponta para uma competência alternativa.

6. Acresce que a consagração da competência exclusiva expressa nos projectos de lei que antecederam a aprovação da Lei nº 78/2001, de 13 de Julho, não obteve consagração no texto da lei vigente.

7. Favorecem, de resto, a tese da sua competência alternativa os artgs. 41º e 59º, nº 3 da sobredita lei, não fazendo sentido que os Tribunais Judiciais, inicialmente incompetentes, adquiram competência quando sejam suscitados incidentes não admissíveis no processo dos Julgados de Paz ou seja requerida prova pericial.

8. Os artgs. 66º do Cód. Proc. Civil e 211º da C.R.P., invocados no texto da sentença recorrida, não apontam para a competência exclusiva da Jurisdição de Paz, pois que o que está em causa é, justamente, a ausência de uma norma atributiva de competência a um Tribunal Judicial e outra atributiva de competência aos Julgados de Paz.

9. O reconhecimento de que um tribunal judicial e um julgado de paz têm idêntica competência material não implica qualquer entorse aos princípios gerais, uma vez que pertencem a estruturas jurisdicionais diversas.

10. A prolongada inércia legislativa no sentido de clarificar a competência – alternativa/exclusiva - dos Julgados de Paz não pode deixar de apontar no sentido do nosso entendimento.

11. Neste sentido foi emitido o Parecer nº 10/2005, da Procuradoria-Geral da República, publicado no D.R., II Série, em 2 de Setembro de 2005.

12. Pelo exposto, o Tribunal de Pequena Instância Cível de Lisboa é competente, em razão da matéria, para apreciar o caso concreto.

13. Assim, a absolvição do Réu da instância, por incompetência absoluta deste tribunal, inobservou o disposto nos artgs. 9º nº 1, alínea g), 41º, 59º, nº 3 da Lei nº 78/2001, de 13 de Julho, 211º da Lei Fundamental e 66º do Cód. Proc. Civil.

Nestes termos, deverá ser concedido provimento ao recurso, revogando-se a decisão recorrida e declarando-se o Tribunal de Pequena Instância Cível de Lisboa materialmente competente para apreciar o pleito desenhado nos autos, realizando-se, assim, a habitual JUSTIÇA!

Não houve contra-alegação.

Admitido o recurso na forma, com o efeito e no regime de subida devidos, subiram os autos a este Tribunal da Relação, sendo que nada obstando ao conhecimento do agravo, cumpre decidir.

A questão a resolver é a de saber se o tribunal competente para a acção é a Pequena Instância Cível, onde a acção foi proposta, ou se o Julgado de Paz.

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II. FUNDAMENTOS DE FACTO.

Os factos a tomar em consideração para conhecimento do agravo são os que decorrem do relatório acima inscrito.

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III. FUNDAMENTOS DE DIREITO.

Nos termos do n.º 1 do art. 18º da LOTJ (1) e do art. 66º do CPC “são da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional”.
Os citados preceitos, cuja formulação vem já do CPC de 1939, enunciam uma regra genérica, ou um critério geral, de orientação para solucionar o problema da determinação do tribunal competente em razão da matéria e que consiste em colocar no âmbito da competência dos tribunais comuns todas as causas que por lei não estejam, concretamente, afectas à apreciação dos tribunais especiais ou de alguma jurisdição especial. É a indagação da competência por exclusão.
Como ensinava o Prof. Alberto dos Reis, “todas as causas que por lei não são da competência dalgum tribunal especial pertencem ao foro comum. De modo que a competência dos tribunais especiais determina-se por investigação directa: vai-se ver qual é, segundo a lei orgânica do tribunal, a espécie ou espécies de acções que podem ser submetidas ao seu conhecimento.
Pelo contrário, a competência do foro comum determina-se por exclusão: apurado que a causa de que se trata não entra na compe­tência de nenhum tribunal especial, conclui-se que para ela é competente o tribunal ou juízo comum.
Portanto, a competência do foro comum só pode afirmar-se com segu­rança depois de se ter percorrido o quadro dos tribunais espe­ciais e de se ter verificado que nenhuma disposição da lei submete a acção em vista à jurisdição de qualquer tribunal especial» (2).
Obviamente que o que se diz dos tribunais especiais vale igualmente quanto a outras jurisdições especializadas, hoje bastante em voga.
Porém, saber se um determinado tribunal ou entidade jurisdicional de competência especializada é competente, ou não, para conhecer de determinada acção nem sempre é de evidência apodíctica, tornando-se necessário, não raras vezes, proceder a laboriosas indagações, para, através de vários elementos indiciadores, se ensaiar uma resposta convincente.
Para o Prof. Manuel de Andrade, «são vários esses elementos também chamados índices de competência (Calamandrei). Constam das várias normas que provêem a tal respeito. Para decidir qual dessas normas corresponde a cada um deve olhar-se aos termos em que foi posta a acção - seja quanto aos seus elementos objectivos (natureza da providência solicitada ou do direito, para o qual se pretende a tutela judiciária, facto ou acto donde teria resultado esse direito, bens pleiteados, etc.), seja quanto aos seus elementos subjacentes (identidade das partes). A competência do tribunal - ensina Redenti (vol. I, pág. 265), afere-se pelo quid disputatum (quid decidendum, em antítese com aquilo que será mais tarde o quid decisum); é o que tradicionalmente se costuma exprimir dizendo que a competência se determina pelo pedido do autor. E o que está certo para os elementos da acção está certo ainda para a pessoa dos litigantes» (3).
Também a jurisprudência tem propendido para o entendimento de que a competência em razão da matéria tem de ser averiguada em função dos termos em que a acção é configurada pelo autor, quanto ao pedido e seus fundamentos (4).
Ora, no caso dos autos pretende o A que o R seja condenado a pagar-lhe a quantia de € 2.808,92, relativos à reparação de defeitos de viatura usada, que o R lhe vendera com garantia pelo período de seis meses, pelo que respeita, assim, a presente acção à responsabilidade civil contratual.

Entendeu-se no despacho recorrido que para conhecer da presente acção era competente o Julgado de Paz de Lisboa.

A organização, competência e funcionamento dos Julgados de Paz, encontra-se regulada no DL 78/2001, de 13/7, nele se consagrando como princípios gerais, o da participação cívica dos interessados e da justa composição do litígio por acordo das partes e ainda o de os procedimentos estarem concebidos e orientados por regras de simplicidade, adequação, informalidade, oralidade e absoluta economia processual (art. 2º)

No que concerne à competência, depois de se determinar que, em razão do objecto, a mesma se restringe às acções cíveis (art. 6º/1), estabelece-se que, em razão do valor, os julgados de paz têm competência para questões cujo valor não exceda a alçada do tribunal de 1ª instância (art. 8º), descriminando-se depois as matérias para as quais são competentes (art. 9º) e os factores determinantes da competência territorial (art.s 11º a 14º).

A questão que se coloca no presente recurso é a de saber se a competência dos Julgados de Paz é uma competência exclusiva, como se defendeu no despacho recorrido, ou se uma competência meramente alternativa, como defende o Ministério Público na sua douta alegação.

A lei reguladora dos Julgados de Paz nada diz de expresso sobre esta matéria e também não se vê que algo tivesse que dizer. Como nada diz, só se pode entender que a sua competência é uma competência exclusiva, porque assim acontece sempre que o legislador atribui a outras entidades competência específica para o conhecimento de determinadas matérias, subtraindo-as à alçada dos tribunais judiciais.

Se a competência fosse meramente alternativa, por se tratar então de um desvio à regra, é que se justificava que o legislador tivesse prevenido da inexistência de obrigatoriedade de recorrer à jurisdição dos Julgados de Paz. Mas não foi, seguramente, essa a intenção do legislador, atentos os princípios em que assenta esta instância jurisdicional e os efeitos a prosseguir com a mesma, a que também não é alheia a intenção de aligeirar os tribunais judiciais das acções de parco valor e de elevada simplicidade.

E tanto é assim que o legislador estabeleceu no art. 67º uma norma transitória a determinar que as acções pendentes à data da criação e instalação dos Julgados de Paz seguem os seus termos nos tribunais onde foram propostas.

Esta norma não faria o menor sentido se a competência dos Julgados de Paz fosse meramente alternativa da dos tribunais judiciais, pois que então não haveria qualquer justificação ou fundamento para o desaforamento destas acções, para as quais eram, e continuariam a ser, competentes.

O facto de o território nacional não se encontrar coberto pela instalação de Julgados de Paz, não releva no sentido de que esta jurisdição não possa conhecer, em exclusivo, de matérias que em outras circunscrições territoriais são da competência dos tribunais comuns, por aí não se encontrarem instalados Julgados de Paz. Com efeito, como é sabido, a competência dos tribunais judiciais, como competência residual, é mais ou menos abrangente, nas diversas circunscrições territoriais, de acordo com a existência, ou não, de tribunais especializados ou de outras entidades jurisdicionais.

No sentido de uma competência alternativa dos Julgados de Paz, também não parece que se possa invocar o princípio da reserva de jurisdição, pretensamente adstrita aos tribunais judiciais, na medida em que os Julgados de Paz partilham daquela jurisdição, por as suas decisões terem o valor de sentenças proferidas por tribunal de 1.ª instância (art. 61º) e poderem ser impugnadas por meio de recurso, desde que o valor o faculte (art. 62º).

Igualmente não parece relevar que a previsão da competência exclusiva expressa nos projectos de lei, que antecederam a aprovação da Lei nº 78/2001, de 13/7, não tenha obtido consagração no texto da lei vigente, porque, certamente, como acima se vê viu, se considerou desnecessário. O que se justificava, se fosse o caso, é que se dissesse que a competência era alternativa, por se estar, então, em face de uma competência sui generis, para cuja especialidade se tornava necessário chamar a atenção.

Nem parece que favorecem a tese da sua competência alternativa as disposições dos artigos 41º e 59º, nº 3, ao preverem a remessa do processo ao tribunal judicial quando seja suscitado um incidente processual ou quando seja requerida a produção de prova pericial, pois que não constitui qualquer incongruência que o tribunal judicial apenas passe a ser competente a partir do momento em que se suscite o incidente ou se requeira a prova pericial. O mesmo se passa com processos afectos à competência de outras entidades, v. g. com o processo de justificação de direitos previsto nos artigos 116º e seguintes do Código do Registo Predial, e dos procedimentos perante o Conservador do Registo Civil, previstos no DL 272/2001, de 13/10, que são da competência das respectivas Conservatórias, mas que passam para a competência do Tribunal Judicial no caso de ser deduzida oposição.

A atribuição de idêntica competência a um Tribunal Judicial e um Julgado de Paz, ainda que teoricamente conjecturável, quase como uma adopção de “medicinas alternativas”, não parece, todavia, combinar bem com o princípio geral da separação das ordens jurisdicionais, de que fazem eco as disposições dos artigos 211º da Constituição da República e 66º do CPC.

Daí que se entenda que a competência dos Julgados de Paz é uma competência exclusiva e não alternativa.

Neste sentido já se pronunciaram, pelo menos, Joel Timóteo Ramos Pereira (5) e os Acórdãos da Relação do Porto de 8.11.2005 e da Relação de Lisboa de 5.5.2005 (6).

Improcedem, por isso, as conclusões do recurso, sendo de manter a decisão recorrida.

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IV. DECISÃO:

Em conformidade com os fundamentos expostos, nega-se provimento ao agravo e confirma-se a decisão recorrida.

Sem Custas.

Lisboa, 22 de Junho de 2006.

FERNANDO PEREIRA RODRIGUES

FERNANDA ISABEL PEREIRA

OLINDO GERALDES




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1.-Aprovada pela Lei 3/99, de 13/1.

2.-in CPC anot., I, 201.

3.-Noções Elementares de Processo Civil, I. pg. 88.

4.-Vd., por todos, Acs do STJ de 9.2.94 (in BMJ 434/564) e de 12.1.94 (in CJ/STJ, 1994, I, 38).

5.-in Julgados de Paz – Organização, Trâmites e Formulários”, 2.ª ed., pág. 57.

6.-Acessíveis em http://www.dgsi.pt.