Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
922/2007-6
Relator: ANA LUÍSA GERALDES
Descritores: TRIBUNAL MARÍTIMO
EMBARCAÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 04/19/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: ALTERADA A DECISÃO
Sumário: 1. Em matéria de abalroação de navios é a lei portuguesa, e não a Convenção de Bruxelas a aplicável, quando todos os interessados, bem como o Tribunal que houver de julgar o facto, forem dessa nacionalidade.
2. Sob pena de ficarem igualmente destituídos de valor e alcance jurídicos os seguintes princípios inseridos na ordem jurídica portuguesa: os arts. 65º, 66º e 79º do CPC; o art. 45º, nº 1, do CC; os arts. 664º e segts do Código Comercial, que versam especificamente sobre a navegação marítima e a ocorrência de abalroamentos de navios; bem como os Decretos-Leis nº 202/98, de 10 de Julho e nº 384/99, de 23 de Setembro, que regulam esta matéria.
3. Não obstante tal facto, o legislador nacional, aquando da elaboração do direito interno, teve em atenção as regras inseridas na Convenção de Bruxelas de 1957, conforme fui do Decreto-Lei nº 202/98, de 10 de Julho, no que concerne à constituição do fundo de limitação de responsabilidade.
4. Pelo que, ao abrigo de tais normativos, é admissível a constituição de um fundo de limitação de responsabilidade do proprietário do navio aos casos aí previstos.
(A.L.G.)
Decisão Texto Integral: ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA
I – 1. Relatório:
António e mulher Maria, L e mulher Maria M e Mútua de Seguros
Requereram a constituição de um fundo de limitação de responsabilidade no montante de 8.267,41 Euros, pretendendo limitar a sua responsabilidade a esse montante em relação aos pedidos de indemnização resultantes de perdas e danos emergentes da abalroação entre as embarcações de pesca denominadas “Meireles Novo” e “Paz da Vida”, ocorrida ao largo da costa portuguesa.

2. Essa pretensão foi liminarmente admitida e deferido o pedido, tendo sido declarada a constituição de um fundo de limitação de responsabilidade no referido valor – cf. fls. 63, do I vol.

3. Em sede de reclamação de créditos a reconhecer e a satisfazer proporcionalmente pelas forças do referido fundo, foram considerados reclamados, ao abrigo do disposto no art. 8º, nº 1, do Decreto 49.029, de 26 de Maio de 1969, os créditos que se pretendiam fazer valer contra os ora Requerentes no âmbito da acção declarativa de condenação que se encontrava pendente no Tribunal Marítimo, sob o n.º 1/2002.

4. Tal acção, apensada aos presentes autos, contém os seguintes elementos:
A) - A Companhia de Seguros, S.A.” propôs esta acção (com o nº 1/2002) contra os ora Requerentes pedindo a condenação solidária dos mesmos no pagamento da quantia global de Esc. 34.460.000$00, acrescida de juros de mora vincendos, desde a citação até integral pagamento, sendo a Ré Seguradora até ao limite da respectiva apólice.
Para tanto, a A. Seguradora “Fidelidade” alegou que tinha celebrado contrato de seguro do ramo marítimo (casco e responsabilidades), pelo valor global de Esc. 34. 460.000$00, com os proprietários da embarcação “Paz da Vida”, tendo esta sido perdida em virtude de abalroação e afundamento imputável exclusivamente ao mestre da embarcação “Meireles Novo” (Réu Lázaro Meireles Novo).
Em cumprimento do contrato de seguro a A. liquidou aos seus segurados a quantia de Esc. 34.460.000$00, ou seja, o valor do capital.
E assim, assiste à A, por sub-rogação contratual e legal, o direito de reclamar dos responsáveis pela perda da embarcação, os RR., o pagamento da quantia despendida em consequência do ressarcimento dos danos sofridos pelos seus segurados pelo afundamento da embarcação, nos termos agora peticionados.
B) A Ré “Mútua” contestou a acção alegando que a abalroação se ficou a dever a caso puramente fortuito e que não há direito a indemnização por parte de qualquer dos navios envolvidos – cf. fls. 89, do I vol.).
Mais alegou que o contrato de seguro invocado pela A. não cobre os danos emergentes de abalroamento culposo, mas tão-somente o abalroamento fortuito, a que acresce o facto que, de acordo com a apólice, o seguro está limitado ao valor de Esc. 31.040.000$00.
C) Os restantes RR. vieram igualmente contestar a demanda, alegando, em síntese, que a abalroação foi fortuita e que o mestre da embarcação “Paz da Vida” contribuiu para o afundamento da mesma ao não cuidar de a manter a navegar durante a operação de reboque – cf. fls. 304. do III vol., do processo Apenso.
D) Os proprietários da embarcação “Paz da Vida” - José Carlos Camilo Anacleto e António Jorge Fernandes da Fonseca - intervieram espontaneamente na referida acção, a título principal, e demandaram igualmente os ora Requerentes pedindo a condenação dos RR. António e mulher Maria e da R. “Mútua de Seguros” – esta última nos termos das responsabilidades transferidas pelo contrato de seguro – no pagamento da quantia global de Esc. 47.086.770$00, acrescida de juros de mora vincendos desde a citação até integral pagamento – cf. fls. 347, do III vol, do processo Apenso.
Para tanto, os Intervenientes alegaram que, em resultado do naufrágio, perderam a embarcação “Paz da Vida”, segura pela “Fidelidade”, e sofreram, com tal facto, danos patrimoniais emergentes e lucros cessantes que não se encontravam cobertos por qualquer seguro e que ainda se encontram por indemnizar.
E) Os RR. responderam aos Intervenientes renovando as posições assumidas nas contestações anteriormente apresentadas.
F) Foi elaborado despacho saneador, com factos assentes (especificação) e base instrutória – cf. fls. 440 e segts. do III vol., do Apenso.
G) Designada data para realização de julgamento, no início da respectiva audiência foi determinada, no âmbito deste processo, a suspensão da instância até ser decidido o requerimento de constituição de um fundo de limitação de responsabilidade que entretanto dera entrada.
Foi também determinado pelo Tribunal “a quo” a apensação destes autos ao Processo ora em apreciação, com o nº 189/2003, do Tribunal Marítimo – cf. fls. 569, do IV vol., do Apenso.

5. Requerida a constituição de um fundo de limitação de responsabilidade no montante de 8.267,41 Euros, conforme se refere supra, no ponto 1), foi o referido pedido deferido com a constituição de um fundo de limitação no valor de 8.267,41 Euros, na modalidade de seguro-caução, a todos os Requerentes - conforme se refere em 2) – cf. fls. 65 e 74 do I vol. da Acção.

6. Inconformados com tal decisão, os Requeridos/Intervenientes Agravaram da decisão que constituiu o fundo de limitação de responsabilidade nesse valor – cf. fls. 89, do I vol., da Acção.

Formularam, em síntese, as seguintes conclusões:
1. A Convenção Internacional sobre Limite de Responsabilidade dos Proprietários de Navios de Alto Mar, integrada no direito português com a alteração ao nº 5 do art. 3º, quanto à forma de constituição de um fundo para navios com menos de 300 toneladas de arqueação, pelo Decreto-Lei nº. 49.028, de 26 de Maio de 1969, não é aplicável a navios costeiros em situações ocorridas dentro do mar territorial português, ou seja, dentro das doze milhas a contar da costa.
2. O conceito de Alto Mar é um conceito técnico-jurídico conforme resulta da parte VII e art. 86º da Convenção Internacional assinada em 1982, e em vigor internacionalmente partir de 16 de Novembro de 1994.
3. O mar territorial português conta-se pela distância de doze milhas a partir da costa, e só a massa de água oceânica a partir desta linha das doze milhas é Alto Mar.
4. A abalroação do “Paz da Vida” pelo “Meireles Novo” ocorreu cerca das sete milhas a partir de costa, ou seja, dentro do mar territorial português e fora do Alto Mar.
5. Ambos os navios são navios de pesca costeira, como resulta da sua própria identificação, nos termos do Decreto-Lei nº 287/87, de 7 de Julho e do Regulamento nº 43/87, de 17 de Julho, e apenas as embarcações de pesca do largo podem ser incluídas no conceito de navios de Alto Mar, por serem os únicos que, em condições normais, aí estão autorizadas a pescar.
6. O supra citado Decreto-Lei destina-se manifestamente a tornar mais justo para navios de passageiros, eventualmente veleiros, com pequena tonelagem, mas com carta de comando com permissão para navegação em Alto Mar, o disposto no nº 5 do art. 3° da Convenção, que os obrigaria a ter como referência para a constituição de um fundo o equivalente a 300 toneladas de arqueação.
7. Acresce ainda que, a constituição de um fundo não derroga o disposto nos arts. 492°, 665° e 666° do Código Comercial, ou seja, não se aplica a abalroamentos culposos ou duvidosos, mas apenas aos resultantes de casos fortuitos ou de força maior previstos no art. 664° do mesmo diploma.
8. No caso dos autos, o abalroamento ocorreu por culpa exclusiva do comando do navio “Meireles Novo”, que não só não cumpriu a alínea a), da regra 18, da Convenção sobre o Regulamento Internacional para Evitar Abalroamentos do Mar, como os deveres de vigilância e atenção, tendo a sua navegação desatenta e imprudente causado o abalroamento do “Paz da Vida”, que se encontrava fundeado e devidamente sinalizado, em zona habitual de pesca, pelo que o comando do “Meireles Novo” tinha consciência e conformou-se com a possibilidade de provocar um abalroamento.
9. Por outro lado, a Requerente Seguradora, ao celebrar contratos de seguro em que se responsabiliza pelo pagamento de danos provocados a terceiro pelo seu segurado, tendo cobrado os prémios de acordo com esse risco, renunciou à faculdade de constituição de fundo limitativo da responsabilidade, gerando no segurado a convicção de que satisfaria todas as indemnizações decorrentes de naufrágio por si provocados, e nos terceiros, bem como a convicção de que sempre seriam indemnizados pelo valor decorrente dos prejuízos por si sofridos.
10. Se a tal não tivesse renunciado, teria cobrado o prémio de acordo com a diminuição do risco do segurado e de fazer menção à possibilidade do uso de esse direito na apólice que titulou o contrato de seguro.
11. Pelo que o pedido de constituição de um fundo pela Requerente Seguradora, não previsto e afastado nos contratos de seguro que celebra, configura manifesto abuso de direito.
12. E assim, deve ser dado provimento ao agravo e, em consequência, declarar-se nula a decisão recorrida.
7. Foram apresentadas contra-alegações nas quais se conclui pedindo que seja negado provimento ao presente Agravo e onde se defende, em síntese, que a Convenção de Bruxelas, de 10 de Outubro de 1957, é aplicável ao caso sub judice, bem como a todos os navios de mar, seja qual for a actividade a que se dediquem e a área em que estejam autorizados a operar.

8. Foram admitidos os seguintes créditos reclamados (cf. fls. 146, do I vol.):
a) Companhia de Seguros Fidelidade, S.A. (fls. 2) – 171.885,75 Euros;
b) José Carlos Camilo Anacleto e António Jorge Fernandes da Fonseca (fls. 347) – 234.867,81 Euros.

9. Foi proferido o despacho de fls. 152, do 1º vol., a determinar o prosseguimento do processo Apenso nº 1/2002.

10. Seguiram-se outras diligências com a elaboração de prova pericial cujo relatório se mostra junto a fls. 359 e segts (cf. tb. fls. 306, do 2º vol.).

11. Realizada audiência de discussão e julgamento (com resposta aos quesitos a fls. 427, do 3º vol.) foi proferida sentença na qual o Tribunal “a quo” julgou:

1) Quanto ao abalroamento:
- que se verificou um problema grave no plano da vigilância visual e, secundariamente, no plano da velocidade;
- a distracção dos vigias da embarcação “Meireles Novo” não permitiu a detecção atempada da presença de uma embarcação fundeada com os faróis regulamentares;
- a partir de certo momento, mercê da referida distracção, a velocidade praticada por tal embarcação acabou por se revelar excessiva, porque não permitiu qualquer manobra para evitar o abalroamento quando os vigias se aperceberam da presença da embarcação “Paz da Vida” e da eminência da colisão;
- tal omissão dos vigias da “Meireles Novo” é manifestamente culposa por estar em causa a inobservância de regras de cuidado e de navegação que estavam especialmente obrigados a observar;
- o abalroamento não pode ser considerado fortuito porque houve uma conduta náutica ilícita e culposa da tripulação do “Meireles Novo” que conduziu directamente a esse abalroamento;
- assim, o respectivo armador responde pelos danos derivados dessa omissão nos termos em que o comitente responde pelos actos do comissário;
- estando em causa a colisão entre dois navios governados pelos respectivos mestres, não é aplicável ao caso a presunção legal de culpa, quanto ao mestre do “Meireles Novo”, por força do disposto no art. 5º do Decreto-Lei nº 384/99, de 23 de Setembro;
- não foi provada nenhuma actuação ilícita dolosa ou negligente do capitão da “Meireles Novo”;
- não há qualquer culpa imputável à embarcação “Paz da Vida” ou a qualquer outro navio, pelo que, tendo sido a abalroação causada por culpa exclusiva de um dos navios os prejuízos sofridos terão de ser suportados pelo navio abalroador – o “Meireles Novo”(art. 665º do Cod. Com.);
- o armador responde pelas faltas cometidas, quer sejam do capitão, quer da tripulação ou pelo próprio armador;
- a culpa do navio basta-se com a culpa da tripulação, emergindo então a responsabilidade objectiva do armador.

2) Quanto à responsabilidade:
- Em face do que antecede o Tribunal “a quo” decidiu que:
* o proprietário da embarcação “Meireles Novo” é responsável pelos prejuízos causados pela abalroação;
* havendo culpa do navio abalroador isso não significa que haja culpa pessoal do armador, porquanto:
- haverá culpa pessoal do armador, por exemplo, nas situações de falta de navegabilidade do navio;
- já não haverá culpa pessoal do armador nas situações em que as faltas sejam exclusivamente imputáveis à tripulação, ainda que o armador seja responsável pelas mesmas;
- a abalroação não resultou de culpa pessoal do proprietário da embarcação “Meireles Novo”.

E concluiu na sentença nos seguintes termos:
* assiste ao proprietário da “Meireles Novo” o direito de limitar a sua responsabilidade em relação aos pedidos de indemnização reclamados, nos termos em que já foi decidido na fase liminar da presente acção (art. 1º, nº 1, da Convenção Internacional sobre o Limite de Responsabilidade dos Proprietários de Navios de Alto Mar, assinada em Bruxelas, em 10 de Outubro de 1957);
* ao proprietário do navio não poderá deixar de ser equiparado o seu segurador quando lhe seja reclamado o pagamento de um crédito sujeito a limitação de responsabilidade, na medida em que o segurador tenderá a gozar dos mesmos privilégios de que dispõe o segurado perante o respectivo credor;
* a Requerente Seguradora “Mútua” não pode opor à credora “Fidelidade” a falta de cobertura do contrato de seguro celebrado por esta última com os proprietários da embarcação “Paz da Vida”, na medida em que não constitui matéria de defesa tudo o que se prenda com a forma do contrato, sendo interpretado ou executado pelas partes;
* acresce, a tudo isso, que houve inequivocamente lugar a uma sub-rogação de fonte voluntária, para além da sub-rogação legal prevista no art. 442º do Cod. Com. e art. 589º do CC.

3) Quanto ao fundo de limitação de responsabilidade:
- Atento o que antecede o Tribunal “a quo” procedeu, por fim, à repartição do fundo de limitação de responsabilidade constituído no montante de 8.267,41 Euros, e considerou como reconhecidos e verificados os seguintes créditos:
a) Seguradora “Fidelidade” : 154.826,87 Euros (70,18%)
b) José e António: 54.681,24 Euros (24,79%)
c) José A. : 7.070,00 Euros (3,20%).

12. Inconformados com as decisões proferidas nos autos, foram interpostos dois recursos de Apelação.
- um, pelos Requerentes António e L;
- outro, pelos Intervenientes José e António.

13. Primeiro recurso de Apelação:
Os Requerentes António e L Apelaram, não do mérito da sentença, mas do facto inserido no ponto 61) e dado como provado na resposta ao quesito 75º, por ser desfavorável aos Requerentes, podendo, segundo estes, acarretar até responsabilidade criminal.
Formularam, em síntese, as seguintes conclusões:
1. Resulta evidente que a sentença recorrida violou os princípios de valoração e da prova, concretamente quando considerou provado o quesito 75º e enunciou o correspondente facto como provado na sua fundamentação sob o nº 61, pois sobre os factos ali quesitados não foi feita prova bastante com o depoimento prestado pelas partes.
2. Sendo que o depoimento do réu António Novo foi no sentido do desconhecimento total do documento em crise e os depoimentos do interveniente José, além de inconsistente, não pode ser valorado no que aos factos quesitados sob o nº 75 concerne, por não lhe serem desfavoráveis.
3. Por outro lado, não pode servir como fundamentação positiva o depoimento prestado pelas testemunhas antes do aditamento do quesito 75º à base instrutória, por manifesta violação, entre outras, da regra do contraditório.
4. Pelo que, deve ser considerado como não provado o quesito 75º da base instrutória e, por consequência, excluído da fundamentação da sentença recorrida o facto dado como provado no ponto 61).
5. Foram, pois, violados os arts. 517º, 554º e 3º-A, todos do CPC.


14. Segundo recurso de Apelação:
Inconformados com a sentença, na parte em que admite a constituição de um fundo de limitação de responsabilidade no montante de 8.267,41 Euros, Apelaram José e António.
Tendo formulado, em síntese, as seguintes conclusões:
1. A repartição dos danos sofridos pelos Apelantes limitando a responsabilidade dos Réus nos termos da Convenção Internacional sobre Limite de Responsabilidade dos Proprietários de Navios de Alto Mar, concluída em Bruxelas em 10 de Outubro de 1957, é ilegal.
2. A citada Convenção, e consequentemente os demais diplomas, é aplicável, apenas, a navios de alto mar, e a embarcação “Meireles Novo”, propriedade dos Réus armadores, como consta da sua identificação e como se identificou no recurso de Agravo, é uma embarcação costeira, tal como a embarcação “Paz da Vida”, propriedade dos Apelantes.
3. Também, e à cautela, se afirma que, como consta dos autos e pelas respectivas coordenadas, o evento ocorreu na zona costeira e não no alto mar, pelo que nem uma interpretação referente ao local do evento a tornaria aplicável ao caso dos autos.
4. Resulta dos diplomas citados que a Convenção, além de só prever navios de alto mar, previu apenas navios de passageiros e não navios de pesca como as duas embarcações a que estes autos se reportam, pelo que não se mostra aqui aplicável.
5. Entendem também os Apelantes que a citada Convenção de Bruxelas, de 10 de Outubro de 1957 e o Protocolo de 21 de Dezembro de 1979 não se encontram em vigor, não tendo sido ratificadas pelo Estado Português.
6. Também a referida Convenção apenas abrange, para efeitos de limitação, morte, lesão corporal ou danos causados por pessoas por quem o proprietário do navio seja responsável (al. b) do nº 1 do art. 1º) e o abalroamento foi provocado por negligência de um tripulante do navio, sendo que o responsável pela tripulação não é o proprietário do navio mas o capitão nos termos dos arts 496° a 498° do Código Comercial.
7. Aliás, mesmo que se admitisse, e não se admite, a aplicação da Convenção de Bruxelas tais diplomas, no contexto citado, seriam inconstitucionais por violação do art. 62° da Constituição da República Portuguesa, que garante o direito à propriedade privada e a justa indemnização por sua perda por culpa de terceiros, bem assim como por violação dos arts 58º e 59° da Constituição, que garantem o direito ao trabalho e, consequentemente, a justa indemnização por ofensa a esse direito por actuação culposa de terceiro, e, como tal, não seriam aplicáveis no direito interno português.
8. Tratar-se-ia de uma consequência excessiva, fazendo correr o credor um risco desproporcionado.
9. A sentença recorrida, ao reduzir, por aplicação da constituição de um fundo de limitação da responsabilidade, o direito de os lesados serem ressarcidos pelos prejuízos que sofreram, reduzindo a cerca de 4% (dir-se-á a nada) o reembolso, ofende manifestamente os 1imites de boa fé e bons costumes e o fim social e económico desse direito, o que constitui abuso de direito.
10. Pelo exposto, deve ser revogada a sentença no que se reporta à constituição de um fundo de limitação de responsabilidade dos Réus e à distribuição desse fundo nos termos dela constantes, devendo os Réus ser condenados a pagar à Autora e aos Apelantes os danos provados na sentença, quer os liquidados, quer os a liquidar em execução de sentença.

15. Foram apresentadas contra-alegações nos termos que constam de fls. 594 e segts.

16. Corridos os Vistos legais,
Cumpre Apreciar e Decidir.

II - Os Factos:
- Mostram-se provados os seguintes factos:
1. A A. Companhia de Seguros Fidelidade – Mundial, SA. é uma empresa de seguros, dedicando-se ao exercício da actividade industrial de seguros (A).
2. Em 12 de Janeiro de 2001, a propriedade da embarcação de pesca costeira “Paz da Vida” PE-99-C – com 27,30 toneladas de arqueação bruta, 17,94 metros de comprimento fora a fora, 4,64 metros de boca e casco em madeira – encontrava-se registada a favor dos intervenientes José e A, na Conservatória do Registo Comercial de Peniche.
3. Em 10 de Novembro de 2000, por referência à referida embarcação, a A. Companhia de Seguros Fidelidade (Mundial), SA e os intervenientes José e António subscreveram o "contrato de seguro do ramo marítimo cascos e responsabilidades" que se encontra titulado pela apólice n.º 70/7015289 e respectivas condições gerais e especiais (cujas cópias constam a fls. 10-14 e 67-72 dos autos e cujo conteúdo se considera aqui integralmente reproduzido – a apólice em questão apresenta o seguinte teor relevante “(…) capitais garantidos (…) capital total embarcação: PTE 31.040.000,00 (…).) (C).
4. Em 12 de Janeiro de 2001, a propriedade da embarcação de pesca costeira “Meireles Novo” PE-2240-C – com 123,30 toneladas de arqueação bruta, 23 metros de comprimento fora a fora, 6 metros de boca e casco em aço – encontrava-se registada na Capitania do Porto de Peniche a favor do R. António (K).
5. Em 31 de Julho de 1998, por referência à referida embarcação, a R. “Mútua dos Pescadores – Sociedade Mútua de Seguros” e o R. António subscreveram o "contrato de seguro do ramo marítimo cascos e responsabilidades" que se encontra titulado pela apólice n.º 25779 e respectivas condições gerais e particulares (cujas cópias constam a fls. 287-301 dos autos e cujo conteúdo se considera aqui integralmente reproduzido) (M).
6. Em Janeiro de 2001, a embarcação “Paz da Vida” encontrava-se em boas condições de navegabilidade (tendo-lhe sido atribuído o certificado de navegabilidade n.º 62/2000, datado de 26 de Julho de 2000, emitido pela Capitania do Porto de Lisboa).
7. A referida embarcação navegava então sob o comando do interveniente José Anacleto – inscrito com a categoria de mestre costeiro na Capitania do Porto de Peniche sob o n.º 8127 – que levava consigo mais seis tripulantes (E)
8. Cerca das 23 horas, do dia 11 de Janeiro de 2001, a embarcação “Paz da Vida” fundeou na posição 39° 08’ N e 009° 32' W.
9. Após ter fundeado, tendo para o efeito lançado um ferro com corrente e passado duas espias pelos escovéns, o mestre da “Paz da Vida” desligou os faróis de navegação e acendeu o farol de fundeado no topo do mastro de vante e o farol de iluminação do convés e distribuiu o pessoal por quartos de vigia que fixou (Q1 e Q2).
10. Cerca das 3 horas e 50 minutos, o vigia Luís avistou por estibordo a embarcação “Meireles Novo”, rumo à “Paz da Vida”, mostrando ambos os faróis de borda (Q3).
11. Embora a “Paz da Vida” estivesse a mais de 6 milhas da costa, era possível ver as luzes de terra (Q39)
12. Chamado imediatamente o mestre da “Paz da Vida”, que se dirigiu para a casa do leme, este accionou uma luz rotativa denominada "farol de relâmpagos", situada no topo da casa do leme e um projector manual de busca, mantendo acesos os faróis referidos em 9) e, ao mesmo tempo, deu instruções ao vigia para que acordasse o pessoal que descansava e chamasse o motorista para que este arrancasse imediatamente com a máquina principal (Q4 e Q5).
13. Atenta a sua estrutura em aço, a embarcação “Meireles Novo” produz um sinal maior nos radares que as outras embarcações em madeira com a mesma superfície exposta (Q30).
14. Uma vez que se encontrava imobilizada, era melhor a visibilidade da “Paz da Vida” do que a da “Meireles Novo” (Q31).
15. A rota da “Meireles Novo” não foi desviada (Q41).
16. A manobra mais adequada para evitar a colisão seria o desvio da rota e não "dar à ré com toda a força" (Q42).
17. O desvio da rota da “Meireles Novo” podia ser feito em poucos segundos e, dadas as dimensões da “Paz da Vida”, uma distância de menos de 50 metros seria suficiente para aquela passar ao lado (Q44),
18. O desvio em questão podia ser feito em cerca de 20 segundos e a uma distância de cerca de 46 metros (Q44).
19. O vigia e depois o mestre da “Paz da Vida” convenceram-se, durante alguns minutos, de que a outra embarcação iria desviar a rota (Q45).
20. Como a embarcação “Meireles Novo” prosseguisse na sua rota em direcção à “Paz da Vida”, e estando iminente o embate, o mestre desta saltou para o convés da embarcação à popa, onde procurou libertar as bóias de salvação (Q6).
21. E, por isso, quando a colisão se deu, ainda o motorista da “Paz da Vida” tentava pôr em marcha o motor (Q46).
22. Cerca das 4 horas do dia 12 de Janeiro de 2001, na referida posição, a embarcação “Meireles Novo”, que então navegava à velocidade de 7 nós/hora, embateu na “Paz da Vida” (G).
23. A embarcação “Meireles Novo” embateu com a respectiva proa na secção média de estibordo da “Paz da Vida”, tendo esta, em consequência da colisão, perdido a casa do leme (H).
24. O mestre da “Paz da Vida” saltou para o varandim da “Meireles Novo” pela amura de BB, enquanto esta ainda se encontrava encanteirada sobre a “Paz da Vida” (Q14).
25. O mestre da “Paz da Vida” foi o primeiro de todos os tripulantes a sair da embarcação, sem ter avaliado completamente em que estado é que a mesma se encontrava e das eventuais possibilidades de salvamento que oferecia (Q15).
26. Os seis tripulantes restantes abandonaram de seguida a “Paz da Vida” para uma jangada pneumática, sendo posteriormente recolhidos pela “Meireles Novo” (Q16).
27. O mestre da “Paz da Vida” não chegou a ligar o motor principal até ao abalroamento (Q33).
28. Após o embate, a “Paz da Vida” ficou sem energia eléctrica e completamente às escuras (Q37).
29. O R. Lázaro Novo comandava a embarcação “Meireles Novo” sob as ordens e no interesse efectivo dos RR. António e Maria (L).
30. No momento que precedeu o abalroamento e quando este se deu, fazia-se sentir vaga suportada por ondulação de oeste, de 3 a 4 metros, e vento dos quadrantes oeste fresco a muito fresco (Q17).
31.As condições de tempo e mar não eram impeditivas de que o mestre da “Meireles Novo” fizesse rumo (Q7).
32. Próximo das 4 horas do dia 12 de Janeiro de 2001, o mestre, que descansava no seu camarote aberto directamente para a ponte, foi chamado de urgência por um dos vigias de quarto (Q11).
33. Foi então o mestre informado pelo vigia de que estavam na iminência de colidir com outra embarcação que se apresentava muito próxima na proa e que emitia sinais luminosos com um projector (QI2).
34. O mestre levantou-se logo e correu para a ponte (Q13).
35. A embarcação “Meireles Novo”:
a) estava equipada com tripulação conforme com o respectivo Certificado de Lotação e Segurança;
b) navegava com o radar de EB ligado, operando na escala das 6 milhas;
c) tinha ligado os transmissores/receptores de HF e VHF e toda a restante aparelhagem e equipamento se encontravam em perfeitas condições de operacionalidade;
d) e mantinha dois vigias na ponte, os pescadores João Vareiro e José Vareiro (Q25).
36. Por referência à embarcação “Meireles Novo”, a Delegação Marítima de Sesimbra emitiu o certificado de navegabilidade n.º 66/2000, datado de 28 de Agosto de 2000 (cuja cópia consta a fls. 153 e cujo conteúdo se considera aqui integralmente reproduzido) (N)
37. A embarcação “Paz da Vida” acabou por se afundar após ter sido rebocada durante algum tempo pela embarcação “Meireles Novo”.
38. Durante o período em que foi rebocada, a “Paz da Vida”, ainda que exposta ao mar atravessado por BB, comportou-se aparentemente bem e não apresentou sinais de afundamento iminente (Q19).
39. O afundamento deu-se pelas 8.17 horas, na posição GPS 39º 11’.308 N e 09º 30'. 454 W (Q22).
40. Antes do afundamento, a “Paz da Vida” sofreu uma volta de mar que a inclinou toda para BB, começando a submergir de alheta, ficando com o bico da proa de fora, até se afundar completamente (Q24).
41. Para além da embarcação “Paz da Vida”, os intervenientes José e António perderam todos os equipamentos e artes, bens de tripulantes, gasóleo, óleo e pescado (Q47).
42. À data do sinistro, a “Paz da Vida” tinha a bordo 7 caças de redes de emalhar, cada uma com 30 redes, de valor não apurado, e ainda 1.000 covos com o valor global de 8.000.000$00, encontrando-se estes fundeados para a pesca (Q48).
43. Foi efectuada uma rocega para recuperar os covos com autorização do R. António Novo, tendo a embarcação "Carlina" recuperado 464 covos (Q49).
44. Os intervenientes gastaram a quantia de 600.000$00 com a realização da rocega (Q50).
45. Os sete tripulantes da “Paz da Vida” perderam haveres (colchão, roupa de cama, vestuário, roupas de oleado e botas, baús, telemóveis e relógios) com o valor médio individual de 100.000$00 (Q51)
46. Aquando do naufrágio, a embarcação tinha cerca de 400 litros de óleo e 4.000 litros de gasóleo (Q52 e Q53).
47. Estavam a bordo 20 caixas destinadas a isco (Q55).
48. A embarcação perdeu as capturas que teria feito nessa viagem e que lhe proporcionariam um ganho de 300,00 Euros (Q56).
49. E perdeu o interveniente José desse produto cerca de € 70,00, correspondente a 2 quinhões, e o Interveniente António Fonseca cerca de € 35,00 correspondente a um quinhão (Q57).
50. Para a construção de nova embarcação destinada a substituir a que se afundou, os Intervenientes foram forçados a uma paralisação que durou, pelo menos, cerca de um ano (Q58).
51. Na viagem que antecedeu o afundamento dos autos, a “Paz da Vida” registou capturas cuja venda permitiu obter um produto bruto de 377.852$00 (Q60).
52.Deste produto bruto resultou, retiradas as despesas da viagem, segurança social e seguro de acidentes de trabalho, o montante de 320.000$00 (Q61).
53.De acordo com os costumes de Peniche para este tipo de embarcações, 50% daquele valor líquido cabe à armação, e o restante é para os quinhões (Q62).
54.Ainda de acordo com tais costumes, os quinhões são estabelecidos da seguinte forma:
a) mestre — 2 ;
b) motorista — 1,5 ;
c) cada um dos restantes tripulantes — 1 (Q63).
55. A lotação da embarcação “Paz da Vida” é de 7 tripulantes, incluindo o mestre (Q64).
56. Durante o ano de 2000, a embarcação “Paz da Vida” realizou 104 marés (Q65).
57. O Interveniente António era tripulante da “Paz da Vida” (Q66).
58. Mercê da aludida paralisação, os Intervenientes José Anacleto e António Fonseca, na qualidade de armadores, deixaram de auferir cerca de € 30.000,00 (Q67).
59. E também durante esse período de paralisação, pela perda dos quinhões pessoais, nas viagens não efectuadas, o interveniente José Anacleto sofreu um prejuízo de cerca de 7.000,00 Euros e o interveniente António Fonseca sofreu um prejuízo de cerca de E 3.500,00 Euros (Q70 e Q71).
60. A A. pagou o montante de PTE 34.460.000,00 aos Intervenientes a título de "indemnização relativa à perda total da embarcação segura “Paz da Vida” (o recibo cuja cópia consta a fls. 73 dos autos, e cujo conteúdo não foi impugnado, contém ainda a seguinte declaração dos Intervenientes: “(…) pelo recebimento desta importância nos damos por completamente indemnizados, pagos e satisfeitos e sem direito a qualquer posterior reclamação no âmbito deste processo de sinistro, subrogando a Companhia de Seguros Fidelidade, S.A., em todos os direitos, acções ou recursos (…)” (J).
(As circunstâncias de facto que integram o pontos 61) - e que dizem respeito aos protestos de mar apresentados pelo Réu Lázaro Meireles Novo - foram objecto de recurso de Apelação, pelo que sobre tal matéria nos pronunciaremos posteriormente, no local próprio).

62.O Interveniente José subscreveu e apresentou o protesto de mar — cuja cópia certificada consta de fls. 269 dos autos apensados (datado de 11/01/2001) e cujo conteúdo se considera aqui integralmente reproduzido — junto da Capitania do Porto de Peniche - sabendo que o mesmo não correspondia à verdade na parte em que se escreveu "(…) o espaço de tempo compreendido entre o avistamento do barco “Meireles Novo” e a colisão é um espaço de tempo muito curto porque na altura precisa estava muita chuva (…) as condições de tempo eram de visibilidade bastante reduzida (...) chovia bastante e pouca visibilidade (...)" (Q76).
II – Enquadramento Jurídico:

A) Quanto ao Agravo:
O Agravo foi interposto pelos Requeridos/Intervenientes da decisão proferida pelo Tribunal “a quo” que deferiu o pedido de constituição de um fundo de limitação de responsabilidade no valor de 8.267,41 Euros, nos termos que constam do I vol., da Acção nº 189/2003, a fls. 65 e 74.
São suscitadas diversas questões jurídicas, algumas das quais foram posteriormente retomadas no âmbito do recurso de Apelação interposto pelos mesmos Intervenientes.
Impõe-se, pois, saber, nomeadamente se:
1ª - A Convenção de Bruxelas é ou não aplicável ao caso concreto;
2ª - A constituição de um fundo de responsabilidade apenas é aplicável a casos fortuitos ou de força maior e não a abalroamentos culposos;
3ª - A Seguradora “Mútua” ao celebrar o contrato de seguro renunciou à faculdade de constituição de um fundo limitativo de responsabilidade;
4ª - Existe ou não abuso de direito.

Desde já se adianta que o tratamento jurídico das questões assinaladas não se afigura fácil, não só por se tratar de matéria pouco corrente, como também pelo facto de não ter sido possível encontrar doutrina e jurisprudência recentes que permitissem, quiçá, um maior aprofundamento jurídico e mais actualizado de tais questões.
Pese embora tal facto, sempre diremos que:

1ª - A Convenção de Bruxelas:
1.1. A sentença recorrida deferiu o pedido de constituição de um fundo de limitação de responsabilidade fundando-se no art. 1º, nº 1, alíneas a) e b) da Convenção de Bruxelas.
Insurgem-se os Agravantes argumentando que tal Convenção não tem aplicação ao caso sub judice.
Apreciando e Decidindo.

1.2. A denominada “Convenção de Bruxelas” trata-se de uma Convenção Internacional Sobre o Limite de Responsabilidade dos Proprietários dos Navios de Alto Mar, concluída em Bruxelas, em 10 de Outubro de 1957, cujo texto se encontra vertido no Decreto-Lei nº 48.036, de 14 de Novembro de 1967. (1)
Segundo o art. 1º da Convenção, o proprietário de um navio de alto mar pode limitar a sua responsabilidade em relação aos pedidos de indemnização resultantes de qualquer uma das seguintes causas (2) :
- perdas ou danos de quaisquer bens a bordo do navio;
- ou perdas ou danos de quaisquer outros bens ou infracções a quaisquer direitos causados pela acção, negligência ou dolo de qualquer pessoa a bordo do navio, por quem o proprietário seja responsável, desde que, neste último caso, a acção, negligência ou dolo se refiram à navegação ou à administração do navio ou ao carregamento, transporte ou descarregamento da sua carga, ou ao embarque, transporte ou desembarque dos passageiros.

1.3. Através deste diploma legal foi a Convenção aprovada, para ratificação, com as reservas previstas nas alíneas a), b) e c), do nº 2 do Protocolo de Assinatura.
Reservas essas que incidem unicamente sobre as seguintes questões:
a) sobre o direito do Estado Português excluir a aplicação do art. 1º, parágrafo 1), alínea c) - sobre remoção de destroços;
b) sobre o direito de regular pela lei nacional o sistema de limitação de responsabilidade aplicável aos navios com menos de 300 t (toneladas) de arqueação;
c) sobre o direito de dar aplicação à referida Convenção, quer dando-lhe força de lei, quer fazendo incluir na legislação nacional as disposições da presente Convenção sob a forma apropriada a essa legislação.

Só tais reservas é que se mostram previstas e aceites pelo Estado Português.

Para firmar a vigência no direito interno da Convenção de Bruxelas, impunha-se atribuir-lhe força de lei. O que foi feito pelo Decreto-Lei nº 49.028, de 26 de Maio de 1969, tendo passado, então, a vigorar, como direito interno português.
Por sua vez, no Decreto nº 49.029, da mesma data, aprovou-se o Regulamento de Processo de Execução da Convenção, estabelecendo-se a tramitação processual para a constituição de um fundo de limitação de responsabilidade dos proprietários dos respectivos navios.

Estatuiu-se, porém, no art. 4º da Convenção, na versão inserida no Decreto-Lei nº 48.036, de 14 de Novembro de 1967, a seguinte excepção:
- as normas relativas à constituição e repartição de um fundo de limitação, se as houver, e todas as normas de processo, devem ser determinadas pela lei nacional do Estado em que o fundo for constituído.

1.4. No caso concreto sabe-se, porque se provou, que:
- os dois navios – “Paz da Vida” e “Meireles Novo” – são navios portugueses;
- o “acidente” ocorreu a 6 milhas da costa (facto nº 11);
- o abalroamento deu-se quando a embarcação “Paz da Vida” se encontrava imobilizada (factos nºs 8, 9, 12 e 14);
- foi a embarcação “Meireles Novo” que embateu na “Paz da Vida”, não tendo desviado o rumo, nem conseguido evitar o abalroamento (factos nºs 15 a 19, 30, 31, 32 a 35);
- tratam-se, ambas, de embarcações de pesca costeira (factos nº 2 e 4).

De uma análise à factualidade dada como provada pelo Tribunal “a quo” pode dizer-se que resulta, do caso concreto, a verificação de um abalroamento entre as duas embarcações, entendendo-se conceptualmente como tal a colisão registada entre dois ou mais navios ou embarcações.
Abalroamento entre as referidas embarcações registadas como portuguesas e ocorrido a seis milhas da costa.
Destarte, coloca-se de imediato a questão de saber quais as normas aplicáveis:
- as inseridas na Convenção Internacional de Bruxelas?
- ou as previstas em lei nacional?

1.5. A este propósito não pode deixar de se ter presente, para além das reservas aceites relativamente à Convenção, o preceituado no seu art. 12º nº 2, na sua versão inicial.
Aí se estabelece, expressis verbis, que, quando todos os interessados, bem como o Tribunal que houver de julgar o feito, pertencerem a um mesmo Estado, será a lei nacional, e não a convenção, que terá de ser aplicada.
O que bem se compreende.
Estando em causa elementos oriundos da mesma nacionalidade e ocorridos no mesmo espaço e sob a mesma jurisdição nacional, não se vislumbram razões que justifiquem, em tais circunstâncias, o recurso de per si e único a um instrumento jurídico Internacional, vertido no direito interno.
À luz de tal normativo dir-se-à que a aplicação da Convenção só fará sentido quando o litígio envolva interessados de nacionalidades diferentes e, por consequência, sujeitos a leis nacionais também diferentes. Caso em que, para se evitar a prolação de conflitos de leis, com eventuais conteúdos divergentes, se impõe a aplicação da própria Convenção.
E se em tal circunstância se compreende e mostra imperiosa a observância da Convenção, na sua aplicação tout court, já a mesma justificação não parece ajustar-se, por si só, quando os interessados e o Tribunal que será chamado a dirimir o conflito pertencerem ao mesmo Estado, como acontece, por exemplo, no caso sub judice.
Sob pena de ficarem igualmente destituídos de valor e alcance jurídicos os seguintes princípios inseridos na ordem jurídica portuguesa:
- os arts. 65º, 66º e 79º do CPC;
- o art. 45º, nº 1, do CC;
- bem como os arts. 664º e segts do Código Comercial, que versam especificamente sobre a navegação marítima e a ocorrência de abalroamentos de navios, matéria também regulada in extenso pelos Decretos-Leis nº 202/98, de 10 de Julho e nº 384/99, de 23 de Setembro.

Sendo certo que no Código Comercial se estabelece qual a lei reguladora das questões de abalroação, estatuindo-se expressis verbis que:
“As questões sobre abalroação regulam-se:
1º Nos portos e águas territoriais, pela respectiva lei local;
2º No mar alto, entre navios da mesma nacionalidade, pela lei da sua nação.”

Donde, ser possível concluir que:
- Em matéria de abalroação de navios é a lei portuguesa, e não a Convenção de Bruxelas a aplicável, quando todos os interessados, bem como o Tribunal que houver de julgar o facto, forem dessa nacionalidade.

Em igual sentido se pronunciaram a sentença de 13/10/1980, publicada in CJ/1980, T.4, pág. 294 e segts, e o Ac. da Relação de Coimbra de 24/01/1984, in CJ., T.1, pág. 45 (3).
Porém, a inaplicabilidade da Convenção de Bruxelas nos casos agora unicamente assinalados não conduz, como mais adiante se verá, às conclusões pretendidas pelos Agravantes no presente recurso de Agravo.

2ª - Quanto à constituição de um fundo de responsabilidade:
2.1. Sobre esta matéria invocam os Agravantes que a constituição de um fundo de responsabilidade não se aplica a abalroamentos culposos mas apenas a casos fortuitos ou de força maior previstos no art. 664º do Cód. Comercial.
Embora os Agravantes não coloquem em causa as conclusões a que se chegou na sentença recorrida, nomeadamente na parte em que se decidiu que o abalroamento se ficou a dever à inobservância de regras de navegação e que a responsabilidade pela colisão deve ser assacada ao comando do navio “Meireles Novo”, pela violação dos deveres de vigilância e atenção a que estava adstrito,
Defendem, contudo, que a constituição de um fundo não pode ter lugar em tais circunstâncias, mas tão só em casos fortuitos ou de força maior previstos no art. 664º do Cód. Comercial.
Vejamos.

2.2. Conforme se salientou em ponto anterior, a lei portuguesa regula expressamente a matéria de abalroação de navios no Código Comercial.
Ora, de acordo com o preceituado nos arts. 664º e segts do Cód. Comercial, a abalroação pode ser:
a) sem culpa – por acidente puramente fortuito ou devido a força maior – cf. art. 664º do Cód. Com.;
b) por culpa – quando causada por culpa de um dos navios, de ambos ou de terceiro – arts. 665º a 667º do Cod. Com.;
c) e duvidosa – quando existem dúvidas sobre qual dos navios deu causa à abalroação - art. 668º do Cód. Com.

A situação descrita em primeiro lugar – abalroamento resultante de casos fortuitos ou de força maior – conforme decorre dos autos, e os próprios Agravantes aceitam, não constitui, de todo, o caso em apreço. E só para essa circunstância é que a lei prevê a inexistência de direito a indemnização, por força do preceituado no art. 664º do Cód. Com.

Porém, o abalroamento em análise ocorreu por culpa exclusiva do comando do navio “Meireles Novo”, conforme se decidiu na sentença recorrida e os próprios Agravantes defendem.
Assim sendo, estabelece expressamente o art. 665º do Cód. Comercial, que, sendo a abalroação causada por culpa exclusiva de um dos navios, os prejuízos sofridos serão suportados necessariamente pelo navio abalroador.
Ou seja, in casu, pelo “Meireles Novo”.

Nem outra poderia ser a conclusão em termos de consequência jurídica pela prática de condutas ilícitas e culposas.
Como é sabido, a culpa é a imputação de um acto ilícito ao seu autor e traduz-se na consideração de que ao agente cumpria ter-se abstido desse acto; em sentido restrito, a culpa traduz-se na omissão da diligência exigível, sendo o nexo de imputação ético-jurídico que liga o facto à vontade do agente.
E a mera culpa ou negligência consiste na omissão da diligência exigível do agente, na omissão de um dever de diligência (4) em que o autor, por desleixo ou incúria, não toma as providências necessárias para evitar o acto, v.g., a violação de regras inseridas em regulamentos de navegação.
E a matéria de facto provada aponta, de forma inquestionável, para a conclusão de que foram infringidas tais regras pelo navio “Meireles Novo”. (5)

Aqui chegados, a questão que agora se coloca é a de saber se, tendo o abalroamento sido ocasionado por culpa de um dos navios, existem impedimentos legais para a constituição do respectivo fundo de limitação de responsabilidade.

2.3. Em ponto anterior, sobre a aplicação da Convenção de Bruxelas e as Reservas formuladas pelo Estado Português aquando da sua assinatura, referimos então que Portugal consignou como reserva o direito de fazer incluir na legislação nacional as disposições de tal Convenção sob a forma apropriada a essa legislação.
Certamente por tal facto, e também pela necessidade de regulamentar uma área que à face da citada Convenção Internacional se mostrava de inestimável valor, bem como proceder à unificação do direito marítimo em tal matéria, cuidou então o legislador português de aprovar, posteriormente, alguns diplomas instituindo regras relativas à segurança da navegação, aos tripulantes e seus passageiros, caracterizou a figura do capitão, consagrou um conjunto de novos conceitos e regimes jurídicos e procedeu à alteração do regime de responsabilidade anteriormente existente.
Quiçá mais sensibilizado pela época que se atravessava centrada na preocupação Nacional à volta da Expo, realizada em Lisboa, e da comemoração do Ano Internacional dos Oceanos. (6)
É neste contexto que são publicados, nomeadamente, os Decretos-Leis nº 202/98, de 10 de Julho, e o Dec. Lei nº 384/99, de 23 de Setembro.

2.4. Ressalta claramente do primeiro desses diplomas legais - Decreto-Lei nº 202/98, de 10 de Julho – o objectivo que presidiu à sua criação: o de responder adequadamente às exigências de uma realidade jurídica interna numa matéria regulada internacionalmente, mas com um vazio legislativo, em que se impunha uma “prevalência de soluções que melhor sirvam os interesses de Portugal”. (7)
E é assim que aparece logo no seu art. 1º a noção legal de “fundo de limitação de responsabilidade”, definindo-a o legislador como o montante global a que o proprietário de um navio pode limitar a sua responsabilidade por danos causados a terceiros – cf. sua alínea h).
Prevendo-se igualmente limites da responsabilidade do proprietário com vista à constituição de um fundo de limitação de responsabilidade, nos termos do seu art. 12º, bem como o processo e declaração de constituição desse fundo, nos normativos seguintes.
Estabelece-se, ainda, a responsabilidade do proprietário armador do navio pelos danos derivados de actos e omissões praticados quer pelo capitão ou tripulação, quer por qualquer pessoa ao serviço do navio – cf. art. 4º.
Assim sendo, e tendo a abalroação sido causada por omissão ilícita e culposa dos tripulantes do navio “Meireles Novo”, o respectivo proprietário armador terá de responder pelos danos derivados dessa omissão.
Ou seja: o proprietário do navio “Meireles Novo” é responsável pelos prejuízos causados pela abalroação.
Neste sentido decidiu a primeira instância, cuja fundamentação subscrevemos, nesta parte, inteiramente.
E conforme decorre do citado art. 12º, tem o proprietário do navio o direito de poder limitar a sua responsabilidade através da constituição de um fundo de limitação da responsabilidade.

2.5 Com efeito, o próprio art. 12º do Decreto-Lei nº 202/98, de 10 de Julho, para além de prever esses limites da responsabilidade do proprietário, remete também, nesta matéria, para os tratados e convenções internacionais vigentes em Portugal.
Por conseguinte, essa limitação de responsabilidade é acolhida pelo art. 12º por via directa e por remissão expressa para os tratados internacionais. O mesmo é dizer, para a citada Convenção de Bruxelas.
Ora, estando em causa nos autos danos patrimoniais emergentes do abalroamento e lucros cessantes causados pela colisão verificada entre os dois navios, daqui deriva que, à luz do art. 1º da Convenção de Bruxelas, de 10 de Outubro de 1957, ex vi art. 12º do Decreto-Lei nº 202/98, de 10 de Julho, pode o proprietário do navio limitar a sua responsabilidade nos termos aí previstos – cf. alíneas a) e b) do art. 1º e arts. 3º da Convenção.

Por fim, dir-se-à, também, que a referência explícita dos Recorrentes ao art. 492º do Cód. Com. não tem razão de ser, porquanto tal norma foi revogada expressamente pelo art. 20º do Decreto-Lei nº 202/98, de 10 de Julho, encontrando-se actualmente regulado, por este diploma, o regime jurídico da responsabilidade do proprietário do navio
O mesmo se diga da pretendida aplicação dos arts. 496º a 498º do Cód. Comercial, igualmente revogados pelo Decreto-Lei nº 384/99, de 23 de Setembro, conforme decorre do seu art. 18º.

2.6. Quanto à problemática em redor do conceito de navio e o que se deve entender como tal para efeitos de subsunção à Convenção de Bruxelas, atente-se que o citado diploma define “navio” como o engenho flutuante destinado à navegação por água sem qualquer outra restrição – cf. seu art. 1º, alínea a).
Podendo, igualmente, e antes da publicação do Decreto-Lei nº 202/98, ver-se vertido o respectivo conceito, muito mais alargado, no Acórdão da Relação de Lisboa, de 2 de Abril de 1992, no qual se decidiu que navio é todo o engenho flutuante sujeito aos riscos do mar, independentemente da sua dimensão e denominação, incluindo-se, no referido conceito, também as embarcações de pesca costeira.
Acórdão para cuja fundamentação se remete, nesta parte, uma vez que sufragamos igual entendimento, dispensando-nos de reproduzir tal argumentação.

Destarte, quer o navio “Meireles Novo”, quer o “Paz da Vida”, não podem deixar de ser considerados navios de mar, uma vez que estão autorizados e têm aptidão para navegar no mar, independentemente de serem ou não uma embarcação de pesca e da zona marítima em que circulem.

2.7. Em face do exposto, é possível concluir que:
1 - O legislador nacional, aquando da elaboração do direito interno, teve em atenção as regras inseridas na Convenção de Bruxelas de 1957, conforme fui do Decreto-Lei nº 202/98, de 10 de Julho, maxime do seu art. 12º.
2 – Tendo o legislador estendido, por força do preceituado no art. 12º do citado Decreto-Lei nº 202/98, o regime jurídico de limitação de responsabilidade do proprietário do navio aos casos aí previstos, incluindo os contemplados pelas normas de Convenções Internacionais (a de Bruxelas) vigentes em Portugal.
3 – Assim sendo, e ao abrigo de tais normativos, é admissível a constituição de um fundo de limitação de responsabilidade.

2.8. Improcede, pois, nesta parte, e pelas razões expostas, o presente Agravo.

3. Quanto ao contrato de seguro e seus limites:
3.1. Tendo sido celebrado contrato de seguro, nenhum obstáculo existe para que a seguradora do proprietário do navio que requeira o fundo de limitação de responsabilidade goze dos mesmos privilégios de que dispõe o segurado perante o respectivo credor. (8)
Até porque a responsabilidade da seguradora não pode ultrapassar a medida de responsabilidade do segurado. E se a lei faculta ao segurado a limitação da sua responsabilidade, dessa prerrogativa pode prevalecer-se a seguradora. A seguradora só pode responder, até aos limites estipulados pelo contrato de seguro, mas nos termos em que o segurado o tiver que satisfazer.

3.2. Alegam, porém, os Agravantes que a Seguradora Mútua, ao celebrar o contrato de seguro, renunciou à faculdade de constituição de um fundo limitativo de responsabilidade, nomeadamente porque gerou no segurado a convicção de que satisfaria todas as indemnizações decorrentes do abalroamento por si provocados e nos terceiros.
Argumentação que não procede.

Com efeito, no âmbito do direito marítimo sempre foi entendido que a navegação de navios se qualifica como uma actividade perigosa, pelo risco que comporta de colisão com outros navios ou até objectos que flutuem no mar, de abalroamento e de afundamento com trágicas consequências. (9)
Por isso mesmo é pormenorizadamente regulamentada a sua forma de navegação.
Riscos acrescidos pelos valores que uma circulação desta natureza envolve e pelos prejuízos resultantes dessa actividade acidental ou trágica – com preços bastante elevados relativamente ao valor dos próprios navios, à mercadoria que transportam, etc. Basta imaginar, por exemplo, em caso de afundamento do navio, os prejuízos daí decorrentes e as verbas necessárias para satisfazer o pagamento de indemnizações pela perda, quer de pessoas, quer de bens.
Daí a necessidade de fixação de limites a nível de responsabilidade por danos causados a terceiros e a razão de ser, em nosso entender, de um fundo com tal natureza.
E a limitação dessa responsabilidade assiste igualmente à seguradora do proprietário do navio, já que, como se disse, a responsabilidade da seguradora não pode ultrapassar a responsabilidade do segurado. (10)
Sendo certo que, in casu, a seguradora exerce o direito de sub-rogação previsto no art. 441º do Cód. Com.

3.3. Por outro lado, não resulta do contrato de seguro celebrado e da apólice junta aos autos, a existência de qualquer cláusula que, directa ou indirectamente, permita concluir ter a Seguradora “MÚTUA dos PESCADORES” renunciado a esse direito.
Donde, ser de concluir que a “MÚTUA”, na sua qualidade de seguradora do navio “Meireles Novo”, tem inteira legitimidade e direito de requerer a constituição do fundo de limitação de responsabilidade.
Pelo que, nenhuma censura merece a decisão proferida pelo Tribunal “a quo” quanto a esta matéria.
Destarte, improcede, também nesta parte, o Agravo.

4. Por fim, quanto ao abuso de direito:
Sendo legítimo o direito, nos termos que se definiu, e tendo sido exercido dentro dos respectivos limites previstos legalmente, não faz sentido falar em abuso de direito, por inexistência dos respectivos pressupostos legais.
Com efeito, o abuso do direito pressupõe excesso ou desrespeito dos limites axiológico-materiais, não existindo tal abuso quando não se verificar excesso manifesto dos limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim económico e social – cf. art. 334º do CC. (11)
O que não constitui manifestamente o caso sub judice.

5. Face ao que antecede, e pelos fundamentos aduzidos, improcedem os argumentos esgrimidos pelos Agravantes e, por consequência, nega-se provimento ao Agravo.
- Custas, do que se mostrar devido, a cargo dos Agravantes.

B) Quanto aos Recursos de Apelação:
1.1. Um dos recursos de Apelação foi interposto pelos requerentes António e L, e incide tão só sobre a matéria de facto, nomeadamente sobre a resposta que foi dada pelo Tribunal “a quo” ao quesito 75º, considerando-o provado, e pretendendo os Apelantes que o mesmo seja considerado como não provado.

É a seguinte a matéria desse quesito, integrada no nº 61) dos factos provados:
61.O R. L subscreveu e apresentou o protesto de mar — cuja cópia certificada consta de fls. 268 dos autos apensados (datado de 12/01/2001) e cujo conteúdo se considera aqui integralmente reproduzido — junto da Capitania do Porto de Peniche – sabendo que o mesmo não correspondia à verdade na parte em que se escreveu "(…) dadas as condições climatéricas e nomeadamente muita chuva, vaga alta e vento, só avistaram a embarcação acima mencionada quando estavam muito próximo desta (…)" (Q75).
Vejamos.

1.2. Constata-se, do cotejo dos autos, que:
- Para o que aqui releva, no quesito 75º impunha-se saber se o Réu L, quando escreveu e subscreveu o protesto de mar com o conteúdo junto aos autos, “sabia que o mesmo não correspondia à verdade” na parte em que descreveu, nomeadamente, as condições climatéricas de então, referindo a existência de muita chuva.

- Tal quesito foi aditado à base instrutória pelo Tribunal “a quo”, conjuntamente com o quesito 76º (integrado nos factos provados com o nº 62) já depois da audição de todas as testemunhas.
- Foi requerido e deferido o depoimento de parte de António e José a tais quesitos.
- O Tribunal “a quo” fundamentou a decisão da matéria de facto nos termos que constam de fls. 431 e segts, no qual descreve a forma como se deu o acidente, fazendo referência aos depoimentos de algumas testemunhas relativamente ao estado do tempo, e incluindo o interveniente José.
- Mas nada refere relativamente ao Recorrente L.

1.3. Ora, se atentarmos no conteúdo do quesito, no qual se procura saber se o Réu L “sabia que o teor do documento não correspondia à verdade”, possuindo, pois, um carácter de natureza pessoal, somos confrontados com o facto de o referido Réu não ter deposto relativamente a tal matéria.
À qual depuseram, especificamente, dois depoentes de parte nos quais não se inclui o citado Réu.
Tratando-se de depoimentos de parte, mas de pessoas diversas do Réu L, os seus depoimentos apenas relevam sobre os factos que interessam à decisão da causa e só podem ter por objecto factos pessoais ou de que o depoente deva ter conhecimento, por força do preceituado nos arts. 552º e 554º, ambos do CPC.
Sendo certo que, através do depoimento de parte se pretende que o depoente reconheça a realidade de um facto que lhe é desfavorável; só sendo o mesmo admissível quando incidir sobre factos que desfavoreçam o depoente e, assim, possa dar origem à confissão. (12)

No caso sub judice sabe-se que os depoentes são o Interveniente José e o Réu António, com interesses antagónicos no âmbito da presente acção.
Assim sendo, não pode ser valorado o depoimento do interveniente José, como o fez o Tribunal “a quo” (cf. fls. 431 e segts), porquanto ao ser dado como provado o quesito 75º está a alicerçar-se um juízo probatório através desse depoimento relativamente a factos que são desfavoráveis para o Réu Lázaro, e não para os depoentes de parte que nessa qualidade foram ouvidos.
Para além de constituir violação explícita ao art. 554º do CPC.

Quanto aos depoimentos das restantes testemunhas ouvidas anteriormente ao aditamento do quesito, sobre as referidas condições climáticas, ainda que as mesmas se tivessem pronunciado sobre tais condições, não nos parece suficiente para fundamentar a prova do quesito na parte pessoal do conhecimento do Réu L que integra o restante segmento inserido no quesito.

1.4. Pelo exposto procede a Apelação e, consequentemente, altera-se a resposta ao quesito 75º da decisão da matéria de facto proferida pelo Tribunal “a quo” (que integra os factos do ponto 61), que passa, por isso, a ter a seguinte redacção:
Está provado que:
61.“ O R. L subscreveu e apresentou o protesto de mar junto da Capitania do Porto de Peniche e cuja cópia certificada consta de fls. 268 dos autos apensados (datado de 12/01/2001)". (Q75).

2. Quanto à Apelação interposta pelos Intervenientes:
2.1. Os Intervenientes José e António Apelaram também da sentença na parte em que admite a constituição do fundo de limitação de responsabilidade no montante de 8.267,41 Euros.
A este propósito veio a Apelada “MÚTUA dos PESCADORES suscitar a questão prévia do não conhecimento do recurso, uma vez que os Apelantes referem expressamente na sua alegação de recurso que não se conformam com a decisão “na parte em que admitiu a constituição do fundo de limitação de responsabilidade no montante de 8.267,41 Euros e, em conformidade com esta decisão reparte o ressarcimento dos danos sofridos pelos Apelantes na proporção do seu crédito em relação àquele montante”.
E como os Apelantes já teriam impugnado essa decisão através do recurso de Agravo, não poderiam agora fazê-lo pela Apelação.

Apreciando e Decidindo:
2.2. A questão da admissão do recurso não se mostra inteiramente líquida. E na dúvida, deve o recurso ser admitido.

Por outro lado, resulta do teor das conclusões deste recurso que os Recorrentes fundam as suas alegações, entre outros argumentos, no facto de a Convenção de Bruxelas não poder ser aplicada por não vigorar no direito interno Português, para além de entenderem que tal diploma, bem como o Protocolo de 21 de Dezembro de 1979, são manifestamente inconstitucionais.
Ora, uma vez que o Tribunal “a quo” fundamentou a sentença recorrida na referida Convenção de Bruxelas, entendemos, em face do conteúdo das conclusões do recurso, que estão criadas as condições que justificam a sua interposição.

2.3. Constata-se também que os Apelantes/Intervenientes, na presente Apelação, acabaram por reiterar os argumentos aduzidos na interposição do Agravo, acentuando, sobretudo, o aspecto da inaplicabilidade da Convenção de Bruxelas.
A par de tal questão, que escalpelizam de forma pormenorizada, invocando, inclusive, que a Convenção não se encontra em vigor, defendem, ainda que, a admitir-se a aplicação da Convenção de Bruxelas tal seria inconstitucional por violação do art. 62º da Constituição da República Portuguesa, que garante o direito à propriedade privada e à justa indemnização, bem como dos arts. 58º e 59º da CRP.
Acontece porém que, sobre a maior parte da aludida matéria, já discorremos em ponto anterior, aquando do julgamento do Agravo, pelas razões então aduzidas e que aqui igualmente se reproduzem, sendo desnecessário ventilá-las de novo.
Apenas se apreciarão as questões não abordadas, como sejam, a da vigência da Convenção de Bruxelas de 1957 na ordem jurídica interna e as referidas inconstitucionalidades.

3. Para justificar a asserção de que a Convenção de Bruxelas não vigora no direito interno português, referem os Recorrentes, a par de outros factores por nós já abordados e decididos no recurso de Agravo, que a mesma não foi ratificada.
Porém, sem razão.

3.1. Com efeito, a Convenção de Bruxelas de 1957 foi aprovada para ratificação pelo Decreto nº 48.036, de 14 de Novembro de 1967, tendo sido publicada em anexo e o aviso de ratificação foi publicado no respectivo Diário do Governo de 27 de Maio de 1968, conforme Aviso inserido na I Série, nº 126.
Embora tivesse sido aprovada com as reservas previstas no nº 2, alíneas a), a c), do Protocolo de Assinatura, posteriormente, veio o Decreto-Lei nº 49.028, de 26 de Maio de 1969, dar força de lei à Convenção sobre o Limite de Responsabilidade dos Proprietários dos Navios de Alto Mar, concluída em Bruxelas em 1957, e aprovada para ratificação pelo Decreto-Lei nº 48.036, tornando-a aplicável a navios com menos de 300 t de arqueação.
Mais tarde, tal Convenção foi sujeita a alterações pelo Protocolo de 21 de Dezembro de 1979. Contudo, o mesmo foi também aprovado, para ratificação, pelo Decreto nº 6/82, de 21 de Janeiro de 1982, e republicado em anexo, com publicação no Diário da República.
Aliás, também na obra recentemente publicada por Januário Costa Gomes (em Janeiro 2007), subordinada à temática de “Leis Marítimas” (Almedina), pode ver-se uma referência explícita a tal Convenção, que foi incluída no Capítulo do “Direito Interno Material” – cf. fls. 423 e segts e 523.

3.2. Aqui chegados, e atendendo a tudo o que se disse em pontos antecedentes, temos para nós como possível extrair as seguintes conclusões:
1 - A Convenção de Bruxelas de 1957, alterada pelo Protocolo de 1979, vigora na ordem jurídica portuguesa.
2 - Tais regras foram consideradas pelo legislador nacional aquando da elaboração do direito interno, conforme fui do Decreto-Lei nº 202/98, de 10 de Julho, maxime do seu art. 12º.
3 – Tendo o legislador estendido, por força do preceituado no art. 12º do citado Decreto-Lei nº 202/98, o regime jurídico de limitação de responsabilidade do proprietário do navio aos casos aí previstos, incluindo os contemplados pelas normas de Convenções Internacionais (a de Bruxelas) vigentes em Portugal.
4 – Pelo que, ao abrigo de tais normativos, é admissível a constituição de um fundo de limitação de responsabilidade.

4. Quanto às alegadas inconstitucionalidades:
Não se descortina igualmente fundamento para uma pretensa inconstitucionalidade, nomeadamente aos arts. 58º, 59º e 62º da Constituição da República Portuguesa.
Tais normas reportam-se ao direito de trabalho (arts. 58º e 59º), segundo o qual todos os cidadãos têm o direito de obter um emprego ou de exercer uma actividade profissional e de receber a respectiva contrapartida por tal facto, e ao direito de propriedade privada (art. 62º) com o alcance de não serem arbitrariamente privados da mesma sem uma justa indemnização.
Ora, no caso concreto, nem os Apelantes foram privados do trabalho, nem de qualquer propriedade que detivessem. Tendo inclusivamente visto o seu crédito reconhecido e graduado.
Sendo certo também que a limitação da responsabilidade dos proprietários de navios de mar se encontra expressamente consagrada, conforme se referiu, quer em convenções internacionais, quer no direito interno.

5. Alegam, por fim, os Apelantes, o abuso de direito.
Mas igualmente sem razão, conforme se salientou em ponto anterior, uma vez que se está perante o exercício de um direito legalmente reconhecido, sendo certo que mesmo no âmbito das obrigações vigora o princípio da admissibilidade da limitação da responsabilidade, desde que em matéria não subtraída à disponibilidade das partes – cf. arts. 602º e 603º do CC.

6. Destarte, improcedem as conclusões inseridas na presente Apelação, o que determina a improcedência desta.

IV – Decisão:
- Termos em que se acorda nos seguintes termos:
a) Nega-se provimento ao Agravo, mantendo-se a decisão recorrida, mas com os presentes fundamentos;
b) Julga-se procedente a Apelação dos Apelantes António Maria da Silva Novo e Lázaro Meireles Novo e, por consequência, altera-se a resposta dada pelo Tribunal “a quo” ao quesito 75º (que integra os factos do ponto 61), e que passa, por isso, a ter a redacção que se exarou supra a fls. 25;
c) E improcedente a Apelação dos Intervenientes José Carlos Camilo Anacleto e António Jorge Fernandes da Fonseca, mantendo-se a sentença recorrida, mas com os presentes fundamentos.

- Custas do Agravo a cargo dos Agravantes.
- Custas das Apelações a cargo dos respectivos Apelantes que nela decaíram.
Lisboa, 19 de Abril de 2007.
Ana Luísa de Passos Geraldes (Relatora)
Fátima Galante
Ferreira Lopes
___________________
1 Publicado no Diário do Governo, I Série, nº 265.
2Apenas se citam aquelas que são abstractamente enquadráveis em casos similares aos dos autos.
3 Também a igual conclusão se pode chegar da análise e leitura do Acórdão do STJ, de 27/10/1994, in CJSTJ, 1994, T. III, pág. 105.
4 Neste sentido, cf. Galvão Teles, in “Direito das Obrigações”, pág. 324 e segts.
5 Sobre esta matéria de violação de regras do regulamento Internacional para Evitar Abalroamentos no Mar (=R.I.E.A.M.) cf. Acórdão do STJ., in CJSTJ, T.III, pág. 105.
6 Sobre a importância de tal período na produção legislativa do direito marítimo pode ler-se uma referência em “Estudos Sobre o Novo Direito Marítimo”, de Mário Raposo, Coimbra Editora, pág. 177 e segts.
7 Cf. o preâmbulo do diploma.
8 Veja-se, neste sentido, mas com outra argumentação, o Acórdão da Relação de Lisboa, de 2 de Abril de 1992, in CJ, T. 2, pág. 157.
9 Cf., sobre esta matéria, o Acórdão da Relação de Lisboa, de 6/04/1995, in CJ, T. 2, pág. 104.
10 No sentido de que gozando o proprietário do navio do fundo de limitação de responsabilidade previsto na Convenção de Bruxelas, de 10/10/1957, de igual faculdade goza a sua seguradora, veja-se o Acórdão da Relação de Lisboa, de 2 de Abril de 1992, in CJ., T. 2º, pág. 157.
11 Vide tb. Vaz Serra, in RLJ, 111º, pág. 202.
12 Cf. Acórdão da Relação de Lisboa de 15/12/1994, in CJ., T. 3º, pág. 127.