Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
5965/2007-5
Relator: EMÍDIO SANTOS
Descritores: NEGLIGÊNCIA
ACTO MÉDICO
CONSENTIMENTO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 12/18/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: 1.As intervenções médico-cirúrgicas realizadas por médico, segundo as leges artis e com animus curandi não preenchem a factualidade típica das ofensas corporais e isto tanto nos casos em que a intervenção ou o tratamento são bem sucedidos, como nos casos em que o não são.
2. A ineficácia do consentimento para a realização de intervenções e tratamentos médico-cirúrgicos, por não ter sido precedido de uma informação clara acerca dos riscos das intervenções e dos tratamentos, é irrelevante para o preenchimento do crime de ofensa à integridade física por negligência.
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 5ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

Os presentes autos iniciaram-se com uma queixa apresentada por (N)contra a administração do Instituto Português de Reumatologia, nas pessoas de (V) (director e médico assistente da queixosa) e de (J) (director clínico do Instituto).

Os factos que motivavam a queixa foram, em síntese, os seguintes:

1. No mês de Fevereiro de 2002, a queixosa iniciou um tratamento biológico em fase de teste para o reumático, com um medicamento denominado Remicade.

2. O último tratamento ocorreu em 2 de Dezembro de 2002.

3. No início do ano de 2003, a queixosa foi informada que o tratamento com o mencionado medicamento ia ser cancelado porque o Estado deixava de comparticipar nas respectivas despesas e o Instituto de Reumatologia não tinha condições financeiras para as suportar.

4. A queixosa comunicou o facto ao Ministério da Saúde, que providenciou pela consulta dela no Hospital de Santa Maria.

5. No dia 10 de Março de 2003 foi consultada neste Hospital pela Dr.ª(M).

6. Depois de efectuar vários exames, diagnosticou à queixosa uma tuberculose pulmonar.

7. A doença foi causada pela toma prolongada de Remicade, facto este que foi omitido pelos médicos do Instituto de Reumatologia.

8. A queixosa não foi informada dos efeitos secundários do medicamento nem assinou qualquer termo de responsabilidade.

9. Durante o tratamento não lhe foram feitos exames necessários para avaliar o seu estado.

      Realizado inquérito, o Ministério Público proferiu despacho de arquivamento. No juízo feito acerca da prova produzida, concluiu que não se havia apurado que “o tratamento tivesse sido levado a cabo com violação de qualquer norma protocolar” e que “os factos imputados aos arguidos resultavam de factores adversos não controláveis em face dos procedimentos médicos em vigor”. Em consequência, excluiu a existência de indícios de responsabilidade dos arguidos quer quanto a um crime de Intervenções e tratamentos médico-cirúrgicos arbitrários, previsto pelo artigo 156º, n.º 1, do Código Penal, quer quanto a um crime de ofensa à integridade física por negligência, previsto pelo n.º 1, do artigo 148º, do Código Penal.

      Não se conformando com o despacho de arquivamento, a assistente requereu a abertura de instrução. Neste requerimento, expôs as razões da sua divergência em relação à não acusação e narrou os factos que, no seu entender, levavam à imputação aos arguidos do crime de Intervenções e tratamentos médico-cirúrgicos arbitrários e do crime de ofensa à integridade física por negligência.

Entre esses factos destacam-se, em síntese, os seguintes:

1. Antes de iniciar o tratamento com Remicade, a médica do Instituto de Reumatolgia que lhe apresentou o medicamento, a arguida (M), referiu que o mesmo não tinha contra-indicações.

2. É falso que tenha assinado o documento junto aos autos onde se pretende fazer crer que foi esclarecida dos efeitos secundários do medicamento, em especial no que diz respeito a infecções, de entre as quais a tuberculose pulmonar.

3. A assistente não foi sujeita a qualquer vigilância nem durante nem após o tratamento com o Remicade.

4. Foi esta falta de vigilância que possibilitou o desenvolvimento da tuberculose.

Finda a instrução, o Meritíssimo juiz de instrução proferiu despacho de não pronúncia. Nele se afirmou, em síntese, que até ao fim da instrução não haviam sido recolhidos indícios suficientes da prática pelos arguidos do crime de Intervenções e tratamentos médico-cirúrgicos arbitrários, previsto pelo artigo 156º, do Código Penal, e do crime de ofensa à integridade física por negligência, previsto pelo n.º 1, do artigo 148º, do Código Penal.

Foi contra o despacho de não pronúncia que a assistente (N) interpôs o presente recurso.  

No final pediu:

1. A pronúncia dos arguidos pelo crime de tratamento médico-cirúrgico arbitrário, previsto pelo artigo 156º, n.º 1, do C. Penal, e pelo crime de ofensa à integridade física por negligência, previsto pelo artigo 148º, n.º 1, do Código Penal.

2. A renovação da prova, com a inquirição de uma testemunha.    

As razões da sua discordância relativamente ao despacho recorrido são, em síntese, as seguintes:  

1. O documento entregue à lesada, denominado de consentimento informado ao doente, não respeita minimamente os requisitos tidos por essenciais para este tipo de declaração de vontade.

2. Dele não se induz que a tuberculose era um risco esperado ou pelo menos meramente possível.

3. Este consentimento não preenche o necessário esclarecimento que a Lei exige.

4. O cartão de alerta para o doente nunca foi entregue à lesada, pese embora a indicação do próprio Infarmed que defende que “todos os doentes sujeitos ao «Remicade» devem receber o folheto informativo e um cartão de alerta para o doente.

5. Sobre os arguidos impende um especial dever de cuidado ao abrigo do qual estes deveriam ter zelado pela boa aplicação do tratamento em causa e da necessária assistência à paciente.

6. Era exigido que tivessem explicado ao doente os riscos que corriam e, sobretudo, que a tuberculose era um risco esperado e frequente neste tipo de tratamento.

7. A assistente foi votada ao abandono depois de findo o tratamento e foi este abandono que potenciou o aparecimento da tuberculose.

8. Por todos estes motivos, os arguidos praticaram um crime de tratamento médico-cirúrgico arbitrário previsto pelo artigo 156º, n.º 1, do Código Penal, e um crime de ofensa à integridade física por negligência, previsto pelo artigo 148º, n.º 1, do Código Penal.

A renovação da prova foi fundamentada nos seguintes termos:
1. A assistente teve agora conhecimento do paradeiro de uma testemunha que a acompanhou durante as diversas deslocações ao Instituto Português de Reumatologia.
2. O depoimento desta testemunha é crucial para a boa decisão da causa já que ela acompanhou a assistente a alguns dos tratamentos, podendo prestar prova sobre a matéria do consentimento informado e sobre o acompanhamento dos arguidos à assistente após a interrupção daquele tratamento.
3. Uma vez que só agora teve conhecimento do paradeiro desta, não a podendo ter indicado em momento anterior, constata-se que a decisão que determinou a não pronúncia é insuficiente para sustentar aquela não acusação.
4. Assim, tendo por objectivo a condução do processo a posterior julgamento, requer a renovação da prova através da realização desta prova suplementar, ao abrigo do disposto no artigo 430º, do CPP, já que o recurso ora realizado pressupõe o reexame da matéria de facto e de direito, atento o vício da alínea a), do n.º 2, do artigo 410º, do CPP. 

O Ministério Público respondeu, pronunciando-se pela improcedência do recurso.

Para tanto sustentou que não existiam indícios suficientes da prática, pelos arguidos, dos factos que constituem o crime de intervenções e tratamentos médico-cirúrgicos arbitrários previsto pelo artigo 156º, n.º 1, do Código Penal, e o crime de ofensa à integridade física por negligência, previsto pelo artigo 148º, n.º 1, do Código Penal.


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Nesta instância o Ministério teve vista dos autos, emitindo parecer no sentido da improcedência do recurso.

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São duas as questões que se discutem no presente recurso:

1. A primeira consiste em saber se, até ao encerramento da instrução, foram recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação aos arguidos de uma pena;

2. A segunda consiste em saber se há lugar há renovação da prova.


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Apesar de o pedido de renovação da prova figurar no recurso, depois do pedido de pronúncia dos arguidos, de um ponto de vista lógico deverá ser apreciado em primeiro lugar.

Antes de entramos na apreciação da pretensão denominada pela assistente de “renovação da prova”, não poderá deixar de assinalar-se uma contradição entre o pedido de pronúncia dos arguidos e o da renovação da prova. Na verdade, enquanto aquele assenta no pressuposto da existência de indícios suficientes da prática dos crimes acima mencionados, este assenta no pressuposto contrário. Na verdade, se a recorrente entende que a decisão padece do vício previsto pela alínea a) do n.º 2 do artigo 410º, do Código de Processo Penal (insuficiência da matéria de facto para a decisão) e que é necessário produzir prova suplementar, então não se poderá concluir pela pronúncia dos arguidos quanto aos crimes previstos pelos artigos 148º, n.º 1, e 156º, n.º 1, ambos do Código de Processo Penal.

Não entrando em linha de conta com esta contradição, o certo é que a pretensão que a assistente denomina de “renovação da prova” está votado ao fracasso.

Em primeiro lugar, a recorrente não pretende a renovação de prova. Na verdade, enquanto a renovação da prova consiste na repetição, perante o tribunal de recurso, de prova já produzida, a recorrente pretende a produção ex novo de prova testemunhal.

Em segundo lugar, ainda que se estivesse perante uma renovação da prova, o disposto no artigo 430º, n.º 1, do CPP, não daria guarida à pretensão da recorrente. Na verdade, a renovação da prova prevista nesta disposição tem lugar apenas nos recursos interpostos das decisões finais, no caso destas enfermarem dos vícios previstos nas alíneas do n.º 2 do artigo 410º e houver razões para crer que ela permitirá evitar o reenvio do processo para novo julgamento, o que não é o caso.

Face ao exposto, improcede o pedido de inquirição da testemunha.


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Passemos, agora, à resolução da questão fundamental que se suscita no presente recurso: saber se, até ao encerramento da instrução, foram recolhidos indícios suficientes da prática pelos arguidos do crime de intervenções e tratamentos médico-cirúrgicos arbitrários previsto pelo artigo 156º, n.º 1, do Código Penal, e do crime de ofensa à integridade física por negligência previsto pelo artigo 148º, n.º 1, do Código Penal.

Estando em causa a verificação de indícios da prática destes crimes, está naturalmente indicado que o tribunal exponha a definição legal destes tipos, começando pelo previsto pelo artigo 156º, n.º 1.

  Cometem este crime os médicos ou outra pessoa legalmente autorizada que, em vista de prevenir, diagnosticar, debelar ou minorar doença, sofrimento, lesão ou fadiga corporal, ou perturbação mental, realizarem intervenções ou tratamentos sem consentimento do paciente.

Atendendo à localização deste tipo no Código Penal, no capítulo dos crimes contra a liberdade pessoal, não se suscitam dúvidas de que se trata de um ilícito que atenta contra a liberdade (cfr. neste sentido Costa Andrade, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, páginas 379).

      Considerando as dimensões ou projecções da liberdade individual, a incriminação prevista no artigo 156º, protege, conforme escreve Costa Andrade na obra supra citada e in “Consentimento Em Direito penal Médico – O Consentimento do Lesado” (Revista de Ciência Criminal, Ano 14, n.ºs 1 e 2, páginas 127) “…uma específica dimensão da liberdade pessoal. Que podemos, com o BGH alemão (…) definir como “o livre direito de autodeterminação da pessoa sobre o seu corpo (…). Ou com Figueiredo Dias, a liberdade de ´”dispor do corpo e da própria vida”.

Citando ainda o referido autor (páginas 128 da Revista de Ciência Criminal, Ano 14, n.ºs 1 e 2) “…o reconhecimento deste bem jurídico -… - significa a prevalência, de princípio, da autodeterminação sobre a saúde e a vida”.

A discussão que se trava nos presentes autos em torno deste ilícito não versa sobre a conduta típica que lhe corresponde. O que se discute é a questão do consentimento do paciente para os tratamentos.

Antes de respondermos a esta questão do consentimento, importa enumerar os factos que podem considerar-se, desde já, suficientemente indiciados. Assim:

1. A assistente sofre de espondilite anquilosante.

2. Durante vários anos tratou esta doença no Instituto de Reumatologia, sendo o seu médico assistente neste Instituto o ora arguido, (V).

3. O arguido (J) é director clínico do Instituto de Reumatologia.

4. No ano de 2002, por indicação do seu médico assistente, começou a ser tratada à espondilite anquilosante com um medicamento denominado Remicade.

5. A assistente foi convidada a participar no tratamento com Remicade no âmbito de um estudo de investigação clínica sobre Infliximab (princípio activo do Remicade) que envolvia aproximadamente 50-100 doentes em 10 centros de reumatologia. Nesse estudo avaliar-se-ia o início de acção do Infliximab, numa dose de 5mg/Kg, na redução da inflamação ao nível das articulações sacro-ilíacas e procurava-se obter informações adicionais sobre a segurança do tratamento com infliximab.

6. A introdução do medicamento em Portugal foi autorizada em 13 de Agosto de 1999, através do procedimento centralizado, pelo que fez prova da sua qualidade, segurança e eficácia perante a agência Europeia de Avaliação de Medicamentos.  

7. Entre as indicações terapêuticas aprovadas para este medicamento figurava “o tratamento de espondilite anquilosante, em doentes com sintomas axiais graves, marcadores serológicos de actividade inflamatória elevados e que não respondiam adequadamente a terapêuticas convencionais”.

8. Entre as advertências e precauções especiais de utilização do medicamento figurava, além do mais, o seguinte: “Foram notificados casos de tuberculose activa, incluindo tuberculose miliar e tuberculose com localização extrapulmonar em doentes tratados com Remicade. Alguns destes casos foram fatais. Antes de iniciar o tratamento com Remicade, todos os doentes devem ser avaliados para despiste de tuberculose, tanta activa como inactiva (latente).”

9. Antes de ser submetida ao tratamento com Remicade, a assistente foi observada pela arguida (T), efectuou um raio - x ao tórax, cujo resultado foi normal, e efectuou teste de tuberculina, cujo resultado foi negativo.

10. A assistente foi tratada com Remicade em 24 de Janeiro de 2002, em 11 de Fevereiro de 2002, 18 de Março de 2002, em 30 Abril de 2002, em 12 Junho de 2002, em Julho de 2002 e em 2 Dezembro de 2002.

11. Nesta altura o tratamento foi interrompido por o Ministério de Saúde ter deixado de comparticipar nas despesas do tratamento com este medicamento e por o Instituto de Reumatologia não dispor de condições financeiras para as suportar.

12. Mercê de diligências efectuadas pelo marido da assistente junto do Ministério da Saúde, a assistente conseguiu que o tratamento continuasse no Hospital de Santa Maria.

13. Com vista à continuação do tratamento, a assistente foi consultada, no Hospital de Santa Maria, pela Ex.ma médica Dr.ª (M).

14. Antes de dar continuidade ao tratamento com Remicade, a Ex.ma médica Dr.ª (M) solicitou a realização de análises, um raio x ao tórax da assistente, um ECG e o teste de Mantoux.

15. O teste de tuberculina apresentou resultado positivo e o raio x ao tórax apresentava alterações pulmonares.

16. Perante estes dados, a assistente foi consultada no serviço de pneumologia, onde, após a realização de outros exames complementares, se concluiu que a assistente tinha tuberculose pulmonar.

17. Em 9 de Junho de 2003 iniciou terapia antibacilar.

18. Esteve internada no serviço de Pneumologia do Hospital de Pulido Valente desde 28 de Junho de 2003 até 11 de Julho de 2003 para tratamento da tuberculose pulmonar.

A matéria de facto supra enumerada evidencia que os arguidos, embora com participações diferentes, intervieram na administração à assistente do medicamento de nome Remicade com o intuito de tratar a espondilite anquilosanete de que ela padecia. A par desta intenção terapêutica, a assistente participou num estudo para avaliar a acção do Infliximab na redução da inflamação ao nível das articulações sacro-ilíacas e obter informações adicionais sobre a segurança do tratamento com infliximab.

 A participação da assistente neste estudo não retirava o tratamento a que foi sujeita das condutas típicas previstas no artigo 156º, n.º 1, mas submetia-o ao regime do Decreto-lei n.º 97/94, de 9 de Abril, isto é, ao diploma que estabelecia as normas a que deviam obedecer os ensaios clínicos a realizar em seres humanos, de modo a garantir a sua integridade física e psíquica e a eficácia e segurança dos medicamentos (cfr. n.º 2 do artigo 1º do Decreto-lei atrás mencionado).          

Se, conforme escreve Costa Andrade, in Comentário Conimbricense, páginas 386, “só a existência de um acordo eficaz retira ao tratamento a qualificação de arbitrário, a circunstância de a assistente ter sido tratada com Remicade no âmbito de um estudo de investigação clínica sobre Infliximab (princípio activo do Remicade) obrigava a que o consentimento, além de livre, esclarecido e expresso, fosse dado por escrito (n.º 1 do artigo 10º do Decreto-lei n.º 97/94, de 9 de Abril).

Além disso, o n.º 2 do mesmo preceito determinava que era ineficaz o consentimento obtido sem observância do disposto no n.º 1 do artigo 10º e no artigo 9º do Decreto-lei 97/94.

Do exposto resulta que, no caso, o padrão de consentimento eficaz é fornecido pelo artigo 157º, do C. Penal[1], pelo Decreto-lei n.º 97/94, de 9 de Abril e pelo artigo 5º da Convenção sobre os Direitos Humanos e Biomedicina([2])([3]):
Uma das condições indispensáveis à eficácia do consentimento e que está em discussão no presente recurso é a da “informação prévia e adequada quanto ao objecto e à natureza da intervenção bem como às suas consequências e riscos”.
O cumprimento desta condição não significa que o conteúdo da informação a prestar seja o mesmo para todos os pacientes e em todas as situações. O conteúdo da informação pode variar em função da capacidade de compreensão e da cultura médica do paciente, dos seus desejos de informação, dos níveis de risco que tem o tratamento, dos efeitos que pode ter no paciente e da própria necessidade de tratamento.

A comprovar o que se acaba de escrever está a parte final do artigo 157º, do Código Penal, ao afastar o dever de comunicar factos ou circunstâncias que, a serem conhecidas pelo paciente, poriam em perigo a sua vida ou seriam susceptíveis de lhe causar grave dano à saúde, física ou psíquica.

Tratam-se de situações que a doutrina designa por privilégio terapêutico (cfr. Costa Andrade, in Comentário Conimbricense, páginas 399).    

Por outro lado, embora a informação deva ser compreensível para o paciente, a linguagem ou os termos utilizados não serão necessariamente iguais para todos os pacientes. Assim, se o paciente for médico ou dispuser de cultura médica poderá ser utilizada linguagem científica; se o paciente estiver fora deste círculo deverá ser empregue linguagem mais acessível. 

Revertendo ao caso concreto, tendo em conta as advertências e as precauções especiais de utilização do Remicade, não se suscitam dúvidas que impendia sobre os arguidos o dever de informarem a assistente previamente e por escrito de que um dos riscos do tratamento com o medicamento era a contracção de tuberculose pulmonar. Com efeito, havendo já a notificação de casos de tuberculose em doentes tratados com Remicade, alguns deles fatais, impunha-se que os arguidos dessem a conhecer à paciente este risco do tratamento. Só com o conhecimento dele se podia afirmar que a assistente consentiu no tratamento de forma esclarecida.  

O despacho recorrido concluiu que, perante os depoimentos dos arguidos, “que de uma forma unânime referiram que a assistente assinou um documento de consentimento informado e que foi esclarecida dos riscos que comportava a sujeição a tal tratamento, inexistiam nos autos indícios suficientes de que os arguidos tinham sujeito a assistente ao tratamento através do uso do mencionado medicamento sem o seu consentimento e sem o esclarecimento prévio das consequências que do mesmo poderiam advir, uma vez que, realizado o competente juízo de prognose, a prosseguirem os presentes autos para julgamento pelo crime supra mencionado, existiriam maiores probabilidades de conduzir a uma absolvição dos arguidos pelo ilícito criminal relativamente ao qual a assistente pretende a pronúncia do que a uma condenação, sendo forçoso concluir-se pela não pronúncia relativamente a este ilícito”.

A assistente insurgiu-se contra esta conclusão com os seguintes fundamentos:

  • O documento entregue à lesada, denominada de consentimento informado ao doente, não respeita minimamente os requisitos tidos por essenciais para este tipo de declaração de vontade.
  • Dele não se induz que a tuberculose era um risco esperado ou pelo menos meramente possível.
  • Este consentimento não preenche o necessário esclarecimento que a Lei exige.
  • O cartão de alerta para o doente nunca foi entregue à lesada pese embora a indicação do próprio Infarmed que defende que “todos os doentes sujeitos ao «Remicade» devem receber o folheto informativo e um cartão de alerta para o doente.
  • Era exigido que tivessem explicado ao doente os riscos que corriam e, sobretudo, que a tuberculose era um risco esperado e frequente neste tipo de tratamento.

    Examinando os autos verifica-se que eles dão conta da existência de prova contraditória não só quanto à questão do consentimento escrito para o tratamento, mas também quanto à questão da informação prévia dos riscos do medicamento, designadamente do risco de tuberculose pulmonar.   

    Lendo o conteúdo da queixa, as declarações prestadas pela assistente e o requerimento de abertura de instrução, verifica-se que a assistente, além de imputar aos arguidos um completo silêncio sobre os efeitos adversos e os riscos do tratamento com Remicade, negou que tivesse dado por escrito o seu consentimento ao tratamento.   

    Assim, quando foi inquirida em sede de inquérito, declarou (fls. 42 a 44) “Depois uma médica, Dr.ª (T) falou consigo dando-lhe o medicamento e realçando as suas vantagens, não a informando de qualquer contra-indicação”. “Acresce que quando começou a fazer o tratamento o fez de boa fé e nunca soube ou teve conhecimento de que poderia desenvolver tuberculose pois não foi avisada e se fosse talvez não fizesse o tratamento, porém a opção seria sempre sua e no caso nem sequer teve opção”.

    (C) (marido da assistente) corroborou estas declarações, dizendo (fls. 46): “Do que lhe foi dado observar, à sua esposa apenas foi dito que se tratava de um bom tratamento e que ela não referiu a existência de qualquer efeito secundário”. 

    As declarações da assistente foram contrariadas pelos arguidos. Assim:

    (J) afirmou: “quer ele quer a equipa do seu Instituto cumpriram com as normas vigentes de acordo com este tipo de medicamentos, tendo a paciente assinado uma declaração de consentimento informado onde assumiu o risco de infecções” (fls. 64).

    (T) afirmou: “Antes de iniciar o tratamento referiu à doente que o mesmo dava bom resultado e que ainda não se conheciam totalmente os efeitos adversos. Porém, quer esclarecer que a advertiu para o risco de infecções, nomeadamente a tuberculose, daí que a mesma tenha feito um raio x ao tórax e prova de Mantoux e por isso demorou mais a iniciar o tratamento. Desta forma a doente bem sabia tais factos assinando inclusive um consentimento informado onde resultava o seu assentimento aos riscos. Tudo foi feito de acordo com o protocolo, sendo certo que os pacientes apenas assinam o consentimento depois de integralmente esclarecidos sobre o seu alcance” (fls. 69).

    Por último o arguido (V) afirmou: “Na altura existia um ensaio clínico patrocinado pelo Laboratório Shering Plauh.

    Antes da efectuação do tratamento a mesma prestou consentimento, como consta dos registos clínicos e o documento foi-lhe lido e depois de esclarecida ela assinou após esclarecimento das dúvidas. Do mesmo documento consta a possibilidade de ocorrência de infecções facto que também lhe foi transmitido verbalmente”.

    “A paciente previamente ao início do tratamento foi submetida a rastreio bioquímico, radiológico e electrocardiograma, constando dele especificamente um teste de tuberculina e um exame radiológico do tórax que foram negativos. Observou posteriormente a paciente por única vez, um ou dois meses depois, estando a doente sem queixas já não fazendo anti-inflamatórios e tendo-lhe referido “foi o melhor que me aconteceu na vida”.

    “Nunca mais a viu em consulta desde Abril de 2002 e nessa data aquela não apresentava sintomas de cansaços nem tomava anti-inflamatórios”.

    “Nunca lhe foram transmitidos sintomas que pudessem indiciar a tuberculose e foram cumpridos os procedimentos do protocolo”.

    “Por fim esclarece que o protocolo não exige sequer que durante o tratamento sejam feitos novos testes de tuberculina sem que exista suspeita clínica” (fls. 86 a 88).

    Centrando a nossa atenção na questão do consentimento escrito, ele teria sido expresso, segundo os arguidos, através da assinatura pela assistente dos documentos juntos aos autos de fls. 168 a 171, um denominado “Declaração de Consentimento e Informação ao Doente” (fls. 168 e 169) e outro denominado “Adenda ao Consentimento Informado” (fls. 170 e 171).

    Há que reconhecer que, caso existissem indícios convincentes de que esses documentos haviam sido entregues e assinados pela assistente, ficaria sem fundamento a acusação de que os arguidos omitiram por completo o dever de informação.  

    A verdade é que a assinatura desses documentos pela assistente está coberta pelo manto da suspeita. Com efeito, não só a assistente negou a autoria da assinatura que lhe é atribuída num desses documentos (Adenda ao Consentimento Informado) como o exame pericial, realizado com o fim se de determinar se a letra e a assinatura aposta como sendo da assistente era ou não da sua autoria, teve um resultado inconclusivo (fls. 202 a 205).

    Porém, ainda que o tribunal considerasse que esses documentos haviam sido entregues à assistente e que ela os havia assinado, a verdade é que a informação que figura no documento junto a fls. 168 e 169 (Declaração de Consentimento e Informação ao Doente) acerca dos riscos associados ao tratamento com Remicade fica substancialmente aquém da que consta do Resumo das Características do Produto (fls. 32 e seguintes do apenso). Com efeito, nele não se menciona o risco de tuberculose pulmonar, precisamente a doença que a assistente atribui ao Remicade.

     Além disso, não há quaisquer indícios de que a assistente foi informada previamente e por escrito nos termos do n.º 1 do artigo 9º, do Decreto-lei 97/94.

     Assim sendo, pode afirmar-se que o consentimento da assistente, tendo como referente o Decreto-lei n.º 97/94, foi um consentimento ineficaz.

    Daqui não se segue, sem mais, a conclusão de que há indícios suficientes do crime de Intervenções e tratamentos médico-cirúrgicos arbitrários.        

    Não pode ignorar-se que, para pronunciar os arguidos pela prática deste crime, era necessário que, até ao fim da instrução, tivessem sido recolhidos indícios suficientes não só do tratamento da assistente sem o seu consentimento ou com a prestação de consentimento ineficaz, mas também do dolo ou da negligência grosseira dos arguidos (artigo 156º, n.ºs 1 e 3, do Código Penal).

          Conforme escreve Costa Andrade, in Comentário Conimbricense, Tomo I, páginas 390, “O dolo exige a representação, por parte, do agente, de que actua sem consentimento ou de que o consentimento está inquinado por circunstâncias (v.g. erro) capazes de determinar a sua ineficácia”.

    Atendendo às contradições entre as declarações da assistente e às dos arguidos e ao resultado inconclusivo do exame à letra e assinatura do documento supra referido, embora se possa afirmar que o procedimento informativo dos médicos não consegue fugir ao manto da suspeita (suspeita quanto ao conteúdo e à forma da informação prestada à assistente), não poderá concluir-se que há indícios suficientes de que os arguidos sabiam que estavam a tratar a assistente com Remicade sem o consentimento esclarecido dela ou que, só por negligência grosseira, representaram falsamente os pressupostos do consentimento.

    Nestas circunstâncias, não vemos como divergir do despacho recorrido na parte em que afirmou que, a prosseguirem os presentes autos para julgamento pelo crime de Intervenções e tratamentos médico-cirúrgicos arbitrários, existiriam maiores probabilidades de absolvição do que condenação dos arguidos.

    Deste modo, mantém-se o despacho recorrido na parte em que não pronunciou os arguidos pelo crime de Intervenções e tratamentos médico-cirúrgicos arbitrários.


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    Vejamos, agora, a questão dos indícios quanto ao crime de ofensa à integridade física por negligência previsto pelo artigo 148º, do Código Penal.

    A imputação deste crime aos arguidos está relacionada com a contracção de tuberculose pulmonar pela assistente. Esta imputa aos arguidos a contracção desta doença sob a seguinte alegação:

    1. Em primeiro lugar, a tuberculose pulmonar foi causada pelo tratamento com Remicade;

    2. Em segundo lugar, ela só se desenvolveu porque os arguidos não vigiaram a assistente, como deviam, quer no período do tratamento quer no período posterior ao tratamento.       

    O despacho recorrido, depois de analisar o tipo de ilícito previsto pelo artigo 148º, n.º 1, do Código Penal, afastou a pretensão da assistente com a seguinte argumentação:

    Dúvidas não restam que entre Janeiro de 2002 e Dezembro do mesmo ano a assistente foi submetida, no Instituto Português de Reumatologia a um tratamento médico, através do uso de uma substancia medicamentosa denominada de “Remicade”, a qual se destinou a servir de terapia por forma a minorar a patologia apresentada pela assistente denominada de “Espondilite Anquilosante”.
    Conforme informação junta ao apenso A pelo Infarmed (fls. 30 a 48), da utilização deste medicamento podem resultar diversos efeitos secundários graves, que aí se descrevem, e ainda poderá propiciar o aparecimento de infecções oportunistas, entre as quais casos de tuberculose activa.
    Dos autos resulta ainda que, em Março de 2003, a assistente foi observada pela Drª.(M), no Hospital de Santa Maria, para o qual transitou quando terminou o tratamento supra mencionado, e que após consulta efectuada pela referida médica, que foi ouvida de fls. 25 a 26 dos autos, esta pediu exames complementares. Um dos exames complementares foi o do teste da tuberculina que veio positivo e o RX ao tórax que apresentava alterações pulmonares. Perante estes dados a assistente foi enviada para a consulta de pneumologia onde foram feitos outros exames complementares de diagnóstico tendo-se chegado à conclusão que a assistente tinha uma tuberculose pulmonar, facto apenas concluído em Junho de 2003.
    Defende a assistente no seu requerimento de abertura de instrução que o facto de, quer durante o tratamento a que foi submetida, quer depois do mesmo e até Março de 2003, não ter sido alvo de acompanhamento médico e de diagnóstico adequado necessário à verificação da evolução do tratamento e/ou despiste de quaisquer efeitos secundários, a par com o facto de a partir do 2º/3º tratamento com a referida substância, ter começado a sentir algum cansaço, agravado em fadiga generalizada, acompanhada de falta de ar, que refere ter comunicado ao arguido (A), tal omissão de vigilância imputável, segundo a assistente aos arguidos, possibilitou o desenvolvimento da doença que qualquer outro profissional, com um diagnóstico dito normal, conseguiria ter evitado.
    Em primeiro lugar, cumpre apreciar, se existem desde logo indícios suficientes nos autos que permitam concluir que a tuberculose pulmonar que veio a ser diagnosticada à assistente adveio da utilização do mencionado medicamento.
    Desde logo resulta dos relatórios médicos juntos aos autos nos anexos A e B que o tratamento realizado à assistente no Instituto Português de Reumatologia finalizou em início de Dezembro de 2002, estando escrito na ficha clínica que o mesmo decorreu sem complicações e sugerindo-se manutenção da terapêutica e vigilância em consulta do médico assistente e apenas em Junho de 2003 é diagnosticada a mencionada doença pulmonar à assistente. Sendo que, entre Dezembro de 2002 e Junho de 2003 a assistente deixou de ser seguida pelos arguidos no referido Instituto e passou para a alçada do Hospital de Santa Maria, inexistindo nos autos quaisquer elementos que permitam concluir, mesmo indiciariamente, que a doença se terá desenvolvido ou aparecido durante o período em que a assistente foi assistida pelos arguidos.
    Por outro lado, apesar de não resultar nos autos que durante o tratamento efectuado, ou seja, entre Janeiro de 2002 e início de Dezembro de 2002, a assistente tenha sido submetida a quaisquer exames de despiste da TB pulmonar, uma vez que um dos riscos do uso do mencionado medicamento residia no facto de puder potenciar o aparecimento de tal patologia, da documentação clínica remetida pelo Instituto Português de Reumatologia relativamente à assistente, resulta que a mesma terá sido submetida antes do início do tratamento a Raio X ao tórax, além de teste subcutâneo, os quais foram negativos, tal como referem todos os arguidos ouvidos nos autos, tendo inclusivamente a arguida (T) acrescentado que devido a estes exames o tratamento só se iniciou mais tarde.
    Ora, apesar dos riscos inerentes ao uso do mencionado medicamento, não resulta cabalmente dos autos que tenha sido esse uso a causa do aparecimento da tuberculose pulmonar que foi diagnostica à assistente.
    Por outro lado, o único sintoma suspeito que é relatado pela assistente e constante da ficha clínica da mesma enquanto foi seguida no Instituto de Reumatologia e a partir da 5ª toma realizada em 12/06/2002 foi o cansaço físico, sintoma esse que resulta igualmente como sendo um efeito secundário do uso do medicamento Remicade, conforme informação prestada pelo Infarmed e junta no Anexo A, e que não permitira sem mais que os arguidos relacionassem com a existência ou aparecimento da tuberculose pulmonar. Por outro lado, durante o tratamento efectuado não se registam quaisquer sintomas compatíveis com a tuberculose, como sendo, febre, suores nocturnos, perda de peso, anorexia, tosse persistente, e às vezes sangue na expectoração, para além da fadiga supra mencionada, a qual isoladamente não obrigara à realização de diagnóstico à tubercolina.
    Por último, cumpre ainda referir que, não tendo sido possível apurar qual o período de aparecimento e desenvolvimento da doença, a par com o período de tempo que mediou o fim do tratamento pelos arguidos e o diagnostico efectuado à assistente em Junho de 2003, é forçoso concluir-se que inexistem indícios nos autos que caso os arguidos tivessem submetido a assistente a exames complementares de diagnóstico teria sido possível evitar o aparecimento da doença, inexistindo indícios que os arguidos tenham omitido qualquer norma protocolar ou deontológica, não lhes podendo ser assacada qualquer responsabilidade pela prática do crime imputado pela assistente ou de qualquer tipo penal, uma vez que, não resultam dos autos indícios suficientes que, em julgamento, pudessem levar a uma condenação dos arguidos pela prática do crime que lhes foi imputado pela assistente, inerentes ao nexo causal entre a omissão da conduta e o resultado verificado, razão pela qual não podem os arguidos ser pronunciados”.
    Antes de mais importa dizer que, ainda que houvesse indícios suficientes de que os arguidos iniciaram o tratamento da assistente com o consentimento esclarecido dela, isso não significaria que dispunham de carta branca para realizar esse tratamento sem o rigor, a cautela, a diligência e a perícia que ele exigia ou que estivessem a coberto de qualquer responsabilidade pelos erros ou omissões em que incorressem nesse tratamento.     
          Daí que a aplicação do artigo 148º, do Código Penal, aos tratamentos médicos não pode deixar de ser relacionada com o disposto no artigo 150º, do Código Penal (Intervenção e tratamento médico-cirúrgicos).
          Nos termos do n.º 1 deste artigo, as intervenções e os tratamentos que, segundo o estado dos conhecimentos e da experiência da medicina, se mostrarem indicados e forem levados a cabo, de acordo com as leges artis, por um médico ou por outra pessoa legalmente autorizada, com intenção de prevenir, diagnosticar, debelar ou minorar a doença, sofrimento, lesão ou fadiga corporal, ou perturbação, não se consideram ofensa à integridade física.
         Conforme se extrai do enunciado desta norma e é posto em destaque por Costa Andrade na obra supra citada, páginas 305, e in “Consentimento Em Direito penal Médico – O Consentimento do Lesado”, Revista de Ciência Criminal, Ano 14, n.ºs 1 e 2, páginas 126, as intervenções médico-cirúrgicas realizadas por médico, segundo as leges artis e com animuas curandi não preenchem a factualidade típica das ofensas corporais. E isto tanto nos casos em que a intervenção ou o tratamento são bem sucedidos, como nos casos em que o não são.
    Citando, de novo, Costa Andrade na obra supra citada, páginas 305, “Resumidamente, a produção dos resultados indesejáveis (morte, agravamento da doença ou das lesões) só relevará como ofensa corporal típica, quando representar a consequência adequada da violação das leges artis”.
    Deste modo, ainda que existissem indícios de que o Remicade foi a causa da tuberculose contraída pela assistente, ainda assim não se poderia afirmar, sem mais, que os arguidos cometeram um crime de ofensa à integridade física.   
    Por outro lado, importa sublinhar que “para a exclusão das intervenções médico-cirúrgicas da factualidade típica das ofensas corporais é igualmente irrelevante a existência ou não de consentimento”.
          Serve isto para dizer que, ainda que o consentimento da assistente não tenha sido eficaz, por não ter sido precedido de uma informação clara acerca dos riscos que corria com o tratamento da sua doença com Remicade, a ineficácia do consentimento é irrelevante para o preenchimento do crime de ofensa à integridade física por negligência.
    Do exposto resulta que a pronúncia dos arguidos pelo crime de ofensa à integridade física por negligência estava dependente da verificação de indícios suficientes quanto ao seguinte:
    Em primeiro lugar, da execução desse tratamento com violação das leges artis, entendidas como “as regras generalizadamente reconhecidas pela ciência médica” e como “os gerais deveres de cuidado do tráfego médico” (cfr. Costa Andrade, na obra supra citada, páginas 312).
    Em segundo lugar, da relação de causalidade adequada entre o tratamento com Remicade e a tuberculose pulmonar.
    O despacho recorrido concluiu pela “inexistência de indícios de que os arguidos tenham omitido qualquer norma protocolar ou deontológica, não lhes podendo ser assacada qualquer responsabilidade pela prática do crime imputado pela assistente ou de qualquer tipo penal”.
    Salvo o devido respeito, não se concorda com esta conclusão.
    De uma forma simples podemos dizer que para o juízo a fazer acerca da violação das leges artis, há que confrontar a conduta e os procedimentos seguidos pelos médicos com a conduta e os procedimentos que eles deviam ter tido.
    Quanto à conduta e aos procedimentos que os arguidos deviam ter tido relativamente à assistente podemos afirmar que havia um especial dever de vigilância relativamente a ela. Este especial dever de vigilância colhe-se nos seguintes elementos de prova:
     Em primeiro lugar, colhe-se no documento junto a fls. 142 dos autos da autoria do Instituto Português de Reumatologia. Este documento, relativo à administração, à assistente, do Remicade, em Dezembro de 2002, menciona expressamente “Sugere-se manutenção da terapêutica e vigilância em consulta do médico assistente”.
    Em segundo lugar, colhe-se no Resumo das Características do Produto (Remicade), designadamente na parte onde se afirma: “os doentes devem ser cuidadosamente monitorizados para despiste de infecções antes, durante e após o tratamento com Remicade. Dado que a eliminação de infliximab pode demorar até seis meses, a monitorização deverá continuar ao longo desse período.”
    Em terceiro lugar, colhe-se no documento designado por “Informação Destinada Ao Doente”. Nele se informa o paciente de que, “mesmo que interrompesse as perfusões, deveria continuar a aderir ao seu esquema de visitas de follow-up em conformidade com o estabelecido no protocolo e que o médico assistente pedir-lhe-ia que realizasse visitas de controlo por um período de até 6 semanas após a administração da última dose do fármaco. Durante essas visitas o estado geral do organismo do paciente seria avaliado e ser-lhe-iam colocadas questões sobre o seu estado de saúde, para saber como tinha passado desde que terminou o estudo”.
    Ora há indícios suficientes de que, depois de a assistente ter interrompido o tratamento com o Remicade, em Dezembro de 2002, não foi monitorizada para despiste de infecções, nem foi sujeita a qualquer avaliação por parte do seu médico assistente, pelo director clínico do Instituto Português de Reumatologia ou pela arguida (T), que a consultou antes de iniciar o tratamento.
    A ilustrar o que se acaba de dizer cita-se o seguinte trecho das declarações do arguido (A), médico assistente da queixosa: “Nunca mais a viu em consulta, desde Abril de 2002Em termos de conhecimento directo desconhece a evolução clínica posterior e apenas em Março de 2003, ou seja três meses depois de ter interrompido o tratamento com Remicade, que estava a ser seguida em Santa Maria na consulta de Reumatologia e onde estava a repetir os exames que já tinha feito”.
    Esta falha de monitorização e de avaliação da assistente após a interrupção do tratamento constitui uma clara e censurável violação das leges artis.
    Daqui não se segue, no entanto, que se conclua pela verificação de indícios do crime de ofensa à integridade física por negligência. Para tanto seria necessário, conforme se escreveu acima, que existissem indícios suficientes de que, foi devido à violação das leges artis, que sobreveio à assistente a tuberculose pulmonar.
    No que a esta questão diz respeito, para além das declarações da assistente, mais nenhuma prova foi produzida neste sentido. Ora, pese embora o respeito que merecem as declarações da assistente, a verdade é que, numa matéria delicada e complexa como é a do nexo de causalidade adequada entre um medicamento e uma doença, o tribunal não se pode bastar com as declarações produzidas por quem tem interesse directo na decisão da questão e por quem não está em condições de fundamentar a sua convicção com argumentos de natureza científica.
    O tribunal não ignora que há factos susceptíveis de indiciar uma relação de causa/efeito entre o Remicade e a tuberculose pulmonar. Assim:
    1. Foram notificados casos de tuberculose pulmonar em doentes tratados com Remicade;
    2. A eliminação do infliximab (princípio activo do Remicade) pode demorar até seis meses;
    3. A tuberculose foi diagnosticada à assistente cerca de 3 meses após a última perfusão de Remicade.
    Porém, se estes factos convergem no sentido de apontar o tratamento com Remicade como hipótese da tuberculose pulmonar da assistente, não constituem, no entanto, indícios suficientes dessa relação de causalidade.  
    Se estivéssemos no domínio do direito civil, os referidos factos poderiam ser invocados para afirmar o nexo de causalidade entre o tratamento e a tuberculose com base na chamada preponderância da evidência[4]. Porém, no domínio do direito penal, afigura-se inadmissível o recurso a esta espécie de presunção de causalidade adequada.
    Se não é de exigir, nesta fase, uma prova da certeza do nexo de causalidade, também não nos devemos bastar com uma mera hipótese desse nexo, ainda que esta hipótese tenha a seu favor alguns factos concordantes entre si.  
    Por último, não podemos deixar de observar que teria sido de grande importância, para a instrução do processo, o parecer de médicos especialistas ou da Ordem dos Médicos sobre se a conduta dos arguidos foi ou não conforme às leges artis e sobre se havia uma relação de causalidade adequada entre o tratamento com Remicade e a tuberculose.
    A verdade é que esta diligência não foi ordenada pelo Ministério Público nem pelo Juiz de Instrução e também não foi requerida pela assistente.
    Face ao exposto, não vemos razões para divergir do despacho recorrido na parte em que afirmou que não resultam dos autos indícios suficientes que, em julgamento, pudessem levar a uma condenação dos arguidos pela prática do crime de ofensa à integridade física por negligência.

    *

    Por último, há que dizer o seguinte. A pretensão da assistente de ver pronunciados os arguidos simultaneamente pelo crime de Intervenções e tratamentos médico-cirúrgicos arbitrários e pelo crime de Ofensa à integridade física por negligência sempre estaria votada ao fracasso. Na verdade, conforme escreve Costa Andrade, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, páginas 393, “Uma acção que realiza o tipo do artigo 156º não pode preencher o tipo das Ofensas corporais. Isto tanto vale para as Ofensas corporais dolosas como para as Ofensas corporais negligentes, s.c. provocadas por violação das leges artis. Isto porque a violação das leges artis afasta sem mais a subsunção nas Intervenções e tratamentos médico-cirúrgicos arbitrários. E, por princípio, converterá o facto em ofensa corporal negligente, a que se aplicará, nomeadamente, o disposto no n.º 2, al. A), do artigo 148º.”

    *
    Decisão:
    Julga-se improcedente o recurso e, em consequência, mantém-se o despacho recorrido.
    *
    Condena-se a assistente no pagamento de taxa de justiça, que se fixa em 5 UC.
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    Lisboa, 18 de Dezembro de 2007

     Emídio Santos

    Pulido Garcia

    Gomes da Silva

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    [1] O artigo 157º, do Código Penal, dispõe que o consentimento só é eficaz quando o paciente tiver sido devidamente esclarecido sobre o diagnóstico e a índole, envergadura e possíveis consequências da intervenção ou tratamento, salvo se isso implicar a comunicação de circunstâncias que, a serem conhecidas pelo paciente, poriam em perigo a sua vida ou seriam susceptíveis de lhe causar grave dano à saúde, física ou psíquica.

    [2] A Convenção entrou em vigor na ordem jurídica Portuguesa em 1 de Dezembro de 2001.

    [3] Nos termos deste preceito:

     “Qualquer intervenção no domínio da saúde só pode ser efectuada após ter sido prestada pela pessoa em causa o seu consentimento livre e esclarecido”.
    Esta pessoa deve receber previamente informação adequada quanto ao objecto e à natureza da intervenção bem como às suas consequências e riscos
    [4] A questão da preponderância da evidência é referida por João Calvão da Silva, in Responsabilidade Civil do Produtor, colecção teses, Almedina, páginas 712 e 713, ao abordar a questão da prova do nexo de causalidade entre o defeito de um produto e o dano por ele causado. A este propósito afirma, por um lado, que “a prova do nexo de causalidade se afigura não raramente muito difícil...” e por outro lado que “... uma vez fixada a existência do defeito do produto e do dano, as regras da experiência comum, o id quod plerumque accidit e a teoria da causalidade adequada – teoria que reconduz a questão do nexo causal a um juízo de probabilidade – poderão permitir a preponderância da evidência que, no fundo, é uma espécie de presunção de causalidade”.