Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
7136/2005-6
Relator: GIL ROQUE
Descritores: RETORNADO
INDEMNIZAÇÃO
PRESCRIÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/13/2005
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Sumário: I – Pelo facto de no Acordo de Lusaca os movimentos libertadores se terem comprometido expressamente a respeitar os bens e os interesses legítimos dos portugueses ali residentes e não terem cumprido, acabando antes por se apossarem dos bens desses portugueses ali residentes e por na sequência desses acontecimentos o Estado Português ter publicado anúncios, e feito saber através dos órgãos de comunicação social a necessidade dos cidadãos provenientes das ex-colónias deverem elaborar listas dos bens perdidos, tais factos tiveram por fim encetar diligências, no sentido dos lesados virem a ser ressarcidos pelos governantes dos novos países entretanto surgidos. Contudo, esses factos não vinculam o Estado Português a proceder às respectivas indemnizações.

II – Não se pode estabelecer paralelo entre a situação criada pelas ocupações de bens móveis e imóveis levadas a efeito no Alentejo, após a revolução de Abril de 1974, com os prejuízos sofridos pelos cidadãos vindos das ex-colónias, por os governantes dos novos países, não terem cumprido os acordos celebrados e se terem apropriado dos bens que os cidadãos portugueses, entretanto regressados, ali deixaram.

III – O Estado Português nunca garantiu aos lesados substituir-se no cumprimento dos encargos assumidos pelos novos países, em caso de incumprimento deles, como veio a acontecer.

IV – De qualquer modo, da conduta dos Governantes Portugueses, assumida em 1975, bem como das medidas posteriormente por eles tomadas, não se pode entender que com elas se criou o direito dos AA. a um crédito sobre o Réu (Estado Português) que agora essa confiança, haja sido infundadamente retirada. Não se vislumbra, como se possa entender, que se criou uma situação de “venire contra factum proprium”, porquanto, esta implicaria a criação de condições para uma confiança legítima criada anteriormente e agora retirada inesperadamente e a nosso ver, tal não aconteceu.

V – Não tendo o Estado reconhecido qualquer dívida aos AA. e não tendo estes desencadeado, desde a data em que as nacionalizações ocorreram qualquer processo que pudesse levar a um eventual reconhecimento do direito invocado, e não se tendo suspendido nem interrompido o decurso do prazo para o fazer, decorridos que estão mais de três anos após a possibilidade do exercício desse direito por parte dos AA., prescreveu essa possibilidade, procedendo também arguída excepção da prescrição do eventual direito invocado.
Decisão Texto Integral:   ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA        
                                                             *
   I - RELATÓRIO:
    1-(A) e mulher, (B), devidamente identificados nos autos, intentaram a presente acção sob a forma ordinária contra o Estado Português, pedindo a condenação deste no pagamento dos danos causados  aos AA. no valor de € 69.013,79, reportado ao ano de 1996, a actualizar à data da condenação com base nos factores de correcção moratória aplicáveis e juros de mora desde a citação.
    Para o efeito e em síntese, alegaram que: a actuação do Réu no âmbito do processo de descolonização das ex-colónias ultramarinas causou prejuízo aos AA., pois não foram tomadas quaisquer medidas no sentido de salvaguardar os interesses e segurança dos seus cidadãos. Acresce que o Estado Português ao aceitar as listas dos bens entregues pelos AA., sem as impugnar criou expectativas nestes de que se ia acautelas os seus interesses, o que fez com que os AA., além do mais, não tenham reclamado em tempo juros das autoridades moçambicana.
Em sede de contestação, o Estado Português, além de invocar  a prescrição do direito dos AA., alegou ter tomado medidas para salvaguardar os interesses e património dos seus cidadãos, se bem que não se considere constituído no dever de indemnizar por actos praticados pelo governo Moçambicano, o que sempre afirmou. 
   Em sede de réplica, os AA. procuram afastar a verificação da alegada prescrição, sustentando que se trata de factos continuados, que o Réu renunciou ao direito invocado pelos AA. e, por último porque invocar a prescrição do direito, face à actuação do Réu e seus organismos, consubstanciaria uma clara manifestação de abuso de direito.
    Foi elaborado o saneador, remeteu-se para final o conhecimento das alegadas excepções, após a instrução dos autos, procedeu-se a julgamento a que se seguiu sentença na qual se considerou verificada a arguida excepção da prescrição e em consequência a acção foi julgada improcedente por não provada e o Réu- Estado Português absolvido do pedido.
                                    
    2 – Inconformados com a decisão, dela interpuseram recurso os AA. que foi admitido e oportunamente foram apresentadas as alegações e contra alegações, concluindo que:
    - Aqueles factos, traduzirão as intenções dos organismos do Estado, mas não são suficientes como prova de que outros tenham tido conhecimento ou consciência daquelas intenções. - A invocação por parte do Estado da prescrição do direito dos AA, constitui um manifesto abuso de direito, até porque, ao contrário do afirmado na douta sentença ora recorrido, não consta dos autos, nem dos factos provados, que o Estado sempre referiu que as listas entregues não se destinavam não ao pagamento de qualquer indemnização.
    - O provado é que tal actuação do Estado levou a esse entendimento, e toda a actuação do Estado levou a que os AA. tenham protelado ao máximo o exercício do seu direito pela via judicial e que deste modo, e claramente, ao decidir em sentido contrário, a douta sentença ora recorrida violou o art.º 334 do Código Civil.
    - Razões pelas quais, não se conformam os AA., com a douta decisão proferida pela Mmª Juiz a quo, considerando-se violados o preceituado nas disposições legais acima mencionadas, requerendo a V. Exªs a reforma da douta decisão recorrida no sentido de improceder a invocada excepção de prescrição, e consequentemente, tal como já consta da douta sentença recorrida que nessa parte bem decidiu condenar o Estado Português no pedido.
   - Nas contra alegações o Réu, representado pelo Ministério Público, pugna pela improcedência do recurso, com a confirmação da decisão recorrida.
    Corridos os vistos e tudo ponderado cabe apreciar e decidir.

    II- FUNDAMENTAÇÃO:
    A) Factos provados:
Os factos assentes no tribunal recorrido, são os seguintes, que se assinalam na parte final de cada número com as letras da matéria especificada e pontos da base instrutória  provados:
    1 - O autor nasceu no dia 26.06.1926 em Lourenço Marques – Moçambique (al. A));
    2 – A Autora nasceu no dia 1.07.1927 em Nampula – Moçambique (al.B));
    3 - Os AA. são casados entre si, no regime de comunhão geral de bens e são cidadãos portugueses (al.C));
    3- Os AA. renunciaram à nacionalidade Moçambicana em 17.05.1996 (al.D));
    4 – Em 13.05.1977 a Autora saíu de Moçambique tendo-lhe sido aposto carimbo no passaporte a indicar ter sido expulsa de Moçambique (al.E));
    5 – Com a data de 5.07.1976, os Autores entregaram ao Instituto para a Cooperação Económica , declarações pedindo a salvaguarda de bens que tinham em Moçambique e que constam dos Docs. juntos a fls. 25 e 27 (al.F));
    6 – Em 6.02.1979, o A . marido entregou, e foi aceite, no Instituto de Cooperação Económica, a relação das acções de companhias de que era possuidor e que tinha deixado depositadas em Moçambique, requerendo a sua salvaguarda pelas autoridades portuguesas e que são as constantes dos docs. 20 a 28, juntos com a petição (al.G));
    7 – O valor das acções da Sonefe, acrescido da correcção monetária, foi liquidado em seis prestações pela República Popular de Angola, por intermédio do Banco de Portugal (al.H));
    8 – Mediante requerimento entregue no Instituto de Cooperação Económica em 10.08.1982, os Autores requereram a salvaguarda dos montantes depositados no Montepio de Moçambique e no Banco Standard Totta de Moçambique, num total de 1.088.610$00 (al.I));
    9 – No seguimento da revolução de 25 de Abril de 1974, o Estado Português iniciou o processo de descolonização das antigas províncias ultramarinas, dando assim cumprimento às resoluções da ONU sobre a matéria que viriam a ser acolhidas no programa do movimento das forças armadas (al.J));
    10 – A 7 de Setembro de 1974, finalizou-se o processo de negociações que levou à celebração do acordo de Lusaca, assinado entre as delegações da Frelimo e do Estado Português, com a proclamação da independência a ser fixada para o 25 de Junho de 1975 (al.L));
    11 – No acordo de Lusaca foi estabelecido que seria mantida a segurança de todos os portugueses residentes no território, tendo-se o referido movimento de libertação comprometido, expressamente, a respeitar os bens e os interesses legítimos dos portugueses ali residentes (art.º 5º c)+1, 10, 11, 13 e 15) (al.M));
    12 – O Autor foi chefe de contabilidade na Companhia de Seguros “Lusitana” de Moçambique (Resposta ao n.º1 da B.I.);
    14 – E fazia, fora do horário de trabalho, a escrita de diversas empresas comerciais que operavam em Lourenço Marques – Moçambique (Resposta ao n.º2 da B.I.);
    15 – A Autora, (B), depois de completar o 7.º ano do curso dos liceus (equivalente actualmente ao 11.º ano de escolaridade), sempre trabalhou, até à sua aposentação, no liceu Salazar de Lourenço Marques, terminando a sua carreira com a categoria de 2.ª oficial (Resposta ao n.º 3 da B.I.);       
    16–O Autor marido comprou diversos imóveis em Moçambique(Resposta ao n.º 4 da B.I.);
   17- Após a proclamação da independência de Moçambique, os AA. decidiram continuar a viver em Moçambique (Resposta ao n.º 5 da B.I.);
    18- Em Fevereiro de 1976, um domingo, o Presidente Samora Machel decretou, através de uma comunicação radiofónica a extinção da propriedade privada em Moçambique e a consequente nacionalização de todos os bens propriedade de privados, ameaçando com a prisão todos aqueles que desrespeitassem aquela decisão (Resposta ao n.º 6 da B.I.);
    19 – A partir dessa data, os AA. foram desapossados de todos os seus bens, sem prejuízo de  poderem continuar a utilizar a casa  onde viviam, sendo certo que, se a mesma ficasse desocupada por mais de sessenta dias, podia vir a ser ocupada por terceiros (Resposta ao n.º 7 da B.I.);  
    20 – Foi determinada a expulsão de todos os que nascidos em Moçambique com ascendência moçambicana tivessem optado pela nacionalidade portuguesa (Resposta ao n.º 8 da B.I.);
    21- A Autora teve ordem de expulsão (Resposta ao n.º 9 da B.I.);
    22- Como o A . (A) tinha contratos para cumprir (avenças de contabilidade), cuja execução ia para além da data limite imposta à ª (B), esta requereu permissão para permanecer em Moçambique a acompanhar o marido, o que lhe foi negado (Resposta ao n.º 10 da B.I.);
    23- Em 13 de Maio de 1977 a A . (B) teve de sair de Moçambique, caso contrário teria sido presa (Resposta ao n.º 11 da B.I.);
    24 – Nesse dia, quando foram embarcar com destino a Lisboa a A . foi revistada minuciosamente (Resposta ao n.º 12 da B.I.);
    24 -  No seguimento da situação relatada nos items 6 e 8, o Estado Português mandou publicar anúncios e fez saber nos órgãos de comunicação social da necessidade de os cidadãos provenientes das ex-colónias elaborarem listas  dos bens perdidos (Resposta ao n.º13 da B.I.);
    25 – O que foi entendido por esses cidadãos incluindo os Autores, como a fase preparatório de um processo de indemnização a levar a cabo pelo Estado Português (Resposta ao n.º 14 da B.I.);
    26 – Os bens constantes das listas entregues no Instituto de Cooperação Económica pelos AA. eram da sua propriedade (Resposta ao n.º 15 da B.I.);
    27 – E todos foram perdidos aquando da independência de Moçambique(Resposta ao n.º 16 da B.I.);
    28 – O autor aufere uma pensão mensal que actualmente, tem o valor de € 208,00 (Resposta ao n.º 17 da B.I.);
    29 – A Autora aufere uma pensão mensal actualmente no valor de € 542,37 (Resposta ao n.º 18 da B.I.);
 
    30 – O facto de terem saído de Moçambique e a perda dos seus bens causou sofrimento aos Autores (Resposta ao n.º 19 da B.I.);
    31 – Criando o IARN (DL n.º 169/75 de 31/03) na dependência da Presidência do Conselho de Ministros, disponibilizando alojamento, alimentação e meios de subsistência a todas essas pessoas (Resposta ao n.º 24 da B.I.);
    32 – O gabinete de apoio aos desalojados então criado serviu de interlocutor com os países de onde  os “desalojados” eram provenientes, no auxílio dos seus interesses (Resposta ao n.º 25 da B.I.);
    33 – E apenas com esse objectivo se encarregou de receber dos “desalojados” listas, relações e declarações de bens deixados por estes nos territórios ultramarinos , a fim de servirem de suporte documental às conversações a entabular com as autoridades dos novos Estados para defesa dos interesses dos espoliados (Resposta ao n.º 26 da B.I.);
    34 – Tal procedimento não se destinava ao pagamento de qualquer indemnização (Resposta ao n.º 27 da B.I.);
    35 – O Estado Português publicou vários diplomas legais contendo medidas de apoio e assistência aos “desalojados” das ex-colónias (Resposta ao n.º 28 da B.I.).

    B) Direito aplicável:
     Os apelantes tiram das suas alegações uma dúzia de conclusões através das quais manifestam a discordância da decisão recorrida. Da leitura das alegações verifica-se que algumas delas não são mais do que a repetição de parte dos articulados da petição inicial e noutras manifestam a discordância em relação a questões que nada têm a ver com a decisão recorrida, porquanto esta se ficou pela apreciação e procedência da excepção peremptória da prescrição arguida pelo Réu na contestação.
  Sabendo-se que o objecto do recurso é balizado pelas conclusões, como resulta do disposto nos art.º 684º nº3 e 690º nºs 1 e 4 do Cód. Proc. Civil e vem sendo orientação da jurisprudência[1], procuraremos seguí-las, não obstante a questão essencial está em saber se os Autores aqui apelantes são ou não titulares de direito a indemnização pelos danos sofridos por terem abandonado o seu país de origem, Moçambique, em consequência da descolonização das então designadas “províncias ultramarimas”, que deram lugar ao surgimento de novos países.
    1- Na contestação do Réu, foi negada a existência do invocado direito a qualquer indemnização e arguida a excepção peremptória da prescrição se eventualmente existisse o direito, de exigir seja o que for ao Estado Português em consequência dos bens deixados pelos Apelantes nesse território.
    Os Apelantes pretende com a presente acção uma indemnização cível do Estado Português.
Quando se fala em indemnização cível, ela pressupõe a existência de responsabilidade, quer seja resultante de um contrato (pré-contratual ou contratual), por facto ilícito (extracontratual ou aquiliana) ou por facto lícito. Contudo, seja qual for o tipo de responsabilidade que a ela der causa, estarão sempre subjacentes, um facto um dano, a imputação do facto ao lesante, o nexo de causalidade entre o facto, o danos e a imputação deste ao lesante que no caso seria, na perspectiva dos AA., o Estado Português.
 Vejamos se na situação gizada nos autos pelos Autores se verificam esses pressupostos.
   Da matéria assente, resulta que, “ com data de 5.07.1976, os Autores entregaram ao Instituto para a Cooperação Económica , declarações pedindo a salvaguarda de bens que tinham em Moçambique”,  que “no acordo de Lusaca foi estabelecido que seria mantida a segurança de todos os portugueses residentes no território, tendo-se o referido movimento de libertação comprometido, expressamente, a respeitar os bens e os interesses legítimos dos portugueses ali residentes” e “Em Fevereiro de 1976, num domingo, o Presidente Samora Machel decretou, através de uma comunicação radiofónica a extinção da propriedade privada em Moçambique e a consequente nacionalização de todos os bens propriedade de privados, ameaçando com a prisão todos aqueles que desrespeitassem aquela decisão”. “ A partir dessa data, os AA. foram desapossados de todos os seus bens, sem prejuízo de  poderem continuar a utilizar a casa  onde viviam, sendo certo que, se a mesma ficasse desocupada por mais de sessenta dias, podia vir a ser ocupada por terceiros”.
No seguimento da situação relatada, o Estado Português mandou publicar anúncios e fez saber nos órgãos de comunicação social da necessidade de os cidadãos provenientes das ex-colónias elaborarem listas  dos bens perdidos  (factos provados n.ºs 5, 11, 18, 19 e 24).
   Verifica-se da análise dos factos transcritos, que no Acordo de Lusaca, ficou estabelecido que seria mantida a segurança de todos os portugueses residentes no território, “tendo-se o referido movimento de libertação comprometido, expressamente, a respeitar os bens e os interesses legítimos dos portugueses ali residentes”.
    Não foi o Estado Português que se comprometeu a respeitar os bens e interesses dos portugueses ali residentes, como de resto, não o poderia fazer, a partir da independência, uma vez que Moçambique passou a ser um Estado Soberano e como é por demais evidente , não admitiria ingerência estrangeira na maneira como iria decorrer a administração dos bens situados no seu território.
    Em nosso entender, a interpretação mais ajustada à situação que pode fazer um declaratário normal colocado na posição do real declaratário, da recomendação do Estado Português aos cidadãos provenientes da ex-colónias para elaborarem listas dos bens perdidos, não se conhecendo a vontade real do declaratário, vai no sentido de que iria fazer todos os esforços junto da entidade que se havia comprometido a respeitar os bens dos portugueses ali residentes, como se havia comprometido (art.º 236.º n.º 1 do Cód.Civil).
    Não o fazendo essa entidade respeitado, o que havia antes assumido no acordo de Lusaca, não seria, como nos parece óbvio, o Estado Português a assumir o pagamento dos danos produzidos a cada um pela nacionalização e confisco desses bens, por outro Estado Independente e Soberano.
     Nesta perspectiva e não vemos que outra possa ser tirada, a imputação dos danos causados aos Apelantes, como resulta do nexo de causalidade entre a apropriação levada a efeito pelo novo Estado de Moçambique e os danos resultantes da apropriação dos bens dos AA., não pode ser atribuída ao Estado Português, mas ao Estado Moçambicano.
    Com efeito, o que o Estado Português faz com esse anúncio, não foi mais do que obter a indicação dos bens através das listas que lhe foram entregues pelos lesados, para junto das autoridades Moçambicanas, procurar conseguir obter delas o valor dos bens entretanto perdidos pelos cidadãos, por ter ocorrido a independência desses territórios até então sob administração Portuguesa.
   O que o Estado Português garantiu através da criação do IARN e de outros organismos, foi dar a possível ajuda aos desalojados das ex-colónias, em território português, mas nada nos leva a crer que alguma vez tivesse querido indemnizá-los pelo valor dos bens que lhes foram retirados pelo novo país independente.
    É  esse o único sentido que se pode tirar da matéria de facto dada como assente e que para um melhor entendimento da apreciação que se acaba de fazer e da decisão recorrida, posta em causa com o presente recurso julgamos oportuno transcrever.
    Ficaram assentes entre outros factos com interesse para a decisão que o Estado Português: “Criando o IARN (DL n.º 169/75 de 31/03) na dependência da Presidência do Conselho de Ministros, disponibilizando alojamento, alimentação e meios de subsistência a todas essas pessoas”, e que, “O gabinete de apoio aos desalojados então criado serviu de interlocutor com os países de onde  os “desalojados” eram provenientes, no auxílio dos seus interesses”, e que “ apenas com esse objectivo se encarregou de receber dos “desalojados” listas, relações e declarações de bens deixados por estes nos territórios ultramarinos, a fim de servirem de suporte documental às conversações a entabular com as autoridades dos novos Estados para defesa dos interesses dos espoliados.  Tal procedimento não se destinava ao pagamento de qualquer indemnização (factos provados n.ºs 31, 32, 33 e 34).
    Seja qual for a interpretação que se faça da matéria dada como assente, ela não nos conduz ao entendimento de que o Estado Português, alguma vez tenha reconhecido mesmo de forma tácita, alguma dívida para com os AA. resultante dos danos sofridos no território dos novos países estrangeiros já então constituídos.
    Contudo e apesar disso, os AA., aqui apelantes, nas conclusões começam por evidenciar a possibilidade do Estado Português vir a indemnizar cidadãos espanhóis, por danos verificados aquando da revolução do 25 de Abril, consequentes das ocupações de propriedades destes, no Alentejo, e que os danos sofridos pelos Apelantes com a descolonização são semelhantes ou análogos , e por isso, no seu entendimento, justifica-se o seu direito à indemnização pelos danos consequentes de terem de abandonar os bens que possuíam em Moçambique.
   Para reforçarem e avalizarem esse seu entendimento referem o despacho conjunto n.º 107/2005 de 3 de Fevereiro, sustentando que ele se reporta à necessidade de “tentar reparar, tanto quanto possível, injustiças que foram consumadas” pelo processo de descolonização e que esse despacho traduz,  para além do mais uma renúncia por parte do Estado da prescrição do direito dos AA.
   Ora, o grupo de trabalho criado pelo Despacho Conjunto n.º 107/2005 de 3 de Fevereiro, não teve por fim o reconhecimento de dívidas do Estado Português, teve antes como nos parece claro,  a finalidade de propor soluções para questões pendentes, que  desde o tempo da descolonização se encontram sem solução definida, face ao comportamento dos governantes dos novos Estados soberanos surgidos nesses territórios. Do mesmo modo que o Gabinete de Apoio aos Espoliados, criado pela Resolução do Conselho de Ministros n.º13/92 de 16 de Abril, teve por fim, levar a efeito a “ponderação e defesa junto dos governos e autoridades dos países africanos de língua oficial portuguesas, dos interesses dos portugueses cujos bens e direitos foram confiscados, nacionalizados, ocupados ou intervencionados do decurso de processos de descolonização”, como de resto, salienta o Ministério Público.
    Na apreciação do pensamento dos AA., não se põe em causa que a descolonização tenha sido levada a efeito de forma irregular e que dela não tenham resultado enormes injustiças, para os que lá residiam e pelas mais variadas razão tiveram de abandonar esse território, mas  uma coisa são a injustiças resultantes duma descolonização menos boa e outra coisa são as obrigações assumidas pelo Estado Português, quanto à assunção dos danos sofridos pelos desalojados, por actos dos governantes desses países e que perante as autoridades portuguesas tinham assumido não lesar os portugueses que por lá ficassem.
    No que se refere à analogia que se pretende através da comparação e equiparação dos danos causados pelo Estado Português a cidadãos estrangeiros com as ocupações arbitrárias levadas a efeito em território português (Alentejo), por movimentos, por vezes apoiados por forças revolucionárias da época e com o consentimento dos governantes de então, e outra coisa é a apropriação dos bens que alguns portugueses possuíam em território estrangeiro, objecto de confisco e nacionalização ou apropriação pelo governo desses novos países, independentes e soberanos, surgidos da descolonização, não faz qualquer sentido.
   Com efeito, os danos produzidos por governantes doutros países, não sendo da responsabilidade directa do Português, este não reconheceu a sua obrigação do pagamento desses danos, não se tendo por isso feito prova de que alguma vez tenha reconhecido a dívida correspondente aos valores constantes da lista apresentada pelos AA. oportunamente ao Réu. De resto, não há qualquer prova de que  o Estado Português tenha assumido, o pagamento de danos produzidos pelos governantes doutro país no seu território e no caso, numa altura em que esses territórios, já se tinham constituído como Estados independentes e soberanos.
    Quanto à questão da renúncia, é evidente que não há nenhuma renúncia a um direito que nem sequer existe. O facto de se criarem comissões de estudo para os mais variados fins, não pode ser entendido como renúncia a qualquer direito. Para que se renuncie a um direito é preciso que esse direito exista.
    No caso em apreciação, julgou-se procedente a arguida excepção da prescrição, porque não havendo prova de que o Estado Português tenha em tempo algum reconhecido qualquer dívida perante os desalojados das ex-colónias, pela perda dos bens que possuíam nas ex- colónias e que foram objecto de a apropriação pelo Estado Moçambicano há 29 anos, a existir algum eventual direito, e julgamos ter deixado claro, que não existe, ele teria prescrito e como tal se declarou na decisão recorrida.  
                                                                 *   
    2 – Sustentam ainda os Apelantes que tendo o Estado Português com a sua conduta levado os AA. a considerar que oportunamente receberiam dele uma indemnização resultante dos bens por si deixados em Moçambique de valor correspondente ao dos bens constantes da lista oportunamente entregue e não assumindo agora esse pagamento, agiu com abuso de direito.
   Pelas razões que se referiram, não se vê como seja possível enquadrar, no caso em apreciação, a figura do abuso de direito, exercido pelo Estado Português.
Há abuso de direito, quando o titular de algum direito, exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito (art.º 334.º do Código Civil).
    A nosso ver, no caso em apreciação, para haver  abuso de direito, teria que de forma expressa ou tácita alguma vez o Estado tivesse reconhecido que assumiria os danos sofridos pelos AA., com a perda dos seus bens. 
   Os AA. não provaram que na altura da nacionalização dos seus bens pelo governo de Moçambique ou em qualquer momento posterior, o Réu tivesse reconhecido de forma inequívoca a dívida relativa ao valor dos bens nacionalizados. O Estado, não é responsável pela interpretação que os AA. fazem da sugestão dada aos desalojados das ex-colónias para organizarem listas com a enumeração e valor dos bens de que foram desapossados. Se no espírito dos AA. a entrega das listas dos bens corresponde ao princípio do processo de indemnização por parte do Estado, essa é a sua interpretação, que como ficou dito não será a do homem comum, colocado na situação real e por isso, não constitui um direito dos AA.
   De toda a conduta anterior do Estado, não se pode entender que ela criou a existência do direito dos AA a um crédito sobre o Réu e que agora essa confiança dos AA. haja sido infundadamente retirada. Na verdade, não se vislumbra, como se possa entender que existe uma situação de “venire contra factum proprio”. Se assim fosse, implicaria que a convicção dos AA. ao direito a uma indemnização, fosse fundada e que agora o Estado viesse afastar essa conduta recusando-se a pagar o que já havia prometido fazer, por forma directa ou indirecta[2]
    Não tendo o Estado reconhecido qualquer dívida aos AA. e não tendo estes desencadeado desde a data em que as nacionalizações ocorreram, qualquer processo que pudesse levar a um eventual reconhecimento e não se tendo suspendido nem interrompido o decurso do prazo para o fazer, o que aliás só acontece, nos casos em que a lei o determine, e que começa a correr no momento em que o direito puder ser legalmente exercido ( art.ºs 325.º a 327.º do CC), decorridos que estão mais de 3 anos, após a possibilidade do exercício desse direito por parte dos AA., prescreveu efectivamente essa possibilidade, pelo que a arguida excepção da prescrição não podia deixar de ser julgada procedente como foi( art.º 498.º n.ºs 1 e 4 do CC). 
    Não procedem assim, pelas razões que se alinharam as conclusões, que os AA. tiram das suas alegações, pelo que a decisão recorrida deve manter-se sem qualquer alteração.

    III – Decisão:
    Em face de todo o circunstancialismo descrito e do preceituado nas aludidas disposições legais, acorda-se neste tribunal em negar provimento ao recurso e em consequência, confirma-se a decisão recorrida.
    Custas pelos Apelantes, sem prejuízo do benefício do apoio judiciário que oportunamente lhes foi concedido.

               Lisboa, 13 de Julho de 2005

Gil Roque
Arlindo Rocha
Carlos Valverde
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[1]  - Vejam-se entre outros os Acs. STJ. de 2/12/82, 25/07/86, 3/03/91, 29/05/91 e 4/02/93, do STA de 26/04/88 (in BMJ, n.º 322º- 315, 359º-522, 385º- 541, Acórd.Doutrin.364-545, Col.Jur./STJ,1993, 1º-140 e Ac.Dout.,322 -1267 respectivamente).
[2] - “Venire contra factum próprio” –implica a existência de uma conduta anterior, em que fundadamente a outra parte tenha confiado, com uma confiança legítima que qualquer homem médio possa adquirir em face de um anterior comportamento que objectivamente considerado é de molde a formar a convicção de que, no futuro, se comportará daquela maneira. (Ac.STJ, de 2005/01/13, proc. 04B4063, in www.dgsi.pt.)