Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
2329/11.3TBPDL-2
Relator: OLINDO GERALDES
Descritores: RELATÓRIO PERICIAL
RECLAMAÇÃO
SEGUNDA PERÍCIA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/16/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: SUMÁRIO do relator.

I.      Ao perito, obrigado a desempenhar com diligência a função, podem ser opostos obstáculos à sua nomeação, assim como pode ser substituído pelo juiz se desempenhar de forma negligente o encargo cometido.

II.    A materialidade do relatório pericial, mesmo que deficiente, não determina a substituição do perito ou a repetição da perícia.

III.   Tendo uma parte o entendimento de que o relatório pericial apresentado padece de deficiência ou não se mostre devidamente fundamentado, pode usar da faculdade de reclamação, nos termos do n.º 2 do art. 485.º do Código de Processo Civil.

IV.      Não pode realizar-se segunda perícia, quando não tenha sido requerida nos termos expressos no n.º 1 do art. 487.º do Código de Processo Civil e o requerimento tenha sido intempestivo.

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:

I – RELATÓRIO

         Durante a audiência de discussão e julgamento, realizada no âmbito da ação ordinária que, pela Secção Cível da Instância Local de Ponta Delgada da Comarca dos Açores, A., move contra B, foi determinada uma perícia singular à contabilidade da A., “no sentido de se apurar em concreto que pagamentos foram feitos com os cheques identificados nos autos e ainda, quanto aos cheques emitidos em nome pessoal do gerente da A., se tiveram aprovisionamento na contabilidade daquela”.

O Perito nomeado apresentou o relatório pericial constante de fls. 6 a 13.

Notificado do relatório, o R., em 19 de fevereiro de 2014, requereu que se determinasse, ao Perito, a realização da perícia, nos termos definidos, depois de considerar, designadamente, que o relatório “não é uma perícia à contabilidade da A., nem cumpre com o objeto que foi determinado pelo Tribunal”.

O Perito nomeado esclareceu que respondeu a “todas as questões da base instrutória”, “cumprindo, assim, o objetivo principal” da perícia.

Notificado do esclarecimento, o R., em 19 de março de 2014, requereu que se determinasse, ao Perito, a realização da perícia, nos termos definidos, ou procedesse à nomeação de novo perito.

Em 29 de abril de 2014, foi proferido despacho, que indeferiu quer a elaboração de novo relatório pericial, quer a nomeação de novo perito, conforme fls. 24.

Inconformado com esse despacho, recorreu o Réu, o qual, tendo alegado, formulou essencialmente as seguintes conclusões:

a) A perícia substituiu-se ao Tribunal e alheou-se por completo da análise da escrita, que era o objeto da perícia.

b) Uma perícia à contabilidade teria de passar pela análise à escrita, designadamente de todos os documentos de suporte, dos extratos de conta da contabilidade, dos balancetes analíticos, do livro de razão, dos diários de movimentos e do extrato de conciliação bancária.

c) O Tribunal a quo violou, pelo menos, o disposto no art. 485.º do CPC.

d) Deveria o Tribunal a quo ter determinado a realização de nova (segunda) perícia, como requerido, pois outro sentido útil não se pode retirar do seu requerimento, a requerer a nomeação de novo perito.

e) A interpretação do Tribunal privilegiou a forma em detrimento da substância.

f) Tal entendimento, além de não se coadunar com os modernos princípios do direito processual, do primado da verdade material, viola o princípio do direito à defesa efetiva, por impedir que o Recorrente faça uso de um meio de prova que o Tribunal julgou como relevante e necessário para o apuramento da verdade.

g) O Tribunal a quo, assim, violou o disposto no art. 487.º do CPC.

Pretende o Réu, com o provimento do recurso, a revogação da decisão recorrida e a sua substituição por outra, que determine que o Perito realize (complete) a perícia de acordo com o determinado pelo Tribunal, procedendo, designadamente, à análise dos documentos constantes da contabilidade, ou, subsidiariamente, que nomeie novo Perito, para a realização de segunda (nova) perícia.

Contra-alegou a A., mas a sua alegação não foi admitida, por intempestividade.

Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

Neste recurso, está em discussão, essencialmente, a realização da perícia e o pedido de segunda perícia.

II – FUNDAMENTAÇÃO

2.1. Descrita a dinâmica processual relevante, importa então conhecer do objeto do recurso, delimitado pelas suas conclusões, e cujas questões jurídicas emergentes acabam de ser especificadas.

O despacho recorrido a indeferir a pretensão do Apelante baseou-se, por um lado, na sua inutilidade, depois do Perito ter declarado ter cumprido as suas funções e, por outro, não ter sido requerida a realização de segunda perícia, nomeadamente nos termos previstos no art. 487.º do CPC.

Tendo a decisão recorrida sido proferida em 29 de abril de 2014, é aplicável, ao recurso, o regime do Código de Processo Civil (CPC), aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho.

A prova pericial tem por fim a perceção ou apreciação de factos por meio de peritos, quando sejam necessários conhecimentos especiais que os julgadores não possuem, ou quando os factos, relativos a pessoas, não devam ser objeto de inspeção judicial – art. 388.º do Código Civil (CC).

A força probatória das respostas dos peritos é fixada livremente pelo tribunal – art. 389.º do CC.

A perícia é colegial, quando é realizada por mais de um perito, e singular, quando é realizada por um único perito – art. 468.º do CPC.

A perícia colegial tem lugar nos casos que se revestem especialmente complexos ou que exigem conhecimentos de matérias distintas ou ainda quando é requerida por qualquer uma das partes.

Ao perito, que é obrigado a desempenhar com diligência a função, podem ser opostos obstáculos à sua nomeação (art. 470.º do CPC), assim como pode ser substituído pelo juiz se desempenhar de forma negligente o encargo que lhe foi cometido (art. 469.º, n.º 2, do CPC).

Do resultado da perícia, expresso em relatório, no qual o perito se pronuncia fundamentadamente sobre o seu objeto, podem as partes reclamar se entenderem que há qualquer deficiência, obscuridade ou contradição ou se as suas conclusões não se mostrarem devidamente fundamentadas (art. 485.º, n.º 2, do CPC).

Nesse caso, e ainda por iniciativa do juiz, o perito é então chamado a completar, esclarecer ou fundamentar o relatório apresentado.

Por outro lado, qualquer das partes pode ainda requerer que se proceda a segunda perícia, no prazo de dez dias a contar do conhecimento do resultado, alegando fundadamente as razões da sua discordância relativamente ao relatório pericial apresentado (art. 487.º, n.º 1, do CPC). Oficiosamente, também o tribunal pode ordenar, e a todo o tempo, a realização de segunda perícia, desde que a julgue necessária ao apuramento da verdade (art. 487.º, n.º 2, do CPC).

No contexto legal descrito, as partes dispõem de amplos poderes, quer quanto à nomeação dos peritos, quer em relação ao resultado da perícia, podendo ainda culminar na realização de uma segunda perícia, nomeadamente com a alegação fundada das razões da discordância relativamente ao relatório pericial apresentado. Deste modo, com uma nova perícia alarga-se a prova pericial e potencia-se a descoberta da verdade, porquanto o resultado de ambas as perícias é livremente apreciado pelo tribunal, sem qualquer tipo de restrição ou invalidade (art. 489.º do CPC).  

 Cotejando agora os autos, desde logo, se verifica que o Apelante não reclamou contra o relatório pericial apresentado, nomeadamente nos termos do n.º 2 do art. 485.º do CPC. Com efeito, não se especificou qualquer deficiência, obscuridade ou contradição no relatório pericial, ou que as conclusões não se mostravam devidamente fundamentadas, limitando-se o Apelante a pedir que o Perito realizasse a perícia, nos termos decididos pelo Tribunal, nomeadamente com a perícia à contabilidade da Apelada. No fundo, pretendia-se que o mesmo Perito realizasse nova perícia, porquanto a realizada não obedecia, no entender do Apelante, a uma boa prática.

Como se viu, a lei contempla a substituição do perito quando este desempenhe de forma negligente a função cometida, não se estendendo ao resultado da perícia. Este pode originar as reclamações das partes ou os pedidos de esclarecimento ou aditamento por ordem do juiz, assim como a realização de segunda perícia, requerida por qualquer uma das partes ou ordenada, oficiosamente, pelo juiz. A materialidade do relatório pericial, mesmo que deficiente, não determina a substituição do perito ou a repetição da perícia, o que bem se compreende, quer pelos conhecimentos específicos e especializados exigidos aos peritos, quer pelos obstáculos que podem ser opostos à sua nomeação.

Nestas circunstâncias, existe uma clara impossibilidade legal de se determinar a repetição da perícia realizada, nomeadamente pelo mesmo perito.

Se, porém, o Apelante tinha o entendimento de que o relatório pericial apresentado padecia de deficiência, por a perícia não ter sido devidamente realizada, ou não se mostrava suficientemente fundamentado, podia usar da faculdade de reclamação, nos termos do n.º 2 do art. 485.º do CPC, o que, reconhecidamente, não fez.

Por outro lado, o Apelante podia também, no prazo de dez dias a contar do conhecimento do resultado da perícia, requerer que se procedesse a segunda perícia, alegando fundadamente as razões da sua discordância relativamente ao relatório pericial apresentado, sendo tal perícia realizada por outro perito (art. 488.º do CPC).

No entanto, o Apelante, ao contrário do ora alegado, não requereu a segunda perícia, nomeadamente nos termos expressos no n.º 1 do art. 487.º do CPC, para além do respetivo requerimento ter sido intempestivo, dado ter sido apresentado para além do prazo de dez dias contado da notificação do relatório pericial.

Na verdade, no requerimento de 19 de março de 2014, o Apelante nunca se referiu à realização de uma segunda perícia, sendo certo que não pode interpretar-se a declaração com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto, ainda que imperfeitamente expresso (art. 238.º, n.º 1, do CC). Aliás, o pedido de nomeação de novo perito surge para o “caso de recusa” do perito nomeado (fls. 20), o que pressupõe uma mera substituição de perito, num recorte distinto do regime aplicável à segunda perícia, que comporta, necessariamente, a nomeação de outro perito.

Por isso, o mencionado requerimento, além de intempestivo, não formaliza um pedido de realização de segunda perícia.

 A decisão recorrida, que indeferiu a pretensão da realização de nova perícia ou a nomeação de outro perito, além de não ter violado qualquer disposição legal, designadamente as especificadas pelo Apelante, também não violou qualquer princípio processual, não comprometendo o apuramento da verdade material, nem a tutela jurisdicional efetiva, nomeadamente o direito à defesa.

Efetivamente, o Apelante teve oportunidade de reclamar contra o relatório pericial apresentado, de modo a poder ser completado ou esclarecido, pelo Perito, como também teve oportunidade de requerer a realização de segunda perícia, necessariamente por outro perito.

Contudo, o Apelante não fez uso dessas faculdades legais, tendo antes preferido outros meios, com desconhecimento da motivação associada, mas que a lei, como se demonstrou, não admite.

Nestas condições, além de não estar comprometido o apuramento da verdade material na ação, objetivo sempre presente, também o direito à tutela jurisdicional efetiva do Apelante esteve acautelado, nomeadamente no âmbito específico da prova pericial.

Assim, não relevando as conclusões, improcede claramente o recurso.

2.2. Em conclusão, pode extrair-se de mais relevante:

I. Ao perito, obrigado a desempenhar com diligência a função, podem ser opostos obstáculos à sua nomeação, assim como pode ser substituído pelo juiz se desempenhar de forma negligente o encargo cometido.

II. A materialidade do relatório pericial, mesmo que deficiente, não determina a substituição do perito ou a repetição da perícia.

III. Tendo uma parte o entendimento de que o relatório pericial apresentado padece de deficiência ou não se mostre devidamente fundamentado, pode usar da faculdade de reclamação, nos termos do n.º 2 do art. 485.º do Código de Processo Civil.

IV. Não pode realizar-se segunda perícia, quando não tenha sido requerida nos termos expressos no n.º 1 do art. 487.º do Código de Processo Civil e o requerimento tenha sido intempestivo.

2.3. O Apelante, na medida em que ficou vencido por decaimento, é responsável pelo pagamento das custas, por efeito da regra da causalidade consagrada no art. 527.º, n.º s 1 e 2, do CPC.

III – DECISÃO

Pelo exposto, decide-se:

1) Negar provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida.

2) Condenar o Apelante (Réu) no pagamento das custas.

Lisboa, 16 de outubro de 2014

(Olindo dos Santos Geraldes)

(Lúcia Sousa)

(Magda Geraldes)