Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
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| Relator: | NUNO TEIXEIRA | ||
| Descritores: | PROVA DOCUMENTOS CONTABILÍSTICOS PROVA POR PRESUNÇÃO QUALIFICAÇÃO DA INSOLVÊNCIA PRESUNÇÃO INILIDÍVEL SUBTRACÇÃO DE BENS OU DIREITOS DISPOSIÇÃO DE BENS DO DEVEDOR EXERCÍCIO DE ACTIVIDADE A COBERTO DA PERSONALIDADE COLECTIVA DA EMPRESA VENDA DE BENS ABAIXO DO CUSTO DE AQUISIÇÃO IRREGULARIDADES CONTABILÍSTICAS | ||
| Nº do Documento: | RL | ||
| Data do Acordão: | 10/14/2025 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Texto Parcial: | N | ||
| Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
| Decisão: | IMPROCEDENTE | ||
| Sumário: | Sumário (do relator) – artigo 663.º, n.º 7, do Código de Processo Civil. I – Apesar de ser possível a prova de um facto sujeito a registo contabilístico sem menção nos documentos da contabilidade, utilizando todos os meios de prova admitidos por lei, o facto do próprio registo contabilístico apenas poderá resultar do teor dos documentos contabilísticos, escritos ou electrónicos, onde aquele foi (ou deveria ter sido) lançado. II – Não é lógico nem juridicamente seguro dar como provado que um produto se encontrava com data próxima do fim de validade quando não se sabe qual é o prazo de validade efectivo, pois falta o referencial objetivo indispensável para formular qualquer juízo sobre a proximidade dessa data. III – Estando em causa uma das presunções do nº 2 do artigo 186º do CIRE, basta provar-se um dos vários factos constantes das suas várias alíneas, para se presumir, de forma inilidível, que a insolvência é culposa e que existe nexo de causalidade entre a actuação do administrador de direito ou de facto (ou o insolvente pessoa singular) e a criação ou agravamento do estado de insolvência. IV – Para o preenchimento da previsão legal constante da alínea d) do nº 2 do artigo 186º do CIRE é necessário que dos factos apurados decorra que os administradores, de facto ou de direito, da devedora ou o insolvente pessoa singular, tivessem realizado: i) actos de disposição; ii) de bens do devedor, com algum relevo económico; iii) em proveito pessoal ou de terceiros. V – Por sua vez, a alínea a) do nº 2 do artigo 186º do CIRE trata da subtracção de bens ou direitos da massa insolvente de forma clandestina ou sem título que a justifique. Ou seja, estamos perante a subtracção total ou em parte considerável do património do devedor, realizada através de comportamentos meramente factuais, de forma clandestina, sem sequer gerar a aparência de uma saída de bens causalmente baseada em actos jurídicos ou transações fictícias, subtração essa executada para evitar a responsabilidade financeira do devedor. VI – Integra apenas o fundamento da qualificação da insolvência como culposa, previsto na alínea d) do nº 2 do artigo 186º do CIRE, a emissão de cheques sacados da conta da insolvente, no valor global de 189.622,60 €, a favor de terceiros, sem qualquer contrapartida para aquela. VII – O facto fundamento da qualificação da insolvência previsto pela alínea e) do nº 2 do art. 186º remete para a figura da desconsideração ou levantamento da personalidade jurídica de pessoas colectivas que tem subjacente o princípio estrutural do direito societário, da autonomia e separação jurídica e patrimonial da sociedade relativamente aos sócios, e, como consequência, ou a imputação aos sócios de negócios ou actos que celebraram sob a “capa” da personalidade jurídica da sociedade para contornar uma qualquer limitação ou proibição legal ou contratual do próprio sócio, ou a perda do benefício da limitação da responsabilidade destes perante os credores daquela quando utilizam a sociedade para satisfazer interesses alheios à própria sociedade e desrespeitar os interesses dos credores desta. VIII – Com a previsão da alínea b) do n.º 2 do artigo 186.º pretende-se combater a existência de negócios sem contrapartidas, bem como o prosseguimento de actividade ou prática de actos com vista à satisfação de interesses pessoais e/ou de terceiros, tudo práticas que não podem deixar de serem consideradas ruinosas para a insolvente, exigindo-se ainda “que tenha ocorrido criação ou agravamento artificial de passivos ou prejuízos ou de redução de lucros da insolvente (sendo que a segunda parte da alínea contempla exemplos de actos de empobrecimento que permitem assim concluir). IX – Preenche a previsão normativa que consta da alínea b) do nº 2 do artigo 186º, a venda de bioestimulantes, pela insolvente, a uma sociedade terceira (cujo objecto social não inclui sequer o comércio ou o uso de bioestimulantes agrícolas), abaixo do custo de aquisição, com redução de 35% a 66%, no valor global. X – O facto de a insolvente omitir o registo de determinados factos na contabilidade (bens móveis registados na contabilidade da sociedade, que não foram localizados nem apreendidos; cheques emitidos pela insolvente que não foram espelhados na contabilidade da empresa; contrato de cessão da posição contratual e transferências bancárias realizadas para pagamento do respectivo preço não registadas contabilisticamente) é suficiente para se concluir pela verificação da terceira das situações prevista na alínea h) do nº 2 do artigo 186º, na medida em que impediu a compreensão da sua real situação patrimonial e financeira antes da sua declaração de insolvência. | ||
| Decisão Texto Parcial: | |||
| Decisão Texto Integral: | Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa, 1. A sociedade “ECOVEG CHEMICAL EUROPE – CIÊNCIAS NUTRICIONAIS E BIOLÓGICAS, S.A., pessoa colectiva nº 505517132 foi declarada insolvente por sentença proferida em 11/04/2024, transitada em julgado. Na sequência de tal declaração o Administrador da Insolvência (AI) veio requerer a abertura do incidente de qualificação da insolvência como culposa, devendo ser afectado pela referida qualificação JD, como administrador da insolvente. Este pedido foi acompanhado pelo Ministério Público, o qual emitiu parecer no sentido da qualificação como culposa, devendo ser afetado por tal qualificação o supra identificado administrador. Declarado aberto o incidente de qualificação, foi notificada a insolvente e citado o Requerido, tendo este deduzido oposição, através da qual refutou as acusações constantes do requerimento do AI, concluindo que não praticou actos que possam ser subsumidos ao artigo 186.º do CIRE e que a insolvência não deve ser qualificada como culposa. Foi proferido despacho saneador, fixado o objecto do processo e enunciados os temas da prova. Por fim, realizada a audiência de julgamento, foi proferida sentença cujo dispositivo se transcreve: “Face ao exposto, nos termos do disposto nos arts. 189.º, n.º 1, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, o tribunal decide qualificar como culposa a insolvência de Ecoveg Chemical Europe – Ciências Nutricionais e Biológicas, S.A., pessoa colectiva n.º 505170132, com sede na Estrada Municipal 502, 2870-705 Atalaia, Montijo, e, consequentemente: a) declarar afectado pela qualificação da insolvência JD; b) declarar a inibição de JD para a administração do património de terceiros, pelo período de quatro anos; c) declarar a inibição de JD pelo período de quatro anos para o exercício do comércio e para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de actividade económica, empresa pública ou cooperativa; d) determinar a perda de quaisquer créditos sobre a insolvência ou sobre a massa insolvente detidos por JD, condenando-o a restituir os bens e direitos já recebidos em pagamento desses créditos; e) condenar JD a indemnizar os credores da sociedade insolvente no montante dos créditos sobre a insolvência não satisfeitos após o encerramento da liquidação, com o limite máximo de € 250.362 e até às forças do respectivo património. Custas do incidente pelo afectado pela qualificação – art. 303.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas. Registe e notifique.” É desta sentença que vem interposto recurso, pelo afectado pela qualificação, que o termina alinhando as seguintes conclusões, que se transcrevem: 1. (…). 2. Entende o aqui Recorrente, no entanto, que a douta sentença errou na apreciação da matéria de facto e na aplicação do direito, violando, nomeadamente o disposto nos artigos 186.º do CIRE. 3. A prova produzida, nomeadamente os documentos juntos e as testemunhas inquiridas em audiência de discussão e julgamento permitem concluir que alguns factos foram incorrectamente julgados e que outros factos deveriam ter sido dados como provados. 4. Relativamente aos factos constantes na matéria de facto dada como provada em 14., 18. e 19. foi demonstrado pela prova produzida nos presentes autos que os referidos movimentos financeiros não estavam reflectidos na contabilidade à data da declaração de Insolvência em virtude de a contabilidade ainda não ter recepcionado os documentos necessários à conciliação bancária (extractos bancários), sendo que alguns deles foram tratados em data posterior e outros não tinham que o ser nesse período. 5. Não devendo constar nos referidos factos que tais movimentos não foram reflectidos na contabilidade como forma de demonstrar falta de organização contabilística quando os mesmos se reportam a períodos de tempo (Dezembro de 2023 a Março de 2024) cujo prazo para tratamento contabilístico ainda não havia decorrido à data da declaração de Insolvência. 6. Tanto os documentos juntos aos autos, como sejam os documentos juntos com a petição da insolvência, os extractos bancários e contas correntes juntos aos autos em 05.12.2024, o balancete da empresa junto aos autos em 20.12.2024 e o IES e Modelo 22 entregues em 14.01.2025 como os depoimentos prestados pelo Recorrente, administrador da Insolvente, as testemunhas JC, Técnico Oficial de Contas da Insolvente e MR, responsável administrativa e financeira da Insolvente, permitem concluir que os referidos movimentos forma reflectidos na contabilidade. 7. Da inquirição da testemunha JC, Técnico Oficial de Contas da Insolvente, também resulta, claramente que a Insolvente tinha a contabilidade organizada e se alguns documentos não foram tratados contabilisticamente em seu devido tempo, tal deveu-se ao facto de ter sido apresentada a Insolvência e de alguns documentos não terem chegado atempadamente. 8. Também a testemunha MR, responsável administrativa e financeira da Insolvente, reforçou que toda a documentação atinente aos referidos factos foi tratada e enviada para a contabilidade. Aliás a mesma reforça que quando não tinha acesso a documentação que justificasse movimentos bancários a solicitava, recordando-se de terem passado por si todos os documentos atinentes aos factos relatados em 14., 18. e 19. 9. Pelo que, relativamente ao facto dado como provado em 14. deve retirar-se a referência “(…) sem contrapartida contabilística.”, relativamente ao facto dado como provado em 18. deve ser retirada a parte em que se diz: “(…) contrato que não se encontra reflectido na contabilidade da insolvente.”, e, relativamente ao facto dado como provado em 19., deve ser retirada a parte em que se diz: “(…) que não se mostram reflectidas na contabilidade da insolvente.” 10. Devendo, na sequência da prova produzida, ser aditado um novo facto nos seguintes termos: «À data da declaração de insolvência os factos descritos em 14, 18. e 19. Não estavam reflectidos na contabilidade, mas os referidos documentos e extractos bancários foram tratados e justificados no encerramento de contas entregue em Julho de 2024.» 11. Considera o Recorrente que não podia deixar de se dar como provado que os cheques referidos no facto dado como provado em 14., alíneas i) a vi) no montante global de €95.566,60 foram entregues a MM, sócio gerente da sociedade comercial MRM Lezíria Unipessoal, Lda., consubstanciaram devolução de adiantamento que havia sido efectuado pela referida empresa à Insolvente, conforme decorre do depoimento prestado pelo próprio sócio-gerente da empresa e portador dos referidos cheques e das declarações prestadas pela testemunha MR, que confirmaram, por um lado a entrega de adiantamento por conta de produtos que entretanto se constatou não ser possível satisfazer e a devolução do referido adiantamento através dos referidos cheques que foram preenchidos por MR, assinados pelo Recorrente, emitidos ao portador e entregues ao referido MM por MR que, inclusive explicou que os ia emitindo á medida que a empresa tinha liquidez para proceder ao seu pagamento. 12. Devendo, por conseguinte, ser aditado um novo facto à matéria dada como provada nos seguintes termos: «Os cheques referidos em 14., alíneas i) a vi) no montante global de €95.566,60, emitidos ao portador, foram entregues a MM, sócio-gerente da sociedade comercial MRM Lezíria Unipessoal, Lda., consubstanciaram devolução de adiantamento que havia sido efectuado pela referida empresa à Insolvente.» 13. Mais considera o Recorrente que se deveria ter dado como provado que os produtos vendidos abaixo do preço de custo à empresa Modernlife, Unipessoal, Lda. estavam próximos do fim de validade, não só atendendo ao tipo de produtos em causa – tratavam-se de produtos orgânicos, bioestimulantes, destinados à agricultura com período de validade - mas também às declarações de parte prestadas pelo aqui Recorrente, como também pelo depoimento prestado pela testemunha DD. 14. Vender produtos abaixo do preço de custo, porque estão próximas do prazo de validade não revela qualquer negócio ruinoso para a empresa. 15. Aliás, decorre dos autos que o próprio Administrador de Insolvência recorreu ao instituto de venda antecipada de bens da empresa, em virtude de ter constatado que alguns deles estavam com data de validade próxima do fim. 16. Devendo ser aditado ao facto referido em 27. que os referidos produtos se encontravam próximos ou em fim de validade, nos seguintes termos: «As mercadorias referidas em 11) correspondem a bioestimulantes, tratando-se de produto composto por material orgânico/microrganismos, que se encontravam com data próxima do fim de validade.» 17. A referida alteração da matéria de facto nos termos expostos permitirá aferir que não só a Insolvente foi uma empresa que manteve sempre a contabilidade organizada, justificando os movimentos bancários e as operações comerciais realizadas, como não celebrou quaisquer negócios ruinosos para empresa, conforme se concluiu na douta sentença. 18. O Tribunal “a quo” também errou na aplicação do direito, nomeadamente do artigo 186.º do CIRE, formando a sua convicção com base em factos incorrectamente julgados e interpretando disposições legais aplicáveis de forma errada. 19. Nos presentes autos foram imputadas à Insolvente condutas passíveis de preencher as alíneas a) a e) e h) do n.º 2 do art. 186.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas. 20. Nos termos do n.º 1 do artigo 186.º do CIRE a insolvência será culposa quando (…). 21. A qualificação de uma insolvência como culposa, implica uma conduta ilícita e culposa do devedor ou dos seus administradores. 22. E a ilicitude de tal conduta compõe-se de elementos objectivos e subjectivos, sendo que, tal juízo de valor deverá ser emitido pelo tribunal, de acordo com o que resultar dos factos. 23. E, por isso, a definição constante do n.º 1 do artigo 186.º é complementada, nos n.º 2 e 3 do mesmo dispositivo legal, por um conjunto de presunções (inilidíveis e ilidíveis) que facilitam a qualificação como culposa da insolvência do devedor que não seja uma pessoa singular, sempre que os seus administradores, de direito ou de facto, tenham adoptado um dos comportamentos aí descritos. 24. Nos presentes autos, segundo o Tribunal “a quo” estavam em causa os seguintes factos-base passíveis, se demonstrados, de integrar presunção de insolvência culposa: (…). 25. Relativamente à dissipação de bens descritos no imobilizado da empresa insolvente, no valor global de €25.961,19, apenas se provou que, de facto, eles não se encontravam fisicamente na empresa, tendo o Tribunal “a quo” considerando – e bem – que a circunstância de se ter demonstrado que na contabilidade da insolvente se encontram bens imoveis, pertença da sociedade insolvente que não foram localizados não permite, sem mais, a verificação da apontada presunção. 26. A que acresce o facto de não ter sido possível confirmar a sua existência física e que os mesmos tivessem sido, danificados, inutilizados, ocultados ou feitos desaparecer pelo administrador da Insolvente, ora Recorrente, no período temporal relevante para a qualificação da insolvência – 3 anos anteriores ao início do processo de insolvência. 27. Razão pela qual a referida conduta não se subsume na previsão da al. a) do n.º 2 do artigo 186.º do CIRE. 28. Relativamente às vendas realizadas à sociedade Comercial Modernlife, Lda. em 21 e 22/12/2023 também não se pode aceitar que tal negócio tenha sido ruinoso em prejuízo da empresa e em benefício de pessoa com ele especialmente relacionada. 29. O negócio em si não pode, nem deve, considerar-se ruinoso pura e simplesmente pelo facto de ter ficado com um debito de difícil cobrança. 30. E por outro lado, conforme supra se referiu, ficou demonstrado que os produtos entregues, destinados à agricultura eram perecíveis e estavam em data de fim de prazo, importando escoar os referidos produtos para fazer face às despesas correntes, sendo uma oportunidade para a Insolvente poder vender produtos que, dentro de um curto espaço de tempo, iria ficar fora de prazo de validade e, por isso, inúteis. 31. A referida empresa, tal como ficou demonstrado, era cliente da Insolvente desde 2017 e, inclusive, tinha um crédito em conta corrente à data do aludido negócio – inferior ao total da mercadoria vendida, é certo, mas tinha crédito junto da Insolvente, sendo que o valor facturado deduzido das notas de credito e do credito existente em conta corrente que ficou por liquidar (€34.778,21) não constitui, no entender do ora Recorrente, agravamento de passivo ou negocio ruinoso, em prejuízo de empresa e em benefício de pessoa espacialmente relacionada coma empresa que caiba na previsão prevista na al. b) e e) do n.º 2 do artigo 186.º do CIRE. 32. Também não vê o ora Recorrente qualquer indício da verificação da al. e) do n.º 2 do artigo 186.º do CIRE, já que dos factos dados como provados nos autos e considerando os que devem ser dados como provados na reapreciação da matéria de facto nada decorre que permita ao Tribunal “a quo” encontrar previsão no referido normativo legal. 33. Relativamente à apropriação da quantia global de 189.622,60€, reflectida na emissão de vários cheques destinados a favorecer terceiros, sem contrapartida contabilística, também não pode aceitar a interpretação realizada pelo Tribunal “a quo”, subsumindo-as nas alíneas a), d) e e) do n.º 2 doa artigo 186.º do CIRE. 34. Conforme consta da matéria provada os cheques identificados com os números 6014270739, 6014270836, 6014271418, 6014271515, 6014271612, 6014271709, no montante total de € 95.566,60, foram emitidos ao portador e entregues a MM, sócio gerente da sociedade comercial M.R.M. Lezíria Unipessoal, Lda.. 35. E, conforme supra se deixou demonstrado supra, com alteração da matéria probatória, o referido valor foi entregue para devolução de adiantamentos que haviam sido realizados pela M.R.M. Lezíria Unipessoal, Lda. à Insolvente, por forma a satisfazer as necessidades de fornecimento de produtos destinados à actividade comercial da empresa e, que à data, foi solicitado ao sócio-gerente da empresa que o fizesse, por dificuldades de tesouraria da Insolvente. 36. E a empresa em causa, M.R.M. Lezíria Unipessoal, Lda., conforme resulta dos autos, cliente da Insolvente há já vários anos, existindo uma relação de confiança que permitia quer à Insolvente solicitar adiantamentos, quer ao cliente solicitar a sua devolução assim que foi informado que a Devedora não ia satisfazer os pedidos. 37. Pelos que tais quantias se deverão dar como justificadas a título de devolução de adiantamentos, não cabendo nas previsões normativas das al. a), d) e e) do artigo 186.º do CIRE, que aliás nem sequer se mostram provadas. 38. O mesmo se diga relativamente aos cheques com os n.ºs 6014271806, 6014271903, 6014272097, 6014272194, 6014272485 e 6014272582, emitidos entre 17/01 e 07/02/2024, no valor global de € 94.056, a favor da sociedade SNUTT Trading Nutrition Solutions, Unipessoal, Lda. 39. Consta da matéria dada como provada que foram entregues para pagamento dos valores previstos no escrito particular datado de 01/01/2023, referentes a armazém que a Insolvente teve necessidade de arrendar no decorrer do ano de 2023, nomeadamente para fazer face ao armazenamento de substrato de plantas, que foram chegando em contentores vindos da Estónia para entrega a Cliente (Plantgrou) que se dedicava à produção de plantas para a indústria de tomate em larga escala. 40. Constatando-se estarem justificados os referidos movimentos bancários junto da contabilidade na conta “outros devedores”, razão pela qual não se encontra verificada a previsão prevista nas al. a) d) e e) do artigo 186.º do CIRE. 41. A emissão dos referidos cheques não configuram qualquer atitude, por parte do Recorrente, de dissipação “no todo ou em parte considerável”, do património do devedor. 42. Também não consubstanciam qualquer acto de disposição dos bens do devedor em proveito pessoal ou de terceiros, pois todos eles tinham contrapartida, sendo que nos caso dos cheques emitidos ao portador e entregues aos sócio-gerente da MRM Lezira, Unipessoal, Lda. se tratou da devolução de um adiantamento efectuado para pagamento de produtos que não iriam ser entregues e no caso da SNUTT Trading, Lda. para pagamento de rendas mensais devidas por conta do armazenamento de produtos que a Devedora adquiriu. 43. E, também não se concebe como podem as referidas condutas configurar o exercício, a coberto da personalidade colectiva da empresa, se for o caso, de uma actividade em proveito pessoal ou de terceiros e em prejuízo da empresa já que nenhum dos factos dados como provados ou agora aditados o revelam. 44. O ora Recorrente também não pode aceitar que seja imputada falta de organização contabilística, prevista na al. h) do n.º 2 do artigo 186.º do CIRE. 45. Fundamenta o Tribunal a quo” que (…). 46. Os bens móveis que constam do mapa de imobilizado da insolvente e que não foram encontrados resumem-se a 4 equipamentos, adquiridos há muitos anos e sem grande expressão económica no património do devedor, tendo sido, pelo menos identificado que o aparelho de ar condicionado estava na posse de DD. 47. O facto de existir a referida divergência entre o mapa de existências da contabilidade e não terem sido localizados fisicamente é irrelevante, em termos contabilísticos, atenta a dimensão da expressão do referido mapa, não sendo suficiente para se afirmar da falta de organização contabilística. 48. Os cheques emitidos pela insolvente e descritos em 14), ao contrario do que afirma o Tribunal “a quo” e conforme supra se expos, foram espelhados na contabilidade da empresa, nomeadamente os relativos ao exercício de 2023, tendo os documentos sido tratados pela MR que afirmou peremptoriamente ter emitido os cheques, encontrando-se o referido movimento bancário justificado e enviado para a contabilidade, tendo sido tratados como devolução de adiantamentos à MRM Lezíria Unipessoal, Lda. e conciliados com os extractos bancários por referência ao número de cheque correspondente ao movimento, sendo que a justificação do seu levantamento por terceiros deverá ser justificada junto da referida empresa MRM Lezíria Unipessoal, Lda. 49. Também não corresponde à verdade que os cheques identificados em vii) a x) do facto 14. não estivessem inscritos na contabilidade, pois conforme supra se demonstrou a responsável pelo tratamento das justificações e conciliações bancárias, tendo constatado os referidos movimentos obteve o referido suporte que permitia justificar tais movimentos e enviou para a contabilidade. 50. Assim como não corresponde à verdade que o contrato de cessão da posição contratual celebrado com a empresa Lusogoiás e as transferências bancárias realizadas para pagamento do respectivo valor foram tratados administrativamente e enviados para a contabilidade da devedora. 51. Note-se que à excepção dos cheques constantes em i) e ii) e do contrato de subarrendamento celebrado com a SNUTT, Lda. que se reportam ao exercício de 2023 e constam da contabilidade da empresa que suporta o encerramento de contas entregue em Julho de 2024, todos os outros factos reportam ao primeiro trimestre de 2024, cujos documentos, à data, conforme foi assumido pelo contabilista da empresa JC, demoraram a chegar, nomeadamente tendo em conta a declaração de insolvência da devedora e a intervenção do Administrador de Insolvência. 52. Assim, nenhum facto dos autos reporta à previsão instituída na al. h) do artigo 186.º do CIRE na medida em que constituam o incumprimento substancial da obrigação de manter a contabilidade organizada, situação de todo não verificada nos presentes autos – como, aliás bem considera o Tribunal “a quo”, 53. Assim como não cabem no conceito de contabilidade fictícia ou dupla contabilidade, na medida em que constituam divergências entre o que se encontra espelhado na contabilidade da insolvente e a realidade. 54. Note-se a empresa devedora apresentou-se à insolvência como sendo uma empresa de génese familiar que foi crescendo atingindo valores de facturação significativos que lhe permitiram aceder a operações bancárias que, entretanto, com a crise instalada no sector derivada do aumento do custos dos produtos e transporte de mercadorias começou a sentir dificuldades em cumprir. 55. Tratava-se duma empresa certificada onde a exigência de organização contabilística e certificações de contas era cumprida de forma correcta, pelo que mesmo a considerar que aqueles factos possam não ter sido justificados – o que não se concede – entende o Recorrente não ser relevante na percepção que a contabilidade transmite sobre a situação patrimonial e financeira do devedor, 56. O que, efectivamente ocorre no âmbito dos autos de Insolvência! 57. A sentença recorrida violou o disposto no artigo 186.º do CIRE, ao considerar que houve conduta dolosa por parte do Recorrente e que as condutas descritas se subsumiam nas alíneas a), b) d) e) e h) sem que decorram dos factos dados como provados, com a modificação que se impõe através da reapreciação da prova produzida. 58. Devendo a decisão proferida ser revogada e substituída por outra que qualifique a insolvência como fortuita. O Ministério Público apresentou contra-alegações, que terminou do seguinte modo: 1 - Resulta da douta sentença recorrida que, em consonância com a prova produzida nos autos, os factos apurados são suscetíveis de integrar a previsão das alíneas a), b), d), e) e h), do n.º 2 do artigo 186.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas. 2 - Ao contrário do alegado pelo recorrente, foram corretamente dados como provados os factos 14), 18), 19), 27), os quais se encontram devidamente alicerçados na prova produzida, pelo que não devem ser alterados. 3 - Com efeito, considerando o período temporal decorrido entre a data do cumprimento das obrigações fiscais e os momentos processuais ocorridos desde o início do processo de insolvência (data da declaração de insolência, relatório a que alude o art. 155.º do CIRE e o início do incidente de qualificação da insolvência), não colhe o argumento que tais obrigações fiscais foram cumpridas e, como tal, tais factos são subsumíveis à al. h) do n.º 2 do art. 186.º do CIRE. 4 - Por outro lado, não se logrou demonstrar que a sociedade comercial MRM Lezíria Unipessoal, Lda., tivesse efetuado adiantamentos à insolvente por conta de mercadorias a adquirir e que os cheques n.ºs 6014270739, 6014270836, 6014271418, 6014271515, 6014271612, 6014271709, no montante total de 95.566,60€, fossem destinados à restituição dos valores adiantados em virtude de a insolvente não conseguir satisfazer as encomendas. 5 - O Tribunal recorrido considerou, e bem, que “o legal representante da insolvente, a coberto da personalidade colectiva da empresa, celebrou negócio ruinoso para a sociedade, em prejuízo desta e em benefício da sociedade Modernlife, Lda.”, não em virtude o preenchimento da al. c) do n.º 2 do art. 186.º do CIRE, que entendeu não verificado, mas sim da própria venda à sociedade Modernlife, Lda., em face do objeto social desta - distinto do objeto social da sociedade insolvente, e da indiciada inexistência de atividade desta sociedade. 6 - De igual modo, atenta a prova produzida em audiência de julgamento, não se vislumbra qualquer justificação para o aditamento de novos factos. 7 - Acresce que não há qualquer dúvida que DD, filho do recorrente e que integrou o conselho de administração da sociedade insolvente desde 13-2-2017 até 25-3-2024, deve ser considerado como pessoa especialmente relacionada com a devedora, considerando também que foi gerente, até 20-10-2023, da sociedade SNUTT Trading Nutrition Solutions, Unipessoal, Lda., a favor da qual foram emitidos os cheques n.ºs 6014271806, 6014271903, 6014272097, 6014272194, 6014272485 e 6014272582. 8 - Por último, ao contrário do alegado pelo recorrente, verifica-se igualmente preenchida a al. h) do art. 186.º, n.º 2, do CIRE, uma vez que estão refletidos na contabilidade vários bens móveis, pertença da sociedade insolvente, que não foram localizados nem apreendidos - facto 7), assim como os cheques descritos no facto 14) e o contrato de cessão da posição contratual celebrado em 07/03/202, bem como as transferências bancárias realizadas para pagamento do respetivo preço, não foram espelhados na contabilidade da empresa. 9 - Não tendo sido violada qualquer norma jurídica e tendo o Tribunal a quo efetuado o correto enquadramento fáctico-jurídico, não merece reparo a qualificação como culposa da insolvência da sociedade Ecoveg Chemical Europe – Ciências Nutricionais e Biológicas, S.A., nos termos do disposto no artigo 186.º, n.ºs 1 e 2, alíneas a), b), d), e) e h), abrangendo tal qualificação JD. O recurso foi admitido como de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo. Colhidos os vistos, cumpre decidir. 2. Como é sabido, o teor das conclusões formuladas pelo recorrente define o objecto e delimitam o âmbito do recurso (artigos 608º, nº 2, 609º, 635º, nº 3 e 639º, nº 1 todos do Código de Processo Civil). Assim, de acordo com as alegações de recurso, as questões a apreciar são as seguintes: - impugnação da matéria de facto; e - verificação dos requisitos para a qualificação da insolvência como culposa, afectando o ora Recorrente, com fundamento nas alíneas a), b), d), e) e h) do nº 2 do artigo 186º do CIRE. 2.1. Em primeiro lugar, pretende o Recorrente que se proceda à alteração da matéria de facto dada por assente, mediante a alteração dos factos dados como provados sobre o nºs 14, 18, 19 e 27 e o aditamento de dois factos novos aos factos provados, cuja redacção sugere nas conclusões 10 e 12. Com efeito, o recorrente que pretenda impugnar a decisão sobre a matéria de facto terá de cumprir os requisitos constantes do artigo 640º do CPC, sob pena de rejeição do recurso. E, segundo a alínea b) do nº 1 terá de fundamentar a discordância quanto à decisão de facto proferida, indicando, por um lado, os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, com enunciação na motivação do recurso e síntese nas conclusões e, por outro, especificar, na motivação, os meios de prova, constantes do processo ou que nele tenham sido registados, que, no seu entender, determinam uma decisão diversa quanto a cada um dos factos.[1] Ora, cremos que o recurso interposto cumpre aqueles requisitos, tendo em conta que, nas conclusões, se enunciam os pontos de factos que o Recorrente considera que deveriam ser julgados provados, indicando os meios de prova que, na sua perspectiva, impõem decisão diversa, sugerindo, por fim, a redacção a dar a cada um daqueles pontos de facto. Na verdade, de acordo com a jurisprudência consolidada do STJ, “o n.º 1 do art. 640.º do CPC não exige que o apelante se pronuncie sobre a valoração alegadamente correcta dos meios de prova por si indicados, ou seja, sobre as razões pelas quais cada um deles deverá conduzir a decisão diversa da impugnada”.[2] Concluímos, pois, que a impugnação da matéria de facto cumpre, no essencial, o ónus de alegação constante da alínea b) do nº 1 do artigo 640º do CPC. Assim, analisemos, primeiramente, a requerida impugnação da matéria de facto, na parte em que visa a alteração dos factos provados sob os nºs 14, 18, 19 e 27. 2.1.1. Quanto aos factos constantes dos nºs 14, 18 e 19, pretende o Recorrente que deles se retire, respectivamente, a referência “(…) sem contrapartida contabilística” “(…) contrato que não se encontra reflectido na contabilidade da insolvente” e “(…)que não se mostram reflectidos na contabilidade da insolvente”, uma vez que, quer a prova documental (documentos juntos com a petição de insolvência, extractos bancários e contas correntes juntos aos autos em 05/12/2024, balancete da empresa junto aos autos em 20/12/2024 e o IES e o Modelo 22 entregues em 14/01/2025), quer a prova testemunhal produzida em audiência (depoimentos de JC, TOC da insolvente, e de MR, responsável administrativa e financeira da insolvente) permitem concluir que os movimentos aí referidos foram reflectidos na contabilidade e “se alguns não foram tratados contabilisticamente em seu devido tempo, tal deveu-se ao facto de ter sido apresentada a insolvência e de alguns documentos não terem chegado atempadamente” (cfr. conclusões 6 e 7). Na motivação, o tribunal a quo afirma que o que consta do nº 14, no que se refere à falta de contrapartida contabilística, resulta da informação resultante do requerimento de 12/09/2024, e dos esclarecimentos prestados pelo AI, bem como do depoimento da testemunha JC, que explicou que, à data em que cessou funções (em Janeiro de 2024), ainda não haviam recebido todos os extractos bancários e que, à data da apresentação à insolvência, ainda não se encontravam encerradas as contas de exercício do ano de 2023. Por sua vez, no que se refere aos factos provados sob os nºs 18 e 19, “atendeu-se ao teor do contrato de cessão da posição contratual a Lusogoiás e às notas de lançamento das transferências bancárias (requerimento de 02/08/2024), bem como aos esclarecimentos prestados pelo sr. Administrador da insolvência em audiência, o depoimento prestado pelo proposto afectado (que confirmou a realização da cessão da posição contratual e o recebimento do respectivo preço) e o depoimento da testemunha JC, que explicou ter tratado das transferências iniciais relativas à cessão da posição contratual e que estas iriam constar da contabilidade da empresa até 20/05/2024”. E, na verdade, nem da prova documental, nem da prova testemunhal invocada pelo Recorrente resulta a demonstração objectiva de que, pelo menos até 07/06/2024 (data em que foi recolhido nos serviços de contabilidade da insolvente o último balancete conhecido do AI), os referidos movimentos haviam sido registados na contabilidade da devedora. Com efeito, nem naquele balancete, nem nos documentos juntos pelo Recorrente a 14/01/2025 (IES de 2023, entregue a 15/07/2024, e declaração de IRC entregue a 31/05/2024), consta qualquer menção, quer aos cheques referidos no nº 14, quer ao contrato de cessão da posição contratual e transferências bancárias realizadas para pagamento do preço dessa cessão. Essa omissão de registo contabilístico foi confirmada tanto nas declarações do AI, como no depoimento da testemunha JC, que foi TOC da insolvente até Janeiro de 2024. Aquele referiu que nem os cheques nem os demais movimentos haviam sido lançados dado não constarem no último balancete conhecido, enquanto este, apesar de confirmar que havia entregue as últimas declarações (IES e declaração modelo 22), esclareceu que “efectivamente os cheques não foram reflectidos na contabilidade” e que nunca viu o contrato de cessão da posição contratual. Além do mais, é o próprio Recorrido a admitir que, pelo menos à data da declaração de insolvência (26/03/2024), os factos descritos em 14, 18 e 19 não estavam reflectidos na contabilidade, quando pede o aditamento de novo facto como consta em 10 das conclusões. Do teor dos documentos juntos (IES 2023, entregue em 09/08/2024, e declaração de IRC, modelo 22, entregue em 15/07/2024) não é possível afirmar se um determinado pagamento ou recebimento foi inscrito na contabilidade. Nas declarações fiscais só constam os saldos das contas (de caixa, de fornecedores, de outras contas a pagar e a receber, etc), sem qualquer discriminação, o que pressupõe que as transações sejam oportunamente inscritas na contabilidade para permitir ao contabilista proceder ao apuramento dos saldos de cada conta no encerramento do exercício (de acordo com os factos que tem registados na contabilidade). Só através dos extratos das contas do cliente e/ou do fornecedor a que respeitam os pagamentos e os recebimentos é possível apurar se foram ou não registados. Ora, da contabilidade organizada até à data da apresentação do parecer pelo AI, não constavam esses elementos, sendo que é esse o elemento temporal relevante. De todo o modo, apesar de ser possível a prova de um facto sujeito a registo contabilístico sem menção nos documentos da contabilidade, utilizando todos os meios de prova admitidos por lei, o certo é que o facto do próprio registo contabilístico – que é o que está em causa nos factos 14, 18 e 19 – apenas poderá resultar do teor dos documentos contabilísticos, escritos ou electrónicos, onde aquele foi (ou deveria ter sido) lançado. Daí que, se não foi registado, só podemos concluir que não se encontra reflectido na contabilidade, como bem concluiu o tribunal a quo. Desta feita, mantém-se a redacção dos factos constantes dos nºs 14, 18 e 19 dos factos provados, não se admitindo, pelas mesmas razões, o aditamento de novo facto, nos termos constantes da conclusão 10. 2.1.2. No seguimento do que havia alegado relativamente ao factos constantes do nº 14 dos factos provados, pretende ainda o Recorrente o aditamento de um novo facto aos factos provados com o seguinte teor: “Os cheques referidos em 14., alíneas i) a vi) no montante global de € 95.566,60, emitidos ao portador, foram entregues a MM, sócio-gerente da sociedade comercial MRM Lezíria Unipessoal, Lda., consubstanciaram devolução de adiantamento que havia sido efectuado pela referida empresa à insolvente”. Considera o Recorrente que tal factualidade – que corresponde, no essencial, ao alegado no artigo 16º da oposição – decorre das declarações prestadas pelo sócio-gerente dessa empresa e portador dos referidos cheques, bem como do depoimento da testemunha MR. Mas, segundo o entendimento do tribunal “da contabilidade da insolvente e designadamente, do extracto da conta cliente da Modernlife não resultam os alegados adiantamentos”, acrescentado que “as declarações do proposto afectado não permitiram (…) confirmar a verificação de tais factos, porquanto mostraram-se em diversos momentos contraditórias, não tendo convencido o tribunal da veracidade do relatado.” Com efeito, os alegados adiantamentos não resultam dos documentos contabilísticos juntos aos autos. Ora, como já referido, apesar de a prova de um facto sujeito a registo contabilístico que não se encontra mencionado nos documentos da contabilidade poder ser feita através de outros meios de prova admitidos pelo CPC, como a prova testemunhal, a prova pericial ou documentos externos, enfrenta dificuldades de valoração e credibilidade em tribunal, dado o princípio da prevalência da prova documental contabilística. Consequentemente, os depoimentos imprecisos ou genéricos raramente poderão ser considerados suficientes para fazer prova plena de factos sujeitos a registo contabilístico, a menos que sejam complementados por documentos ou por perícia confiável. Por essa razão, os simples depoimentos das testemunhas MM e MR não seriam suficientes para colmatar aquela lacuna probatória, sendo certo que nem um, nem outro esclareceram a razão de os alegados “adiantamentos”, terem sido devolvidos, através de cheques ao portador, a MM e CL. Se os alegados adiantamentos foram feitos pela empresa à insolvente, como refere o Recorrente, qual a razão para os cheques não terem sido emitidos a favor da sociedade MRM Lezíria Unipessoal, Lda.? A resposta talvez seja a mencionada na motivação da sentença: “à data da declaração de insolvência, o saldo entre as duas empresas era nulo e que, sendo a MRM Lezíria, Lda. cliente da insolvente, pelo menos, desde 01/01/2021, não é visível qualquer adiantamento”, facto que se deduz quer do extracto de cliente junto com o requerimento de 05/12/2024, quer do balancete analítico de 31/12/2023[3], junto com o requerimento de 20/12/2024, documentos estes que podemos analisar. Assim, apesar de resultar, claramente, do depoimento da testemunha MR que os cheques referidos em 14, alíneas i) a vi) no montante global de € 95.566,60 foram emitidos ao portador e entregues a MM, sócio gerente da sociedade MRM Lezíria, Unipessoal, Lda. – facto que, aliás, consta como provado sob o nº 28 –, não ficou minimamente esclarecido que tivessem sido emitidos para “devolução de adiantamento que havia sido efectuado pela referida empresa à insolvente”. Assim, improcede igualmente a conclusão 12. das alegações recursórias. 2.1.3. O Recorrente termina a sua impugnação da matéria de facto, pedindo ainda que o facto provado sob o nº 27 passe a incluir que os produtos se encontravam próximos do fim de validade, ficando com a seguinte redacção: “As mercadorias referidas em 11) correspondem a bioestimulantes, tratando-se de produto composto por material orgânico/microorganismos, que se encontravam em data próxima do fim de validade”. Sustenta que tal alteração se justifica em razão da própria natureza dos produtos (orgânicos destinados à agricultura e com prazo de validade) e das declarações do Recorrente e da testemunha DD. Sobre este facto refere o tribunal a quo que “a resposta parcialmente negativa aos arts. 21.º e 23.º da oposição resultou da ausência de prova, já que não especificou, nem demonstrou documentalmente o proposto afectado as datas de validade das mercadorias vendidas de modo a justificar a sua venda abaixo do custo de aquisição, nem foi comprovada a ocorrência de reclamações para trocas de produtos que justificassem a emissão de notas de crédito a favor de Modernlife. Na verdade, quer o depoimento de JD, quer da testemunha DD, à data ainda membro do conselho de administração da insolvente, não se mostraram convincentes e, pelo contrário, resultaram incoerentes com os documentos comprovativos da relação comercial entre a insolvente e Modernlife.” Da motivação da sentença é de realçar que o proposto afectado não especificou, nem demonstrou documentalmente (nem testemunhalmente, diga-se) as datas de validade das mercadorias vendidas. Ora, não é lógico nem juridicamente seguro dar como provado que um produto se encontrava com data próxima do fim de validade quando não se sabe qual é o prazo de validade efectivo, pois falta o referencial objetivo indispensável para formular qualquer juízo sobre a proximidade dessa data. O facto (desconhecido ou presumido) “data próxima do fim de validade” depende necessariamente do conhecimento da data limite de validade fixada pelo produtor ou vendedor, que deve estar identificada de forma clara. Sem a data concreta, qualquer conclusão acerca da proximidade – derivada de presunções, testemunhos ou mesmo sinais externos do produto – carece de um nexo lógico sólido e não respeita o princípio da certeza probatória. Pese embora os tribunais possam formar presunções judiciais baseadas em factos conhecidos (v.g. aspecto, condições de armazenamento, lotes) que permitam inferir a idade aproximada do produto, essas presunções, no entanto, têm de partir de bases factuais sólidas e serem sustentadas por máximas da experiência, sob pena de o juízo acerca do prazo de validade perder fiabilidade e correr o risco de ser arbitrário. Ou seja, o julgador só pode deduzir que o fim de validade está próximo se dispuser de dados concretos que permitam calcular ou estimar essa proximidade com segurança mínima.[4] Em suma, ignorando-se o prazo de validade dos produtos, como é o caso, a presunção de que “se encontravam em data próxima do fim de validade” é infundada. Assim, improcede também a conclusão 16. das alegações de recurso. Em suma, mantém-se a factualidade dada como provada na sentença. 3. A 1ª instância deu como provados os seguintes factos: 1. A sociedade Ecoveg Chemical Europe, Ciências Nutricionais e Biológicas, S.A., foi constituída em 09/10/2000, com sede na Estrada Municipal 502, Atalaia, Montijo, tendo por objecto social a importação, exportação, comércio e transformação de auxiliares biológicos, controle integrado, polinizadores, produtos químicos, adubos diversos para a agricultura e indústria em geral, produtos veterinários, rações para animais, mangas. 2. As funções de administrador da sociedade insolvente foram exercidas por JD desde a data da constituição da sociedade, ora como administrador único, ora como presidente do conselho de administração, sendo fiscal único FB. 3. DD integrou o conselho de administração da sociedade insolvente, exercendo o cargo de vogal, desde 13/02/2017 até 25/03/2024, data em que renunciou ao cargo, facto que foi inscrito no registo comercial em 08/04/2024. 4. DD é filho de JD e de AD. 5. Ecoveg Chemical Europe, Ciências Nutricionais e Biológicas S.A., apresentou-se à insolvência em 26/03/2024, na sequência de deliberação tomada pelos membros do conselho de administração JD e DD em 22/03/2024. 6. A sociedade veio a ser, nessa sequência, declarada insolvente por sentença proferida nos autos principais em 11/04/2024, transitada em julgado. 7. Constam da relação de bens constante do mapa de imobilizado da insolvente os seguintes equipamentos, no valor total de € 25.961,19: - aparelho de ar condicionado, adquirido em 2020, no valor de € 4.915,00; - balanças, sem identificação do ano de aquisição, no valor de € 4.296,19; - empilhador, da marca Dumper, sem indicação do ano de aquisição, no valor de € 10.500,00; - empilhador, da marca Dumper, adquirido em 2017, no valor de € 6.250,00. 8. Esses equipamentos não foram apreendidos no âmbito do processo de insolvência por não terem sido localizados. 9. A coberto das facturas n.º 23/1790, datada de 21/12/2023, no valor de € 48.630,60€, e n.º 23/1793, datada de 22/12/2023, no valor de € 3.210,98, a insolvente procedeu à venda de mercadoria diversa à sociedade MODERNLIFE - Unipessoal, Lda., com sede na Estrada de Alfragide, Lote 107, Edifício A2, em Alfragide. 10. A insolvente, para além de crédito anterior no montante de € 12.092,33, emitiu a favor da referida sociedade a nota de crédito n.º NC 23/87, datada de 21/12/2023, no valor de € 4.952,76, assim como a nota de crédito n.º NC 23/89, datada de 27/12/2023, no valor de € 18,28. 11. Pelo menos 12 das mercadorias constantes das referidas facturas foram vendidas abaixo do custo de aquisição, com redução entre 35% a 66%. 12. O valor em dívida de € 34.778,21 por parte de Modernlife, Lda., não foi pago à insolvente, nem mesmo após a carta que foi dirigida pelo sr. administrador da insolvência àquela sociedade em 30/04/2024 para cobrança, que veio devolvida com a indicação de “mudou-se”. 13. O objecto social da sociedade Modernlife, Unipessoal, Lda., da qual é sócio-gerente LP, é relativo a “importação, exportação, representação, distribuição e comércio de artigos, produtos e equipamentos electrónicos e eléctricos, máquinas para a indústria, materiais de construção, marroquinaria, acessórios de moda, vestuário, calçado e relojoaria”, não se mostrando averbada prestação de contas a partir de 2018. 14. No período compreendido entre 19/12/2023 e 07/02/2024, foram emitidos os seguintes cheques sacados sobre a conta da insolvente no Millennium BCP e assinados por JD, no montante total € 189.622,60, sem contrapartida contabilística: i) o cheque n.º 6014270739, datado de 19/12/2023, no valor de € 13.950,00, a favor de MM; ii) o cheque n.º 6014270836, datado de 19/12/2023, no valor de € 16.050,00, a favor de MM; iii) o cheque n.º 6014271418, datado de 09/01/2024, no valor de € 14.425,00, a favor de CL; iv) o cheque n.º 6014271515, datado de 09/01/2024, no valor de € 15.575,00€, a favor de CL; v) o cheque n.º 6014271612, datado de 16/01/2024, no valor de € 17.066,60, a favor de FS; vi) o cheque n.º 6014271709, datado de 16/01/2024, no valor de € 18.500,00, a favor de FS; vii) o cheque n.º 6014271806, datado de 17/01/2024, no valor de € 21.300,00€, a favor da sociedade SNUTT Trading Nutrition Solutions, Unipessoal, Lda.; viii) o cheque n.º 6014271903, datado de 18/01/2024, no valor de 14.200,00€, a favor da sociedade SNUTT Trading Nutrition Solutions, Unipessoal, Lda.; ix) o cheque n.º 6014272097, datado de 18/01/2024, no valor de € 28.400,00, a favor da sociedade SNUTT Trading Nutrition Solutions, Unipessoal, Lda.; x) o cheque n.º 6014272194, datado de 19/01/2024, no valor de € 21.300,00, a favor da sociedade SNUTT Trading Nutrition Solutions, Unipessoal, Lda.; xi) o cheque n.º 6014272485, datado de 07/02/2024, no valor de € 3.300,00, a favor da sociedade SNUTT Trading Nutrition Solutions, Unipessoal, Lda.; xii) o cheque n.º 6014272582, datado de 07/02/2024, no valor de € 5.556,00, a favor da sociedade SNUTT Trading Nutrition Solutions, Unipessoal, Lda.. 15. A sociedade SNUTT – Trading & Nutrition Solutions, Unipessoal, Lda., foi constituída em 24/07/2021, com o seguinte objecto social: importação, exportação, comércio de produtos químicos para a agricultura e para uso na indústria agro-química, comércio e transformação de auxiliares biológicos, controle integrado, polinizadores, adubos diversos para a agricultura e indústria em geral, produtos veterinários, rações para animais, mangas e filmes em plástico, regas, fertilizantes químicos e orgânicos, fertilizantes, meios para o crescimento das plantas; substratos destinados à agricultura, horticultura e silvicultura, turfas e substratos, sementes, bolbos e plantas, máquinas agrícolas e alfaias, prestação de serviços e assistência técnica, desinfecção e desinfestação, formulação e embalamento de nutrientes químicos e biológicos e orgânicos de produtos para a agricultura e serviços afins. Ciências nutricionais e biológicas, nomeadamente nutrição vegetal. Compra e venda de imóveis e revenda de imóveis adquiridos para esse fim; arrendamento de bens imobiliários (prédios rústicos e urbanos adquiridos para esse fim). 16. À data da constituição desta sociedade era único sócio e gerente DD, que renunciou à gerência em 20/10/2023, facto levado a registo comercial em 30/11/2023. 17. Na mesma data (20/10/2023), foi nomeada gerente da sociedade SNUTT LL, a quem, em 09/11/2023, foi transmitida a quota social de DD. 18. Por contrato celebrado a 07/03/2024, a insolvente cedeu a sua posição contratual a Lusogoiás - Investimentos Imobiliários, Lda., no âmbito do contrato de locação financeira imobiliária n.º 450013522, celebrado a 22/03/2018 com Banco Millennium-BCP, pelo valor de € 85.200,00, contrato que não se encontra reflectido na contabilidade da insolvente. 19. O preço da cessão de posição contratual foi liquidado por Lusogoiás, Lda., através de transferências bancárias realizadas em 17/01/2024, nos valores de € 35.000, € 20.200 e € 30.000, que não se mostram reflectidas na contabilidade da insolvente. 20. No âmbito do processo de insolvência foram reconhecidos créditos no montante global de € 2.895.341,50, correspondentes a dívidas laborais (€ 42.203,34 – DD), tributárias (€ 4.648,07 – IVA 2024 e IMI), bancárias (€ 2.763.761,33) e de fornecedores (€ 84.728,75). 21. Para a massa insolvente foram apreendidos bens/direitos avaliados no valor total de € 365.910,13: o prédio urbano sito em Severo, freguesia de Alcochete, com a área de 5.480m2, composto por terreno destinado a construção, registado na Conservatória do Registo Predial de Alcochete, freguesia de Alcochete sob o n.º 83/19850620 e inscrito na matriz predial respectiva sob o artigo n.º 6449, com o valor patrimonial de € 177.735,64; o veículo pesado de mercadorias Renault, de matrícula …, do ano de 2006, com o valor de € 4.500,00; o veículo ligeiro de passageiros Peugeot 2008, de matrícula …, do ano 2021, com o valor de € 8.500,00; mercadorias em inventário com o valor provável de venda de € 45.860,00; linha de tabuleiros, semeador e enchedora no valor global de € 5.800,00; material informático de escritório e diversos no valor de € 1.000,00; saldo clientes/bancos apreendidos e a apreender no total de € 122.514,49. 22. No ano de 2020, a insolvente alcançou um volume de negócios no montante de € 4.969.344,67, apresentou um resultado líquido de € 33.105,91, o seu activo correspondia ao valor de € 4.363.409,95, o capital próprio ao valor de € 1.086.480,80 e o passivo ao valor de € 3.276.929,15. 23. No ano de 2021, a insolvente alcançou um volume de negócios no montante de € 5.035.769,51, apresentou um resultado líquido de € 9.402,09, o seu activo correspondia ao valor de € 4.408.211,17, o capital próprio ao valor de € 991.968,15 e o passivo ao valor de € 3.416.243,02. 24. No ano de 2022, a insolvente alcançou um volume de negócios no montante de € 5.586.237,48, apresentou um resultado líquido de € 58.673,35, o seu activo correspondia ao valor de € 4.737.672,99, o capital próprio ao valor de € 1.047.641,50 e o passivo ao valor de € 3.690.031,49. 25. O aparelho de ar condicionado mencionado em 7) foi entregue a DD. 26. A sociedade comercial Modernlife Unipessoal, Lda., é cliente da Insolvente desde, pelo menos, 2017, tendo-lhe sido facturados bens no ano de 2017 e, posteriormente, em 21 e 22/12/2023, sendo que a 31/12/2022 a Modernlife, Lda., tinha um saldo credor de € 12.092,33 e, desde 31/12/2023, apresenta um saldo devedor de € 34.778,21. 27. As mercadorias referidas em 11) correspondem a bioestimulantes, tratando-se de produto composto por material orgânico/micro-organismos. 28. Os cheques identificados com os números 6014270739, 6014270836, 6014271418, 6014271515, 6014271612, 6014271709 foram emitidos ao portador e entregues a MM, sócio gerente da sociedade comercial M.R.M. Lezíria Unipessoal, Lda.. 29. CL é companheira de MM. 30. A referida empresa, M.R.M. Lezíria Unipessoal, Lda., tinha relação comercial com a insolvente. 31. Os cheques números 6014271806, 6014271903, 6014272097, 6014272194, foram emitidos a favor de SNUTT – Trading & Nutrition Solutions, Unipessoal, Lda., para pagamento dos valores previstos no escrito particular datado de 01/01/2023, referentes a armazém que a Insolvente teve necessidade de arrendar no decorrer do ano de 2023, nomeadamente para fazer face ao armazenamento de substrato de plantas, que foram chegando em contentores vindos da Estónia para entrega a Cliente (Plantgrou) que se dedicava à produção de plantas para a indústria de tomate em larga escala. 32. Por escrito particular datado de 01/01/2023, SNUTT – Trading & Nutrition Solutions, Unipessoal, Lda., declarou dar em sub-arrendamento a Ecoveg Chemical Europe, Ciências Nutricionais e Biológicas S.A., o imóvel que detinha em regime de comodato sito na Zona Industrial de Almeirim, lote 110, em Almeirim, pelo prazo de um ano, não renovável, mediante o pagamento da renda anual de € 85.200, a liquidar até ao termo do contrato, tendo o aludido escrito sido assinado por LL em representação da primeira sociedade. 33. O mencionado escrito particular não foi reflectido na contabilidade da insolvente, mas consta ali na conta “outros devedores” o montante de € 85.200 a favor de SNUTT – Trading & Nutrition Solutions, Unipessoal, Lda., referente aos cheques a favor desta e acima identificados em 14) vii) a x). 34. As transferências bancárias referidas em 19) encontram-se reflectidas no extracto bancário da Insolvente. 35. No ano de 2023, a insolvente alcançou um volume de negócios no montante de € 4.354.164,50, apresentou um resultado líquido negativo de € 212.928,43, o seu activo correspondia ao valor de € 3.673.078,89, o capital próprio ao valor de € 834.713,07 e o passivo ao valor de € 2.838.365,82, conforme IES apresentada em 09/08/2024. 36. A insolvente apresentou declaração para efeitos de IRC do ano de 2023, em 15/07/2024, na qual indicou o resultado líquido negativo de € 212.928,43, o volume de negócios de € 4.354.164,50. 4. Ainda segundo a sentença recorrida, “não se provaram os arts. 8.º, 9.º, 10.º, 11.º, 16.º, 21.º (na parte em que se alega que as mercadorias tinham datas de validade muito próximas do seu término), 23.º, 27.º (na parte em que se alega que os cheques foram entregues para devolução de montante entregue a título de adiantamento para fornecimento de mercadorias que a Insolvente não conseguiu satisfazer), 29.º (na parte em que se alega que FS é funcionário de M.R.M. Lezíria, Unipessoal, Lda.), 30.º (na parte em que se alega que a partir do momento em que a Insolvente comunicou que não ia conseguir satisfazer os pedidos, o seu sócio-gerente exigiu de imediato ao Opoente que lhe fosse devolvido o adiantamento prestado), 31.º, 36.º, 37.º, 45.º a 48.º da oposição.” 5. Tendo em conta a matéria de facto dada por assente pela 1ª instância, cumpre agora dar resposta às demais questões colocadas pelo Recorrente, as quais passam por saber se a factualidade supra descrita se mostra suficiente para o preenchimento dos requisitos previstos no artigo 186º, nº 2, alíneas a), b), d), e) e h) do CIRE com vista à qualificação da insolvência como culposa, afectando-o com essa qualificação. 5.1. O artigo 185º do CIRE prevê dois tipos de insolvência: fortuita e culposa. Será culposa “quando a situação tiver sido criada ou agravada em consequência da actuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência.” (artigo 186º, nº 1 do CIRE). Assim, para qualificar a insolvência como culposa torna-se necessário; a) que ocorra uma actuação do devedor ou dos seus administradores, relevando aqui quer a actuação dos administradores de direito, quer a actuação dos administradores de facto; b) que essa actuação seja dolosa ou com culpa grave, excluindo-se, assim, a culpa leve; c) exigindo-se ainda um nexo causal entre essa conduta e a situação de insolvência, ou seja, aquela actuação deve ter criado a situação de insolvência ou, pelo menos, deve tê-la agravado; e, por fim, d) que aquela actuação tenha ocorrido nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência.[5] Contudo, de forma a garantir uma maior “eficiência da ordem jurídica na responsabilização dos administradores por condutas censuráveis que originaram ou agravaram insolvências”[6] e também para facilitar o intérprete, nos nºs 2 e 3 do artigo 186º veio o legislador estabelecer dois conjuntos de presunções: no nº 2 um grupo de presunções iure et de iure de insolvência culposa de administradores de direito e de facto do insolvente e do próprio insolvente pessoa singular; e, no nº 3 um elenco de presunções iuris tantum de culpa grave dos administradores de direito e de facto e do próprio insolvente pessoa singular.[7] As primeiras, são presunções inilidíveis (artigo 350º, nº 2, in fine do Código Civil), como se deduz da letra da lei (“considera-se sempre culposa”), cujo efeito se estende quer à existência de culpa, quer à existência de um nexo causal entre a actuação do devedor insolvente e a criação ou agravamento da insolvência.[8] Já as segundas (do nº 3) apenas consagram presunções “de culpa grave, em resultado da actuação dos seus administradores, de direito ou de facto, mas não uma presunção de causalidade da sua conduta em relação à situação de insolvência, exigindo-se a demonstração, nos termos do art. 186º, nº 1, que a insolvência foi causada ou agravada em consequência dessa mesma conduta”.[9] [10] No caso de se tratar de presunções do nº 2 do artigo 186º do CIRE, portanto inilidíveis, quando se preencha algum dos factos elencados nas suas várias alíneas, “a única forma de escapar à qualificação da insolvência como culposa será a prova, pela pessoa afetada, de que não praticou o ato”.[11] 5.2. No caso dos autos, a sentença recorrida qualificou a insolvência como culposa, por julgar verificadas as circunstâncias a que alude o artigo 186º, nº 2, alíneas b) e e) – no que concerne ao negócio celebrado com a sociedade Modernlife, Lda. –, a), d) e e) – no que respeita à apropriação da quantia global de 189.622,60 €, reflectida na emissão de vários cheques destinados a favorecer terceiros, sem contrapartida contabilística – e h) – quanto a falta de organização contabilística. Analisemos, pois, cada uma daquelas qualificativas da insolvência como culposa. 5.2.1. Em primeiro lugar a sentença recorrida qualificou a insolvência como culposa, por julgar verificadas as circunstâncias a que aludem as alíneas a), d) e e) do nº 2 do artigo 186º do CIRE , especificando que ao emitir os vários cheques mencionados no nº 14 dos factos provados, destinados a favorecer terceiros, sem justificação no seu comércio e/ou contabilística, o administrador da insolvente apropriou-se do valor global de 189.622,60 €, em prejuízo da insolvente e dos respectivos credores. Aquelas duas primeiras alíneas referem-se a situações em que os administradores, de direito ou de facto, tenham “destruído, danificado, inutilizado, ocultado, ou feito desaparecer, no todo ou em parte considerável, o património do devedor” (alínea a)) ou tenham “disposto dos bens do devedor em proveito pessoal ou de terceiros” (alínea d)). Traduzem actos que, prejudicando a situação patrimonial do insolvente, simultaneamente trazem benefícios para o administrador que os pratica ou para terceiros. A conduta prevista na alínea a) do nº 2 do artigo 186º pressupõe a subtracção de bens ou direitos da massa insolvente, de forma clandestina ou sem título justificativo, causadora de prejuízo relevante tendo em conta o valor dos bens ou direitos subtraídos. Ou seja, estamos perante a subtracção de elementos patrimoniais, no todo ou em parte, pertencentes ao devedor, levada a cabo através de comportamentos meramente factuais, realizados clandestinamente, sem sequer gerar a aparência de uma saída de bens causalmente baseada em actos ou negócios jurídicos fictícios, executando essa subtracção para fugir à responsabilidade patrimonial do devedor. Por sua vez, o proveito a que se refere a alínea d) do nº 2, do artigo 186º do CIRE “pressupõe a existência de um negócio válido, mas prejudicial ao devedor, como sucederá se os bens forem transmitidos a título gratuito ou mediante uma contrapartida pecuniária inferior ao seu valor real” (Ac. do TRG de 01/06/2017, proc. 280/14.4TBPVL-E.G1).[12] Assim, para o preenchimento da previsão legal constante desta alínea é necessário que dos factos apurados decorra que os administradores, de facto ou de direito, da devedora ou o insolvente pessoa singular, tivessem realizado: i) actos de disposição; ii) de bens do devedor; iii) em proveito pessoal ou de terceiros. E, embora a referida alínea não faça qualquer referência à importância económica dos bens de que o administrador dispôs em proveito pessoal ou de terceiros, tem-se defendido que se não estiver demonstrado o seu valor ou que os bens tinham algum relevo económico, a insolvência não deve, com fundamento nessa norma, ser qualificada como culposa.[13] Ora, cremos que a factualidade dada por provada no nºs 14 a 19, 28, 31 a 34 preenche, pelo menos, a previsão normativa que consta da alínea d) do nº 2 do artigo 186º. Com efeito, resultou provado, que os cheques identificados com os números 6014270739, 6014270836, 6014271418, 6014271515, 6014271612, 6014271709, no montante total de € 95.566,60, foram emitidos ao portador e entregues a MM, sócio gerente da sociedade comercial M.R.M. Lezíria Unipessoal, Lda., mas, apesar de tal sociedade ter relações comerciais com a insolvente, não ficou demonstrado que tivesse efectuado adiantamentos à insolvente por conta de mercadorias a adquirir e que os cheques acima indicados se tivessem destinado à restituição dos valores adiantados em virtude de a insolvente não conseguir satisfazer as encomendas. Tal comportamento leva a concluir, como se conclui na sentença recorrida, que “nenhuma justificação se encontra para a saída do património da insolvente do montante titulado pelos cheques entregues a MM, havendo que concluir-se que ao sacar estes cheques da conta da insolvente e ao entregá-los ao portador a terceiro, o administrador da insolvente logrou desviar avultada quantia do património da empresa e, com isso, beneficiar terceiro.” Trata-se, pois, de acto praticado pelo administrador da insolvente em benefício exclusivo de terceiros, no caso, os portadores dos cheques, que os preencheram conforme bem entenderam. Por sua vez, os cheques n.ºs 6014271806, 6014271903, 6014272097, 6014272194, 6014272485 e 6014272582 emitidos entre 17/01 e 07/02/2024, no valor global de € 94.056,00, a favor da sociedade SNUTT Trading Nutrition Solutions, Unipessoal, Lda (sociedade que foi constituída por DD, único sócio e gerente, qualidade que manteve até à renúncia à gerência em 20/10/2023, e que é filho de JD) destinaram-se ao “pagamento dos valores previstos no escrito particular datado de 01/01/2023, referentes a armazém que a Insolvente teve necessidade de arrendar no decorrer do ano de 2023, nomeadamente para fazer face ao armazenamento de substrato de plantas, que foram chegando em contentores vindos da Estónia para entrega a Cliente (Plantgrou) que se dedicava à produção de plantas para a indústria de tomate em larga escala.” (cfr. nº 31 dos factos provados).[14] Contudo, para além de o gerente DD ter de se considerar como pessoa especialmente relacionada com a devedora, nos termos do artigo 49º, nº 2, alíneas c) e d) do CIRE – por ser filho do administrador da insolvente e ter integrado o conselho de administração da sociedade insolvente, exercendo o cargo de vogal, entre 13/02/2017 e 25/04/2024, data em que renunciou ao cargo (cfr. os nºs 2, 3 e 4 dos factos provados) –, resulta assente que quem assinou o aludido escrito particular de 01/01/2023, em representação da sociedade SNUTT, não foi o seu então gerente, DD, mas antes LL. Ora, se à data, aquele era o único sócio e gerente da SNUTT, como bem se diz na sentença recorrida, “nenhuma justificação se vislumbra para que o aludido escrito haja sido subscrito por alguém que apenas dez/onze meses mais tarde veio a assumir a gerência e a adquirir a quota” (cfr. nº 17 dos factos provados). Aliás, o proposto afectado não provou qualquer razão que justificasse a assinatura do referido escrito por outrem que não o gerente da sociedade outorgante. Acresce que o referido escrito particular não foi reflectido na contabilidade da insolvente, apesar de aí constar na conta “outros devedores”, o montante de 85.200,00 € a favor da sociedade SNUTT, referente a cheques a favor desta, supra identificados (cfr. o nº 33 dos factos provados). Aliás, essa despesa corresponde a pagamento em benefício de um credor especialmente relacionado com a insolvente, em detrimento de todos os outros credores, quando se encontrava já em situação de insolvência, como é revelado pela data em que a mesma foi declarada e pelo confronto do passivo e do activo identificados nos autos. Daí que também este negócio se integre na qualificativa da insolvência constante da alínea d), do nº 2 do artigo 186º do CIRE. Já quanto à verificação da alínea a), contrariamente ao que tem sido decidido por alguma jurisprudência[15] e que, aliás, sustentámos em decisões anteriores, temos dúvidas que a factualidade descrita possa integrar a respectiva previsão legal. Com efeito, nenhum dos factos apurados consubstancia destruição, danificação, inutilização, ocultação ou desaparecimento do património do devedor, na totalidade ou em parte considerável. Apesar de, em resultado dos negócios celebrados pelo administrador, o património da sociedade insolvente ter ficado consideravelmente reduzido, dificultando, consequentemente, a cobrança dos créditos dos credores, o certo é que essa diminuição patrimonial tem como causa directa a celebração de negócios jurídicos formalmente válidos, pese embora deles tenha resultado a perda de parte substancial dos bens do património da insolvente, com benefício da própria insolvente e de terceiros, sem qualquer contrapartida. Contrariamente ao que resulta da alínea d) do nº 2 do artigo 186º, na alínea a) trata-se da subtracção de bens ou direitos da massa insolvente de forma clandestina ou sem título que a justifique. Ou seja, estamos perante a subtracção total ou em parte considerável do património do devedor, realizada através de comportamentos meramente factuais, de forma clandestina, sem sequer gerar a aparência de uma saída de bens causalmente baseada em actos jurídicos ou transações fictícias, subtração essa executada para evitar a responsabilidade financeira do devedor.[16] Posição semelhante foi assumida por esta Relação, no Acórdão proferido em 18/04/2023, no proc. 3146/20.5T8VFX-B.L1, onde se entendeu que “a diminuição patrimonial especificamente prevista na alínea a) distingue-se da diminuição patrimonial implícita à previsão da alínea d) porque, diversamente do que aqui sucede, aquela pressupõe ou reporta a uma ação física sobre os bens, no sentido de diminuir o seu valor comercial (destruição ou danificação), de os tornar imprestáveis ou inoperacionais para o fim a que tendem (inutilizado), ou, através da não revelação do seu paradeiro ou da sua colocação em paradeiro desconhecido ou local geográfica ou espacialmente inacessível à sua apreensão, de os subtrair à possibilidade de serem localizados e/ou fisicamente apreendidos e ingressarem na disponibilidade fáctica do AI e, assim, do processo de insolvência e da liquidação que nele se cumpra.”[17] No caso em apreço, como se disse, não está em causa a imputação ao administrador da insolvente de qualquer actividade física sobre os seus bens no sentido da subtração total ou em parte considerável dos seus bens. Apenas resultou dos autos a emissão de cheques sacados da conta da insolvente, no valor global de 189.622,60 €, a favor de terceiros, sem qualquer contrapartida para aquela. Em suma, não está em causa uma qualquer diminuição do património do insolvente por qualquer uma das acções previstas na alínea a) do nº 2 do artigo 186º do CIRE. Mas, não subsistem quaisquer dúvidas de que se mostram preenchidas as circunstâncias previstas nas alíneas d) do nº 2 do artigo 186º do CIRE. No entanto, cremos que esta factualidade causadora da emissão dos cheques já não preenche a previsão da alínea e), do nº 2 do artigo 186º . Como se refere no sumário do Acórdão desta Relação de 31/10/2023 (proc. 10840/21.1T8SNT-A.L1-1)[18], “o facto fundamento da qualificação da insolvência previsto pela alínea e) do nº 2 do art. 186º remete para a figura da desconsideração ou levantamento da personalidade jurídica de pessoas colectivas que tem subjacente o princípio estrutural do direito societário, da autonomia e separação jurídica e patrimonial da sociedade relativamente aos sócios, e, como consequência, ou a imputação aos sócios de negócios ou atos que celebraram sob a ‘capa’ da personalidade jurídica da sociedade para contornar uma qualquer limitação ou proibição legal ou contratual do próprio sócio, ou a perda do benefício da limitação da responsabilidade destes perante os credores daquela quando utilizam a sociedade para satisfazer interesses alheios à própria sociedade e desrespeitar os interesses dos credores desta”.[19] No caso dos autos, a sentença recorrida não específica em que medida a emissão de cheques ao portador e a sua posterior entrega ao sócio gerente da sociedade MRM, bem como a emissão dos demais cheques a favor da sociedade SNUTT consubstancia ou concretiza, nas palavras do Acórdão desta Relação supra citado, “a quebra daquele princípio estrutural do direito societário – da autonomia e separação jurídica e patrimonial da sociedade relativamente aos sócios – já que, per si, esses factos não têm a virtualidade de consubstanciar ou demonstrar um ato contra legem ou abusivo do[s] recorrente[s] enquanto sócio[accionista][s] da insolvente e por referência a essa mesma qualidade.” 5.2.2. Em segundo lugar, no que se refere à venda de mercadorias abaixo do custo de aquisição à sociedade Modernlife, Lda., a sentença recorrida qualificou a insolvência como culposa, por julgar verificadas as circunstâncias a que aludem as alíneas b) e e) do nº 2 artigo 186º do CIRE, assentando tal qualificação nas seguintes circunstâncias: em 21 e 22/12/2023, a insolvente procedeu à venda àquela sociedade de mercadorias (bioestimulantes - produto composto por material orgânico/micro-organismos) no valor global de € 51.841,58, sendo que 12 dessas mercadorias foram vendidas abaixo do custo de aquisição, com redução entre 35% a 66%; analisadas as facturas e as notas de crédito emitidas a favor de Modernlife, Lda., resultou o valor em dívida à insolvente de € 34.778,21 que não foi pago, nem mesmo após tentativa de cobrança realizada pelo administrador da insolvência. Ora, a alínea b) refere-se a situações em que os administradores, de direito ou de facto, tenham “criado ou agravado artificialmente passivos ou prejuízos, ou reduzido lucros, causando, nomeadamente, a celebração pelo devedor de negócios ruinosos em seu proveito ou no de pessoas com eles especialmente relacionados” (alínea b)). Trata-se de actos que, prejudicando a situação patrimonial do insolvente, ao mesmo tempo trazem benefícios para o administrador que os pratica ou para terceiros.[20] Como tem sido decidido, “com a previsão da alínea b) do n.º 2 do artigo 186.º, (…), visa-se combater a existência de negócios sem contrapartidas, bem como o prosseguimento de actividade ou prática de actos com vista à satisfação de interesses pessoais e/ou de terceiros, tudo práticas que não podem deixar de serem consideradas ruinosas para a insolvente”, exigindo-se ainda “que tenha ocorrido criação ou agravamento artificial de passivos ou prejuízos ou de redução de lucros da insolvente (sendo que a segunda parte da alínea contempla exemplos de actos de empobrecimento que permitem assim concluir).”[21] Nessa medida, assume relevância o facto de estar em causa negócio celebrado com pessoas/entidades especialmente relacionadas com a insolvente (cfr. artigo 49.º, n.º 2 do CIRE). Na verdade, se o fim último de qualquer sociedade comercial é o lucro (artigo 980.º do CC), as suas decisões deverão ter por base tal pressuposto (e não a prossecução de interesses alheios à sociedade), exigindo-se aos seus administradores que actuem com a diligência de um gestor criterioso e ordenado (artigo 64.º, n.º 1, alínea a) do CSC). Cremos que a factualidade dada por provada preenche a previsão normativa que consta da alínea b) do nº 2 do artigo 186º. Com efeito, resultou provado que a insolvente vendeu a uma sociedade terceira (cujo objecto social não inclui sequer o comércio ou o uso de bioestimulantes agrícolas), bioestimulantes, abaixo do custo de aquisição, com redução de 35% a 66%, no valor global de 51.841.58 €, sendo certo que desse valor ficou por pagar a quantia de 34.778,21 €. Acresce que, embora se tenha apurado a existência de uma conta corrente entre a insolvente e a sociedade Modernlife, Lda., o certo é que tal conta apenas espelha a aquisição de produtos no ano de 2017 e, posteriormente, no final do ano de 2023 (facto 26)). Ou seja, para além de se tratar de um negócio prejudicial para a insolvente – que não realizou sequer o capital investido na compra do produto vendido – resulta ainda num modo de transferir a propriedade do activo da insolvente, sem qualquer contrapartida, e que se enquadra na acção prevista na alínea b) do nº 2 do artigo 186º do CIRE. Sem dúvida que a celebração deste negócio contribuiu para o aumento do passivo da insolvente. Acresce que não se provou e alegada urgência da venda, com a justificação de serem produtos perecíveis e em fim de prazo. Mas, pelos motivos antes invocados, consideramos que também relativamente a este facto-base não se verifica a situação da alínea e) do nº 2 do artigo 186º. 5.2.3. A sentença recorrida qualificou ainda a insolvência como culposa, por julgar verificadas as circunstâncias a que alude a alínea h) do nº 2 do artigo 186º do CIRE, especificando, que não foi cumprida a obrigação de manter a contabilidade da insolvente organizada, omissão essa revelada “na existência de divergências entre o que se encontra espelhado na contabilidade da insolvente e a realidade”. No que respeita a esta alínea, o Recorrente contrapõe apenas que “nenhum facto dos autos reporta à previsão instituída na alínea h) do artigo 186º do CIRE na medida em que constituam o incumprimento substancial da obrigação de manter a contabilidade organizada” (cfr. conclusão 52.). Com efeito, entre as situações que determinam sempre a insolvência figura aquela em que o administrador tenha “incumprido em termos substanciais a obrigação de manter contabilidade organizada, mantido uma contabilidade fictícia ou uma dupla contabilidade ou praticado irregularidade com prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira do devedor” (artigo 186º, nº 2, alínea h) do CIRE). A primeira das condutas descritas na norma consiste em incumprir “em termos substanciais a obrigação de manter contabilidade organizada”, isto é, “organizá-la de maneira a que ela mostre fielmente a situação patrimonial e financeira da empresa e os resultados da mesma”.[22] Tal obrigação de “manter contabilidade organizada” deriva da “obrigação que impende sobre todo o comerciante de ter escrituração mercantil efectuada de acordo com a lei (artigo 29º do Código Comercial) e a obrigação fiscal de dispor de contabilidade organizada nos termos do sistema de normalização contabilística aprovado pelo DL nº 158/2009, de 13 de Julho[23], a que se referem o nº 2 do artigo 123º do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas [CIRC] e o nº 3 do artigo 17º do mesmo diploma.”[24] Já a conduta prevista de ter “praticado irregularidade com prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira do devedor” refere-se a uma violação do quadro regulamentar contabilístico (designadamente, as Normas Contabilísticas e de Relato Financeiro)[25], de tal ordem que gere um prejuízo relevante que afecte a compreensão da situação financeira e patrimonial do devedor. Pode consistir numa conduta ou num conjunto de condutas, desde que individual ou globalmente produza o resultado típico, isto é, resulte num prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira do devedor. Acresce que, face ao teor da alínea h), deve entender-se que “a presunção não é afastada pelo facto de a contabilidade estar entregue a terceiro no que diz respeito aos aspectos materiais”.[26] Na verdade, sendo a insolvente uma sociedade anónima, estava obrigada a manter contabilidade organizada (cfr. artigo 29º do Código Comercial), obrigação essa que recai sobre o administrador, nomeadamente mediante a contratação de profissional para o efeito (cfr. artigos 65º e 70º do Código das Sociedades Comerciais). Revertendo ao caso dos autos, verifica-se que resultou provado o seguinte: - na contabilidade encontram-se reflectidos vários bens móveis, pertença da sociedade insolvente, que não foram localizados nem apreendidos; - os cheques emitidos pela insolvente e descritos em 14. dos factos provados não foram espelhados na contabilidade da empresa, sendo certo que, ainda que o fossem, quanto aos identificados em i) a vi) não seria possível a conciliação de contas, por não ter sido justificada a sua emissão e por terem sido emitidos a favor de pessoas individuais. Assim, também quanto aos identificados em vii) a x) por não ter sido inscrito na contabilidade o suposto contrato de sub-arrendamento e em xi) e xii) por não justificada pela contabilidade a transacção que visavam liquidar; - o contrato de cessão da posição contratual celebrado em 07/03/2024 e as transferências bancárias realizadas em 17/01/2024 para pagamento do respectivo preço, não se mostram reflectidas na contabilidade. Perante esta factualidade, concordamos com a sentença recorrida, quando conclui que se encontra preenchida a alínea h) do nº 2 do artigo 186º do CIRE, uma vez que a falta de registo ou o registo incorrecto daqueles factos nos elementos contabilísticos da devedora influenciou de forma relevante a compreensão da sua situação financeira e patrimonial. O facto de a insolvente omitir o registo de tais factos na contabilidade é suficiente para se concluir pela verificação da terceira das situações prevista na alínea h) do nº 2 do artigo 186º, porque impediu a compreensão da sua real situação patrimonial e financeira antes da sua declaração de insolvência. Ora, essa verificação “implica necessariamente a qualificação da insolvência como culposa, sem necessidade de demonstração de culpa ou da existência de nexo causal com criação ou agravamento da situação de insolvência e independentemente das razões, motivações ou intenções que estiveram subjacentes ao comportamento que deu origem a essa situação”.[27] De todo o modo, estando em causa uma das presunções do nº 2 do artigo 186º do CIRE., basta provar-se um dos vários factos constantes das suas várias alíneas, para se presumir, de forma inilidível, que a insolvência é culposa e que existe nexo de causalidade entre a actuação do administrador de direito ou de facto e a criação ou agravamento do estado de insolvência. E, de forma a evitar a qualificação da insolvência como culposa e que essa qualificação o afectasse, impunha-se ao ora Recorrente, como administrador da sociedade, o dever de zelar para que a contabilidade não apresentasse este tipo de irregularidades. Estas não podiam deixar de ser do seu conhecimento por se reportarem ao exercício anterior ao ano da apresentação à insolvência, pelo que a manutenção da situação, designadamente o facto de os créditos e débitos não serem devidamente reflectidos na contabilidade, lhe é directamente imputável. 5.3. Em suma, a insolvência é qualificada como culposa, em resultado da verificação dos pressupostos constantes do artigo 186º, nºs 1, 2, alíneas, b), d) e h) do CIRE. Assim, improcedem, na totalidade, as alegações de recurso. As custas do recurso são da responsabilidade do ora apelante (art. 527º, n.ºs 1 e 2 do CPC). 6. Pelo exposto, acordam os Juízes da 1ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar a apelação totalmente improcedente, confirmando, consequentemente, a sentença recorrida. * Custas da apelação pelo Recorrente. Lisboa, 14 de Outubro de 2025 Nuno Teixeira Renata Linhares de Castro Amélia Sofia Rebelo _______________________________________________________ [1] Cfr. ABRANTES GERALDES, Recursos em Processo Civil, 6ª Edição, Almedina, Coimbra, 2020, pág. 196. [2] Cfr. STJ, Ac. de 27/04/2023 (proc. 1342/19.7T8AVR.P1.S1) e de 15/06/2023 (proc. 1929/20.5T8VRL.G1.S1), ambos disponíveis em www.dgsi.pt/jstj. [3] Neste documento a cliente M.R.M. LEZÍRIA UNIPESSOAL, LDA apresenta um saldo de 65.566,60 (devedor). [4] Sobre a prova por presunções, cfr. ANTUNES VARELA et alii, Manual de Processo Civil, Coimbra, 1984, pp. 484-488 e FRANCISCO FERREIRA DE ALMEIDA, Direito Processual Civil, volume II, 4ª Edição, Coimbra, 2025, pp. 281-283; na jurisprudência ver STJ, Ac. de 17/01/2023 (proc. 286/09.5TBSTS.P1.S1), disponível em www.dgsi.pt/jStj. [5] Cfr. SOVERAL MARTINS, Um Curso de Direito da Insolvência, volume I, 3ª Edição, Almedina, Coimbra, 2021, pág. 508 e ss.. [6] Cfr. CARNEIRO DA FRADA, “A Responsabilidade dos Administradores na Insolvência”, in Revista da Ordem dos Advogados, Ano 66, II, Lisboa, Setembro de 2006, pág. 701. [7] Cfr. MARIA DO ROSÁRIO EPIFÂNIO, Manual de Direito da Insolvência, 7ª Edição, Almedina, Coimbra, 2020, pág. 151. [8] Este é, cremos, o entendimento maioritário da jurisprudência e designadamente desta Relação. Cfr. STJ, Ac. de 15/02/2018 (proc. 7353/15.4T8VNG-A.P1.S1) e TRL, Acs. de 05/02/2019 (proc. 664/10.7TYLSB-C-L1-1) e de 23/03/2021 (proc. 1396/11.4TYLSB-B.L1-1). Também neste sentido, ver MENEZES LEITÃO, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, pág. 237; e SOVERAL MARTINS, Ob. Cit., pág. 512. [9] Cfr. MENEZES LEITÃO, Ob. Cit., pág. 237. [10] Este entendimento saiu reforçado com a reforma do CIRE levada a cabo pela Lei nº 9/2022, de 11 de Janeiro, que alterou o nº 3 do artigo 186º, acrescentando-lhe o advérbio “unicamente”. [11] Cfr. MARIA DO ROSÁRIO EPIFÂNIO, Ob. Cit., pág. 155. [12] Ambos os Acs. estão disponíveis em www.dgsi.pt/jtrg. [13] Cfr. TRG, Ac. de 01/06/2017 (proc. 1046/16.2T8GMR-B.G1), disponível em www.dgsi.pt/jtrg. [14] No aludido escrito particular foi convencionado “o pagamento da renda anual de € 85.200, a liquidar até ao termo do contrato” (cfr. nº 32 dos factos provados). [15] Cfr. TRG, Ac. de 02/05/2019 (proc. 665/14.6TBEPS-E.G2), disponível em www.dgsi.pt/jtrg. [16] Esta tem sido a interpretação dada ao artigo 164.2.4 da Ley Concursal (actual artigo 443º.1 do Texto Refundido de la Ley Concursal, cuja redacção é muito semelhante à do artigo 186º do CIRE), quer pela doutrina, quer pela jurisprudência espanhola, cujo regime da calificación inspirou a regulamentação constante do CIRE referente à qualificação da insolvência (cfr. AGUSTIN MACÍAS CASTILLO e RAMÓN JUEGA CUESTA, Texto Refundido de la Ley Concursal comentado, Lefebvre, Madrid, 2023, pág. 846 e ss. e JOSÉ LUIS DÍAZ ECHEGARAY, Calificación del Concurso, Doutrina y Jurisprudencia, 2ª Edición, Civitas, Pamplona, 2023, pág. 139 e ss.). [17] Disponível em www.dgsi.pt/jtrl. [18] Disponível em www.dgsi.pt/jtrl. [19] Para COUTINHO DE ABREU, Curso de Direito Comercial, volume II, 7ª Edição, Coimbra, 2012, pág. 174, a desconsideração da personalidade colectiva das sociedades, define-se como “a derrogação ou não observância da autonomia jurídico-subjetiva e/ou patrimonial das sociedades em face dos respetivos sócios”. Já na palavras de ANA PERESTRELO DE OLIVEIRA, Lições e Casos de Direito das Sociedades, Lisboa, 2023, pág. 87, “o levantamento da personalidade é, em suma, o instituto de enquadramento, baseado no princípio da boa fé, que permite a atribuição jurídica ou normativa das situações jurídicas a quem materialmente competem, ainda que formalmente pertençam a outro sujeito jurídico”. [20] Como refere CATARINA SERRA, nas alíneas a) a g) “…estão os factos a que, na maioria das situações, mais frequentemente se deve a insolvência: a prática de actos de delapidação do património do devedor e aquilo que, no contexto da insolvência de um devedor que não seja uma pessoa humana, podem considerar-se infracções ao dever geral de fidelidade (ou lealdade) dos administradores, formalmente consagrado no artigo 64º, nº 1, alínea b) do CSC – a condução da actividade do devedor de modo a beneficiar os interesses pessoais ou de terceiros” (Cadernos de Direito Privado, nº 21, Janeiro/Março 2008, pág. 65). [21] Cfr. Ac. desta Relação de 28/02/2023 (proc. 2716/05.6TBPMS-A.L1-1), disponível em www.dgsi.pt/jtrl, no qual interviemos como adjunto. [22] Cfr. TRC, Ac. de 01/06/2020 (proc. 5831/18.2T8VIS-A.C1), disponível em www.dgsi.pt/jtrc. [23] Alterado e republicado pelo DL nº 98/2015, de 2 de Junho. Segundo os artigos 3º e 10º do DL nº 158/2009, o SNC é aplicável a boa parte dos comerciantes (e também a não comerciantes), os quais devem elaborar e apresentar demonstrações financeiras respeitadoras de vários princípios e regras. [24] Cfr. TRC, no Ac. citado na nota 12. Sobre a organização da escrituração, ver ainda COUTINHO DE ABREU, Curso de Direito Comercial, volume I, 13ª Edição, Almedina, Coimbra, 2022, pp. 182-185. [25] As Normas Contabilísticas e de Relato Financeiro (NCRF), são o núcleo central do Sistema Nacional de Contabilidade (SNC), de aplicação obrigatória, estabelecendo cada uma delas um instrumento de normalização extenso e amplo onde se determinam os vários tratamentos técnicos a adoptar em matéria de reconhecimento, de mensuração, de apresentação e de divulgação das realidades económicas e financeiras das entidades. Foram publicadas pelo Aviso nº 8256/2015, de 29 de Julho, com as alterações introduzidas pela Declaração de Rectificação nº 918/2015, de 19 de Outubro (cfr. ANTÓNIO RIBEIRO GAMEIRO, NUNO MOITA DA COSTA e LILIANA MARQUES PIMENTEL, Manual de Contabilidade para Juristas, Almedina, Coimbra, 2019, pp. 62-64). [26] Cfr. neste sentido, SOVERAL MARTINS, Ob. Cit., pp. 511-512, nota 46. [27] Cfr. TRC, Ac. de 14/03/2023 (proc. 1937/21.9T8CBR-A.C1), disponível em www.dgsi.pt/jtrc. |