Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
405/2008-6
Relator: OLINDO GERALDES
Descritores: RESERVA DE PROPRIEDADE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 01/31/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA A DECISÃO
Sumário: I. É admissível a cláusula da reserva da propriedade no contrato de crédito ao consumo, na modalidade de mútuo, nomeadamente quando este está intensamente conexionado com o contrato de compra e venda.
II. Reconhecida a resolução do contrato de mútuo, por incumprimento do mutuário, justifica-se a entrega do respectivo bem ao mutuante.
OG
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:
I. RELATÓRIO

S, S.A., instaurou, em 31 de Agosto de 2004, na 13.ª Vara Cível da Comarca de Lisboa, contra F e I, acção declarativa, sob a forma de processo ordinário, pedindo que fosse declarada a resolução do contrato de crédito, celebrado no dia 12 de Maio de 2003, e, em consequência, os Réus condenados a restituir-lhe o veículo automóvel, marca BMW, com o cancelamento do registo averbado em nome do Réu.
Para tanto, alegou, em síntese, ter sido celebrado com os RR. um contrato de crédito, no valor de € 34 666,46, destinado à aquisição, por aqueles, do veículo automóvel referido, com a respectiva constituição da reserva da propriedade a seu favor; por força do contrato, os RR. obrigaram-se a pagar uma prestação mensal, no montante de € 730,11, durante 72 meses, a começar em 7 de Junho de 2003; os RR. não pagaram as cinco primeiras prestações vencidas, vindo a ser-lhes concedido, por carta de 13 de Outubro de 2003, um prazo suplementar de 10 dias, para o pagamento da dívida, findos os quais a mora se convertia em incumprimento definitivo, dívida que os RR. não pagaram, assim como não entregaram o veículo automóvel.
Citados os RR. (o 1.º editalmente), contestou apenas a Ré, alegando essencialmente que o veículo foi entregue à A., no âmbito do respectivo procedimento cautelar, para depois concluir pela improcedência da acção.
Replicou ainda a A., concluindo como na petição inicial.
Realizada a audiência de discussão e julgamento, foi proferida, em 7 de Setembro de 2007, sentença, que declarou nula a reserva da propriedade e absolveu os Réus do pedido.

Inconformada com a sentença, a Autora recorreu e, tendo alegado, formulou no essencial as seguintes conclusões:
a) A reserva de propriedade tem vindo a ser constituída como garantia dos contratos de mútuo, sobretudo quando há uma interdependência com o contrato de compra e venda.
b) Nestas situações, tem-se verificado uma sub-rogação do mutuante na posição do vendedor.
c) Este entendimento encontra acolhimento no art. 591.º do Código Civil, bem como no princípio da liberdade contratual (art. 405.º do CC).
d) A própria lei que regula o crédito ao consumo o admite no n.º 3 do seu art. 6.º.
e) O direito da A. a reaver a viatura decorre da propriedade que tem sobre ela, bem como da resolução do contrato.
f) É necessário uma interpretação actualista do n.º 1 do art. 18.º do DL n.º 54/75, de 12 de Fevereiro.
g) Enquanto a reserva se mantiver, há apenas mera detenção do veículo.

Pretende, com o provimento do recurso, a revogação da decisão recorrida, com todas as legais consequências.

Os Réus contra-alegaram, separadamente, no sentido de ser mantida a sentença recorrida.

Cumpre apreciar e decidir.

Neste recurso, está essencialmente em causa a legalidade da cláusula da reserva da propriedade, fixada no contrato de crédito ao consumo, em favor do mutuante.

II. FUNDAMENTAÇÃO

2.1. Estão provados os seguintes factos:
1. A A. incorporou, por fusão, S, S.A.
2. No dia 12 de Maio de 2003, entre a S e os Réus foi realizado o acordo escrito, denominado “aquisição a crédito”, com o n.º 58 841 (fls. 32 e 33).
3. Pelo acordo referido, a S entregou aos Réus a quantia € 34 666,46, com vista à aquisição, por estes, do veículo automóvel, marca BMW, modelo 530 D.
4. A propriedade do veículo encontra-se registada na Conservatória do Registo de Automóveis de Lisboa a favor do Réu, desde 29 de Setembro de 2003.
5. Desde essa data encontra-se, também, inscrita na mesma Conservatória o encargo da reserva da propriedade a favor da S.
6. Os réus comprometeram-se a restituir à S a quantia referida, em 72 prestações mensais, cada uma no montante de € 730,11.
7. No dia 16 de Setembro de 2006, no âmbito do procedimento cautelar apenso, o veículo foi apreendido e entregue a um depositário indicado pela A.
8. A S enviou para a morada dos Réus, indicada no acordo referido, a carta de 13 de Outubro de 2003, cuja cópia consta de fls. 35, com os dizeres dela constantes, designadamente, que vinha “conceder um prazo suplementar de dez dias úteis para (…) liquidação da importância em atraso, acrescida dos juros de mora contratuais, no total de € 3 459,48. Se, decorrido tal prazo, o pagamento ora solicitado não se encontrar efectuado (…), consideramos antecipadamente vencidas todas as prestações emergentes do contrato (…).”
***
2.2. Delimitada e explicitada a matéria de facto provada, que as partes não impugnaram, importa agora conhecer do objecto do recurso, definido pelas respectivas conclusões, cuja questão jurídica emergente foi já anteriormente posta em relevo.
A sentença recorrida julgou improcedente o pedido, em virtude da apelante, estando desprovida da qualidade de vendedora do veículo automóvel, não poder constituir a reserva da propriedade em seu favor, tendo sido declarada nula, nos termos do art. 294.º do Código Civil (CC).
Para além do contrato de compra e venda, tendo por objecto o referido veículo automóvel, foi também celebrado, entre a apelante e os apelados, um contrato de crédito ao consumo, na modalidade de mútuo, destinando-se o respectivo capital ao pagamento do preço do veículo – arts. 1.º e 2.º, n.º 1, alínea a), do DL n.º 359/91, de 21 de Setembro.
Esses contratos, embora coexistindo com autonomia, têm, entre si, uma estreita e forte conexão, expressamente afirmada no n.º 1 do art. 12.º do DL n.º 359/91, cuja validade, designadamente quanto ao seu conteúdo, se possibilita pelo princípio da autonomia privada consagrado no art. 405.º do CC.
É, nesse âmbito, que se insere a constituição da cláusula da reserva da propriedade a favor da mutuante.
A cláusula da reserva da propriedade, admissível nos termos do art. 409.º do CC, tem como efeito suspender a transmissão da coisa decorrente do respectivo contrato, num desvio expressamente consentido à regra plasmada no art. 408.º do CC, que prevê o efeito imediato da transmissão da coisa outorgado o respectivo contrato. Assim, a propriedade da coisa apenas se transmite para o adquirente quando este tiver cumprido as obrigações a que se vinculou e que originaram a reserva da propriedade.
Apesar da cláusula da reserva da propriedade não ter sido concebida para o contrato de mútuo, vem sendo admitida a sua fixação, nomeadamente quando aquele contrato está intensamente conexionado com o de compra e venda, cujo preço é pago mediante o capital obtido através da contracção do mútuo.
Desde há muito, com efeito, que se assiste a uma evolução rápida no financiamento da aquisição de veículos automóveis, designadamente através de empresas especialmente vocacionadas para esse fim, possibilitando o alargamento da oferta e uma melhor satisfação da procura, num mercado que tem por objecto bens de considerável valor e de acentuada e rápida desvalorização.
O interesse do credor, que assim facilita a aquisição do veículo automóvel, não pode ficar desprovido da garantia resultante da inclusão da cláusula da reserva da propriedade, sendo certo que o legislador, desde há muito, nomeadamente através do DL n.º 54/75, de 12 de Fevereiro, que procura acautelar o interesse do credor que contribui para a aquisição de veículos automóveis.
Assim, não só se previne o pontual pagamento das prestações pecuniárias decorrentes do preço da aquisição de veículo automóvel, como também de outras obrigações, designadamente as emergentes do contrato de crédito ao consumo, sob a forma de mútuo, destinado à aquisição daquele tipo de bem, em que o próprio vendedor também pode intervir ou de cujo conteúdo lhe deriva um interesse relevante.
Será, por isso, que se admite expressamente a fixação da cláusula da reserva da propriedade, no contrato de crédito ao consumo, sob a forma de mútuo, como decorre do estipulado na alínea f) do n.º 3 do art. 6.º do DL n.º 359/91.
Nada no texto desse diploma legal autoriza a afirmar que a cláusula da reserva da propriedade só tem aplicação no caso de coincidência na mesma pessoa do alienante e do financiador.
Por outro lado, a circunstância do mesmo diploma legal ter vindo a proteger, sobretudo, os interesses dos consumidores é também irrelevante, para se justificar a exclusão da fixação da cláusula da reserva da propriedade em favor apenas do mutuante.

Aliás, a norma do art. 591.º do CC possibilita ainda que o devedor, cumprindo a obrigação, designadamente com dinheiro concedido por terceiro, possa sub-rogar este nos direitos do credor. Esta sub-rogação não necessita do consentimento do credor, mas está sujeita a declaração expressa, no documento que formaliza o empréstimo, de que o dinheiro se destina ao cumprimento da obrigação e de que o mutuante fica sub-rogado nos direitos do credor.
Deste modo, a menção do art. 18.º, n.º 1, do referido DL n.º 54/75, de 12 de Fevereiro, quanto ao “contrato de alienação”, pode e deve ser entendida como referindo-se, igualmente, ao contrato de mútuo conexo com o de compra e venda e que esteve na origem da reserva da propriedade.
De outra forma, e isso não pode ser desprezado ou negligenciado no alcance do sentido normativo (art. 9.º, n.º 1, do CC), a cláusula da reserva da propriedade sobre veículos automóveis perderia a sua utilidade prática, dada a predominância actual, quase absoluta, da sua aquisição através do financiamento de terceiros.
Neste contexto, justificada a utilidade da inserção da cláusula da reserva da propriedade e sendo a mesma, nos termos especificados nos autos, aceite pelo mutuário, não há razões substantivas que a invalidem.
Com este entendimento, decidiram, entre outros, os acórdãos desta Relação de 27 de Junho de 2002 (Rec. n.º 5.328/02-6), 20 de Outubro de 2005 (Rec. n.º 8.454/05-6), 28 de Março de 2006 (Rec. n.º 447/06-7), de 6 de Março de 2007 (Rec. n.º 1.187/07-7), acessíveis em www.dgsi.pt, e de 28 de Junho de 2007 (Rec. n.º 4.849/07-6).

Nestes termos, no caso vertente, provando-se a existência do registo da reserva da propriedade a favor da mutuante e reconhecendo-se a validade declarativa da resolução do contrato de mútuo, por incumprimento das obrigações que originaram a reserva da propriedade, conclui-se que a propriedade sobre o referido veículo automóvel não chegou a transmitir-se para o apelado, justificando-se, por isso, a sua entrega à apelante, bem como o cancelamento do respectivo registo a favor do apelado.
Consequentemente, procedendo inteiramente a apelação, a acção deveria ter sido julgada procedente.

2.3. Concluindo, pode extrair-se de mais relevante:
I. É admissível a cláusula da reserva da propriedade no contrato de crédito ao consumo, na modalidade de mútuo, nomeadamente quando este está intensamente conexionado com o contrato de compra e venda.
II. Reconhecida a resolução do contrato de mútuo, por incumprimento do mutuário, justifica-se a entrega do respectivo bem ao mutuante.

Nestas condições, não podendo subsistir a decisão recorrida, procede a apelação e, por via disso, merece ser atendido o pedido formulado na acção.

2.4. Os apelados, ao ficarem vencidos por decaimento, suportarão o pagamento das custas, em ambas as instâncias, em conformidade com a regra da causalidade consagrada no art. 446.º, n.º s 1 e 2, do Código de Processo Civil.
No entanto, esse pagamento é inexigível da apelada, enquanto beneficiária do apoio judiciário.
Ao seu patrono, são devidos ainda os honorários fixados na Portaria n.º 1386/2004, de 10 de Novembro.

III. DECISÃO
Pelo exposto, decide-se:
1) Conceder provimento ao recurso, revogando a sentença recorrida e, em consequência, condenar os Réus a entregar à A. o veículo automóvel, ordenando ainda o cancelamento do respectivo registo a favor do Réu.
2) Condenar os Réus no pagamento das custas, em ambas as instâncias, sem prejuízo do benefício do apoio judiciário concedido à Ré.
3) Atribuir ao patrono da Ré os honorários fixados na Portaria n.º 1386/2004, de 10 de Novembro.
Lisboa, 31 de Janeiro de 2007
(Olindo dos Santos Geraldes)
(Fátima Galante)
(Ferreira Lopes)