Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
0006712
Nº Convencional: JTRL00027628
Relator: SANTOS BERNARDINO
Descritores: ACÇÃO DE PREFERÊNCIA
PREÇOS DECLARADOS
ERRO
Nº do Documento: RL199810220006712
Data do Acordão: 10/22/1998
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Área Temática: DIR CIV. DIR REAIS.
Legislação Nacional: CCIV66 ART1409 ART1410 N1 N2.
Jurisprudência Nacional: AC STJ DE 1995/04/26 IN CJ NIII 1 153.
Sumário: I - Não tendo o titular da preferência tomado parte na elaboração do contrato de compra e venda, pode e deve cingir-se, em princípio, ao preço constante do título de transmissão.
II - Rectificado o preço pelos interessados intervenientes no contrato e demandados na acção, sobre este recai o ónus de alegar e provar que a rectificação visou a emenda de um erro involuntariamente cometido ou a correcção de um erro propositado (v.g., simulação do preço para pagar menos sisa).
Tal equivale a alegar e provar que o preço rectificado foi realmente praticado no negócio jurídico efectuado - não se tratando de mera ficção destinada a impedir ou dificultar artificiosamente o exercício da preferência.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:
I
(A) e mulher (B) intentaram contra:
1º - (C)
2º - (D)
3º - (E)
4º - (F) e mulher (G)
5º - (H) e mulher (I)
acção com processo sumário, em que pedem que lhes seja reconhecido o direito a haverem para si a fracção de 35/124 do prédio rústico de terra e palheiro, com 300 Ares e 8 Centiares, sito em (K), freguesia de Velas, inscrito na matriz sob o art. 58º e descrito na Conservatória do Registo Predial de Velas sob o nº 00616 da freguesia de Velas que, por escritura pública de compra e venda celebrada em 31/12/93, os Réus indiciados sob os nºs. 1º a 4º venderam aos 5ºs Réus, pelo preço de 500.000$00, e que seja ordenado o cancelamento de quaisquer registos que, porventura, hajam sido feitos em nome dos compradores.
Alegaram, para tanto, ser comproprietários do referido prédio e que os Réus vendedores nunca lhes deram conhecimento do projecto de venda e das cláusulas do contrato.
Os Réus (H) e mulher contestaram e deduziram reconvenção.
Alegaram, no essencial, que a compropriedade em que os Autores fundamentam a acção não existe, já que o prédio rústico, supra referido, inscrito na matriz predial de Velas sob o art. 58º foi, em tempos imemoriais, dividido em vários lotes, sendo certo que a parcela de terreno que adquiriram aos seus co-réus vinha sendo explorada, por estes e antepossuidores, desde pelo menos 1930, ininterruptamente, com exclusão de quaisquer outras pessoas, à vista de toda a gente e sem oposição de ninguém, na convicção de serem os proprietários exclusivos dessa parcela, cujos limites estão bem definidos.
Os Réus alienantes eram, assim, os donos exclusivos da parcela alienada, por a terem adquirido por usucapião.
Ademais, os ditos Réus propuseram aos Autores a venda, e estes não a aceitaram, por não lhes interessar o preço pedido - 2.500.000$00 - que foi, na verdade, o preço efectivo da venda e não o declarado na escritura, de 500.000$00.
Por outro lado, os contestantes adquiriram o terreno, não para o utilizarem na actividade agrícola ou pecuária, mas para a construção de estruturas - designadamente armazéns - ligados ao seu comércio, de grossistas e retalhistas, a que estão e sempre estiveram ligados no concelho de Velas.
Pedem, assim, os Réus, que a acção seja julgada improcedente; e, em reconvenção, pretendem que, por sentença, lhes venha a ser reconhecido o direito de propriedade exclusiva da parcela em causa, condenando-se os Autores a absterem-se de qualquer conduta ou atitude que perturbe o exercício desse direito.
Em novo articulado, que intitularam de "resposta à reconvenção", os Autores impugnaram toda a matéria da contestação, concluindo por pedir a improcedência da reconvenção e a procedência da acção.
Foi, de seguida, proferido despacho determinando que a acção passasse, por via do valor atribuído à reconvenção, a seguir a forma de processo ordinário, o que deu ensejo a que os Réus contestantes apresentassem novo articulado, que denominaram de "réplica" (!).
Saneado e condensado, seguiu o processo a sua normal tramitação, vindo, a final, a efectuar-se a audiência de discussão e julgamento e a ser proferida sentença, na qual o Mmº Juiz julgou a acção procedente, declarando que os Autores "têm o direito de preferência no contrato de compra e venda em causa e, consequentemente, a haver para si o prédio mediante o pagamento da quantia depositada" e ordenando o cancelamento dos registos que, eventualmente, tenham sido feitos a favor dos compradores.
Os Réus contestantes interpuseram, da sentença, o pertinente recurso de apelação.
E rematando a alegação apresentada, concluíram:
1º - A acção deve ser julgada improcedente por falta de prova de que o preço foi de 500 e não de 2.500 contos - e falta de depósito desta quantia;
2º - Foram violados os arts. 1410º nº 2 e 342 nºs. 1, 2 e 3, do Cód. Civil.
Não foram apresentadas contra-alegações.
Corridos os vistos legais, cumpre agora decidir.
II
O Tribunal Colectivo de Velas respondeu "não provado" a todos os quesitos elaborados. Assim, a matéria de facto tida em conta na sentença recorrida é apenas a que consta da especificação, e é a seguinte:
I - Por escritura pública de 03/12/93, lavrada no Cartório Notarial do conselho de Velas, os 1º, 2º, 3º e 4ºs Réus venderam aos Réus (H) e mulher 35/124 de um prédio composto por terra e palheiro, sito em (K), Velas, com a área total de trezentos Ares e oito Centiares, a confrontar do norte com caminho, do sul com (J), do nascente com (L) e do poente com (M), inscrito na matriz sob o art. 58 e descrito na Conservatória do Registo Predial de Velas sob o nº 00616;
II - Na referida escritura foi declarado que o preço de venda foi de 500.00$00;
III - os Autores ão proprietários de 5/62 do prédio atrás descrito, por os terem comprado a (N), (O) e marido, (P) e marido e (Q).
III
Os Autores solicitam a preferência na venda feita pelos 1º, 2º, 3º e 4ºs Réus aos Réus (H) e mulher e invocaram, como causa de pedir, o facto de serem comproprietários do prédio de que faz parte a fracção ou quota alienada.
Enquanto Autor numa acção de preferência, impende sobre o titular do direito de preferência fazer a prova dos factos de que depende a existência do seu direito.
Incumbe-lhe, isto é, provar a sua qualidade de preferente - v.g., a sua qualidade de comproprietário (cfr. art. 1409º do C.C.) - e demonstrar ainda que o Réu, também comproprietário, vendeu ou deu em pagamento a um estranho à compropriedade a respectiva quota.
Em princípio, nada mais tem que provar.
Não recai, designadamente, sobre ele o ónus de provar a falta de comunicação a que alude o nº 1 do art. 416º do C.C., i. e., de que não lhe foi comunicado o projecto da venda e as cláusulas do respectivo contrato.
É, na verdade, ao abrigado à preferência que compete comunicar ao titular do direito de preferência o projecto da venda e as cláusulas do contrato. A efectivação desta comunicação é, conjugadamente com o não exercício tempestivo do respectivo direito, um facto extintivo do direito invocado pelo preferente. E, por isso, é ao Réu, obrigado à preferência, que cabe provar que tal comunicação foi efectivada, não é o Autor-preferente que tem de provar a sua não efectivação.
A comunicação deve, além do mais, abarcar a indicação do preço por que o obrigado à preferência pretende vender a coisa sujeita a preferência, já que o preço é um dos elementos essenciais da alienação.
O preço comunicado deve ser o preço real. Aliás, a doutrina e a jurisprudência dominantes vêm entendendo que "seja em caso de erro na indicação do preço, seja em caso de simulação do preço, sempre o preferente, para se substituir ao adquirente, tem de pagar o preço por este efectivamente pago" (cfr. Ac. do STJ de 26/04/95, in Col. Jur. (Acs. do STJ) III, 1, 153 e a doutrina e jurisprudência citadas no mesmo arresto). A Lei impõe ao preferente o depósito do preço devido (art. 1410º - 1 CC) e o preço devido é o preço real.
Sendo ao obrigado à preferência que incumbe o aludido ónus, deve, em princípio, o preferente, na falta daquela comunicação - e uma vez que não tomou parte na elaboração do contrato - exercer o seu direito pelo preço que consta do título de transmissão. Só assim não será se ele não aceitar que o preço aí declarado foi o preço verdadeiramente ajustado e praticado na alienação - v.g., por estar convencido de que houve simulação de preço entre os contraentes, para prejudicar ou afastar o seu direito de preferência - e que quiser preferir pelo preço que tem por real e verdadeiro. Nesse caso terá de alegar e provar a existência da simulação e o montante do preço realmente praticado.
No caso "sub judicio", os autores juntavam, com a petição inicial, a escritura de compra e venda respeitante à fracção ou quota alienada, da qual consta que o preço de venda foi de 500.000$00; e alegaram ter sido esse o preço praticado.
Ao afirmarem a sua pretensão de exercitarem o seu invocado direito de preferência, os Autores quiseram, pois, fazê-lo relativamente ao preço, constante da dita escritura, tendo, para o efeito, depositado atempadamente esse montante na C.G.D. (cfr. conhecimento de depósito de fls. 17).
Na contestação, os Réus, ora apelantes, vieram alegar que o preço efectivo da alienação "foi de 2.500 contos e não 500 contos tão somente" (art. 28º do mencionado articulado), nada referindo, porém, sobre a razão ou razões determinantes da menção, na escritura, deste último montante, em vez daquele que, alegadamente, corresponderia ao preço real e não invocado nem aludindo a qualquer prova que pudesse suportar a sua alegação.
Os Autores reagiram contra aquela alegação dos Réus adquirentes, reputando de "falso e gratuito" o afirmado no citado art. 28º (cfr. art. 15º da "resposta à reconvenção").
Foi, assim, pelos Réus invocado um facto impeditivo do direito dos Autores que, a provar-se, obstaria a que esse direito se tornasse eficaz, já que os demandantes pediram o reconhecimento do seu direito apenas pelo preço de 500 contos.
A prova dos factos impeditivos do direito invocado compete àquele contra quem a invocação é feita (art. 342º, nº 2 do CC) e, portanto, no caso vertente, aos Réus.
Cabia, pois, aos Réus a prova de que o preço real da alienação fora, não o de 500 contos mencionado na escritura, mas o por eles alegado, de 2.500 contos.
A especificação e o questionário não sofreram reclamação das partes.
Os Réus intentaram provar a matéria do mencionado quesito 15º. Para tanto, juntaram aos autos, já depois de a audiência de discussão e julgamento haver sofrido um adiamento, certidão de escritura pública de 1-3-94 (fls. 82/83), de rectificação da escritura de 3-12-93, supra aludida; e, no decurso da audiência, indicaram cinco testemunhas para serem inquiridas à matéria do mesmo quesito.
Não o lograram, porém, fazer, pois o tribunal, apreciando livremente essas provas, respondeu "não provado" ao aludido art. 15º.
A operada rectificação do preço da venda não podia ter o efeito que os Réus agora lhe pretendem atribuir - qual fosse a de fazer recair sobre os Autores o ónus da provar que o preço fora somente de 500 contos, dispensando os Réus de demonstrar que fora antes de 2.500 contos.
Na verdade, nem tal rectificação consta, por averbamento (cfr. art. 142º - 1 g) do Cód. do Notariado então vigente) da escritura de compra e venda de que os Autores se serviram para instruir a petição inicial, nem estes, quando intentaram a acção, tinham a obrigação legal de saber da ocorrência da dita rectificação. E, como vimos, o ónus probatório que impende sobre o Autor na acção de preferência não abrange, em princípio, os elementos essenciais da alienação, designadamente o preço.
Não se vê, pois, como poderia a junção aos autos de um documento - que os Réus, em procedimento que não revela boa fé processual, só apresentaram pouco antes da realização da audiência de discussão e julgamento quando o poderiam ter feito muito antes ("maxime" com a contestação) de moda a possibilitar aos Autores o adequado exercício do contraditório - ter o efeito pretendido pelos ora recorrentes.
Acertado se tem de haver, por isso, o entendimento do Mmº Juiz "a quo", ao escrever, na fundamentação da sentença, que "quanto ao preço, terá de ser indicado na escritura (referia-se à escritura de compra e venda junta pelos Autores com a p. i.) dado que nada se provou em contrário.
Em conclusão: Não tendo o títular da preferência tomado parte na elaboração do contrato de compra e venda, pode e deve cingir-se, em princípio, ao preço constante do título de transmissão.
Uma vez rectificado o preço pelos interessados, intervenientes no contrato e demandados na acção, sobre este recai o ónus de alegar e provar que a rectificação visou a emenda de um erro involuntariamente cometido ou a correcção de um erro propositado (v.g., simulação do preço para pagar menos sisa) - o que equivale a alegar e provar que o preço rectificado foi o realmente praticado no negócio jurídico efectuado - não se tratando de mera ficção destinada a impedir ou dificultar artificiosamente o exercício de preferência (caso em que a sua eficácia é claramente afastada pelo nº 2 do art. 1410º do Cód. Civil ao dispor que o direito de preferência e a respectiva acção não são prejudicados pela modificação ou distrate da alienação.
IV
Face ao que se deixa exposto, os juízes desta Relação acordam em julgar improcedente a apelação, confirmando inteiramente a douta sentença apelada.
Custas pelos apelantes.
Lisboa, 22 de Outubro de 1998.