Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
962/21.4T8CSC.L1-8
Relator: CRISTINA LOURENÇO
Descritores: LEGITIMIDADE PROCESSUAL
LEGITIMIDADE SUBSTANTIVA
PATRIMÓNIO COMUM
COMPROPRIEDADE
HERANÇA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/09/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: 1.–A legitimidade processual distingue-se da legitimidade material ou substantiva.
Pela primeira, garante-se que figura na ação, como autor, a pessoa que juridicamente e em face do modo com é configurada a demanda em juízo, pode fazer valer a sua pretensão contra o réu, e como réu, aquele que juridicamente se pode opor a tal pretensão. A segunda, está relacionada com a titularidade do(s) direito(s) invocado(s) na ação, dizendo por isso respeito ao mérito da causa.

2.–A compropriedade e o património comum (dos cônjuges) são realidades distintas. O comproprietário é titular do direito sobre um bem específico; no património comum, o direito de cada contitular incide sobre o património entendido como um todo unitário.

3.–O património comum dos cônjuges que não seja partilhado após o trânsito em julgado da decisão de separação judicial de pessoas e bens, subsiste como património comum (art. 1770º, nº 1, Código Civil).

4.–E dissolvido o casamento por morte de um dos cônjuges, todos os bens que constituem património comum integram a herança do de cujus e terão que ser objeto de partilha, a fim de se determinar aqueles que, correspondendo à meação do falecido, irão integrar a sua herança.

5.–Os herdeiros só podem invocar o direito de propriedade relativamente aos bens que depois da partilha lhes foram adjudicados por integrarem a sua quota na herança.


Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes da 8ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa:



Relatório


S.F.T.J., solteira, residente em (…) Oeiras, veio propor ação declarativa de condenação, que segue a forma de processo comum contra M.C.S.G.R.J., viúva, residente (…) em Carcavelos, alegando para o efeito, em síntese, o seguinte:
- A Autora é filha de M.J.T.A.J. e de L.F.R.J., falecido em 14 de novembro de 2014, no estado de casado com a Ré, mas separado de pessoas e bens;
- Do casamento de L.F.R.J. com a ré, nasceu B.F.G.J.;
- A Autora e sua irmã B. são as únicas herdeiras da herança do seu pai;
- Entre os vários bens que compõem o acervo hereditário, foi relacionado 1/2 do imóvel sito (…) em Carcavelos;
- O referido imóvel foi adquirido pelo falecido pai da Autora, com dinheiro próprio seu, mas no estado de casado com a Ré;
- Uma vez casados no regime de bens de adquiridos, presumiu-se que o imóvel pertenceria a ambos em partes iguais e por conseguinte, com a separação de bens do casal, a Ré manteve-se comproprietária do imóvel na quota-parte de metade;
- Com o óbito de L.R.J. e uma vez separado de pessoas e bens, sucederam-lhe, na sua parte, como únicas herdeiras universais as duas filhas, aqui autora e a sua irmã B., nos termos do disposto no artigo 2133.º, n.º 3 do CC;
- Muito embora a Ré não seja herdeira por óbito de L.F.R.J., na qualidade de comproprietária e desde a data da morte daquele até à presente data, administra e gere aquele bem sem consultar a autora e a sua irmã, para além de ali ter fixado a sua residência em 2017, também sem a autorização da autora;
- A autora e a sua irmã estão impedidas de usufruir do imóvel, assim como de obter rendimentos;
- Apesar de a Autora ter pretendido fazer cessar a utilização exclusiva da ré, tendo para tanto procedido por diversas vezes à sua interpelação, a verdade é que esse seu pedido não foi acatado e, por conseguinte, a licitude da utilização cessou no momento em que a Ré tomou conhecimento que a Autora e a outra herdeira não permitiam que usasse o locado e que pretendiam a sua divisão ou arrendamento a terceiros, passando a partir de então a ocorrer privação do gozo pelo consorte em violação do disposto no Artigo 1406.º, n.º 1 do CC;
- Ainda que a Ré tenha o direito de habitar o imóvel, a ilicitude da sua conduta, sonegando às outras comproprietárias o mero acesso ao bem, configura uma situação de responsabilidade extracontratual, geradora da obrigação de as indemnizar;
- Deste modo, ao abrigo do art. 483º, do Código Civil, afigura-se exigível a atribuição de uma indemnização, a pagar pela Ré à Autora, que corresponderá a um quarto do valor da renda mensal que esta pode auferir, pelo período de tempo em que a Ré usufrui exclusivamente do Imóvel;
- No âmbito do mercado para arrendamento, o imóvel poderia ser arrendado pelo menos pela renda mensal de € 3.500,00.
Termina, pedindo que a ação seja julgada procedente por provada, e a Ré condenada a pagar-lhe a quantia de € 34.125,00, relativa à contraprestação que tem direito, a titulo de indemnização pela privação do uso da sua quota-parte no imóvel sito em (…) Carcavelos, a ser usada e usufruída em exclusivo pela Ré, desde pelo menos dezembro de 2017, acrescida de juros vencidos e vincendos, contados desde a data da sua citação até integral e efetivo pagamento, a título de indemnização devida pela privação do uso.
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A Ré foi citada para contestar, o que fez, apresentando defesa por exceção e impugnação.

Diz, em síntese:
- Contraiu casamento com L.F.R.J. a 8/7/1983, sob o regime de comunhão de adquiridos, e por sentença transitada em julgado a 4/7/1995 foi decretada a separação de pessoas e bens;
- Na pendência do casamento L.F.R.J. adquiriu um lote de terreno com a área de 650 m2 sito nos (…), freguesia de Carcavelos, concelho de Cascais, onde o casal construiu uma moradia de rés do chão e 1º andar, destinada a habitação, atualmente sita na Rua (…), em Carcavelos;
- O casal não procedeu à partilha dos bens comuns do casal, integrando o imóvel a comunhão conjugal não partilhada da R. e de seu falecido marido L.J., bem como a comunhão hereditária não partilhada por óbito deste;
-Os direitos relativos à herança só podem ser exercidos conjuntamente por todos os herdeiros, pelo que a Autora não tem legitimidade para sozinha demandar a R., o que se traduz em exceção dilatória e conduz à absolvição da instância.
- Impugnado, alega, por seu turno, que em consequência dum incêndio a casa não tem condições para ser arrendada;
- A Autora tem conhecimento de tal situação e omite factos relevantes para a decisão da causa, deduzindo pretensão sem fundamento, pelo que litiga com má-fé.
Termina, pedindo que a exceção seja julgada procedente e, em consequência, seja a Ré absolvida da instância ou, caso assim não se julgue, a ação improcedente e a Ré absolvida do pedido e ainda a ser condenada como litigante de má-fé em multa e indemnização condigna, com as legais consequências.
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A autora respondeu à matéria da exceção, concluindo pela sua improcedência, alegando, para tanto, que não se encontra a agir no interesse da herança, nem pretende discutir e partilhar os bens da herança, agindo, apenas, na qualidade de comproprietária do imóvel, adquirido por sucessão, acrescendo que a sua irmã não necessita de estar em juízo, na medida em que nada impede que apenas uma das comproprietárias pretenda ser compensada pelos danos sofridos.
No mesmo articulado, propugnou pela improcedência do pedido de condenação como litigante de má fé.
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As partes foram notificadas para se pronunciarem sobre a dispensa de realização da audiência prévia e a imediata prolação de despacho saneador, com decisão sobre a matéria da exceção, o que aceitaram.
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Foi proferido despacho saneador-sentença, que julgou as partes legítimas para a causa e conheceu da exceção de ilegitimidade substantiva, culminando com a prolação da seguinte decisão:
“(…)
Até ao momento em que o imóvel não esteja comprovadamente na herança do seu pai, a Autora não é titular de qualquer direito de compropriedade sobre o imóvel concretamente aludido em 4) ocorrendo ilegitimidade substantiva para demandar à Ré qualquer direito de indemnização pela privação do uso do mesmo, e ocorre ainda ilegitimidade processual, pois ainda que já se encontrasse consolidada a herança do seu pai, ainda assim, teria de demandar todos os interessados herdeiros, pois o direito é exercido no confronto com os mesmos.
Por conseguinte, a presente ação não poderá proceder, não sendo a Autora titular de qualquer direito de compropriedade, em cuja privação baseia o pedido de indemnização.
Pelo supra exposto, julgo improcedente a ação e absolvo a Ré do pedido.
Custas pela Autora.
Registe e notifique.”
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A autora não se conformou com esta decisão e dela recorreu, concluindo a sua motivação com as conclusões que se passam a transcrever:
1-Por Sentença proferida nos presentes Autos, decidiu este Douto Tribunal de 1ª Instância no sentido de que “Até ao momento em que o imóvel não esteja comprovadamente na herança do seu pai, a Autora não é titular de qualquer direito de compropriedade sobre o imóvel concretamente aludido em 4) ocorrendo ilegitimidade substantiva para demandar à Ré qualquer direito de indemnização pela privação do uso do mesmo, e ocorre ainda ilegitimidade processual, pois ainda que já se encontrasse consolidada a herança do seu pai, ainda assim, teria de demandar todos os interessados herdeiros, pois o direito é exercido no confronto com os mesmos. Por conseguinte, a presente acção não poderá proceder, não sendo a Autora titular de qualquer direito de compropriedade, em cuja privação baseia o pedido de indemnização”.
2-Com o devido respeito, com tal entendimento, a presente Sentença, carece da devida e indispensável fundamentação respeitante a questões de especial relevância e que determinam, de forma irremediável, uma decisão diferente e que, aliás, está em clara contradição.
3-A aqui Recorrente instaurou acção de condenação contra a aqui Recorrida, alegando ser filha de (…) e do Falecido (…) (primeiro casamento do falecido)
4-Mais alegou a aqui Recorrente, que o seu pai foi casado, em segundas núpcias com a aqui Recorrida, tendo desse casamento nascido a sua Irmã B.F.G.J., irmã da aqui Recorrente.
5-O Pai da aqui Recorrente faleceu aos 14/11/2014, no estado de casado, mas separado de pessoas e bens da Recorrida, conforme Anotação em Assento de Óbito que se juntou aos presentes Autos, conforme documento que se juntou como doc1.
6-Razão pela qual, a aqui Recorrente, e sua Irmã B., são as únicas herdeiras universais da Herança do seu pai, conforme Escritura de Habilitação de Herdeiros e Imposto de Selo que, igualmente, a aqui Recorrente juntou com a sua petição inicial, como documentos nºs 2 e 3.
7-Mais alegou e comprovou a aqui Recorrente que, entre os vários bens que compõem o acervo hereditário do seu falecido Pai, conforme demonstrado pelo Imposto de Selo junto aos Autos, foi relacionado 1/2 do Imóvel sito na Rua (…) da União das Freguesias de Carcavelos e Parede e descrito na Conservatória do Registo Predial de Cascais, residência actual da aqui Recorrida, separada de pessoas e bens do seu falecido pai, conforme Caderneta e Certidão Predial que se juntou como prova.
8-Deste modo, e porque o referido imóvel foi adquirido pelo falecido Pai da aqui Recorrente, com dinheiro próprio seu, mas no estado de casado com a Recorrida, uma vez que se encontravam casados no Regime de Bens de Adquiridos, presumiu-se que o Imóvel pertenceria a ambos, em partes iguais, e por conseguinte, com a separação de bens do Casal, a Recorrida manteve-se comproprietária do Imóvel, na quota-parte de metade.
9-Acontece que, com o óbito daquele e uma vez separado de pessoas e bens da Recorrida, sucederam-lhe, na sua parte, o correspondente à outra metade do Imóvel, como únicas Herdeiras Universais as duas Filhas, aqui Recorrida e sua Irmã B., vide o disposto no artigo 2133.º, n.º3 do CC.
10-Ora, muito embora a Recorrida não seja sequer Herdeira por óbito de L.F.R.J., a verdade é que na qualidade de comproprietária e desde a data da morte daquele até à presente data, foi quem única e exclusivamente o administrou e geriu, fazendo o que quis, sem consulta ou intervenção da aqui Recorrente ou da Irmã desta, únicas e universais herdeiras da Herança aberta por óbito de L.F.R.J..
11-Assim sendo, e com o devido respeito, não se aceita a douta Sentença proferida pelo Tribunal a quo no sentido de “até ao momento em que o imóvel não esteja comprovadamente na herança do seu pai, a Autora não é titular de qualquer direito de compropriedade sobre o imóvel concretamente aludido em 4) ocorrendo ilegitimidade substantiva para demandar à Ré qualquer direito de indemnização pela privação do uso do mesmo(…)”
12-Uma vez que, a mesma Sentença de que ora se recorre está em clara contradição uma vez que, e ainda que alegue que “uma vez que o património em causa se trata de uma herança a sua administração incumbe ao cabeça-de-casal até à partilha (art. 2079.º e art. 2087.º, ambos do Código Civil)” figurando a aqui Recorrente como cabeça de casal, decide que “a presente acção não poderá proceder, não sendo a Autora titular de qualquer direito de compropriedade, em cuja privação baseia o pedido de indemnização”
13-Ora, figurando a aqui Recorrente como cabeça de casal da herança do seu falecido pai, comproprietário do aludido imóvel com a aqui Recorrida, detém a mesma direito a instaurar a presente acção e a peticionar indemnização contra a aqui Recorrida pela privação do uso do imóvel que integra a comunhão hereditária não partilhada por óbito do pai da aqui Recorrente, o que não poderá ser desconsiderado por este Douto Tribunal ad quem.
14-Aliás, não poderá ser desconsiderado por este Venerando Tribunal da Relação, que a aqui Recorrente não só comprovou a sua qualidade de herdeira e cabeça de casal da Herança Aberta pelo seu falecido pai, mediante a junção da respectiva Escritura de Habilitação de Herdeiros,
15-Como comprovou que o aludido imóvel, ora em discussão nos presentes Autos, fazia parte, entre outros, do acervo hereditário da herança do seu pai, conforme comprovou com a junção do respectivo Imposto de Selo, de onde resulta devidamente identificada na verba 5.
16-Pelo que, e com o devido respeito, não se aceita a alegação vertida na Douta Sentença de que se recorre de que “neste conspecto, o imóvel em causa, pode até nem vir a integrar a herança do pai” quando do Imposto de Selo por Transmissões Gratuitas, na verba 5, encontra-se o aludido imóvel identificado.
17-Acresce que, não sendo a aqui Recorrida herdeira da aludida herança, a presente acção é a adequada, não se mostrando sequer concebível o que resulta da Douta Sentença de que se recorre que “ a Autora deverá primeiro, como herdeira legal do direito do seu pai à partilha do património comum do extinto casal de instaurar inventário para separação de meações no Juízo de Familia e Menores, que é o Tribunal competente para essa acção especial, para depois, caso o imóvel venha a caber ao seu pai na partilha, poder fundar direitos sobre o mesmo”.
18-Ora, com o devido respeito, o pai da aqui Recorrente, enquanto comproprietário, sempre deteve direitos sobre o aludido imóvel, direitos esses que, com o seu falecimento, se transmitiram para as suas únicas herdeiras, as suas duas filhas, a aqui Recorrente e a sua irmã B., figurando a aqui Recorrente como cabeça de casal da aludida herança.
19-Razão pela qual, é inconcebível o uso exclusivo, sem qualquer custo, e nem sequer permitindo a sua vistoria, seja feita pela aqui Recorrida, quando o direito desta é na exacta proporção do direito da Recorrente em representação da Herança do seu falecido pai, podendo esta, na proporção de ½, e em representação da herança, utilizar o imóvel ou requerer indemnização pela privação do seu uso.
20-Pelo que, a aqui Recorrente detém legitimidade substantiva para demandar a aqui Recorrida ao pagamento da indemnização pela privação que ela e a sua irmã, únicas e universais herdeiras do falecido L.F.R.J., conforme resulta evidente!
21-Bem como, detém legitimidade processual, para por si e na qualidade de cabeça de casal da herança, poder demandar a aqui Recorrida, não sendo necessária a intervenção de todos os herdeiros, in casu a aqui Recorrente acompanhada da sua irmã.
22-A aqui Recorrente, enquanto cabeça de casal, quando propõe uma ação no âmbito dos poderes de administração da herança que a lei lhe concede, actua no interesse da herança e não em interesse próprio e exclusivo, ainda que, em termos processuais, seja ela a parte e não a herança, na medida em que esta não dispõe de personalidade jurídica e tão pouco de personalidade judiciária.
23-Daí que, esta circunstância não deva ser impeditiva, por parte do Tribunal a quo, do normal prosseguimento da acção, na medida em que, em rigor, aquilo que está em causa, é uma mera incorreção na expressão utilizada para identificar a Autora, devendo entender-se que a Autora é a própria cabeça de casal.
24-Veja-se, designadamente, o Acórdão do STJ de 04/05/2000 (processo nº 99B1228 – publicado em www.dgsi.pt).
25-Até porque, a aqui Recorrente detém legitimidade para intentar a presente Acção, uma vez que, dispõe o art. 2089º do Código Civil que “o cabeça-de-casal pode cobrar as dívidas da herança”,
26-E a bem da verdade, encontra-se a aqui Recorrida a violar o disposto no artigo 1046.º, nº 1, do Código Civil, ao privar a aqui Recorrente e sua irmã, únicas e universais herdeiras da herança do seu falecido pai e, a aceder ao aludido imóvel, que faz parte do acervo hereditário.
27-Nesta senda, vai o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, Processo 326/08.5TBPVL.G1, Relator ANTÓNIO FIGUEIREDO DE ALMEIDA“1) A privação do gozo de uma coisa pelo titular do respectivo direito constitui um ilícito que a nossa ordem jurídica prevê como fonte da obrigação de indemnizar;2) A simples privação ilegal do uso já integra um prejuízo de que o proprietário deve ser compensado, em última análise, com recurso às regras da equidade.”
28-Idêntica solução adoptou o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, Processo 2830/11.9TBLLE.E1, Relator MATA RIBEIRO:
29- E ainda, o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, Processo 4548- 09.3TBALM.L1-6, Relator MARIA TERESA PARDAL.
30-Acresce que, e caso o douto Tribunal a quo entendesse que deveria demandar a Herdeira B., irmã da aqui Recorrente, para vir a ter intervenção nesta causa, sempre poderia ter requerido a sua chamada à demanda, o que não se pode deixar de alegar para os devidos e legais efeitos.
31-Ainda assim, e com o devido respeito, que é muito, não corresponde à verdade que a aqui Recorrente não seja titular de um direito de compropriedade sobre o sobre o prédio rústico sito em Carcavelos, (…), uma vez que, a mesma detém esse direito na qualidade de herdeira da herança do seu falecido pai.
32-Nesta senda, decidiu o Tribunal da Relação do Porto, que poderá ser consultado em Acórdão do Tribunal da Relação do Porto (dgsi.pt), ao dispor que “A qualidade de herdeiro não afasta a qualidade de comproprietário, não fazendo nascer uma limitação ao exercício dos seus direitos, como pensamos que o recorrente afirma de modo correto.
(…)
33-Razão pela qual, e face a tudo o que supra vai exposto, dúvidas não existem de que a aqui Recorrente comprovou que o aludido imóvel do qual o seu falecido pai era comproprietário, integra a herança do mesmo, conforme se encontra identificado na verba 5 da relação de bens anexa ao Imposto de Selo,
34-Detendo a aqui Recorrente direito na qualidade de herdeira, e cabeça de casal da herança, o direito à administração da ½, podendo, legitimamente, demandar a aqui Recorrida ao pagamento de indemnização pela privação do uso de ½ do imóvel.
35-Termo em que, a Douta Sentença recorrida deverá ser revogada e substituída por outra que julgue totalmente procedente o pedido da Autora, aqui Recorrente como é de inteira e manifesta Justiça!”
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A ré não apresentou resposta ao recurso.
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O recurso foi admitido e mostrando-se cumpridos os vistos legais, cabe apreciar e decidir.

II.Objeto do recurso

O objeto do recurso é delimitado pelas suas conclusões, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (cf. arts. 635º, nº 4, 639º, nº 1, e 662º, nº 2, todos do Código de Processo Civil), sendo que o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes e é livre na interpretação e aplicação do direito (cf. art.º 5º, nº3 do mesmo Código).
No caso, cabe decidir se a autora pode exigir da ré indemnização por privação de uso de imóvel de que alega ser comproprietária.

III. Fundamentação de Facto

Os factos a atender são os descritos no relatório deste acórdão; os que foram fixados em 1ª instância e que não foram objeto de impugnação, numerados infra de 1, a 4; e bem assim os que se deixam descritos sob as alíneas A), a D), que estão provados por documento ou acordo conforme se assinalará, e que ora se aditam ao abrigo do disposto no art. 607º, nº 4, aplicável ex vi art. 663º, nº 2, ambos do Código de Processo Civil:
1.-Em 08.07.1983 foi celebrado casamento entre L.F.R.J. e M.C.S.G., ora Ré.
2.-Em 04.07.1995 transitou em julgado a separação judicial de pessoas e bens entre L.F.R.J. e M.C.S.G..
3.-Em 13.11.2014 o casamento foi dissolvido por óbito de L.F.R.J..
4.-Mostra-se inscrita pela ap. 14 de 26.06.1986 a aquisição de propriedade a favor de L.F.R.J. e M.C.S.G.R.J., do prédio rústico sito em Carcavelos, (…), composto por moradia de rés-do-chão e primeiro andar em construção, descrito na ficha n.º (…) da Conservatória do Registo Predial de Cascais.”
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A)–Por escritura de habilitação realizada em 12 de dezembro de 2014, em Cascais, perante o notário L.A.P.B., S.F.T.J., na qualidade de cabeça de casal, por óbito de seu pai L.F.R.L., declarou que o mesmo não outorgou testamento nem doação por morte, e que lhe sucederam, como únicas e universais herdeiras, as suas duas filhas, S.F.T.J. e B.F.G.J., conforme documento nº 33, junto com a petição inicial e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
B)–Na sequência da separação judicial de pessoas e bens de L.F.R.J. e M.C.S.G., não foi feita a partilha dos bens comuns (facto admitido por acordo).
C)–Não houve ainda lugar à partilha dos bens deixados por óbito de L.F.R.J. (facto admitido por acordo).
D)–O casamento de L.F.R.J. e M.C.S.G. foi celebrado sem convenção antenupcial (documento nº 11 apresentado com a contestação).

IV.Fundamentação de Direito

A autora pede a condenação da ré no pagamento da quantia de € 34.125,00, a que alega ter direito a titulo de indemnização pela privação do uso da sua quota-parte do imóvel sito na Rua (…), em Carcavelos, e que está a ser usada e usufruída pela Ré sem o seu consentimento, desde pelo menos dezembro de 2017.
Alega, para tanto, que conjuntamente com a sua irmã, e na qualidade de únicas herdeiras de L.F.J., pai de ambas, adquiriram, por sucessão, a quota parte (1/2) de que ele era titular sobre o dito imóvel - que a par de outros bens integra o seu acervo hereditário – e cuja quota restante (1/2) pertence à ré, reclamando assim a autora indemnização por privação ilícita de uso, por referência à quota parte de que alega ser comproprietária (a indemnização peticionada correspondente a ¼ da renda que o imóvel poderia gerar no mercado de arrendamento).
A autora foi julgada parte ilegítima, em termos substantivos, e, assim, julgada improcedente por não provada a ação, com a consequente absolvição da ré do pedido, não obstante se tenha referido na mesma decisão que a autora sempre seria parte ilegítima na causa (ilegitimidade processual), apesar de em sede de saneador se ter afirmado a legitimidade das partes e sem que então se tenha decidido, como se impunha, da exceção de ilegitimidade ativa que fora expressamente suscitada pela ré na sua contestação.
Em sede de recurso, nomeadamente, nas respetivas conclusões, a Autora afasta-se  da relação material controvertida configurada na petição inicial, em ordem a justificar a sua legitimidade, invocando litigar na qualidade de cabeça de casal da herança deixada por óbito de seu pai e o direito de, nessa qualidade, e enquanto administradora da herança, demandar a ré relativamente a um bem que integra o acervo hereditário daquele, alegando, ainda, que caso se conclua pela sua ilegitimidade, tal situação é passível de ser suprida, chamando à ação a sua irmã, também ela herdeira de L.F.J..
A Autora/recorrente não pode desconhecer que nesta sede recursiva não pode introduzir quaisquer alterações à instância, sendo manifesto, em face da ação que configurou em juízo, que não litiga na qualidade de cabeça de casal da herança aberta por óbito de seu pai, antes litigando de per si, na invocada qualidade de comproprietária do imóvel supra identificado e reclamando da ré o ressarcimento dos prejuízos patrimoniais próprios que alega estar a sofrer por privação de uso de bem que lhe pertence, carecendo por isso de fundamento legal a primeira das sobreditas pretensões.
Relativamente à legitimidade da autora para os termos da ação, cumpre dizer o seguinte.
A legitimidade é um pressuposto processual. O objetivo da legitimidade das partes prende-se com o interesse em que a causa seja julgada perante os verdadeiros e principais interessados na relação jurídica, apresentando-se, por isso, como refere Anselmo Castro, como o corolário do princípio do contraditório[1].
A legitimidade, enquanto pressuposto processual, distingue-se da legitimidade material ou substantiva. 
Como resulta do disposto nos nºs 1 e 2 do artigo 30º do Código de Processo Civil,o autor é parte legítima quando tem interesse direto em demandar”; “o réu é parte legítima quando tem interesse direto em contradizer”, exprimindo-se o interesse em demandar pela utilidade derivada da procedência da ação e o interesse em contradizer pelo prejuízo que dessa procedência advenha.
“A legitimidade representa (…) uma posição da parte em relação a certo processo em concreto – melhor, em relação a certo objecto do processo, à matéria que nesse processo se trata, à questão de que esse processo se ocupa.
(…)
A legitimidade é uma posição de autor e réu, em relação ao objecto do processo, qualidade que justifica que possa aquele autor, ou aquele réu ocupar-se em juízo desse objecto do proceso.[2]
Segundo Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio Nora[3], “ser parte legítima na acção é ter o poder de dirigir a pretensão deduzida em juízo ou a defesa contra ele oponível. A parte terá legitimidade como autor, se for ela quem juridicamente pode fazer valer a pretensão em face do demandado (…); e terá legitimidade como réu, se for ela a pessoa que juridicamente pode opor-se à procedência da pretensão, por ser ela a pessoa cuja esfera jurídica é directamente atingida pela providência requerida”. Logo, “(…) a lei define a legitimidade (como poder de dirigir o processo) através da titularidade do interesse em litígio (…)”, sendo que “(…) à legitimidade não satisfaz a existência de qualquer interesse, ainda que jurídico (…) na procedência ou improcedência da acção. Exige-se que as partes tenham um interesse directo, seja em demandar, seja em contradizer; não basta um interesse directo, reflexo ou derivado”
E o nº 3 daquele mesmo art. 30º, dispõe, por seu turno, que são considerados titulares do interesse relevante para o efeito da legitimidade os sujeitos da relação controvertida tal como é configurada pelo autoritálico e sublinhados nossos.
Nesta conformidade, “(…) a legitimidade, como uma das condições necessárias ao proferimento (…) [da] decisão, isto é, como pressuposto processual (geral), exprime a relação entre a parte no processo e o objecto deste (a pretensão ou pedido) e, portanto, a posição que a parte deve ter para que possa ocupar-se do pedido, deduzindo-o ou contradizendo-o.
(…) Há que aferir, em regra, pela titularidade dos interesses em jogo (no processo), isto é, como dizem os nºs 1 e 2, pelo interesse directo (e não indirecto ou derivado) em demandar, exprimido pela vantagem jurídica que resultará para o autor da procedência da acção, e pelo interesse directo em contradizer, exprimido pela desvantagem jurídica que resultará para o réu da sua perda (ou, considerando o caso julgado material formado pela absolvição do pedido, pela vantagem jurídica que dela resultará para o réu). Esta titularidade do interesse em demandar e do interesse em contradizer apura-se, sempre que o pedido afirme (ou negue) a existência de uma relação jurídica (…), pela titularidade das situações jurídicas (…) que a integram: legitimados são então os sujeitos da relação jurídica controvertida, como estatui o nº 3”[4], (sublinhado nosso) ou seja, os sujeitos da causa concretamente apresentada pelo autor.
A utilidade (ou prejuízo) que a procedência (ou improcedência) da ação possa ter para as partes é, assim, aferida em função dos termos em que o Autor configura a sua pretensão e a posição que as partes, face ao pedido formulado e à causa de pedir, têm na relação jurídica controvertida, tal como esta foi apresentada pelo Autor.
A legitimidade processual distingue-se, assim, da legitimidade em sentido material (legitimidade substancial ou substantiva), que está relacionada com a titularidade do(s) direito(s) invocados, o que significa que só o titular efetivo do direito goza da condição subjetiva necessária ao seu exercício contra terceiro.
Neste campo, “(…) a lei e a doutrina e a linguagem corrente falam em legitimidade para designar essas condições subjectivas da titularidade do direito. A falta delas dará lugar, na mesma terminologia, a uma ilegitimidade (…); quem não é proprietário da coisa é parte ilegítima para pedir em juízo indemnização pela sua destruição; etc…). (…) Assim, se o tribunal conclui pela ilegitimidade, entra no mérito da causa (…) e profere uma absolvição do pedido”[5].
“A legitimidade processual, constituindo uma posição do autor e do réu em relação ao objecto do processo, afere-se em face da relação jurídica controvertida, tal como o autor a desenhou. A legitimidade material, substantiva ou “ad actum” consiste num complexo de qualidades que representam pressupostos da titularidade, por um sujeito, de certo direito que o mesmo invoque ou que lhe seja atribuído, respeitando, portanto, ao mérito da causa.”[6]
Ainda conforme decisão recente do Tribunal da Relação do Porto[7], “A legitimidade processual, enquanto pressuposto adjetivo para que se possa obter decisão sobre o mérito da causa, não exige a verificação da efetiva titularidade da situação jurídica invocada pelo A., bastando-se com a alegação dessa titularidade[9]. Já a ilegitimidade substantiva configura uma exceção perentória inominada que tem a ver com a relação material, com o mérito da causa.”
Considerando o que se deixou exposto, tendo presente a ação delineada pela autora, designadamente, a causa de pedir e o pedido nela fundamentado que a final deduz contra a ré, temos de concluir pela legitimidade processual das partes, sendo inequívoco, à luz da relação controvertida apresentada pela autora, não só o seu interesse em demandar – aferido pela utilidade que pretende alcançar com o sucesso da ação – como o interesse da ré em contestar – aferido pelo prejuízo que a procedência da ação poderá acarretar na sua esfera.
Deste modo, a apelação improcede também na questão da (i)legitimidade que vem suscitada.
No demais, cabe dizer o seguinte.
Está demonstrado que L.F.R.J. e M.C.S.G., ora Ré, casaram em 8 de julho de 1983, sem convenção antenupcial.
O casamento considera-se, assim, celebrado sob o regime da comunhão de adquiridos (art. 1717º do Código Civil – Código a que pertencem as disposições legais doravante citadas, sem outra indicação expressa).
Integram a comunhão de bens, entre outros, os bens adquiridos pelos cônjuges na constância do matrimónio, que não sejam excetuados por lei (art. 1724º, al. b)).
Em 1986, na pendência do casamento, e como resulta dos elementos registrais acima referenciados, L.F.R.J. e M.C.S.G. adquiriram o prédio rústico sito em Carcavelos, (…), composto por moradia de rés-do-chão e primeiro andar em construção, que ficou registado a seu favor na Conservatória do Registo Predial de Cascais.
Deste modo, de acordo com os elementos constantes dos autos, temos de presumir que tal prédio, adquirido na pendência do matrimónio, e por força do sobredito regime de bens, integrou o património comum dos cônjuges (sem prejuízo de em sede própria – partilha – e perante factos aqui não discutidos nem documentados possa ser discutida a propriedade do bem), carecendo de total fundamento legal o entendimento da autora de que por via da dita aquisição na pendência do matrimónio, os cônjuges adquiriram o imóvel em compropriedade, na proporção de metade para cada um deles.
A compropriedade e o património comum dos cônjuges são coisas bem distintas.
Enquanto o comproprietário é titular dum direito sobre um bem específico[8], no património comum o direito de cada contitular incide sobre o património global, entendido como um todo unitário.
“A comunhão de direitos dá-se sempre que o mesmo direito patrimonial pertença simultaneamente a duas ou mais pessoas (…).
A comunhão é assim uma figura mais ampla do que a compropriedade. Sempre que há compropriedade, existe comunhão ou condomínio; mas nem todas as comunhões ou condomínios constituem formas de compropriedade.
Um dos casos de comunhão que não cabe na figura da compropriedade é o da chamada comunhão de mão comum (…) ou propriedade colectiva. Trata-se de um património afectado a certo fim, que pode ser integrado por relações jurídicas de diversa natureza (…) e que pertence em contitularidade a dois ou mais indivíduos litigados por determinado vínculo (familiar, societário ou de outra ordem).
A doutrina (…) costuma recorrer a este conceito para enquadrar o regime a que a lei subordina o património comum dos cônjuges, (…).
O que caracteriza a comunhão de mão comum e a distingue da compropriedade é além do mais, o facto de «o direito dos contitulares não incidir directamente sobre cada um dos elementos (coisa ou crédito) que constituem o património, mas sobre todo ele, concebido como um todo unitário» (…). Significa isto que aos membros da comunhão, individualmente considerados, não pertencem direitos específicos (designadamente uma quota) sobre cada um dos bens que integram o património global, não lhes sendo lícito, por conseguinte, dispor desses bens, ou onerá-los, no todo ou em parte (…). Quanto à sua participação no referido direito único sobre todo o património, ela subsiste enquanto estiverem abrangidos pelo vínculo que determinou a comunhão – vínculo esse que só pode cessar nos termos referidos na lei (…).
Na partilha dos bens subsequente à dissolução da comunhão ou destinada a pôr-lhe fim, os contitulares (ou os respectivos herdeiros) têm apenas direito a uma fracção ideal do conjunto, não podendo exigir que essa fracção seja integrada por determinados bens ou por uma quota em cada um dos elementos a partilhar.[9]   – sublinhados nossos.
L.F.R.J. e M.C.S.G. separaram-se judicialmente de pessoas e bens, por decisão transitada em julgado em 4 de julho de 1995.

Dispõe o art. 1770º:
1- Após o trânsito em julgado da sentença que decretar a separação judicial de bens, o regime matrimonial, sem prejuízo do disposto em matéria de registo, passa a ser o da separação, procedendo-se à partilha do património comum como se o casamento tivesse sido dissolvido.
(…)”.
Ou seja, consolidada a separação judicial de pessoas, é pela partilha que se põe fim ao património comum.
Não sendo feita a partilha, o património comum subsiste, o que significa que os cônjuges mantêm o direito sobre a universalidade do património e não sobre qualquer bem específico que o integre, o que ocorreu no caso em apreço, já que L.F.J. e a mulher, ora ré, não procederam à partilha após o trânsito da decisão de separação judicial de pessoas e bens.
L.F.R.J. faleceu no dia 13 de novembro de 2014, sem que estivesse então feita a partilha do património comum.
A sucessão abre-se no momento da morte do seu autor (art. 2031º).
Integram a herança as situações jurídicas que se encontravam na titularidade do de cujus e que pela sua natureza não devam extinguir-se por efeito da morte; por força da lei; ou por efeito de renúncia de direito a que o mesmo tenha validamente renunciado (cf. arts. 2024º e 2025º)[10],[11].
Deste modo, a herança do de cujus é integrada, para além de outros bens (na petição inicial é mencionada a existência de outros bens), pelo património comum ainda indiviso, ou seja, por todos os bens que integram tal património, independentemente do que tenha sido relacionado na relação de bens apresentada por óbito do pai da autora, junto da entidade tributária e para efeitos fiscais, e que não tem qualquer efeito ao nível da definição e determinação dos bens que integram a herança, nomeadamente, quando o que nela é declarado não tem correspondência com a realidade.
A herança é também um património autónomo, o que significa que os herdeiros não têm direito a quaisquer bens individualizados da herança, sendo apenas titulares de um direito sobre a herança, de um direito a uma parte ideal da mesma, e não de determinada parte de cada um dos bens/direitos que a compõem.
É através da partilha – que pode ser feita judicial ou extrajudicialmente – que são adjudicados os bens a cada um dos herdeiros, que assim verão preenchida a sua quota na herança, sendo que só depois dessa adjudicação poderá cada um deles reclamar aquilo que lhe foi concretamente atribuído (cf. arts. 2119º e 2120º, nº 1,).
“Nos casos em que haja lugar à partilha da herança, segundo a opinião dominante, o domínio e posse sobre os bens em concreto da herança só se efectivam após a partilha, uma vez que até aí a herança constitui um património autónomo nada mais tendo os herdeiros do que o direito a uma quota parte do património hereditário»[12].
A autora e a sua irmã B. são as únicas e universais herdeiras de L.F.R.J. cuja herança permanece indivisa.
Nessa qualidade, uma e outra não são titulares de qualquer direito sobre qualquer dos bens que integrem tal herança, e muito menos sobre a alegada quota parte do dito imóvel, sendo certo que tal imóvel, ou pelo menos qualquer quota parte dele, pode nem sequer vir a integrar a herança de L.F.J., pois aquando da partilha do dito património comum dos ex-cônjuges – que pode ser feita, em simultâneo, no inventário para partilha dos bens deixados por óbito daquele -, pode suceder que o imóvel venha a ser adjudicado integralmente à ora ré, compondo o seu quinhão, caso em que não integrará  a herança de L.F.J..
A autora não é titular do direito de que se arroga, ocorrendo efetivamente, tal como referido na sentença recorrida, uma situação de ilegitimidade substantiva, que acarreta necessariamente a improcedência da ação e a consequente absolvição da ré do pedido.
À autora (e também à sua irmã) assistirá, por ora, e apenas, o direito e também a legitimidade processual para promoverem a partilha do património comum dos ex-cônjuges e da herança do pai.
Por isto, impõe-se julgar improcedente a apelação, e pelas razões e fundamentos ora expostos, manter a decisão de absolvição da ré do pedido.

V.–Decisão

Na sequência do que se deixou exposto e no âmbito do enquadramento jurídico que aqui se deixou traçado, acordam os Juízes da 8ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa, em julgar improcedente por não provada a apelação e em manter a decisão proferida em 1ª instância.
Custas pela apelante (art. 527º, nº 1, do Código de Processo Civil).
Notifique.


Lisboa, 9 de junho de 2022



Cristina Lourenço- (Relatora)
Ferreira de Almeida- (1º adjunto)
Teresa Prazeres Pais- (2ª Adjunta)



[1]Anselmo de Castro, Direito Processual Civil declaratório, II, Livraria Almedina, Coimbra, pág. 168.
[2]João de Castro Mendes, in “direito processual civil IIº Vol.”Edição AAFDL, 1987, pág. 187.
[3]In, “Manual de Processo Civil”, 2ª edição revista e actualizada, Coimbra Editora, 1985, págs. 129, 134 e 135.
[4]Vide Freitas, José Lebre de, “Código de Processo Civil anotado”, vol. 1º, Coimbra Editora, 1999, pág. 51.
[5]João de Castro Mendes, ob. cit., pág. 215.
[6]Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18/10/2018, proferido no processo nº 5297/12.0TBMTS.P1.S2, acessível  no sítio da internet dgsi.pt.
[7]Acórdão de 4/10/2021, proferido no processo 1910/20.4T8PNI.P1, acessível em www.dgsi.pt.
[8]Dispõe o art. 1403º do Código Civil: “1. Existe propriedade em comum, ou compropriedade, quando duas ou mais pessoas são simultaneamente titulares do direito de propriedade sobre a mesma coisa.
2.- Os direitos dos consortes ou comproprietários sobre a coisa comum são qualitativamente iguais, embora possam ser quantitativamente diferentes; as quotas presumem-se todavia, quantitativamente iguais na falta de indicação em contrário do título constitutivo.”
[9]Pires de Lima e Antunes varela, Código Civil Anotado, Vol. III, Coimbra Editora, 1987, págs. 347-348.
[10]José de Oliveira Ascensão – Direito Civil – Sucessões – Coimbra Editora, 1987, pág. 36.
[11]João António Lopes Cardoso, Partilhas Judiciais, Vol. I, Livraria Almedina, 1990, págs. 9-10.
[12]Rabindranath Capelo de Sousa, “Lições de Direito das sucessões, pag. 185).