Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
49/14.6TTFUN.L1-4
Relator: SÉRGIO ALMEIDA
Descritores: TRANSMISSÃO DE ESTABELECIMENTO
UNIDADE ECONÓMICA
ORQUESTRA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 07/01/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Texto Parcial: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA A DECISÃO
Sumário: I. A lei não exige, para poder haver transmissão de empresa ou estabelecimento, que haja uma sucessão formal imediata na transmissão, ou, sequer, que os contratos de trabalho permaneçam em vigor (desde que a cessação tenha ocorrido por motivos relacionados com esta transmissão), podendo intervir um terceiro na transmissão;
II. Uma orquestra de musica clássica, não visando primariamente fins económicos e menos ainda o lucro, pode ser uma unidade económica, tanto mais que a sua atividade tem apetência para criar riqueza e um valor de mercado, expresso em bilhetes de entrada para espectáculos, nomeadamente direitos de autor de peças originais e de interpretação de peças de outros autores.

(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Parcial: Acordam os juízes no Tribunal da Relação de Lisboa:



RELATÓRIO:


Autor (A.): AA.
Rés (RR.)

a) Associação Orquestra Clássica da Madeira;
b) Fundação Madeira Classic;
c) Associação Notas e Sinfonias Atlânticas (ANSA)

O A. demandou as RR alegando que no dia 15 de agosto de 2002 foi admitido pela AOCM, para sob as suas ordens, direção e fiscalização, exercer as funções inerentes à categoria profissional de Coordenador, ao abrigo de um contrato de trabalho por tempo indeterminado. Em 1 de março de 2006 a FMC assumiu a posição contratual da AOCM, na relação laborai existente entre o A. e esta última, tendo o A. transitado para os quadros da FMC. No dia 5.02.2013 foi transmitido pelo Sr. Rui Correia ao A. que estava despedido e tendo-lhe sido entregue o Modelo 5044, já preenchido e assinado, imputando a razão da cessação do contrato de trabalho à "extinção da empresa". O seu despedimento não foi precedido de qualquer procedimento especial de despedimento coletivo, por extinção do posto de trabalho, assim como, na comunicação ao A., a R. não precedeu a decisão de despedimento do indispensável e prévio procedimento disciplinar para a validade do mesmo. A atividade primordial da FMC era a gestão da OCM, algo que em 27 de maio de 2013, com a criação da Ansa passou a exclusivamente a ser exercida por esta entidade e presentemente continua a exercer.

Com estes fundamentos pediu que:

I – As RR. serem condenadas no reconhecimento da transmissão da posição contratual do contrato de trabalho do A., em março de 2006, da AOCM para a FMC, com todas as legais consequências, nomeadamente no reconhecimento da antiguidade do A. desde 15 de agosto de 2002;
II – Seja declarada a ilicitude do despedimento do A., procedendo à revogação da decisão de despedimento, por insuficiência de prova e inexistência de justa causa para o despedimento;
III - As RR. FMC e ANSA sejam condenadas no reconhecimento da transmissão da unidade comercial Orquestra Clássica da Madeira, em maio de 2013, da FMC para a ANSA e em consequência, mas sem prejuízo da reserva do A. para o exercício do direito de opção pela indemnização prevista no art.° 391° do CT em substituição da reintegração, em caso da opção pela reintegração, ser a R. ANSA condenada na reintegração do A., com devidas cominações legais.
Ser ainda as RR. ANSA e FMC condenadas no pagamento ao A., de acordo com a proporção prevista nos números 1 e 2 do art.° 285° do CT, das retribuições que o A. deixou de auferir, desde a data do despedimento até ao trânsito em julgado da decisão judicial, incluindo subsídio de férias, férias não gozadas, subsídio de Natal e proporcionais, nos termos do artigo 390°, n.° 1, do CT, e respetivos juros moratórios à taxa legal.

No caso de tal não ser assim considerado:
IV – Ser a R. FMC condenada no pagamento ao A. das retribuições que o mesmo deixou de auferir, desde a data do despedimento até à reintegração no seu posto de trabalho, incluindo subsídio de férias, férias não gozadas, subsídio de Natal e proporcionais, nos termos do artigo 390°, n.° 1, do CT., reservando-se ainda para o A. o exercício de direito de opção pela indemnização prevista no art.° 391° do CT.

Realizada audiência de partes não foi obtida conciliação.

A Associação Orquestra Clássica da Madeira contestou a fls. 92 a 104 por exceção, sustentando em síntese a ilegitimidade da contestante e por impugnação, sustentando em síntese que o A. nenhum pedido de natureza condenatória ou constitutiva formula contra si; não lhe exige qualquer crédito, nem reintegração nela.

O A. só envolve a AOCM no item do seu pedido, ao referir-se genericamente às RR. para impropriamente pedir a condenação delas "no reconhecimento da transmissão contratual do contrato de trabalho do A., em março de 2006, da AOCM para a FMC com todas as legais consequências. Acresce que ainda que a posição da transmissão da posição de empregador do A. tivesse ocorrido a 1 de março de 2006, entre a AOCM e a FMC, a responsabilidade daquela por eventuais créditos laborais do A. então existentes, teria prescrito a 1 de março de 2007. Por impugnação, sustentou entre outras que o contrato de trabalho entre a contestante e o A. foi celebrado a 1 de setembro de 2002 e a termo certo de um ano e não a 15 de agosto desse ano por "tempo indeterminado".

Concluiu, pedindo que:

a) Seja julgada procedente a exceção de ilegitimidade, com a consequente absolvição da instância;
b) Que a ação seja julgada improcedente quanto a ela por não provada.
c) o A. seja condenado como litigante de má-fé no reembolso das despesas e dos honorários do mandatário da contestante, que esta realizar por causa desta demanda.

A Associação Notas e Sinfonias contestou por impugnação a fls. 106 a 164, sustentando em síntese que a Orquestra Clássica da Madeira (OCM) não é uma "unidade económica" suscetível de transmissão para o efeito previsto no art.° 285° do CT. Acresce que a Fundação MC extinguiu-se a 1.1.2013 e a ANSA foi constituída a 27 de maio seguinte, pelo que não houve transmissão do contrato de trabalho do A. que foi despedido a 5 de fevereiro de 2013. A R. Ansa nada adquiriu da FMC que continua em processo de liquidação do seu património e que será eventualmente a única responsável pelos créditos laborais a que o A. tinha direito.

Opôs-se nos termos previstos no art.° 60°-A do CPT à reintegração do A. nos seus quadros.

Concluiu, dizendo que a ação deve ser julgada totalmente improcedente à relação  si, R. Ansa.

O A. respondeu a fls. 170 a 178, concluindo que se deve indeferir a exceção dilatória de ilegitimidade passiva da R. AOCM por não provada; e absolver a A. da imputação de litigância de má-fé, por manifesta falta de fundamentos de factos que a sustentem.

No despacho saneador foi julgada improcedente a exceção dilatória de ilegitimidade passiva deduzida pela R. Associação Orquestra Clássica da Madeira.

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Efectuado o julgamento o Tribunal julgou parcialmente a ação, e decidiu:

1 - Condenar todas as rés a reconhecer a transmissão da posição contratual do contrato de trabalho do A. em março de 2006, da AOCM para a FMC, com o reconhecimento da antiguidade do A. desde 15.08.2002.
2 - Condenar as rés FMC e a ANSA a reconhecer a ilicitude do despedimento do A., por inexistência de justa causa para o despedimento.
3 – Condenar as rés FMC e ANSA a reconhecer a transmissão da unidade Orquestra Clássica da Madeira, em maio de 2013, da FMC para a ANSA.
4 - Condenar as rés FMC e ANSA a pagar as retribuições que o A. deixou de auferir desde a data do despedimento até ao trânsito em julgado da decisão judicial, incluindo subsídio de férias, férias não gozadas, subsídio de Natal e proporcionais nos termos do artigo 390°, n° 1 do Cl; e respetivos juros de mora, à taxa legal, desde a data dos respetivos vencimentos, até integral pagamento.
5 - Condenar as rés FMC e ANSA a pagar ao A. a indemnização por antiguidade, que fixo em 30 (trinta) dias de retribuição base e diuturnidades por cada ano completo ou fração de antiguidade, até ao trânsito em julgado desta decisão.
6- Absolver a ré AOCM do pedido de condenação das retribuições e indemnização por antiguidade deduzidas contra si.
Mais absolveu o A. do pedido de condenação de litigância de má-fé.

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Não se conformando veio a R.  ANSA apelar, pedindo a sua absolvição, tendo formulado as seguintes conclusões:
(…)

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Contra-alegou o A., mas sem formular conclusões, pedindo a final a improcedência do recurso.  

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Com a interposição do recurso a ANSA pediu a retificação de erros de escrita, o que foi acolhido nos termos do despacho de fls. 274.

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O MºPº teve vista, pronunciando-se pela improcedência do recurso.
A recorrente ANSA respondeu ao parecer, mantendo inexistir transmissão por não haver conluio seu com a FMC.

Foram colhidos os vistos legais.

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FUNDAMENTAÇÃO:

Cumpre apreciar – considerando que o objecto do recurso é definido pelas conclusões do recorrente, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, e exceptuando aquelas cuja decisão fique prejudicada pela decisão dada a outras, art.º 635/4, 608/2 e 663, todos do Código de Processo Civil – se a OCM é uma unidade económica e bem assim, a final, se houve transmissão, visto que um dos sujeitos (a FMC) já nem existia em Maio de 2013 e que a ANSA iniciou a sua atividade sem quaisquer prestadores de atividade e nem meios materiais.

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São estes os factos apurados nos autos:

1. A Orquestra Clássica da Madeira (doravante "OCM") teve origem na Orquestra de Câmara[1] da Madeira, é uma conhecida instituição de música clássica da Região Autónoma da Madeira, que integra músicos de reconhecido mérito nacional e internacional, e que apresenta concertos e programas musicais em Portugal e no estrangeiro.

2. A Associação Orquestra Clássica da Madeira (doravante "AOCM") com o NIPC 511029950 e com sede na Travessa das Capuchinhas, n° 4, na cidade do Funchal, é uma pessoa coletiva de utilidade pública e que tem como objeto a promoção e o ensino da arte e cultura, nomeadamente na área da música clássica.

3. Até ao ano de 2006 toda a atividade da OCM foi organizada e tutelada pela AOCM, nomeadamente, e não de forma exaustiva, na gestão dos concertos, da contratação dos músicos, aquisição de material, deslocações e viagens, orçamentação e pagamentos, bem como na gestão dos associados.

4. A Fundação Madeira Classic (doravante "FMC") com o NIPC 510399134 e com a sede na Travessa das C..., n° ..., na cidade do Funchal é uma fundação sem fins lucrativos criada pelo Governo Regional da Madeira e pela Associação Orquestra Clássica da Madeira em 8.03.2006, tendo como objeto principal a promoção da música, dinamização da cultura e prática musical e gestão de orquestras e agrupamentos de música erudita.

5. A partir da sua criação, em 2006, a sua principal atividade foi a gestão e dinamização da Orquestra Clássica da Madeira, substituindo nestas funções a AOCM, que passou apenas a fazer a gestão dos associados.

6. Em 6 de dezembro de 2012, por razões ligadas à alteração legislativa do regime das Fundações pela Lei n° 1/2012, de 3 de janeiro, por deliberação do plenário do Conselho do Governo, foi determinada a cessação da participação do Governo Regional da Madeira e a sua respetiva extinção, com efeitos a partir de 1.01.2013, em conformidade com a Resolução n° 1042/2012, publicada no JORAM, Ia Série, n° 167, de 14.12.2012.

7. A Associação Notas e Sinfonias Atlânticas (doravante "ANSA"), com o NIPC 510643370 e com a sua sede na Av. ..., n° ..., na cidade do Funchal é uma instituição de direito privada sem fins lucrativos e tem como objeto principal a gestão e dinamização da Orquestra Clássica da Madeira.

8. A ANSA formalizada pela escritura pública no dia 27.05.2013 veio no seguimento da Resolução n° 469/2013 do Governo Regional da Madeira, que autorizou a participação do Governo Regional como sócio fundador da ANSA, sob o expresso desígnio desta gerir e dinamizar a COM, bem como tem uma participação da AOCM.

9. Em 1 de março de 2006 a FMC assumiu a posição contratual da AOCM, na relação laboral existente entre o A. e esta última, tendo o A. transitado para os quadros da FMC.

10. O vencimento do A. referente ao mês de março de 2006 já foi emitido pela FMC, que foi quem assegurou o pagamento do vencimento, bem como dos restantes recibos e respetivo pagamento desde essa data.

11. O seu local de trabalho permaneceu o mesmo, nos escritórios na Travessa das C..., n°..., ...° andar, no Funchal, bem como os seus instrumentos de trabalho, nomeadamente mantendo-se o mesmo número de telemóvel que utilizava (96.......) ou o telemóvel do secretariado do Maestro (96.......) ao qual dava apoio.

12. Igualmente no sítio da Orquestra Clássica da Madeira (www.ocmadeira .com) até então gerido pela AOCM, passou a constar a informação da Fundação Madeira Classic e apresentando o A. como funcionário desta.

13. Pelo que o A. passou a ser formalmente funcionário da FMC.

14. No dia 5 de fevereiro de 2013, na parte da manhã, o A. recebeu uma chamada telefónica do Sr. Correia, convocando-o para uma reunião nos escritórios na Travessa das C..., n°..., ...° andar, no Funchal, a qual compareceu por volta das 17h30 desse mesmo dia.

15. Nessa reunião foi transmitido pelo Sr. Correia ao A. que estava a ser despedido e tendo-lhe sido entregue o Modelo 5044, já preenchido e assinado, imputando a razão da cessação do ' contrato de trabalho à "extinção da empresa".

16. A partir dessa data o A. ficou impedido de prestar o seu normal trabalho, e perante a documentação na mão, não teve qualquer dúvida de que estava despedido.

17. Conforme disposto na resolução n° 1042/2012, publicada no JORAM, Ia Série, n° 167, de 14.12.2012, foi deliberado pelo plenário do Conselho do Governo, a cessação da participação do Governo Regional da Madeira na FMC e a sua respetiva extinção, com efeitos a partir de 1 de janeiro de 2013, pelo que correm atualmente os procedimentos para o efeito.

18.- A AOCM e a FMC partilhavam a sede, funcionários, equipamentos e serviços, no apoio à atividade da Orquestra Clássica da Madeira.

19. A AOCM, a FMC e a ANSA beneficiam ou beneficiaram de apoios estatais, de acordo com as resoluções do Governo Regional.

20. A atividade primordial da FMC era a gestão da Orquestra Clássica da Madeira, que com a criação da ANSA em 27.05.2013 passou exclusivamente a ser exercida por esta entidade, e que presentemente continua a exercer.

21. A FMC contratou músicos, agendou concertos, cobrou bilheteira, lançou CD's e afetou especialmente funcionários ao serviço exclusivo da orquestra.

22. Em 15.08.2002 o A. foi admitido pela AOCM, para, sob as suas ordens, direção e fiscalização, exercer as funções inerentes à categoria profissional de Coordenador, ao abrigo do contrato de trabalho, celebrado a 1.09.2002 e a termo certo pelo prazo de um ano.

23. O A. tinha como funções principais, a gestão do escritório, a gestão de toda a atividade da COM, nomeadamente na contratação de músicos, aluguer ou compra de obras e pautas, agendamento de concertos e reserva de salas, bem como no acompanhamento dos concertos, recitais e quaisquer outra atividade relacionada com a orquestra.

24. A existência da Orquestra Clássica da Madeira justifica-se sobretudo por motivos culturais e de utilidade social: promover o ensino da arte e da cultura na RAM, nomeadamente na área da música clássica.

25. Sendo o seu funcionamento assumidamente deficitário, no plano económico.

26. A ANSA no exercício do seu objeto formou um grupo de músicos, para com um novo maestro, atuar sob a mesma denominação "Orquestra Clássica da Madeira", interpretando o mesmo tipo de música clássica.

27. A ANSA iniciou a sua atividade sem quaisquer trabalhadores ou prestadores de serviço.

28. A 7.10.2013, a ANSA celebrou os seus primeiros contratos de trabalho com Ana... e Márcio..., para as categorias profissionais, respetivamente, de assistente de direção e de coordenador de produção.

29. A partir de 11.10.2013 começou a contratar músicos, em regime de aquisição de serviços.

"para compor a Orquestra Clássica da Madeira da Ansa para a temporada 2013/2014".

30. Os quais foram recrutados predominantemente ao Conservatório da Música da Madeira. 1.31. E a ANSA contratou, no mesmo regime, um novo maestro.

32. Os instrumentos usados pelos músicos contratados pertencem maioritariamente aos próprios.

33. A ANSA tem obtido os instrumentos de maior porte de diversas instituições, inclusive do Conservatório, a título de empréstimo.

34. Em agosto de 2012 o A. auferia €1.204,00 de vencimento base, acrescido de €140,00 de subsídio de alimentação.

35. A presente ação deu entrada em 2.02.2014.

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1ª - dos sujeitos
Refere a decisão recorrida, num apanhado do direito aplicável, que

“A Diretiva 2001/23 [da União Europeia] codifica a Diretiva 77/187/CEE do Conselho, de 14 de fevereiro de 1977, relativa à aproximação das legislações dos Estados - Membros respeitantes à manutenção dos direitos dos trabalhadores em caso de transferência de empresas, estabelecimentos ou partes de estabelecimentos (JO L 61, p. 26; EE 05 F2 p. 122.), com a redação que lhe foi dada pela Diretiva 98/50/CE do Conselho, de 29 de Junho de 1998 (JO L 201, p. 88). No 3º considerando da Diretiva 2001/23 afirma-se que «é necessário adotar disposições para proteger os trabalhadores em caso de mudança de empresário especialmente para assegurar a manutenção dos seus direitos.» No 8º considerando afirma-se: «Considerando que, por motivos de segurança e de transparência jurídicas, foi conveniente esclarecer o conceito jurídico de transferência à luz da jurisprudência do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias; que esse esclarecimento não alterou o âmbito da Diretiva 77/187/CEE, tal como é interpretado pelo Tribunal de Justiça.» No artigo 1.°, n.° 1, da diretiva afirma-se: “a) A presente diretiva é aplicável à transferência para outra entidade patronal de uma empresa, estabelecimento ou parte de empresa ou estabelecimento, quer essa transferência resulte de uma cessão convencional quer de uma fusão. Sob reserva do disposto na alínea a) e das disposições seguintes do presente artigo, é considerada transferência, na aceção da presente diretiva, a transferência de uma entidade económica que mantém a sua identidade, entendida como um conjunto de meios organizados, com o objetivo de prosseguir uma atividade económica, seja ela essencial ou acessória. A presente diretiva é aplicável a todas as empresas, públicas ou privadas, que exercem uma atividade económica, com ou sem fins lucrativ[o]s. A reorganização administrativa de instituições oficiais ou a transferência de funções administrativas entre instituições oficiais não constituem uma transferência na aceção da presente diretiva.» O art 3.°, n.° 1, 1º §, da diretiva diz: «Os direitos e obrigações do cedente emergentes de um contrato de trabalho ou de uma relação de trabalho existentes à data da transferência são, por esse facto, transferidos para o cessionário.»  E o art.º  4.°, n.° 1, 1º §: «A transferência de uma empresa ou estabelecimento ou de uma parte de empresa ou de estabelecimento não constitui em si mesma fundamento de despedimento por parte do cedente ou do cessionário. Esta disposição não constitui obstáculo aos despedimentos efetuados por razões económicas, técnicas ou de organização que impliquem mudanças da força de trabalho.»

O art.° 285° do Código de Trabalho de 2009 dispõe que:

1. Em caso de transmissão, por qualquer título, da titularidade de empresa, ou estabelecimento ou ainda de parte de empresa ou estabelecimento que constitua uma unidade económica, transmitem para o adquirente, a posição do empregador nos contratos de trabalho dos respetivos trabalhadores, bem como a responsabilidade pelo pagamento de coima aplicada pela prática da contraordenação laboral.

2. O transmitente responde solidariamente pelas obrigações vencidas até à data da transmissão, durante o ano subsequente a esta.

3. O disposto nos números anteriores é legalmente aplicável à transmissão, cessão ou exploração da empresa, estabelecimento ou unidade económica, sendo solidariamente responsável, em caso de cessão ou reversão, quem imediatamente antes tenha exercido a exploração.

4. O disposto nos números anteriores não é aplicável em caso de trabalhador que o transmitente, antes da transmissão, transfira para outro estabelecimento ou unidade económica, nos termos do disposto no artigo 194°, mantendo-se ao seu serviço, exceto no que respeita à responsabilidade do adquirente pelo pagamento da coima aplicada pela prática de contraordenação laboral.

5. Considera-se unidade económica o conjunto de meios organizados com o objetivo de exercer uma atividade económica, principal ou acessória”.

A questão que a ANSA suscita quanto aos sujeitos consiste em saber se pode haver transmissão num caso em que uma das partes nem sequer existe quando a outra toma o lugar que se diz da primeira (no caso a FMC já não existia em Maio de 2013).

Provou-se com especial relevância que:

2, 3. A Associação Orquestra Clássica da Madeira ("AOCM") (…) é uma pessoa coletiva de utilidade pública que tem como objeto a promoção e o ensino da arte e cultura, nomeadamente na área da música clássica. Até 2006 toda a atividade da OCM foi organizada e tutelada pela AOCM, nomeadamente… gestão dos concertos, contratação dos músicos, aquisição de material, deslocações e viagens, orçamentação e pagamentos, bem como gestão dos associados.

4, 5. A Fundação Madeira Classic ("FMC")… é uma fundação sem fins lucrativos criada pelo Governo Regional da Madeira e pela Associação Orquestra Clássica da Madeira em 8.03.2006, tendo como objeto principal a promoção da música, dinamização da cultura e prática musical e gestão de orquestras e agrupamentos de música erudita. A partir da sua criação… a sua principal atividade foi a gestão e dinamização da Orquestra Clássica da Madeira, substituindo nestas funções a AOCM, que passou apenas a fazer a gestão dos associados.

 6. Em 6.12.2012, por razões ligadas à alteração legislativa do regime das Fundações pela Lei n° 1/2012, de 3 de janeiro, por deliberação do plenário do Conselho do Governo Regional da Madeira, foi determinada a cessação da participação do Governo e a sua respetiva extinção, com efeitos a partir de 1.01.2013, em conformidade com a Resolução n° 1042/2012, publicada no JORAM, Ia Série, n° 167, de 14.12.2012.

7, 8. A Associação Notas e Sinfonias Atlânticas ("ANSA"), formalizada pela escritura pública no dia 27.05.2013 (no seguimento da Resolução n° 469/2013 do Governo Regional, que autorizou a participação do Governo como sócio fundador da ANSA, sob o expresso desígnio desta gerir e dinamizar a OCM, bem como tem uma participação da AOCM), é uma instituição de direito privada sem fins lucrativos, que tem como objeto principal a gestão e dinamização da Orquestra Clássica da Madeira.

9. Em 1 de março de 2006 a FMC assumiu a posição contratual da AOCM, na relação laboral existente entre o A. e esta última, tendo o A. transitado para os quadros da FMC.

Do exposto resulta que até 8.03.2006 a Orquestra Clássica da Madeira era gerida Associação Orquestra Clássica da Madeira; desde a criação da Fundação e até à sua extinção, com efeitos em 1.1.2013, foi gerida pela FCM; e na sequência da extinção desta, a a partir da formalização da criança da recorrente Associação Notas e Sinfonias Atlânticas (ANSA), por esta entidade.

Não oferece assim dúvidas que a ANSA foi criada com o “expresso desígnio desta gerir e dinamizar a OCM”.

A ANSA, a Fundação e a AOCM diferem nas respetivas naturezas mas prosseguem – ao menos quanto à orquestra, que é o que ora importa – os mesmos fins (cfr. também facto provado –fp- 20).

Entre a prossecução formal desses fins sob a égide da Fundação e da ANSA medeia um lapso temporal de menos de 4 meses.

No entanto, e apesar daquela extinção, o A. prestou a atividade para a orquestra até 5.2.2013, dia em que foi despedido por alegada “extinção da empresa” (fp 14, 15 e 16).

Ora, a legislação aplicável não exige, de forma alguma, que haja uma sucessão formal imediata na transmissão, ou, sequer, que os contratos de trabalho estejam em vigor (desde que a cessação tenha ocorrido por motivos relacionados com esta transmissão).

Assim, decidiu o STJ, no acórdão de 27-05-2004 (relat. Consº Vítor Mesquita), designadamente, que “de acordo com a jurisprudência do TJCE, o critério fundamental para a aplicação da diretiva comunitária nº 77/187 quanto ao conceito de "estabelecimento" ou "parte de estabelecimento" é o de saber se há uma entidade que desenvolve uma atividade económica de modo estável e se essa entidade, depois de mudar de titular (ainda que sem vínculo negocial entre o transmitente e o transmissário), manteve a sua identidade” (sublinhado nosso).E o Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias já referiu várias vezes (veja-se por todos o caso Ayse Suzen, Proc. C-13/95) que “para que a Directiva seja aplicável, não é necessário que relações contratuais diretas entre o cedente e o cessionário, já que a cedência pode também efetuar-se em duas fases, por intermédio de um terceiro, como o proprietário ou o locador” (apud Júlio Gomes, “A Jurisprudência Recente do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias em Matéria de Transmissão de Empresa, Estabelecimento ou Parte de Estabelecimento – Inflexão ou Continuidade?”, in Estudos de Direito do Trabalho do Instituto de Direito do Trabalho da Faculdade de Direito de Lisboa, I vol., 481 e ss., Almedina 2001.

Por seu lado, o acórdão Carlito Abler e O. respeita a um litígio entre Sodexho MM Catering Gesellschaft mbH, sociedade incumbida, por contrato, da gestão da restauração colectiva num hospital, a C. Abler, ajudante de cozinha, e 21 outros trabalhadores da restauração, apoiados pela antiga entidade patronal, a Sanrest Großküchen Betriebsgesellschaft mbH, sociedade de restauração incumbida, imediatamente antes, das mesmas prestações, por força de um contrato anterior que fora rescindido. C. Abler e os demais trabalhadores intentaram uma ação no sentido de obter a declaração de que a relação de trabalho com a Sodexho se manteve com fundamento na lei austríaca que transpôs a Directiva 77/187 (apud Luísa Nobre Guedes Simão, dissertação de mestrado “O Direito de Oposição do Trabalhador na Transmissão da Unidade Económica”).

Ora, tanto quanto podemos ver é este o caso: a nova entidade – a R. ANSA – vem gerir a OCM como o fazia a Fundação anteriormente; a Orquestra mantém a designação, toca o mesmo tipo de musica (fp 26), e ainda que entre o inicio da atividade da ANSA e o recrutamento de músicos medeie um período de vários meses (pois embora constituída em 27.5.13, apenas começou a contratar músicos, aliás agora, se bem se entende, em regime de prestação de serviços, em 11.10.2003 – fp 8, 28 e 29), reconhece-se nela o mesmo objeto e atividade.

Assim, a divergência de sujeitos – e o facto de um deles já não existir aquando da constituição do segundo – não é impeditivo da transmissão, sendo irrelevante o argumento da recorrente de que não houve nem podia haver intenção fraudulenta de ambas (o que não é, note-se, o que diz a sentença, sendo, pois, um arrazoado do tipo “boneco de palha”, que a lógica informal há muito identificou como falacioso).

E de resto, a efetiva sucessão de factos aponta para o desiderato de “limpar” a Orquestra dos custos fixos que a encareciam, atento “o seu funcionamento assumidamente deficitário” (fp 25), e de aí mais tarde a “aquisição de serviços” a músicos (fp 29), sendo, pois, legitima a leitura feita, do ponto de vista jurídico-laboral, pelo Tribunal a quo. 
 
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2ª - da unidade económica
A segunda questão suscitada consiste em saber se a orquestra clássica pode ser uma unidade económica.
Naturalmente tal só colhe se, de harmonia com o disposto no art.º 285 do Código do Trabalho, a OCM for subsumível à noção de unidade económica.

Rebela-se contra isto a R. ANSA, defendendo que, destinando-se a OCM a prosseguir fins culturais e de utilidade social, e sendo o seu funcionamento deficitário,  não se pode falar na existência de meios organizados para prosseguir fins económicos.

Não acompanhamos nem de longe este entendimento, afigurando mesmo, salvo o devido respeito, que não atingiu em nada as razões da sentença.

Esta, reconhecendo a dificuldade em preencher este conceito indeterminado, refere:

“O art.° 285° do CT, consagra um conceito lato de estabelecimento, decorrente da Diretiva europeia que o mesmo transpõe – A Diretiva 2001/237CE –, e abrange não só a transmissão da titularidade do estabelecimento, como também a da respetiva exploração (n° 1 e 3). O Código de Trabalho e a Diretiva utilizam uma expressão extensa que se revela vazia sem o auxílio da noção de unidade económica - transferência de empresas ou de estabelecimentos, ou de partes de empresas ou de estabelecimentos. A atenção do intérprete aplicador deve recair sobre a unidade económica, enquanto conjunto de bens materiais e imateriais e de pessoas organizadas com o objetivo de prosseguir uma atividade económica, que mantenha a sua identidade após a transmissão, independentemente da forma jurídica subjacente, do financiamento ou da prossecução do lucro pelo seu titular, da sua atividade ser principal num contexto empresarial mais vasto.

Acompanhamos, assim, Júlio Gomes, que salienta os elementos organizacional e funcional do conceito (Direito do Trabalho- Relações Individuais de Trabalho, Vol. I, Coimbra Editora, 2007, pp. 808-810. Nos termos do art. 1°, n° 1, al. b) da Terceira Diretiva e do art. 285°, n° 5 do CT, a unidade económica consiste num conjunto de meios organizados, com o objetivo de prosseguir - ou de exercer - uma atividade económica, seja ela essencial ou acessória (cf. David Martins, "Da Transmissão da Unidade Económica no Direito Individual do Trabalho", coleção cadernos laborais, n° 6, Instituto de Direito do Trabalho, págs. 185-186).

A unidade económica que prossiga uma atividade económica sem escopo lucrativo ou no interesse pública está abrangida pelo instituto. O TJ afastou a ideia de que uma unidade económica sem fim lucrativo não exercia uma atividade económica. Com efeito, uma entidade pode exercer uma atividade económica e ser vista como uma empresa para aplicação das normas comunitárias, ainda que não prossiga um fim lucrativo. A falta deste escopo não retira à atividade a sua natureza económica, nem permite excluir do âmbito de aplicação da Diretiva. (autor e obra citados, págs. 203-204)”.

Efetivamente, não visando primariamente fins económicos, menos ainda o lucro – é consabido que as atividades culturais, posto que de valor para a comunidade, em regra não geram sequer receitas que as suportem – é certo que o seu produto tem um valor de troca. De aí a existência de ingressos, postos à venda aos interessados antes dos espectáculos (salvo, naturalmente, os que ocorrem em locais públicos). E outras poderão acrescer, como a gravação e exploração de obras originais e de interpretações, protegidas designadamente pelo direito de autor.

O que significa que se trata de uma atividade económica acessória, nos termos do n.º 5 art.º 285 do Código do Trabalho.
         
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3ª – da transmissão
A R. põe em causa a possibilidade de transmissão.

Trata-se, no fundo, de um remate dos seus argumentos anteriores.
Do exposto resulta que é possível a transmissão.

Com efeito existe uma unidade de atividade/fins entre a OCM dirigida pela ANSA e a OCM dirigida pela fundação.

A OCM é uma unidade económica (o que antes se designava unidade técnica).

Objetará a R. que, nada tendo recebido, não houve transmissão.

Do ponto de vista dos trabalhadores já vimos que isso não é válido: se os não recebeu foi porque durante o hiato entre a extinção da fundação e a sua criação, um terceiro interveio pondo fim aos contratos com o argumento supra referido, que todavia não colhe.

Para haver transmissão não tem de haver a traslação de uma generalidade de bens materiais (porventura, no caso, instrumentos musicais e utensílios de escritório); basta as pessoas, o que tenha restado do material da Fundação e mesmo o acervo imaterial da orquestra, incluindo o nome e a atividade, o que tem valor junto do publico.

De onde se conclui pela verificação da transmissão.

O que, sem necessidade de maiores considerandos, acarreta a improcedência do recurso.

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DECISÃO:

Pelo exposto, este Tribunal julga a apelação improcedente e confirma a sentença recorrida.
Custas pela R. ANSA.


Lisboa, 1 de julho de 2015

Sérgio Almeida
Jerónimo Freitas
Francisca Mendes


[1] No original dizia-se, depreende-se por lapso, que “a Orquestra Clássica da Madeira (doravante "COM") teve origem na Orquestra Clássica da Madeira”.

Decisão Texto Integral: