Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
868/2008-2
Relator: JORGE LEAL
Descritores: EXECUÇÃO
OPOSIÇÃO
NOVAÇÃO
LETRA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 04/17/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Sumário: I- A declaração, na matéria provada, de que a letra subscrita pelos executados foi “substituída” por outras três, não pode ser interpretada como querendo dizer que a respectiva obrigação cambiária foi considerada extinta pelas partes, em virtude da emissão das novas letras: com esse sentido, a referida palavra assumir-se-ia como um conceito de direito, uma conclusão jurídica.
II – A extinção, por novação, da primitiva obrigação cambiária, exige uma inequívoca manifestação de vontade nesse sentido, a qual não se presume, nomeadamente quando a letra primitiva continuou na posse da exequente e as novas letras foram subscritas tão só pelo filho dos executados, subscritores da letra primitiva, não sendo crível que a exequente aceitasse perder o acréscimo de garantias do seu crédito constituído pelo aceite cambiário formalizado pelos pais do devedor.
(JL)
Decisão Texto Integral: Acordam os juízes no Tribunal da Relação de Lisboa

RELATÓRIO

C e mulher M, executados nos autos principais, deduziram oposição à execução que corre os seus termos no 2º Juízo do Tribunal Judicial de Peniche com o nº , movida contra eles por F, Lda.

Alegam que nada devem à exequente, pois a letra que esta apresentou como título executivo dizia respeito a uma dívida do filho dos executados, C, para com a exequente, letra aquela que foi substituída por outras, com datas de vencimento posteriores, com o conhecimento e consentimento da exequente e que foram atempadamente pagas a esta.

Os oponentes terminam pedindo que a execução seja declarada extinta.

A exequente contestou a oposição à execução alegando, em síntese, ser verdade que a letra dada à execução, subscrita pelos executados, respeita a dívida do filho dos executados para com a exequente, emergente de transacções comerciais. Não tendo a letra sido paga na data do seu vencimento e após diversas tentativas da ora exequente para cobrar a dívida, os oponentes e o seu filho solicitaram o pagamento da mesma por meio de três letras francesas (“lettre de change”). A exequente não se opôs a tal, desde que a letra ora dada à execução ficasse em sua posse até efectivo e integral pagamento do montante em dívida. Em 02.10.2003 o filho dos oponentes subscreveu as referidas três letras, com datas de vencimento a 15.10.2003, 15.11.2003 e 15.12.2003, respectivamente. Apresentadas a pagamento na data respectiva, as letras não foram pagas, pelo que, encontrando-se totalmente em dívida o valor titulado pela letra dada à execução, a exequente lançou mão da acção judicial ora alvo de oposição.

A exequente terminou pedindo que a oposição fosse julgada improcedente por não provada e que os oponentes fossem condenados como litigantes de má fé em multa e indemnização a favor do Réu.

Com dispensa da audiência preliminar, foi proferido o despacho saneador e elaborada a matéria assente e a base instrutória.

Realizou-se audiência de discussão e julgamento e oportunamente foi proferida sentença que julgou a oposição improcedente e consequentemente determinou o prosseguimento da execução.

Os oponentes apelaram da sentença e apresentaram alegações em que formularam as seguintes conclusões:

A) Vem o presente Recurso interposto da douta sentença de fls 106 e seguintes, que julga improcedente a Oposição apresentada pelos executados, determinando o normal prosseguimento da Execução;

B) Os oponentes não podem conformar-se com tal decisão, por razões de facto e de Direito;

C) Os factos inscritos na Matéria Assente, aquando da prolação do douto Despacho Saneador, eram, na perspectiva dos recorrentes, com o devido respeito, suficientes, por si só, para decidir do mérito da causa;

D) Julgou-se assente que a dívida em causa foi contraída por C, filho dos oponentes (Facto Provado F);

E) A exequente reconheceu expressamente que foi apenas este C quem com ela estabeleceu relações comerciais;

F) Mais reconheceu expressamente que aceitou a substituição da letra que agora veio dar à execução por três outras letras de câmbio, francesas, nas quais se obrigava apenas aquele C;

G) A substituição – que aconteceu com o conhecimento e assentimento expressos da exequente - foi julgada provada pelo Tribunal "a quo" - Facto Provado G);

H) Assim sendo, não pode a Execução prosseguir seus normais termos, com base no título dos autos;

I) A partir do momento em que aceitou a substituição da letra agora dada à Execução pelas outras três, nas quais se obrigava apenas o C, a exequente deixou de pretender dos ora executados o pagamento da quantia por elas titulada, passando a pretende-lo somente do sobredito C;

J) Não consta nem da Matéria Assente nem da Base lnstrutória que a substituição da letra dos autos tivesse sido aceite pela exequente sob qualquer condição;

L) O que está assente é que a letra agora dada à Execução já havia antes sido validamente substituída por três outras, sendo que, nestas últimas, os ora executados não tiveram qualquer intervenção;

M) O aspecto principal que os ora recorrentes focam na sua Oposição é a validade do título executivo enquanto tal;

N) Se a exequente aceita expressamente que a dívida reclamada é do C, se aceita expressamente que este foi o único que com ela manteve relações comerciais, se aceitou expressamente a substituição da letra primitiva por três outras, nas quais se obrigava apenas aquele C, não pode agora "passar por cima" de todos esses factos e vir, como se nada tivesse acontecido, dar à Execução a letra junta aos autos, que, aliás, detinha abusivamente a partir do momento em que se opera a substituição;

O) Não está aqui em causa nem qualquer presunção de culpa dos devedores (que a exequente, aliás, reconhece que os executados não são), nem qualquer novação;

P) O que está em causa é tão só, e antes de mais, a validade do título dado à execução, na data em que o foi, e consideradas as circunstâncias em que o foi, designadamente, a mencionada substituição;

Q) O título é a condição primeira da acção executiva;

R) Em face do exposto, é manifesto que a presente Execução, tal como está configurada, não pode prosseguir (sendo tal decisão a única que, na nossa perspectiva, tem decorrência lógica da matéria dada como Assente logo no Despacho Saneador);

S) Quanto à matéria levada à Base lnstrutória, o facto de toda ela ter sido julga "Não provada" é absolutamente irrelevante para o objecto dos autos;

T) Por um lado, não foram esses os títulos dados à Execução;

U) Por outro lado, trata-se de matéria que não diz respeito aos oponentes, e lhes é absolutamene estranha, pelo que não poderiam nem tinham obrigação de sobre ela fazer prova;

V) A douta sentença recorrida, na linha de raciocínio que segue e ao decidir do modo como decide, violou o disposto nos arts. 813º e seguintes do Código de Processo Civil, assim como as disposições constantes dos arts. 342° e 799º, ambos do Código Civil.

X) A interpretação que deveria ter sido feita de tais disposições, em face da matéria de facto julgada provada nos autos, era, com todo o respeito, precisamente em sentido inverso, concluindo-se pela procedência da Oposição;

Z) Por todo o exposto, não deixarão Vossas Excelências de revogar a douta decisão de que se recorre, substituindo-a por outra, julgando procedente a Oposição de fls , com as legais consequências.

A exequente contra-alegou, pugnando pela manutenção da decisão recorrida.

Foram colhidos os vistos legais.

FUNDAMENTAÇÃO

A questão a apreciar nestes autos é se, como pretendem os executados/oponentes, ocorreu alguma circunstância que tenha extinguido o direito cartular representado pela letra dada à execução, maxime por força da substituição dessa letra por outras três, subscritas exclusivamente pelo filho dos executados/oponentes/apelantes.

Pelo tribunal a quo foi dada como provada a seguinte

Matéria de Facto

A) No dia 03 de Março de 2006, no local de Fátima, F, Lda., ordenou por escrito a M, que "no seu vencimento pagará v. ex. por esta única via de letra a nós ou à nossa ordem a quantia de treze mil, duzentos e sessenta e seis mil euros e trinta cêntimos", encontrando-se no local destinado à data de vencimento, inscrito "2003.04.06".

B) No canto inferior direito do mesmo escrito, na quadrícula indicada como "assinatura do sacador'' foram apostas duas assinaturas e um carimbo com os dizeres "F, Lda. A Gerência" e na quadrícula destinada a "nome e morada do sacado" foi inscrito "M".

C) No lado esquerdo do mesmo escrito, foram manualmente inscritos, na transversal os dizeres "M" e "C".

D) Na quadrícula onde se encontra a inscrição "outras referências" foi manuscrita a expressão "Sem despesas", e onde se refere "valor” foi manuscrito "transacção comercial'.

E) No verso do mesmo escrito encontra-se um carimbo com os dizeres "F Lda. A Gerência' e uma assinatura.

F) O montante de € 13.266,30, referido no escrito mencionado em A) diz respeito a um compromisso de entrega do referido valor, assumido por C perante F, Lda.

G) O escrito referido em A) foi substituído por três outros escritos onde consta a inscrição "Contre cette lettre de change stipullée sans frais veuillez payer la somme indiquée ci-dessous à l'ordre de" seguido de "F', e no local designado por "Signature du Tireur”' consta "F, Lda. A Gerência' e na quadrícula destinada a "Acceptation ou aval' uma assinatura e um carimbo com o dizer "C".

H) O primeiro escrito apresenta no local destinado ao "montant' a inscrição "4.422,10" e na quadrícula designada por "échéance" "15.10.03."

I) O segundo escrito apresenta no local destinado ao "montant” a inscrição de "4.422,10" e na quadrícula designada por "échéance" "15.11.03".

J) O terceiro escrito apresenta no local destinado ao "montant" a inscrição de “4.422,10” e na quadrícula designada por "échéance" "15.12.03".

O Direito

Resulta da matéria de facto provada que a letra que constitui o título dado à execução pela embargada foi emitida como forma de garantir a boa cobrança de um crédito titulado pela embargada/exequente perante o filho dos executados, proveniente de transacções comerciais. Significa isto que as partes quiseram fornecer à embargada as vantagens inerentes a um título de crédito como a letra, documento que consubstancia uma obrigação cambiária, de natureza literal, abstracta, autónoma do direito do titular, de circulação fácil e que constitui um excelente instrumento de cobrança do crédito a que se refere, por ser desde logo título executivo (art.º 46º, alínea c) do Código de Processo Civil). Através do aceite da dita letra, os ora oponentes comprometeram-se a pagar à embargada ou à sua ordem, na data que nela constasse, a quantia aí inscrita (art.º 1º da Lei Uniforme de Letras e Livranças), assumindo-se devedores de uma obrigação cartular, com as características inerentes e dessa forma garantindo com o seu património o pagamento de uma dívida contraída pelo seu filho. Enquanto a letra não fosse paga, manter-se-ia a dívida primitiva, ou seja, a do filho dos oponentes (nos termos do art.º 840º nº 2 do Código Civil, presume-se que a assunção de uma dívida, feita para proporcionar a realização de uma outra prestação devida, só opera a extinção da obrigação primitiva na medida em que a dívida assumida seja satisfeita - dação pro solvendo).

Entretanto, conforme é alegado pelas partes, o filho dos oponentes aceitou três letras, cujo pagamento extinguiria a dita dívida que tinha para com a ora exequente.

Os oponentes alegaram não só que essas letras foram pagas, como ainda que a primeira letra foi substituída pelas três letras, com o efeito de se ter extinguido a respectiva obrigação cartular – ou seja, no que concerne à obrigação de pagamento dos executados para com a exequente, o ulterior pagamento das novas letras era irrelevante, devendo desde logo considerar-se extinta a execução, por força da alegada substituição da primeira letra pelas outras três.

Na petição de oposição os executados furtam-se ao enquadramento jurídico da sua posição, nomeadamente no que concerne ao efeito da subscrição das três letras pelo filho dos executados. Porém, dir-se-á, tal como se entendeu na sentença recorrida, que o fenómeno jurídico tido em vista é a novação, ou seja, a constituição de uma obrigação em substituição de outra que ela extingue (artigos 857º e seguintes do Código Civil).

No caso dos autos, estar-se-ia perante uma novação subjectiva, por substituição do devedor: o filho dos executados teria subscrito as três novas letras, contraindo nova obrigação cambiária em substituição dos ora executados, que ficariam exonerados pela credora da primitiva obrigação (art.º 858º do Código Civil).

Exige-se, no artigo 859º do Código Civil, que “a vontade de contrair a nova obrigação em substituição da antiga deve ser expressamente manifestada”. Isto significa que a vontade de extinguir a obrigação anterior deve ser declarada de modo directo, inequívoco ou terminante, não se tendo mesmo considerado suficiente a formulação proposta por Vaz Serra no sentido de essa vontade ser “claramente manifestada”, pelo que não basta uma declaração tácita ou presumida (cfr. A. Varela, Das Obrigações em geral, vol II, 7ª edição, Almedina, páginas 237 e 238).

Os apelantes entendem que tal vontade de extinção da obrigação dada à execução foi dada como provada, uma vez que, logo no saneador, aquando da selecção da matéria de facto, foi dado como assente que a letra subscrita pelos executados foi “substituída” pelas outras três letras acima referidas (cfr. alínea g) da matéria de facto).

Vejamos.

Na petição de oposição os oponentes alegaram que a letra apresentada como título executivo “foi substituída por outras, com datas de vencimento posteriores, com o conhecimento e o assentimento da ora exequente” (artigos 4º e 5º da oposição).

Na contestação à oposição a exequente, após declarar impugnar a quase totalidade do articulado pelos oponentes (incluindo os artigos 4º e 5º), apenas admitiu que “após diversas tentativas de cobrar a dívida por parte da sociedade Exequente (…), os oponentes e seu filho, que nunca negaram a existência da dívida, solicitaram o pagamento da mesma por meio de três letras de troca francesas” (art.º 7º da contestação à oposição), “ao que a exequente se não opôs, conquanto a letra dada à execução ficasse em sua posse até efectivo e integral pagamento do montante em dívida” (art.º 8º da contestação).

Do exposto resulta que a exequente não aceitou, na contestação, que tivesse dado o seu acordo para que a obrigação cambiária assumida pelos executados se extinguisse em consequência da subscrição das novas letras pelo filho dos executados. Aliás, não só não se mostra provada a emissão de qualquer declaração expressa nesse sentido, como existem elementos que indiciam o contrário: a circunstância de a primeira letra ter continuado na posse da exequente; o facto de as novas letras serem subscritas tão só pelo filho dos executados, não sendo crível que a exequente aceitasse perder o acréscimo de garantias do seu crédito constituído pelo aceite cambiário formalizado pelos pais do devedor.

A declaração, na matéria provada (que não foi questionada por nenhuma das partes), de que a letra subscrita pelos executados foi “substituída” por outras três, não pode ser interpretada como querendo dizer que a respectiva obrigação cambiária foi considerada extinta pelas partes, em virtude da emissão das novas letras: com esse sentido, a referida palavra assumir-se-ia como um conceito de direito, uma conclusão jurídica. Ora, tendo em vista a selecção da matéria de facto, seja assente, seja controvertida, o tribunal deve ater-se a factos, não devendo aí incluir conceitos de direito ou juízos de valor sobre a matéria de facto (art.º 511º nº 1 do Código de Processo Civil). A instrução terá por objecto apenas factos (art.º 513º do Código de Processo Civil) e, de acordo com o disposto no art.º 646º nº 4 do Código de Processo Civil, no julgamento da matéria de facto ter-se-ão por não escritas as respostas do tribunal sobre questões de direito. Assim, a referida asserção, contida na matéria de facto, de que a primeira letra foi substituída pelas outras três, é irrelevante para o efeito da resolução da questão que ora nos ocupa, que é a da extinção da obrigação exequenda por força de novação (pois essa resolução deverá assentar na demonstração de factos concretos que suportem o juízo de que se operou tal extinção).

Por ser plenamente aplicável ao caso dos autos, reproduz-se a seguinte passagem de um acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, datado de 26.3.1996 (publicado no BMJ nº 455, pág. 522 e seguintes):

A simples reforma de letra de câmbio, por substituição de uma (letra reformada) por outra (letra de reforma) não implica a extinção, por novação, da primitiva obrigação cambiária.

É indispensável, para esse efeito, a alegação e prova de expressa ou inequívoca manifestação de vontade no sentido de se contrair uma nova obrigação em substituição da antiga (artigos 857º e 859º do Código Civil).

Tal declaração negocial não se presume, designadamente se não houve restituição do título inicial ou se este contém alguma garantia especial não incluída no novo título.”

Os executados não lograram demonstrar a extinção da obrigação cambiária dada à execução, seja por pagamento, seja por novação ou por qualquer outro facto extintivo, pelo que a execução deve prosseguir, conforme se decidiu na primeira instância.

DECISÃO

Pelo exposto, julga-se o recurso improcedente e consequentemente mantém-se a decisão recorrida.

Custas pelos apelantes.

Lisboa, 17.4.2008

Jorge Manuel Leitão Leal

Nelson Paulo Martins de Borges Carneiro

Ana Paula Martins Boularot