Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
3843/2005-6
Relator: CARLOS VALVERDE
Descritores: MÚTUO
RESERVA DE PROPRIEDADE
APREENSÃO DE VEÍCULO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/05/2005
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: ALTERADA
Sumário: I - É na relação pagamento integral do preço da coisa vendida / transferência da sua propriedade que o pactum reservati dominii encontra a sua razão de ser e daí que é perfeitamente admissível a constituição da reserva de propriedade com vista a garantir os direitos de crédito emergentes de um contrato de mútuo cuja finalidade última é a de assegurar o pagamento do preço da coisa ao seu alienante, o que, de resto, sempre acolheria protecção na própria lei, que permite como condicionante à transferência da propriedade, qualquer outro evento futuro que não apenas o cumprimento das obrigações decorrentes do contrato de compra e venda (artº 409º, 1, in fine, do CC).

II - A aceitar-se a formal e redutora interpretação de que só o incumprimento e consequente resolução do contrato de alienação conduz à apreensão e entrega do veículo alienado, a cláusula da reserva de propriedade deixaria de ter qualquer efeito prático, sempre que a aquisição do veículo fosse feita através do financiamento de terceiro - o que é hoje a regra face à evolução verificada nessa forma de aquisição.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:


FCE Bank PLC, Sucursal em Portugal, SA e Motortejo - Comércio e Indústria Automóvel, SA, intentaram acção declarativa, com forma ordinária - face à decisão de aumento do valor da causa, proferida a fls, 65 e 66 - contra, (J), pedindo:
a) se declare válida a rescisão do contrato de financiamento para aquisição a crédito de veiculo automóvel de matricula 74-76-GC;
b) a condenação do R.
- a reconhecer que o referido veiculo pertence à 2ª A;
- a entregar às AA. o mesmo veículo automóvel;
- a pagar à 1ª A. a quantia de 1.098.229$00, correspondente a 24 prestações de 44 141$00 e, 38 845$00 - face ao pedido de rectificação de lapso de escrita, a fls. 79 - de parte da 24ª prestação, que se venceram todas com a falta de pagamento da prestação de 10/4/00;
- a pagar à 1ª A. os juros de mora contratuais, contados desde 10/4/00, sendo os já vencidos de 146.169$00.
Alegam, em síntese, que em 7/4/98, a 2ª A. vendeu ao R. aquele veiculo automóvel, pelo preço de 1 980 000$00; a 1ª A. financiou a aquisição do referido veiculo, mediante o contrato de fls. 8, na quantia de 1 480 000$00, a reembolsar em 48 prestações mensais de 44 141$00 cada, ascendendo o total do reembolso a 2 118 768$00; para garantia do reembolso do valor financiado, foi constituída reserva de propriedade sobre o veiculo a favor da 2ª A, a qual se mostra registada na Conservatória do Registo Automóvel; o R. deixou de pagar as prestações desde 10/4/00; em face disso, a 1ª A. interpelou-o para pôr termo à mora no prazo de 8 dias; como não o fez, a 1ª A. notificou-o da rescisão do contrato de financiamento por carta de 1/9/00; nos termos da cláusula C) do contrato de financiamento e do Art° 781º do CC, tem direito a receber todas as prestações vencidas automaticamente desde 10/4/00, bem como juros de mora; e as AA. têm direito a obterem a imediata restituição do veiculo, conforme cláusula A) do contrato, devendo o valor do veículo ser deduzido no montante da dívida.


Citado pessoal e legalmente, o R. não contestou.


Seguidamente, o Sr. Juíz proferiu sentença em que:

- julgou inepta a petição inicial, por falta de causa de pedir, quanto aos pedidos de condenação do R. a reconhecer à 2ª Ré a propriedade do veículo e da sua restituição às AA. e absolveu aquele da instância em relação a tais pedidos;

- julgou a acção parcialmente procedente quanto aos demais pedidos e, em consequência, declarou válida a resolução do contrato de financiamento outorgado entre a 1ª A. e o R. e condenou este a pagar-lhe as quantias de 215.409$00 - correspondente às prestações vencidas e não pagas até à resolução do contrato -, acrescida de juros moratórios, à taxa legal, sobre o valor de cada uma dessas prestações e desde a data dos respectivos vencimentos e de 616.667$00, relativa à restituição do capital mutuado integrado nas prestações que se venceriam após a resolução, acrescida de juros de mora, à taxa legal mais dois pontos percentuais, desde o dia seguinte ao da resolução (1-9-00), até integral pagamento.



Inconformadas com esta decisão, dela as AA. interpuseram recurso de apelação, em cujas conclusões, devidamente resumidas - artº 690º, nº 1 do CPC -, colocam as seguintes questões:

- a ineptidão da petição inicial;

- a validade da cláusula E), do contrato ajuizado.



Não houve contra-alegação.



Colhidos os vistos legais, cumpre decidir, atenta a factualidade apurada na instância recorrida e constante da decisão impugnada, para a qual, por não ter sido posta em causa nem haver lugar à sua alteração, se remete, ao abrigo do disposto no nº 6 do artº 713º do CPC, na redacção introduzida pelo DL nº 329-A/95, de 12/12.



Na sentença sindicanda, entendeu-se que, não tendo a 2ª A. - a favor de quem se encontra constituída a reserva de propriedade do veículo alienado - alegado a rescisão do contrato de alienação, carecia de causa de pedir suportadora das pretensões do reconhecimento do direito de propriedade e restituição desse veículo.
De tal dissentem as recorrentes, apelando à interpretação actualista do nº 1 do artº 18º do DL nº 54/75, de 12/12, onde se dispõe, no que ao caso interessa, que "... o titular do registo de reserva de propriedade deve propor acção de resolução do contrato de alienação".
Prescreve o nº 1, do artº 9º do C.C. que à actividade interpretativa não basta o elemento literal das normas e que é essencial a vontade do legislador, captável no quadro do sistema jurídico, das condições históricas da sua formulação e, numa perspectiva actualista, na especificidade do tempo em que são aplicadas.
No nº 2 estabelece-se, por seu turno, que a determinação da vontade legislativa não pode abstrair da letra da lei, isto é, do significado da sua expressão verbal.
Finalmente, no nº 3, dispõe-se, por apelo a critérios de objectividade, que o interprete, na determinação do sentido prevalente da lei, deve presumir o acerto das soluções consagradas e a expressão verbal adequada (Pires de Lima e Antunes Varela, "Código Civil Anotado", Volume I, Coimbra, 1987, págs. 58 e 59).
No fundo, o referido normativo expressa os princípios doutrinários consagrados ao longo do tempo sobre a interpretação das leis, designadamente o apelo ao elemento literal, por um lado, e aos de origem lógica - mens legis ou fim da lei, histórico ou sistemático - por outro.
Interpretar uma lei não é mais do que fixar o seu sentido e o alcance com que ela deve valer, ou seja, determinar o seu sentido e alcance decisivos; o escopo final a que converge todo o processo interpretativo é o de pôr a claro o verdadeiro sentido e alcance da lei (Manuel de Andrade, Ensaio sobre a Teoria da Interpretação das Leis, págs. 21 a 26).
Interpretar, em matéria de leis, quer dizer não só descobrir o sentido que está por detrás da expressão, como também, dentro das várias significações que estão cobertas pela expressão, eleger a verdadeira e decisiva (Pires de Lima e Antunes Varela, Noções Fundamentais do Direito Civil, vol. 1º, 6ª ed., pág. 145).
Daí que, perante as regras de interpretação da lei que resultam do art. 9º do Código Civil, a regra não é a de que onde a lei não distingue não pode o intérprete distinguir, mas, ao invés, a de que onde a lei não distingue deve o intérprete distinguir sempre que dela resultem ponderosas razões que o imponham.
No plano dos resultados da interpretação, importa, ainda e porém, confrontar o texto da lei com o seu espírito; havendo coincidência, estar-se-á perante a chamada interpretação declarativa; não a havendo, ocorre a chamada interpretação extensiva ou restritiva.
Há, pois, interpretação declarativa quando a letra da lei comporta o seu sentido.
Concluindo-se, todavia, que o legislador pretendeu exprimir um determinado sentido, mas a letra da lei conduz a outro mais restiritivo, importa que se realize a sua interpretação extensiva; no caso contrário, isto é, quando se concluir que a letra da lei conduz a um sentido mais amplo do que aquele que o seu espírito comporta, cabe operar a interpretação restritiva.
Alguns autores até admitem dever operar a interpretação correctiva se o seu resultado se configurar contrário a interesses preponderantes da ordem jurídica, em termos tais que, se o legislador tivesse considerado a situação, não a teria consagrado.
À luz destes princípios haverá que interpretar o normativo em referência.
Este normativo insere-se no âmbito das normas reguladoras da acção especial cautelar de apreensão de veículos automóveis, motivada pela ideia da sua deterioração no tempo necessário para a conclusão da acção declarativa de que é instrumental.
A venda com reserva de propriedade (artº 409º do CC) é uma alienação sob condição suspensiva, em que se suspende o efeito translativo, produzindo-se imediatamente os demais. A transferência da propriedade fica dependente de evento futuro, que, em regra, será o cumprimento total ou parcial das obrigações da outra parte e daí que a hipótese mais frequente seja a da venda a prestações com espera de preço, em que se clausula, para maior segurança do vendedor, que a coisa vendida continuará a pertencer-lhe até o preço estar integralmente pago (cfr. Galvão Telles, Direito das Obrigações, 7ª ed., págs 83/84).
É na relação pagamento integral do preço da coisa vendida / transferência da sua propriedade que o pactum reservati dominii encontra a sua razão de ser e daí que é perfeitamente admissível a constituição da reserva de propriedade com vista a garantir os direitos de crédito emergentes de um contrato de mútuo cuja finalidade última é a de assegurar o pagamento do preço da coisa ao seu alienante, o que, de resto, sempre acolheria protecção na própria lei, que permite como condicionante à transferência da propriedade, qualquer outro evento futuro que não apenas o cumprimento das obrigações decorrentes do contrato de compra e venda (artº 409º, 1, in fine, do CC).
Como é sabido tem vindo a crescer exponencialmente o crédito ao consumo, sendo hoje a regra para a aquisição de quaisquer bens com algum valor significativo - com especial relevo para os veículos automóveis - o recurso ao financiamento pelas instituições vocacionadas para o efeito, sobrando, por isso, não tanto a eventualidade do incumprimento pelo consumidor das obrigações emergentes do contrato de alienação, mas mais das do contrato de mútuo que aquele permite, podendo, em boa verdade, dizer-se que o pagamento do preço do bem alienado se confunde com o cumprimento integral das obrigações do contrato que tem como objecto o financiamento da sua aquisição.
Deste modo, na leitura do disposto no artº 18º, 1 do DL nº 54/75, é de entender como extensiva ao contrato de mútuo conexo com o de compra e venda e cujo cumprimento esteve na origem da reserva de propriedade a referência ao "contrato de alienação".
Por outro lado, temos para nós que a interpretação jurídica das normas não deve restringir-se a um conceptualismo formalista, despido das consequências práticas que dele possam provir.
Como se escreve, lapidarmente, no Ac. do STJ, de 19-9-89, "...a ponderação das consequências constitui ainda um momento da argumentação jurídica, pelo menos para todos quantos entendem - e são hoje muitos - que a inferência jurídica não pode ficar alheia aos efeitos práticos da solução inferida" (BMJ nº 389, pág. 536).
Ora, a aceitar-se a formal e redutora interpretação de que só o incumprimento e consequente resolução do contrato de alienação conduz à apreensão e entrega do veículo alienado, a cláusula da reserva de propriedade deixaria de ter qualquer efeito prático, sempre que a aquisição do veículo fosse feita através do financiamento de terceiro - o que, como se disse, é hoje a regra face à evolução verificada nessa forma de aquisição.
O vendedor, recebendo do financiador o montante integral do preço do veículo - o que, na maioria dos casos, corresponde ao cumprimento integral do contrato de alienação pelo comprador - está, em bom rigor, impedido de resolver esse contrato, porque integralmente cumprido e, logo, de fazer reverter a seu favor a cláusula de reserva de propriedade, até porque, verdadeiramente, esta foi estabelecida para garantir o cumprimento do contrato de financiamento e, incumprido este sem que o financiador, ainda que conjuntamente com o vendedor titular da reserva, pudesse accionar tal clausulado, invocando a resolução do único contrato que, em última análise, não foi cumprido - o contrato de mútuo -, chegaríamos à tão iníqua quanto absurda situação de o mutuário/comprador relapso não poder ser desapossado do veículo de que não é proprietário, exactamente porque a transferência da propriedade ficou salvaguardada pela cláusula da reserva de propriedade, esvaziando-se por completo a finalidade e utilidade desta.
Posto isto, na interpretação defendida, há que entender como suficientemente consubstanciada a causa de pedir suportadora dos pedidos de reconhecimento da propriedade e restituição do veículo na alegação do incumprimento e resolução do contrato de mútuo ajuizado e, face à confissão da factualidade atinente, pela relevância da revelia do R. (artº 484º, 1 do CPC), que atender tais pretensões das AA.
Ainda, com censura das recorrentes, na sentença sindicanda, considerando-se que a indemnização calculada ao abrigo da cláusula E) do contrato de mútuo ajuizado excedia o prejuízo sofrido pela 1ª A., operou-se como que uma redução da mesma para se chegar à definição do direito indemnizatório dessa A..
Com o já assinalado crescimento desenfreado do crédito ao consumo, aumentaram também os riscos deste mercado para os respectivos financiadores, que têm consciência de que esses riscos só poderão ser evitados pelo rigoroso cumprimento dos contratos por parte dos mutuários e, por isso, tentam evitar a todo o transe o seu incumprimento; surge, assim, como natural a imposição de clausulados de naturêza resolutiva e penal.
A indemnização destinada a ressarcir o financiador - que fará suas todas as quantias já pagas pelo financiado - dos prejuízos correspondentes à diferença entre o valor comercial do veículo e o montante da totalidade das prestações não pagas, configura-se como verdadeira cláusula penal (artº 810º do CC).
A cláusula penal tem, por regra, uma dupla função: indemnizatória pela prévia fixação da indemnização devida ao credor e coercitiva pela pressão que é susceptível de causar no sentido do cumprimento da obrigação (Calvão da Silva, Cumprimento e Sanção Pecuniária Compulsória, pág. 247 e sgs.).
Passando os objectivos e o êxito desta segunda função pela maior ou menor pressão do devedor ao cumprimento, a tendência dos credores para a fixação de penas elevadas, que ultrapassam, por vezes, em muito, o dano efectivo, não surpreende.
Daí a necessidade de contrariar a intangibilidade, sustentada na liberdade negocial (artº 405º do CC), da cláusula penal, a que o próprio legislador, vindo de encontro a exigências jurisprudenciais e doutrinais nesse sentido, deu resposta, como é exemplo, entre nós, o artº 812º do CC.
Aqui se dispõe que a pena convencional pode ser reduzida pelo tribunal, de acordo com a equidade, quando for manifestamente excessiva, ainda por causa superveniente, sendo que a redução é também possível se a obrigação tiver sido parcialmente cumprida.
A intervenção judicial, porém, não pode ser sistemática, antes deve ser excepcional e em condições e limites apertados, “de modo a não arruinar o legítimo e salutar valor coercitivo da cláusula penal e nunca perdendo de vista o seu carácter à forfait", como observa Calvão da Silva, que acrescenta ainda que, “na apreciação do carácter manifestamente excessivo da cláusula penal, o juíz não deverá deixar de atender à natureza e condições de formação do contrato (por exemplo, se a cláusula for contrapartida de melhores condições negociais), à situação respectiva das partes, nomeadamente à sua situação económica e social, os seus interesses legítimos, patrimoniais ou não patrimoniais; à circunstância de se tratar ou não de um contrato de adesão; ao prejuízo sofrido pelo credor; às causas explicativas do não cumprimento da obrigação, em particular à boa ou má fé do devedor; ao próprio carácter à forfait da cláusula e, obviamente, à salvaguarda do seu valor cominatório” (ob. cit., págs. 273 e sgs.).
Interpretando a redacção actual do art. 812º, nº 1 do C.Civil, depois das alterações introduzidas pelo D.L. 262/83, o mesmo Autor faz também notar que “o juíz tem o poder de reduzir, mas não de invalidar ou suprimir a cláusula penal manifestamente excessiva, e que só tem o poder de reduzir a cláusula manifestamente excessiva e já não a cláusula excessiva” (ainda ob. cit., pág. 276).
Posto isto, será de entender a cláusula questionada como desproporcionada em relação aos danos a ressarcir, devendo ser reajustada, conforme foi feito na decisão censuranda?
A cláusula penal não se confunde pura e simplesmente com uma sanção para quem não cumpre as suas obrigações contratuais; como supra se referiu, tem, em primeira linha, uma natureza indemnizatória: é uma forma de fixar previamente a indemnização devida, em caso de incumprimento determinante da resolução do contrato.
Se assim é, a cláusula penal dispensa o credor de provar quer os danos, quer o seu montante; porque a indemnização ficou, desde logo, calculada; o ónus da prova sofre aqui uma inversão, passando a caber ao devedor, se quiser afastar a actuação do clausulado, a prova da inexistência de prejuízos ou a desproporção entre estes e o montante indemnizatório preconvencionado - artº 342º, nº 2 do CC -, ou, doutra forma, o uso da faculdade de redução equitativa da cláusula penal, conferido ao tribunal pelo artº 812º do CC, por um lado, não é oficioso, antes dependendo do pedido do devedor nesse sentido e, por outro, impõe a este a alegação e demonstração, porque de excepção peremptória se trata, dos factos susceptíveis de suportar essa sua pretensão (Pires de Lima e Antunes Varela, CC Anotado, vol. II, 4ª ed., pág. 81, Pinto Monteiro, Cláusula Penal e Indemnização, págs. 734 e 747, Antunes Varela, ob. cit., vol. II, 7ª ed., pág. 148 e Acs. do STJ de 5-11-97, 21-5-98 e 10-02-00, respectivamente, CJ, V, III, pág. 120, BMJ 477, pág. 489 e CJ, VIII, I, pág. 76 e da RP de 23-11-93 e da RL de 27-4-95, também respectivamente, XVIII, V, pág. 230 e XX, II, pág. 120 ).
Acontece, porém, que, face à situação de revelia do R., não foram alegados e, logo, provados factos integradores desse manifesto excesso, nem sequer foi pedida tal redução.
Prejudicado, pois, o juízo em concreto sobre a proibição de tal cláusula, acontece que em termos abstractos também a mesma não é de configurar como desproporcionada em relação aos danos a ressarcir: ao contrário do entendido na sentença sindicanda, a indemnização não corresponde ao reembolso da totalidade do capital mutuado, antes e tão só à perda das prestações pagas e ao valor dos prejuízos correspondentes à diferença entre o valor comercial do veículo na data da restituição e o montante de todas as prestações vencidas e não pagas, aqui se incluindo as vencidas automáticamente nos termos do artº 781º do CC - seja de todas as prestações ainda não pagas -, o que, desde logo, porque dependente do valor do veículo, implica o desconhecimento da sua verdadeira extensão, que bem pode ficar reduzida à simples retenção das quantias entretanto pagas.
Sendo assim, é deslocado falar-se em violação do disposto no artº 811º, 1 do CC e, se sopesarmos devidamente os riscos assumidos pela entidade financiadora, também não é, em tese geral, de considerar como desproporcionada e, logo, ofensiva do disposto no artº 19º, c) do DL nº 446/85, de 25/10, a indemnização que, por via do incumprimento do contrato, é permitida ao mutuante pelo clausulado em referência.
Posto isto, indiscutível o incumprimento pelo R. do contrato de mútuo ajuizado e tendo a 1ª A. optado pela resolução desse contrato, assiste-lhe, de acordo com o nele clausulado pelas partes, o direito a fazer suas as quantias já pagas e ainda a ser indemnizada pelos prejuízos correspondentes à diferença entre, por um lado, o valor comercial do veículo na data (7-10-2001) em que foi aprrendido e entregue às AA. e, por outro, o montante de todas as prestações contratuais ainda não pagas (1.098.229$00), acrescido de juros moratórios à taxa contratual (taxa legal acrescida de dois pontos percentuais), contados desde o vencimento dessas prestações (10-4-2000), que o mesmo é dizer que o R. tem de pagar à 1ª A. o valor total das prestações não pagas e respectivos juros moratórios, deduzido do valor comercial do veículo.



Pelo exposto, decide-se, na procedência da apelação, em alterar a decisão recorrida e, declarando-se válida a rescisão do contrato de financiamento ajuizado, condena-se o R. a reconhecer que o veículo 74-76- GC pertence à 2ª A. e a entregá-lo às AA. e ainda a pagar à 1ª A. uma indemnização correspondente ao montante das prestações não pagas (1.098.229$00), acrescido de juros, contados à taxa contratual supra referenciada, desde 10-4-2000, deduzido do valor comercial desse veículo na data em que foi entregue às AA. (7-10-2001).


Custas em ambas as instâncias pelo apelado.



Lisboa, 05-05-2005

Carlos Valverde
Granja da Fonseca
Roger Sousa